Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Neste livro, publicado originalmente em 1924 — aqui na edição de 1979, da CD e da Editora da UnB — figura um texto de Gilberto Amado, “As instituições políticas e o meio social no Brasil”, que começa com uma frase que deveria interessar nosso maior historiador da escravidão, Laurentino Gomes:
“Atentai, Senhores, aí está esboçada toda a história do Brasil no século XIX: Senhores e escravos.” (p. 45) Eu apenas corrigiria: não é só no século XIX, mas em toda a história do Brasil, da conquista portuguesa aos nossos dias. Gilberto Amado trata, em sua contribuição ao livro de Vicente Licínio Cardoso, não só do tráfico, como da escravidão, de uma forma geral, e também da ausência de escolas no imenso território brasileiro.
Gilberto Amado se perguntava, ao final, se “diante do estado social do Brasil, é lícito acreditar que qualquer mudança nas instituições possa influir decisivamente para a felicidade do país? É de crer que qualquer modificação nos textos da Constituição [de 1891] tenha efeito sobre um meio nas condições em que se acha o nosso?” (p. 58)
Ele termina por um julgamento que, 98 anos depois, ainda parece válido para os nossos tempos;
“A ação política não pode deixar de exercer-se senão através de homens bem intencionados que possam suprir pela própria energia construtiva, atividade e patriotismo — no sentido do desinteresse pessoal e da capacidade de resistência às agitações improfícuas — as insuficiências de uma população ainda incapaz de exercer os seus direitos políticos e cumprir, como responsável pelos próprios destinos, os deveres cívicos que lhe incumbem.” (p. 59)
Cem anos depois desse diagnóstico desanimador, parece que ele se mantém intacto na perenidade de suas constatações. Triste constatar isso!
Ao longo do tempo o termo república assumiu vários significados designando de maneira genérica uma forma de relacionamento entre governantes e governados ou servindo para designar certos Estados tais como Roma, depois da queda da monarquia, e Siena, dos fins da Idade Média. No Brasil, o entendimento mais corrente está muito próximo daquele utilizado por Maquiavel, que inicia O Príncipe afirmando que “todos os Estados ... foram e são, ou repúblicas ou principados”, ou seja, uma forma de governo como alternativa à monarquia. Assim, no dia 15 de novembro é celebrado o dia em que a forma republicana de governo foi adotada no Brasil em substituição à monarquia. Com o passar dos anos a data passou a ter um caráter comemorativo tornando-se um costume fazer dela uma ocasião para discursos e outras manifestações laudatórias das virtudes e das vantagens da forma republicana de governo. Este breve ensaio, no entanto, pensando no que poderia haver de relevante para a compreensão da política brasileira, propõe uma reflexão em outra direção.
A observação dos acontecimentos na esfera política leva a crer que o sentido mais precioso do termo República não é o de forma de governo que substitui a Monarquia, mas sim o de res publica, isto é o do entendimento das instituições do Estado como coisa pública. Com efeito, olhando-se o Brasil de hoje, conclui-se que o advento da república não significou, após cinco gerações, uma forma mais avançada ou mais eficaz de organizar as instituições políticas. Na verdade, o que se observa nas nações consideradas mais avançadas do mundo é que não há diferença entre regimes republicanos e monárquicos, ao menos no que se refere à idéia de democracia representativa e quanto à capacidade de o Estado cumprir seu papel, como eixo da ordem política e econômica voltado para a promoção da prosperidade. Nesse sentido, a presente análise sugere que seria mais apropriado, a cada dia 15 de novembro, simplesmente examinar a trajetória das instituições políticas do País e, de forma sensata e ponderada, procurar identificar aquilo que poderia ou deveria ser feito para defender e aperfeiçoar a democracia e as instituições que governam o País para que sejam, efetivamente, republicanas.
REPÚBLICA, DEMOCRACIA E PROSPERIDADE
Em primeiro lugar vale insistir no fato de que uma escolha entre a forma republicana ou monárquica de governo não corresponde, na realidade, a uma opção a respeito do que pode haver de mais essencial na relação entre governantes e governados: liberdade, respeito às leis e direito de escolha. Há muito tempo, a república deixou de ser uma alternativa à tirania de príncipes autocráticos. O sentido essencial da república como expressão da vontade dos governados pode estar perfeitamente presente tanto nas monarquias quanto nos regimes chamados de republicanos. Parafraseando Maquiavel, pode-se dizer que “as grandes e modernas democracias de hoje ou são repúblicas ou monarquias constitucionais ...”. Em outras palavras, não se pode dizer que o apreço pela democracia e o apego ao processo de legitimação do poder político pela vontade dos governados, esteja menos presente na Dinamarca, no Reino Unido ou nos Países Baixos, que permanecem monarquias, do que nos Estados Unidos ou na França, que adotaram a forma republicana de governo. Esse fato sugere também que um conceito como democracia, entendido como princípio orientador da organização do Estado, pode se projetar em instituições muito variadas, não sendo possível, por exemplo, dizer que um sistema bicameral seja superior ou mais eficaz do que um parlamento unicameral, ou que o presidencialismo americano seja melhor do que o parlamentarismo britânico. As instituições resultam de processos históricos vividos de maneira individual e particular pelas nações, refletindo a combinação de uma variada gama de aspectos peculiares aos países que, dessa forma, ao longo do tempo e à sua própria maneira, vão construindo individualmente as instituições políticas que melhor lhes convém.
Mesmo do ponto de vista econômico, onde os dados quantitativos são abundantes, chama a atenção o fato de que não é possível estabelecer correlação entre formas democráticas de governo e formas de interação, entre Estado e economia, capazes de tornar a nação mais próspera. Ao longo da história, nações prosperaram dentro de um ambiente democrático e republicano, mas também prosperaram sob regimes autoritários e, em tempos mais recentes, casos como o da China e de outros países da Ásia lembram uma espécie de versão contemporânea do conceito de “absolutismo esclarecido”, que tanto entusiasmou muitos filósofos nos primórdios do Estado moderno. São governos bastante fortes que, de maneira autoritária, estabelecem padrões e normas de comportamento para os atores econômicos, tornando-os competitivos e gerando riqueza e abundância para suas sociedades. Pode-se argumentar que, no longo prazo, regimes autoritários acabam por tornar-se incompatíveis com o dinamismo exigido pelos negócios e pela inovação tecnológica que sustentam o progresso econômico. Por ora, no entanto, não há dados para confirmar essa hipótese e o analista pode apenas procurar sinais de que regimes políticos autoritários tornam-se, gradativamente, menos centralizadores e menos propensos à interferência na economia, à medida que a sociedade prospera e que, inevitavelmente, vai se tornando mais integrada à ordem econômica internacional.
Por outro lado, nas grandes democracias ocidentais, a interferência na economia se faz menos por meio de medidas políticas de governantes, que estão sujeitos a leis, e mais por meio das ações do Estado como ator econômico capaz de influenciar e mesmo orientar o ambiente econômico. Todavia, nesse domínio, a participação do Estado na economia varia muito, havendo países, como os Estados Unidos, onde o Estado representa aproximadamente 1/3 do PIB e nações como a maioria dos países mais prósperos na Europa onde o Estado ultrapassa a metade do PIB, sem que se possa dizer que tenham deixado de proteger e valorizar a livre iniciativa e a liberdade econômica, de uma forma mais ampla e que as economias desses países tenham deixado de ser competitivas nos mercados internacionais. Do mesmo modo, não é possível identificar qualquer correlação entre os níveis de participação e interferência do Estado na economia, com a forma republicana ou monárquica de suas instituições políticas. No Japão, que é uma monarquia, o Estado representa uma parcela da economia semelhante à dos Estados Unidos, enquanto na França republicana o Estado é, proporcionalmente, tão grande quanto em outros países europeus, que são monarquias e igualmente prósperas. Nenhum analista e nenhum grande partido político na Europa ou nos Estados Unidos associa eventuais dificuldades econômicas, enfrentadas por qualquer uma dessas economias, às respectivas formas de governo, mas tão somente a ocasionais equívocos na política econômica ou simplesmente às variações cíclicas da economia.
O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL
Possivelmente, esses fatos ajudam a explicar porque o advento da forma republicana de governo no Brasil não ocorreu dentro de um ambiente político de intensos debates sobre idéias e de disputas dramáticas de poder entre monarquistas e republicanos. A abolição da escravidão, a questão militar, a ascensão de uma classe média e outros eventos considerados pelos historiadores como importantes para o advento da república, eram questões que poderiam ter sido manejadas dentro do regime vigente, uma vez que não há como afirmar que tivessem por origem qualquer incompatibilidade substantiva com o regime e, além disso, nações como o Reino Unido, os Países Baixos ou a Noruega, ao longo do tempo, realizaram seguidas mudanças nas suas instituições políticas, adequando-as às seguidas transformações, por vezes dramáticas, vividas pelas respectivas sociedades no decurso do último século e meio. Em 1889, a monarquia brasileira já era um governo do tipo representativo perfeitamente compatível com os padrões vigentes no mundo, em matéria de instituições que procuravam acomodar as principais forças políticas da nação. Além disso, D. Pedro II estava longe de ser um governante autoritário e centralizador. Alguns historiadores mencionam as disputas entre a Coroa e a Igreja Católica como um desses eventos importantes que teriam desencadeado a queda da monarquia, por ter contribuído para solapar a base política do Imperador. Entre as novidades advindas com a proclamação da república, uma delas foi a separação entre o Estado e a Igreja, mas esse processo ocorreu, de uma maneira ou de outra, em todas as monarquias que se modernizaram. A questão federativa, que aparece em destaque no Manifesto Republicano de 1870, a abolição da escravidão, as dificuldades econômicas ou ainda as inquietações no exército, na realidade constituíam parte de um processo de transformação mais ampla e profunda da sociedade brasileira, diante de um mundo que também se transformava. Na realidade, em toda parte, as instituições políticas sofriam mudanças e se acomodavam às novas circunstâncias sem, contudo, associar esse processo a escolhas entre republicanismo e monarquia. Em resumo, o regime monárquico não constituía empecilho real para as demandas sociais ou para uma eventual revisão nos padrões de participação política das forças econômicas emergentes da nação.
Talvez o melhor retrato do ambiente em que foi implantada a forma republicana de governo tenha sido dada por Raul Pompéia que, em crônica publicada anonimamente, relata a melancólica partida do Rio de Janeiro de D. Pedro II e da família imperial, logo após o decreto de expulsão promulgado pelo Governo Provisório. No meio da madrugada – diz a crônica – sem manifestações de qualquer tipo, a família imperial partiu para o exílio sem deixar no Brasil nem sentimentos de ódio e nem partidários dispostos a iniciar uma luta política para promover seu retorno. Aliomar Baleeiro, logo na introdução de seu ensaio sobre a Constituição de 1891, também faz uma apreciação na mesma direção: “o povo brasileiro cansara-se da monarquia, cuja modéstia espartana não incutia nos espíritos a mística e o esplendor dos tronos europeus. O Imperador vestia trajes civis, pretos, como qualquer sujeito respeitável da época, sem fardas de dourados ... Conta-se que a Princesa Imperial trazia consigo, no decote, fósforos para acender, ela mesma, as velas à boca da noite.”
A res publica NO BRASIL DE HOJE
Em nossos dias, de tempos em tempos, a República tem sido abalada por escândalos e a ineficiência crônica do Estado aparece nos mais diferentes domínios das instituições encarregadas do provimento de bens como justiça, segurança dos cidadãos e os inúmeros serviços públicos essenciais, que os Estados modernos prestam hoje às suas populações. Convém refletir sobre o fato de que esses escândalos, assim como a crônica ineficiência do Estado brasileiro, não são produtos da forma de governo, mas da incapacidade de construir e de manter instituições que tornem o Estado brasileiro tão eficaz quanto tem sido em muitos outros países republicanos ou monárquicos. Por exemplo, em países onde a justiça – talvez a componente mais essencial do Estado no que diz respeito à proteção dos direitos individuais e coletivos – se mostra razoavelmente operante, uma lei como a da chamada “ficha limpa” seria completamente inócua e desnecessária, uma vez que, se a justiça funcionasse razoavelmente no Brasil, os políticos indiciados como passíveis de serem enquadrados nessa lei já teriam sido, há muito tempo, devidamente condenados ou absolvidos. Há políticos que tomam posse de cargos executivos ou legislativos apesar de condenados e de procurados pela justiça por terem cometido crimes comuns, e cujo processo judicial tivera seu início bem antes da formalização até mesmo de sua candidatura. Há os tribunais eleitorais ou trabalhistas cuja existência é totalmente dispensável, uma vez que qualquer ação julgada por essas instâncias pode ser levada ou contestada em outras instâncias judiciárias. A menos que o poder dessas instâncias seja efetivamente reconhecido nas matérias de que tratam, a manutenção dessas cortes representa apenas um ônus para o Estado e, principalmente, um custo às vezes impagável para os cidadãos que buscam a justiça para proteger seus direitos.
A distância entre a noção de res publica e as instituições do Estado brasileiro, que parece aumentar continuamente, assume a feição de um patrimonialismo político, cuja capacidade de adaptação se revela ilimitado. Falava-se de uma política “café com leite” referindo-se à República Velha, quando o poder se alternava entre os produtores de café de São Paulo e os proprietários de terras e criadores de gado de Minas Gerais. Hoje, após a eleição presidencial, Ministérios e agências da administração do Estado são disputados como se fossem espólios ou butins a serem conquistados. As manifestações a respeito de “direitos” a cargos e postos na administração pública ocorrem de forma aberta e sem qualquer pejo ou referência a qualquer propósito de servir à coletividade, que justificaria a existência de um Ministério ou agência governamental. Nos fins da Idade Média, após a tomada de uma cidadela sitiada, os vencedores disputavam entre si os espólios dos vencidos. Essa disputa se afigurava tão natural quanto o é hoje a disputa por cargos e indicações após uma vitória eleitoral. D. Quixote, personagem criado por Cervantes, com toda a sua ingênua pureza, prometia ao seu amigo e escudeiro Sancho Pança uma ilha que seria conquistada com o valor de seu braço. No caso do Brasil, trata-se de um espólio de proporções imensas. Conforme dados de 2009, disponíveis na página do Fundo Monetário Internacional, o Brasil era a oitava economia do mundo e o orçamento do Estado brasileiro, de quase US$ 600 bilhões, seria maior do que o PIB de países como Suíça (US$ 491 bilhões), Suécia (US$ 406 bilhões), Dinamarca ou Argentina (ambos com um PIB de cerca de US$ 310 bilhões). Na verdade, o Estado brasileiro equivalia, em 2009, à posição de 18ª. economia do mundo. Nesse quadro, a pergunta essencial é: para onde vai essa enorme soma de recursos? Além do sistema de arrecadação de taxas e impostos, existe alguma instituição do Estado que efetivamente funcione satisfatoriamente? Existe alguma instituição do Estado que possa ser qualificada como verdadeira res publica, isto é, serve unicamente ao interesse público? Por que as pessoas que possuem meios não procuram a saúde pública, não se utilizam dos transportes públicos, não confiam suas crianças à educação pública? Por que se permite que milhares de pessoas vivam em favelas degradantes à condição humana? Por que todas as organizações e indivíduos que possuem meios precisam contratar serviços privados de segurança? Enfim, a lista de perguntas é interminável.
Esses fatos, mencionados a título de exemplo, apontam para o risco sempre presente de repetir o que se fez, em certa medida, nos fins do século XIX quando, ao invés de aperfeiçoar e adequar as instituições acompanhando as inevitáveis mudanças dos tempos, preferiu-se atacar as instituições da monarquia constitucional. O ambiente que tem cercado as últimas eleições e seus desdobramentos na forma de partilha do espólio conquistado, revelam que a ineficiência do Estado em prover bens públicos essenciais deve continuar, independente de quem seja eleito. Os recursos do orçamento público brasileiro são enormes, mas não são ilimitados. Pode haver focos de insatisfação na divisão do butim que podem evoluir para defecções e crises. Corre-se o risco de comprometer até mesmo a democracia sem, contudo, atingir efetivamente os procedimentos e costumes viciados existentes nas várias instâncias do Estado que, assim, continuarão servindo de guarida à ganância dos políticos desonestos. Ernest Hambloch, em 1934, escreveu uma interpretação bastante crítica a respeito dos primeiros anos da república – a República Velha (1889-1930) – na qual lembra um curioso episódio: quando Rojas Paul, presidente da Venezuela, soube da queda da monarquia brasileira, teria exclamado triste e profeticamente: “Este é o fim da única república que jamais existiu na América.” Obviamente, o presidente Rojas Paul empregava o termo república na sua acepção mais desejável: o do governo entendido como res-publica.
BIBLIOGRAFIA
A. BALEEIRO, Constituições Brasileiras, volume II. 1891. Senado Federal, CEE/MCT, ESAF/MF. Brasília, 1999 (p. 13)
E. HAMBLOCH, Sua Majestade o Presidente do Brasil. Senado Federal, Brasília, 2000 (p. 34)
F. M. DA COSTA, Os Melhores Contos que a História Escreveu. Editora Nova Fronteira, R. De Janeiro, 2006 (pp. 461-7)
A Constituição de 1891, promulgada pelos senadores e deputados constituintes 15 meses após a derrubada de D. Pedro II, estabeleceu as bases políticas sobre as quais o país se ergue até os dias de hoje: a República, o presidencialismo, os três Poderes e o federalismo.
Até 1889, as bases eram bem diferentes. Como Monarquia parlamentarista, o Brasil tinha imperador e primeiro-ministro. Havia o Poder Moderador, que era exercido pelo monarca e prevalecia sobre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Diferentemente dos atuais estados, as antigas províncias eram meros braços do governo central e quase não tinham autonomia política e financeira. Nem sequer escolhiam seus próprios presidentes (como se chamavam os governadores).
Entre as raras vozes da sociedade que conseguiram se manifestar na Constituinte de 1890-1891, estiveram o Apostado Positivista e a Igreja Católica, ambos por meio de carta. Os seguidores do positivismo (filosofia na época em voga que pregava que só a ciência garantiria o progresso da humanidade) recomendaram aos parlamentares que ficassem atentos para não cair em “utopias comunistas”. Os religiosos, por sua vez, não gostaram de ver o catolicismo perdendo o status de religião oficial do Brasil e os subsídios dos cofres públicos.
“A separação violenta, absoluta e radical não só entre a Igreja e o Estado, mas entre o Estado e toda religião, perturba gravemente a consciência da nação e produzirá os mais funestos efeitos, mesmo na ordem das coisas civis e políticas. Uma nação separada oficialmente de Deus torna-se ingovernável e rolará por um fatal declive de decadência até o abismo, em que a devorarão os abutres da anarquia e do despotismo”, escreveu o arcebispo primaz do Brasil, D. Antônio de Macedo Costa.
Os católicos não foram ouvidos. Além da separação entre Igreja e Estado, a Constituição de 1891 determinou que o casamento religioso não teria mais validade pública, apenas o casamento civil.
De acordo com o cientista político Christian Lynch, da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o governo republicano recorreu a vários artifícios para ter controle sobre o conteúdo da Constituição que seria aprovada:
— Primeiro, a eleição para o Congresso Constituinte foi regida por uma legislação fraudulenta, que impediu a entrada de todos que fossem adversários do novo regime, como os monarquistas, os parlamentaristas e os unitaristas [opositores do federalismo]. Depois, o governo enviou um projeto de Constituição pronto e deu aos constituintes parcos três meses para aprová-lo, o que restringiu as discussões e dificultou as modificações. Por fim, os constituintes automaticamente se tornariam senadores e deputados ordinários, sem nova eleição, após a dissolução do Congresso Constituinte. Isso foi ruim porque eles perderam a liberdade de decidir. Estando com o mandato garantido pelos próximos anos, não faria sentido que mudassem as regras do jogo político em seu prejuízo. Jamais, por exemplo, aprovariam uma Constituição prevendo o Poder Legislativo unicameral. No fim das contas, o Congresso Constituinte fez pouco mais que carimbar o projeto do governo provisório.
Apesar de a escravidão ter sido abolida apenas três anos antes, o Congresso Constituinte não tocou na complicada situação dos antigos escravizados, que foram libertados sem ganhar nenhum tipo de compensação ou apoio do poder público. A escravidão foi citada, por exemplo, quando um constituinte parabenizou o governo por incinerar todos os registros públicos relativos à posse de escravizados e também quando um político de Campos (RJ) afirmou que a Lei Áurea havia levado sua cidade à ruína econômica.
Alguns parlamentares chegaram a questionar se o povo teria condições intelectuais para, pelo voto direto, escolher os presidentes da República.
— O voto direto traz o país constantemente sobressaltado por ocasião das eleições, às quais concorre grande massa de povo ignorante, e não raro são os distúrbios e desordens que provoca, o que se economiza perfeitamente com o voto indireto, dando-se a faculdade eletiva a um eleitorado escolhido — argumentou o deputado Almeida Nogueira (SP).
— No Brasil, como em toda parte, qualquer que seja o sistema preferido, quem governa não é a maioria da nação. É a classe superior da sociedade, uma porção mais adiantada e, conseguintemente, mais forte da comunhão nacional — acrescentou o deputado Justiniano de Serpa (CE).
Apesar desse tipo de raciocínio, a Constituição de 1891 entrou em vigor prevendo a eleição direta para presidente. Grande parte dos ex-escravizados, contudo, foi alijada desse direito, já que a Carta republicana negou o voto aos analfabetos, como já faziam as leis do Império desde 1881. O deputado Lauro Sodré (PA) tentou, sem sucesso, permitir que os iletrados votassem:
— Estamos em uma fase social que se acentua pela elevação do proletariado. Se lançarmos os olhos para os povos civilizados, havemos de ver que em todos eles se vai levantando a grande massa. Chamem-na socialismo, niilismo ou fenianismo, um só é o fenômeno social: o advento do Quarto Estado. Não posso dar o meu voto a este verdadeiro esbulho com que se tenta ferir todos os que não sabem ler nem escrever, ainda que trabalhem tanto na obra do progresso da nação quanto aqueles que tiveram a fortuna de aprender a assinar o seu nome.
As oligarquias estaduais aproveitaram o Congresso Constituinte para, na adoção do federalismo (transformação das províncias em estados), tentar obter o máximo possível de liberdades, prerrogativas e benesses. Sugeriu-se que o governo federal assumisse as dívidas de todos os estados, que os governos locais tivessem o poder para abrir bancos emissores de papel-moeda e que cada governador indicasse um ministro para o Supremo Tribunal Federal. Outra ideia debatida foi a liberdade para que os estados criassem suas próprias leis civis, processuais, comerciais, eleitorais e até penais.
— Os crimes de homicídio, de roubo e de furto hão de ser crimes de homicídio, de roubo e de furto no Rio Grande do Sul, no Pará, em Minas, no Amazonas e em toda parte, mas a penalidade pode diversificar. No Rio Grande do Sul, onde o povo é dado à indústria pastoril, infelizmente há em abundância o furto de gado e lá nós precisamos punir mais gravemente esse delito do que puniriam os pernambucanos, os mineiros e os alagoanos, para evitar sua reprodução — argumentou o deputado Cassiano do Nascimento (RS).
À exceção dos códigos processuais estaduais, nenhuma dessas ideias vingou. Em compensação, as oligarquias conseguiram incluir na Constituição a criação dos Judiciários estaduais (antes só havia o Judiciário nacional) e a concessão das terras devolutas aos estados (antes pertenciam à União).
— As antigas províncias, feudos da Monarquia, aqueles territórios estéreis onde dominavam o imperialismo e o niilismo, aquelas províncias verdadeiramente esfarrapadas e nuas, como se fossem mendigas, aí surgem, como que mudando de sexo, transformadas em estados — festejou o senador Américo Lobo (MG).
A partilha do dinheiro público também mobilizou as oligarquias estaduais. Dos poucos embates ocorridos nos três meses do Congresso Constituinte, esse foi o mais renhido. No Império, a autonomia financeira das províncias era quase nula. Elas não tinham poder sobre o dinheiro arrecadado em seus territórios pelo governo central, que fazia a seu critério a distribuição dos recursos. No Congresso Constituinte, os estados mais ricos buscaram acabar com essa dependência. São Paulo, por exemplo, que não gostava de ver as volumosas somas geradas pela exportação do seu café sendo aplicadas em outros cantos do Império, agiu para ter o controle de todo o dinheiro.
— Diante da decadência que se abateu sobre o Nordeste na década de 1870, em razão da crise do açúcar, a Monarquia passou a redistribuir para as províncias nordestinas o dinheiro dos tributos arrecadados em São Paulo. Por esse motivo, a Monarquia era popular no Nordeste e impopular em São Paulo. Os paulistas, que se viam como a locomotiva que puxava os 20 vagões das demais províncias vazios, abraçaram a ideia do federalismo republicano porque não queriam mais perder dinheiro — explica o cientista político Christian Lynch.
A bancada do Rio Grande do Sul apresentou uma proposta radical de federalismo: a arrecadação tributária passaria para as mãos dos governos locais, e a União se tornaria dependente de uma mesada paga pelos estados.
— Se dermos aos estados toda a autonomia, mas não lhes dermos renda, isso equivalerá à liberdade da miséria — argumentou o deputado Júlio de Castilhos (RS). — A federação, para ter realização efetiva, completa, satisfatória, depende da devolução aos estados não somente dos serviços que lhes competem, mas também da devolução das rendas que no regime decaído [Monarquia], o qual tanto combatemos, eram absorvidas quase que totalmente pelo governo central.
— Neste momento em que se tratamos de organizar os estados, se me afigura como que uma cena de família em que os filhos da casa, chegados à maioridade, deixam o teto paterno para constituírem em separado suas famílias. Os estados, antigas províncias, vão neste momento, depois de sua independência, adotar um novo regime que deve produzir sua grandeza e felicidade — comparou o senador Ramiro Barcellos (RS).
Para os adversários da ideia, esse federalismo extremado fortaleceria tanto certos estados que poderia levá-los a desejar o separatismo, comprometendo a União.
— O que se está propondo é uma confederação de republiquetas — criticou o senador José Hygino (PE).
— Os estados brasileiros têm tido nesta Casa tantos defensores quantos são os seus representantes. A União, porém, a pátria comum, parece que não tem advogado — lamentou o senador Ubaldino do Amaral (PR), acrescentando que, caso os estados em algum momento se recusassem a transferir os impostos, o governo federal não teria como custear o Exército, a Marinha, as embaixadas no exterior, o serviço de correios e a segurança interna.
Para o senador Ruy Barbosa (BA), a União estaria fadada à morte se passasse a depender das “migalhas” dos estados:
— Os estados são órgãos; a União é o agregado orgânico. Os órgãos não podem viver fora do organismo assim como o organismo não existe sem os órgãos. Separá-los é matá-los. Não vejamos na União uma potência isolada no centro, mas a resultante das forças associadas disseminando-se equilibradamente até as extremidades. Fora da União, não há conservação para os estados.
Por uma margem apertada, 123 votos contrários e 103 favoráveis, a proposta da bancada gaúcha foi derrotada. O federalismo previsto na Constituição de 1891 garantiu recursos equilibrados para a União e o conjunto do estados. A estes últimos coube, entre outros, o imposto de exportação — justamente o principal pleito de São Paulo.
Aristides Lobo, o jornalista que descreveu o povo assistindo “bestializado” ao golpe de Estado de 1889, elegeu-se deputado pelo Distrito Federal (na época o Rio de Janeiro) e participou da elaboração da Constituição de 1891. O artigo ficou tão famoso já na época que, no Congresso Constituinte, ele ouviu colegas avaliando que o adjetivo “bestializado” era exagerado e jurando que o povo havia, sim, ajudado a derrubar a Monarquia. Lobo discordou:
— O acontecimento deu-se no meio de uma população surpresa pela oscilação revolucionária. Esse é o aspecto natural da questão.
Na tribuna do Paço de São Cristóvão, o deputado Serzedello Correia (PA) fez uma avaliação semelhante à de Aristides Lobo:
— A República devia vir como veio: calma, silenciosa, de modo que as tropas percorreram as ruas em triunfo e as crianças continuavam a brincar no colo de suas mães.
Terminado o Congresso Constituinte, os parlamentares deixaram o improviso do Paço de São Cristóvão e se mudaram para o Centro do Rio de Janeiro. Os senadores passaram a trabalhar no mesmo prédio do Senado imperial e os deputados, no mesmo prédio da Câmara imperial. São Cristóvão se transformou no Museu Nacional — o mesmo que seria devastado em 2018 por um incêndio.
A seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre a Agência Senado e o Arquivo do Senado, é publicada na primeira sexta-feira do mês no Portal Senado Notícias.
Mensalmente, sempre no dia 15, a Rádio Senado lança um episódio do Arquivo S na versão podcast, disponível nos principais aplicativos de streaming de áudio.
Reportagem e edição: Ricardo Westin
Pesquisa histórica: Arquivo do Senado
Edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Pintura da Capa: Gustavo Hastoy/ Museu do Senado
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
Do meu ponto de vista, existe apenas um fato objetivo a ser registrado: hoje é UM dia. Ponto. A República ainda não existe. Algumas das razões estão nesse editorial. Resumo: o Estado sempre foi grande, e atualmente continua engolindo a sociedade. Os atuais donos do poder não vão mudar isso. Mesmo que tivessem consciência— e alguns não têm a mínima noção do que são políticas de Estado —, não têm convicção nem intenção. Seria preciso que fossem estadistas. Conclusão: vamos continuar a nos arrastar penosamente em direção à modernidade, com várias bolas de ferro atadas às duas pernas. Algumas dessas bolas são justamente representadas por alguns dos atuais donos do poder, nos três poderes...
Paulo Roberto de Almeida
130 anos de República
Editorial Gazeta do Povo
15/11/201
As bases da república inaugurada há 130 anos ainda estão aí e não foram capazes de lançar a nação rumo ao grupo dos países desenvolvidos
Neste 15 de novembro, a república presidencialista brasileira completa 130 anos desde sua proclamação em 1889, quando um golpe político e militar liderado pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca aboliu a monarquia parlamentarista, destituiu o imperador dom Pedro II e instaurou a república. O Brasil já havia decidido, 77 anos antes, tornar-se livre e responsável por seu destino com a declaração de independência em relação a Portugal, em 1822. Desde então, o país aprovou sete constituições, a “Lei Fundamental” das bases, princípios e normas sob as quais o país e sua população decidem como querem existir e se desenvolver. A primeira Constituição data de 1824, logo após a independência; a segunda, de 1891, menos de dois anos após a proclamação da República; a terceira, de 1934, na chamada Segunda República; a quarta, de 1937, na época do Estado Novo, sob a ditadura de Getúlio Vargas; a quinta é de 1946, voltando às bases da Constituição de 1934, para eliminar os ditames do regime autoritário getulista; a sexta, de 1967, foi elaborada pelos militares que haviam assumido o poder em 1964, com o golpe que depôs João Goulart; por fim, a sétima – e que vigora até hoje – foi promulgada em 1988; apelidada de Constituição Cidadã, ela consolidou a redemocratização iniciada em 1985.
Essas sete constituições e suas emendas resultaram todas da promessa de criar as bases para o desenvolvimento nacional, superar a pobreza e oferecer um bom padrão de vida e de bem-estar social ao povo brasileiro. A Constituição atual, promulgada em 5 de outubro de 1988, já teve pouco mais de 100 emendas, entre as ordinárias e as emendas de revisão, e ainda terá várias outras, a julgar pela quantidade de PECs em tramitação no Congresso Nacional. Portanto, não é por falta de normas constitucionais que o Brasil continua com baixo crescimento econômico, elevado desemprego e altos índices de pobreza. O problema não reside na quantidade de normas, mas em seus princípios e sua qualidade.
Vários erros foram cometidos pelo país ao longo de sua história, e eles fazem parte da explicação sobre o atraso e a pobreza, a despeito das riquezas naturais abundantes. Sempre são invocadas causas como a formação nacional, a cultura, os hábitos e a mentalidade da população – temas que são objeto de profundas controvérsias –, aos quais se juntam erros conhecidos. Um deles, a industrialização tardia e a permanência do país dependente de um setor agrícola pobre e sem tecnologia, como resultado do fato de que, embora a independência tenha ocorrido em 1822, somente em 1844 foram instalados os primeiros pilares para a industrialização.
Outro erro foi a demora em abolir a escravidão, o que ocorreu somente em 1888, retardando o surgimento de uma classe de trabalhadores livres, necessários para o novo ciclo de desenvolvimento baseado na indústria e nas tecnologias surgidas a partir da Revolução Industrial décadas antes. Os trabalhadores livres teriam sido importantes para formar uma classe com renda capaz de significar uma nova classe de consumidores, necessária à formação de um mercado consumidor interno. Para agravar o quadro, o terceiro erro foi a não criação, junto com a declaração da independência, de um sistema de educação básica pública e gratuita para todos os brasileiros. A omissão do Estado em relação à educação, desde a expulsão dos jesuítas em meados do século 18, foi talvez o mais grave dos erros. No tempo da colônia, os jesuítas atuavam na educação brasileira, mas, após um longo histórico de problemas com a Coroa portuguesa, o rei dom José I, aconselhado pelo Marquês de Pombal, decidiu pela expulsão dos jesuítas do reino português e suas colônias em 1759, sem que o governo – seja o português, até a independência, seja o imperial, depois de 1822 – assumisse a tarefa de montar um moderno sistema educacional.
Embora a industrialização tardia, a demora em pôr fim à escravidão e a inexistência de um sistema educacional tenham dado causa à pobreza e ao baixo desenvolvimento que vigoram até hoje, esses fatos da vida nacional não respondem sozinhos pelo atraso do país. As bases da república inaugurada há 130 anos ainda estão aí e não foram capazes de lançar a nação rumo ao grupo dos países desenvolvidos. Um dos problemas é que, a cada Constituição implantada, aumentava o inchaço do setor estatal; mais o governo passava a interferir na vida dos indivíduos e nos negócios, mais a burocracia estatal se tornava cara, ineficiente, sufocante e corrupta, de forma que se acabou criando uma sociedade a serviço do Estado, e não o inverso, que seria o correto.
Ulysses Guimarães, presidente da Câmara e da Assembleia Nacional Constituinte na promulgação da Constituição de 1988, chamou a carta magna de “Constituição Cidadã” sob o argumento de que ela trouxe o cidadão para dentro da lei fundamental, alegando que isso iria servir aos pobres e melhorar as condições sociais. A intenção pode ter sido boa, mas o que se viu, ao longo desses 130 anos de República e 31 anos da Constituição de 1988, com suas mais de 100 emendas, foi um país amarrado, lento, fechado e pouco inovador. O povo não foi trazido para dentro da Constituição: pelo contrário, o Estado subiu nos ombros do povo para tributá-lo e controlá-lo. O resultado é que nem os 130 anos de República, nem os quase 200 anos de independência (a completar em 2022), e muito menos a Constituição Cidadã foram suficientes para tirar o país do atraso, superar a pobreza e melhorar o padrão de bem-estar social médio dos 208,5 milhões de habitantes a ponto de tornar o Brasil um país desenvolvido. O desafio de cumprir os objetivos declarados na Carta Magna continua aberto, à espera das reformas que efetivamente coloquem o Estado para servir o cidadão.
Em artigo no jornal O Globo, Marco Anônio Villa revisita a história política brasileira e vê, com desalento, a formação de uma nova geração de desiludidos com a República:
A proximidade das eleições permite uma breve reflexão sobre o processo de formação de uma cultura política democrática no Brasil. A República nasceu de um golpe militar. A participação popular nos acontecimentos de 15 de novembro de 1889 foi nula. O novo regime nasceu velho. Acabou interrompendo a possibilidade de um Terceiro Reinado reformista e modernizador, tendo à frente Isabel como rainha e chefe de Estado e com os amplos poderes concedidos pela Constituição de 1824.
A nova ordem foi edificada para impedir o reformismo advogado por Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay e André Rebouças, que incluía, inclusive, uma alteração no regime de propriedade da terra. Os republicanos da propaganda — aqueles que entre 1870, data do Manifesto, e 1889, divulgaram a ideia republicana em atos públicos, jornais, panfletos e livros — acabaram excluídos do novo regime. Júlio Ribeiro, Silva Jardim e Lopes Trovão, só para recordar alguns nomes, foram relegados a plano secundário, considerados meros agitadores.
O vazio no poder foi imediatamente preenchido por uma elite política que durante decênios excluiu a participação popular. As sucessões regulares dos presidentes durante a Primeira República (1889-1930) foram marcadas por eleições fraudulentas e pela violência contra aqueles que denunciavam a manipulação do voto.
Os opositores — os desiludidos da República — passaram a questionar o regime. Se apontavam corretamente as falácias do sistema eleitoral, indicavam como meio de superação, como disse um deles, desses “governichos criminosos”, a violência, a tomada pelas armas do Estado. E mais: que qualquer reforma só poderia ter êxito através de um governo ultracentralizador, instrumento indispensável para combater os poderosos, os senhores do baraço e do cutelo, como escreveu Euclides da Cunha.
Assim, o ideal mudancista tinha no seu interior um desprezo pela democracia. Acentuava a defesa de um novo regime para atender as demandas da maioria, mas com características autoritárias. Alguns até imaginavam que o autoritarismo seria um estágio indispensável para chegar à democracia.
A Revolução de 30 construiu o moderno Estado brasileiro. Enfrentou vários desafios e deu um passo adiante no reformismo nacional. Porém, aprofundou as contradições. Se, de um lado, foram adotados o voto secreto, a Justiça Eleitoral, o voto feminino, conquistas importantes, manteve uma visão de mundo autoritária, como ficou patente desde 1935, com a repressão à rebelião comunista de novembro, e mais ainda após a implantação da ditadura do Estado Novo, dois anos depois.
A vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial deu alguma esperança de, pela primeira vez, caminharmos para o nascimento de uma ordem democrática. A Constituição de 1946 sinalizou este momento. O crescimento econômico, a urbanização, o fabuloso deslocamento populacional do Nordeste para o Sul-Sudeste, a explosão cultural-artística — que vinha desde os anos 1930 — foram fatores importantes para o aprofundamento das ideias liberal-democráticas, mesmo com a permanência do autoritarismo sob novas vestes, como no ideário comunista, tão influente naquele período.
O ano de 1964 foi o ponto culminante deste processo. A democracia foi golpeada à direita e à esquerda. Para uns era o instrumento da subversão, para outros um biombo utilizado pela burguesia para manter sua dominação de classe. Os que permaneceram na defesa do regime democrático ficaram isolados, excluídos deste perverso jogo autoritário. Um desses foi San Tiago Dantas.
Paradoxalmente foi durante o regime militar — especialmente no período ditatorial, entre os anos 1968-1978 — que os valores democráticos ganharam enorme importância. A resistência ao arbítrio foi edificando um conjunto de valores essenciais para termos uma cultura política democrática. E foram estes que conduziram ao fim do regime e à eleição de Tancredo Neves, em janeiro de 1985.
No último quartel de século, contudo, apesar das sucessivas eleições, a cultura democrática pouco avançou, principalmente nos últimos 12 anos. As presidências petistas reforçaram o autoritarismo. A transformação da luta armada em ícone nacional é um bom (e triste) exemplo. Em vez de recordar a luta democrática contra o arbítrio, o governo optou pela santificação daqueles que desejavam substituir a ditadura militar por outra, a do “proletariado”.
O processo eleitoral reforça este quadro de hostilidade à política. A mera realização das eleições — que é importante — não desperta grande interesse. Há um notório sentimento popular de cansaço, de enfado, de identificação do voto como um ato inútil, que nada muda. De que toda eleição é sempre igual, recheada de ataques pessoais e alianças absurdas. Da ausência de discussões programáticas. De promessas que são descumpridas nos primeiros dias de governo. De políticos sabidamente corruptos e que permanecem eternamente como candidatos — e muitos deles eleitos e reeleitos. Da transformação da eleição em comércio muito rendoso, onde não há política no sentido clássico. Além da insuportável propaganda televisiva, com os jingles, a falsa alegria dos eleitores e os candidatos dissertando sobre o que não sabem.
O atual estágio da democracia brasileira desanimaria até o doutor Pangloss. A elite política permanece de costas para o país, ignorando as manifestações de insatisfação. E, como em um movimento circular, as ideias autoritárias estão de volta. Vai se formando mais uma geração de desiludidos com a República. Até quando?