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domingo, 14 de dezembro de 2025

Com disputa entre Poderes, Brasil vive baderna institucional - CHRISTIAN LYNCH (FSP)

Com disputa entre Poderes, Brasil vive baderna institucional

CHRISTIAN LYNCH

FSP 13.12.2025 

[RESUMO] Em análise da conjuntura política do país, autor argumenta que reconstruir um modelo de governabilidade estável se tornou inviável, já que cada Poder busca reafirmar a sua supremacia sem um pacto mínimo de convivência. Enquanto o Executivo busca recuperar seu poder de agenda, o STF resiste a perder espaço, a extrema direita bolsonarista tenta voltar à Presidência e o centrão se empenha em consolidar sua hegemonia no Congresso.

O artigo 2º da Constituição afirma que os Poderes da República são "independentes e harmônicos entre si". Trata-se de uma quimera: se são independentes, não são automaticamente harmônicos e, se pretendem sê-lo, precisarão moderar essa independência.

A harmonia institucional não decorre do texto constitucional, mas de modelos de governabilidade criados a partir de sua interpretação — modelos capazes de coordenar expectativas, prerrogativas e ambições de cada Poder, criando previsibilidade em suas relações. Quando esses modelos existem, o regime constitucional respira; quando se desfazem, o país entra em espiral de instabilidade.

Ao longo de dois séculos, tais modelos variaram conforme conjunturas e correlações de força. O chamado modelo regressista ou saquarema, criado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, estabilizou, nos anos 1840, um sistema parlamentar em que o Executivo imperial impunha direção ao nascente Estado nacional. A política dos governadores, inaugurada por Campos Sales em 1900, traduziu-se em um arranjo que garantiu ao Executivo republicano a governabilidade coordenando as oligarquias estaduais.

Já no período pós-1988, o presidencialismo de coalizão organizado por Fernando Henrique Cardoso ofereceu, a partir de 1994, uma estrutura relativamente estável de trocas institucionais e permitiu previsibilidade à condução política. Nenhum desses arranjos era idílico, mas todos domesticaram o conflito e contiveram a instabilidade.

Há dez anos, contudo, o Brasil vive sem modelo eficiente de governabilidade. O que funcionara desde os anos 1990 — o presidencialismo de coalizão com dominância do Executivo — entrou em colapso. Assistimos a Poderes que se digladiam, se sabotam e tentam se anular mutuamente, em um ambiente em que a possibilidade de golpe, alto ou baixo, reaparece sempre que um deles se percebe acuado.

A República funciona como uma permanente guerra de trincheiras, sem regras estáveis, arbitragem reconhecida ou horizonte de acomodação. Nenhum ator reconhece limites estáveis ao exercício de sua autoridade.

A instabilidade crônica explodiu com a Lava Jato, que inaugurou aquilo que chamei de revolução judiciarista: uma investida de inspiração neoconstitucionalista que atribuiu ao Judiciário um protagonismo sem precedentes, convertendo-o de árbitro em ator político central. O próprio modelo de governabilidade, o presidencialismo de coalizão, passou a ser combatido como intrinsecamente corrupto.

Desfeita a lógica que coordenava expectativas e administrava conflitos, instalou-se a luta institucional: decisões judiciais com pretensão de dirigir o país, um Ministério Público investido da missão de purificar a República e um sistema político acuado. O equilíbrio possível implodiu, e nada foi colocado no lugar.

O Legislativo dominado pelos partidos da direita institucional, vulgarmente chamados de centrão, reagiu, tentando neutralizar o Judiciário apoderando-se do Executivo. O impeachment de Dilma Rousseff deve ser compreendido nesse contexto, não como mero desdobramento de crise econômica ou dos protestos de rua, mas como operação de reposicionamento institucional do Congresso contra a preeminência do STF (Supremo Tribunal Federal) e da Lava Jato.

Apoiado por Gilmar Mendes, Michel Temer desmontou, gradualmente, os dispositivos de poder acumulados por Curitiba. Foi o "termidor" da revolução judiciarista. Não por acaso, o Tribunal Superior Eleitoral, então presidido por Gilmar, absolveu Temer e o manteve no poder: por "excesso de provas".

A eleição de Jair Bolsonaro representou um baque inicial nesse processo. Bolsonaro jamais compreendeu a máquina do Estado e nunca formulou diagnóstico realista da conjuntura. Seu populismo reacionário era guiado pela ignorância e pelo negacionismo, travestidos de senso comum conservador. Apostou em um bonapartismo retrógrado, que restauraria a ditadura militar por meio de um cesarismo de WhatsApp.

O fracasso o jogou no colo da classe política que dizia combater. Ao enterrar a Lava Jato e alugar o governo ao centrão para sobreviver, entregou-lhe as chaves do Orçamento, abrindo-lhe caminho para a captura do Executivo. Simultaneamente, a extrema direita declarou guerra ao STF, produzindo um ambiente de hostilidade permanente que o centrão soube instrumentalizar — ora como ameaça, ora como biombo.

Realizou-se então metade do sonho do centrão: estabelecer, no Brasil, por uma espécie de parlamentarismo bastardo, a hegemonia de uma oligarquia congressual autorreprodutível, financiada pelo Fundo Eleitoral e pelas emendas parlamentares. Nesse sentido, a eleição de Lula, em regime de governo minoritário, não foi má para o bloco. O centrão não queria a autocracia estúpida de Bolsonaro, que ameaçava inclusive seu espaço; queria um Executivo fraco, dependente, obrigado a negociar sua sobrevivência cotidiana com um Congresso hegemonizado por lideranças conservadoras.

A debilidade estrutural do governo, somada à distância ideológica entre a média do Executivo (social-democrata) e a média do Parlamento (conservadora), criou o ambiente ideal. Pôde ocupar metade da Esplanada e entregar apoio apenas seletivo, jamais estrutural, à agenda presidencial.

Na impossibilidade ou na falta de desejo de assumir regime parlamentarista, o centrão limita-se a conservar e, quando possível, ampliar a hegemonia adquirida com a apropriação do Orçamento, o controle da agenda e a expansão da própria base parlamentar. Opera como polvo de múltiplos tentáculos, ajustando simultaneamente sua relação com três polos: a extrema direita bolsonarista, o STF e o Executivo fragilizado.

Apoia o STF contra o golpismo mais radical — porque o golpismo ameaça também o Congresso —, mas resiste à anistia ampla dos golpistas, porque não deseja recolocar Bolsonaro no jogo de 2026. O centrão quer a extrema direita como força útil, não dirigente. Por isso, deixa ao STF o serviço sujo de punir deputados golpistas, preservando-se do desgaste perante o eleitor radicalizado.

É nesse contexto que se compreende o acordo informal entre governo e STF. Separado do Congresso por distância ideológica incontornável e destituído dos instrumentos tradicionais de cooptação, Lula buscou no STF alguma compensação.

O tribunal, por sua vez, deseja punir os golpistas que tentaram destruí-lo e prevenir que um novo ciclo legislativo, especialmente no Senado, organize o impeachment de ministros em 2027. Daí o "judiciarismo de coalizão": recorrer ao tribunal, sobretudo aos ministros mais novos, como Flávio Dino, para conter perdas legislativas, preservar parte do poder orçamentário e impor limites ao apetite predatório do Congresso. É aliança de circunstância entre dois Poderes em posição defensiva: o Executivo, fragilizado, e o STF, desafiado.

Mas o centrão reage também a essa aproximação. Seu segundo grande objetivo — além de preservar a autonomia orçamentária que garante sua reeleição indefinida — é a absoluta impunidade de seus membros. Não basta controlar o Orçamento, é preciso controlar o alcance das decisões judiciais que atinjam deputados e senadores, golpistas ou corruptos. Para manter coesão e eminência, os líderes precisam assegurar aos parlamentares que seus mandatos dependerão exclusivamente deles. Ou seja, blindagem corporativa.

Quando a Câmara se recusa a cassar o mandato de Carla Zambelli, afrontando o STF, envia o recado: nenhum freio judicial será aceito quando tocar nas condições de autoproteção da oligarquia. A ordem de Alexandre de Moraes ao presidente da Câmara para cassar a deputada, no dia seguinte, evidencia o caráter particularmente agressivo da guerra entre Legislativo e Judiciário.

Em síntese, reconstruir um modelo tornou-se inviável porque cada Poder disputa supremacia. O Executivo tenta recuperar o poder de agenda do antigo presidencialismo de coalizão. O STF, fortalecido desde o mensalão, resiste a perder espaço. A extrema direita bolsonarista tenta voltar ao poder para destruir o sistema que a limita. O centrão empenha-se em consolidar sua hegemonia e neutralizar ou cooptar o Judiciário. Mais: quer recuperar o Executivo e a administração pública, não mais pelas mãos disfuncionais e golpistas do clã Bolsonaro, mas por meio de um candidato seu.

Essa assimetria impede um pacto mínimo de convivência: cada Poder tenta recuperar, preservar ou expandir seu espaço institucional.

A hegemonia parlamentar existe, mas não constitui modelo de governabilidade porque não é reconhecida como legítima pelos demais atores. Um regime pressupõe aceitação mútua, previsibilidade e deferência recíproca. Não foi o que vimos nos últimos dias — ao contrário.

Diante das eleições que se avizinham, o STF, o bolsonarismo e o governo atacaram o centrão quase simultaneamente e por motivos distintos. Contra o alijamento da família Bolsonaro de seus planos eleitorais, a extrema direita lançou a candidatura presidencial do filho mais velho do ex-presidente, agora presidiário. O STF também moveu suas peças: diante da ofensiva para promover impeachment de ministros em 2027, Gilmar Mendes alterou por liminar a interpretação da lei para blindar todo o tribunal. Já o governo fez o que pôde: segurou o pagamento de emendas, condicionando-o à aprovação de sua agenda.

Pressionado por todos os lados, o centrão distribuiu como prêmios de consolação seus presentes de fim de ano: ao bolsonarismo, a redução de penas dos envolvidos no golpismo, mas não a anistia; ao STF, o avanço da nova lei de impeachment, dificultando a remoção de ministros; ao Executivo, o andamento do projeto de redução da jornada laboral de seis para cinco dias e o restabelecimento do texto-base do projeto antifacção.

Em cada movimento, inclusive na proporção em que cedeu, porém, o centrão reafirmou sua condição a partir do Congresso como árbitro da política nacional. Montesquieu pode estar no inferno, mas não há dúvida sobre quem está no céu —ou quase: o centrão.

Reconstruir um modelo de governabilidade a partir do texto constitucional não é tarefa simples. É preciso algum consenso sobre o destino institucional —consenso distante, especialmente da extrema direita, empenhada em destruir a própria Constituição. O mero triunfo de qualquer dos três Poderes não parece oferecer automaticamente qualquer resolução duradoura da crise.

Do lado do Executivo, mesmo que Lula recuperasse parte das prerrogativas executivas do antigo presidencialismo de coalizão, isso não resolveria o problema: nenhum modelo anterior de governabilidade atribuía ao STF papel político de relevo. Embora o judiciarismo tenha sido constante na República, o tribunal jamais foi protagonista; tampouco atuou como poder moderador informal —papel, como se sabe, indevidamente exercido pelas Forças Armadas.

Por outro lado, a aceitação pura e simples da pretensão do STF como ator central não tem como resolver a situação. Há um problema de desenho institucional na Constituição, que torna o tribunal ao mesmo tempo órgão de cúpula do Judiciário e Corte constitucional. A Corte não pode ser árbitro e parte interessada ao mesmo tempo.

Para piorar, sua pretensão de supremacia tem sido aparentemente utilizada por determinados ministros para o exercício de práticas pouco republicanas, para não dizer corruptas. Daí que, por receio de punição ou simples arrogância dos honestos, muitos deles resistam a se submeter a códigos éticos de conduta e, principalmente, a qualquer possibilidade de controle externo.

Por fim, a formalização da hegemonia do centrão em sistema semipresidencial parece inteiramente inviável. O STF deseja a mudança do sistema, supostamente o bloco também, mas há resistência intransponível da esquerda hoje no governo, historicamente presidencialista.

Além disso, há dúvidas sobre a constitucionalidade de mudança sem plebiscito ou referendo, hipótese em que ela provavelmente seria novamente repelida, agora pela terceira vez. Na dúvida, a direita prefere ficar como está: mandando sem responsabilidade enquanto sonha em eleger seu próprio presidente.

Em um quadro como esse, a tendência sistêmica a longo prazo seria a estabilização oligárquica: o famoso acordão preconizado por um notório centrônico da década passada, "com o Supremo, com tudo". Em outras palavras, blindagem geral.

Mas essa estabilização tampouco garante estabilidade. A insatisfação crescente com a mais baixa qualidade da democracia fatalmente alimentará novas candidaturas antissistema: outro Bolsonaro, um Pablo Marçal, qualquer figura disposta a capitalizar o ressentimento acumulado. O arranjo oligárquico evitaria a quebra explícita, mas produziria uma erosão silenciosa que fragilizaria instituições, preparando terreno para novas aventuras antidemocráticas.

Avançamos, assim, para 2026. Nesse clima de baderna institucional e ideológica, chegam à mesa do eleitor os pratos do banquete eleitoral: o facho-reacionarismo da extrema direita, sempre pronto a vestir o manto da resistência à "tirania" do STF e do "comunismo", a democracia social da centro-esquerda, prometendo governar com poderes que já não possui, e o conservadorismo oligárquico centrônico, cada vez mais senhor do jogo.

Bom apetite.


sábado, 30 de agosto de 2025

José Murilo de Carvalho mostra como país falhou nos valores cívicos - CHRISTIAN LYNCH (FSP)

José Murilo de Carvalho mostra como país falhou nos valores cívicos

CHRISTIAN LYNCH

FSP 26.08.2023


[RESUMO] José Murilo de Carvalho deixou obra incontornável sobre a construção do Império brasileiro e a formação da sociedade no começo da República, destacando como o país falhou, nesses momentos históricos cruciais, em criar uma cultura cívica que superasse o elitismo, o patrimonialismo e o militarismo. Morto aos 83, o historiador deixa às novas gerações a tarefa de enfim aprofundar a cidadania no Brasil.

*

José Murilo de Carvalho foi um dos mais influentes acadêmicos de sua geração. No campo da ciência política, atuou nos programas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). No da história, foi pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e do programa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Tendo se doutorado na Universidade Stanford (EUA), foi professor visitante em um sem número de outras, como Oxford (Reino Unido) e Princeton (também nos EUA). Recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de Coimbra. A consagração definitiva chegaria com sua eleição para as mais antigas e prestigiosas instituições culturais do país: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Brasileira de Letras (ABL).


Para quem o conhecia, chamava a atenção o contraste entre a monumentalidade de sua obra e a sua personalidade, referida por Ruy Castro como tímida e modesta. Eu acrescentaria esquiva, especialmente em ambiente mundano. Essa discrição indicava, claro, sua origem de mineiro do interior, de que se orgulhava, mas havia mais que o estereótipo regional.


Nascido em 1939, José Murilo estudou em colégio de padres e militou na Ação Popular, grupo cristão de esquerda, ajudando na organização de sindicatos rurais. Para além da "mineirice", havia também certo espírito de missionário franciscano, que como cientista social cedo elegeu o Brasil como a comunidade ou "República" a cujo serviço se devotaria.


Ele acreditava que os males do Brasil decorriam da insuficiência do equivalente cívico das virtudes cristãs, que eram as virtudes republicanas. Nada surpreendente, já que desde Tiradentes e Teófilo Otoni a república sempre foi o tema por excelência da intelectualidade mineira.


Para bem servir à república como intelectual público (o equivalente secular do missionário), cumpria conhecê-la em sua formação. As inquietações de José Murilo decorriam do trauma comum a toda a primeira geração de cientistas políticos profissionais, o golpe de 1964.


Eles todos haviam na mocidade embarcado no sonho nacionalista e desenvolvimentista de Getúlio e JK. Acreditavam, pela leitura dos intelectuais do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), como Hélio Jaguaribe e Guerreiro Ramos, que a modernidade brasileira começou com a urbanização e a industrialização a partir da Revolução de 1930; e que as reformas de base eram o corolário lógico de uma nação que não mais cabia na moldura oligárquica do tempo anterior.


A marcha ascensional para patamares superiores de autonomia e igualdade era inevitável. Daí o choque de 1964, que levaria José Murilo a empregar o melhor de suas energias na revisitação do processo de formação do Estado e da sociedade brasileira anterior a 1930, em busca das causas dos males presentes.


Quem admira José Murilo como historiador deve sempre lembrar que a força de suas análises vinha de sua formação em sociologia e política. A UFMG já possuía um núcleo importante de ciência e sociologia política dentro do curso de direito, em torno de Orlando Carvalho e sua revista. Não foi difícil depois dar-lhe autonomia e profissionalizá-lo.


O tema por excelência da ciência social mineira na época era o coronelismo, que explicava a articulação das modernas instituições políticas brasileiras sobre sua arcaica estrutura socioeconômica fundiária. Sob a influência da obra clássica de Victor Nunes Leal, José Murilo escreveu suas duas primeiras obras: a primeira, sobre a política municipal de Barbacena; a segunda, sobre a criação da Escola de Minas de Ouro Preto.


Já então ele questionava a eficácia do marxismo na compreensão dos fenômenos, preferindo o weberianismo dos primeiros membros do Iseb. Quando José Murilo partiu com uma bolsa da Fundação Ford para fazer seu mestrado e doutorado em ciência política em Stanford, lá conheceu o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. Foi um encontro providencial. Wanderley o convenceu a trocar sua projetada tese sobre municipalismo por outra, a respeito da construção do Estado brasileiro no século 19. Deu certo.


Na primeira parte da tese, "A Construção da Ordem", José Murilo argumentava que, diversamente das elites da América hispânica, as do Brasil conseguiram conservar sua unidade política devido a seu maior grau de homogeneidade, uma vez que, enviadas a Coimbra, recebiam a mesma formação ideológica e uma socialização burocrática quase consensual em torno de um projeto de Estado reformista e autoritário.


Na segunda parte, "Teatro de Sombras", ele revelava a dinâmica tensa entre este Estado modernizador e a sociedade escravista agrária que a ele resistia. Quanto mais o Estado fazia uso de seus instrumentos autoritários para liberalizar a sociedade pelo alto, mais solapava os fundamentos de sua própria legitimidade.


Aqui José Murilo já revelava duas características. A primeira, de caráter formal, passava pelo exame do processo político empírico em perspectiva interdisciplinar, pela articulação entre ciência política, história e pensamento brasileiro. A segunda, de caráter substantivo, assinalava a preocupação com a formação da cultura cívica e das instituições "republicanas".


Sua tese de relativa autonomia do Estado imperial afrontava a literatura marxista então hegemônica, para a qual a monarquia não passava de braço do latifúndio escravista. Por isso, a recepção inicial da primeira parte dessa análise, "A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial" (1980), foi fria.


Em 1978, José Murilo foi convidado por Wanderley para integrar o corpo docente do antigo Iuperj (atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj). Em 1986, ele passou a integrar também os quadros da Fundação Casa de Rui Barbosa.


Nesse tempo, por ele considerado o mais feliz de sua carreira, Murilo desenvolveu as pesquisas sobre a formação da cultura cívica brasileira que o consagraram e que resultariam em "Os Bestializados" (1987), "A Formação das Almas" (1990) e "Forças Armadas e Política no Brasil" (2005).


Trata-se de um tríptico que, depois do díptico anterior sobre a construção do Estado imperial, investigava a formação da sociedade no começo da República, concluindo pelo fracasso das elites na constituição de uma cultura cívica republicana, atravessada pelo elitismo, pelo patrimonialismo e pelo militarismo.


Em "Os Bestializados", José Murilo destacava o descolamento entre povo e elites nas primeiras décadas do regime republicano, desenvolvendo o conceito de "estadania" para designar a concepção deformada de cidadania que só reconhecia direitos ao povo desde que subordinado e encaixado na métrica de "civilizado".


Em "A Formação das Almas", ele apontava o relativo fracasso das elites —positivistas, jacobinas, liberais— em criar um imaginário de pertencimento que servisse de cimento cívico à nação. Se o Império havia sido bem-sucedidos em construir um Estado, a República falhava em construir a nação.


Já "Forças Armadas e Política no Brasil" se dedicava a compreender a origem e a persistência do militarismo por aqui. Formados em regime de completo insulamento do resto da sociedade, os militares acreditariam ser a única elite capaz de bem cuidar dos interesses nacionais, porque organizada, nacionalista e desinteressada.


Tais reflexões caíam como uma luva à época do centenário da República (1989), quando a efeméride incentivava o público a pensar a história como insumo para dotar o regime democrático de substância para além da forma puramente eleitoral.


José Murilo fez assim da denúncia do nosso déficit republicano seu grande tema como intelectual público. Distinguindo a república como modo de convivência cívica da república como mero regime formal, lhe parecia que as últimas décadas do Império teriam sido marcadas por uma efervescência democrática abortada pelo golpe militar republicano. Este seria o tema de suas pesquisas sobre a campanha abolicionista e de livros mais recentes, como "Clamar e Agitar Sempre: Os Radicais na Década de 1860" (2018).


Para José Murilo, o governante mais republicano do Brasil teria sido dom Pedro 2º, a quem dedicou uma biografia: "Ser ou Não Ser" (2007). Depois do impeachment de Collor, ele participou das discussões em torno do plebiscito de 1993 de forma provocativa, defendendo a opção da Monarquia para chamar a atenção para a insuficiência da República.


Em debate realizado à época no salão nobre do Palácio do Catete, José Murilo iniciou sua fala se dizendo constrangido em meio a toda aquela "pompa republicana". A polêmica da época levaria este republicano empedernido a carregar por décadas a pecha de… monarquista.


"Cidadania no Brasil: O Longo Caminho" (2001) se tornaria a obra síntese de José Murilo em relação ao diagnóstico da má formação cívica brasileira e a necessidade de saná-la. Partindo da tese do sociólogo T. H. Marshall de que a sequência clássica da cidadania moderna começaria pelos direitos civis, seguido pelos políticos e depois pelos sociais, Murilo defendia que no Brasil a pirâmide havia sido invertida —e que o principal déficit da República residiria na falta de acesso à Justiça pela inefetividade dos direitos civis.


A exposição objetiva e clara dessa hipótese, entremeada pela narrativa da história do Brasil desde a Independência até o presente, fez desse livro o seu grande best-seller, adotado em todas as graduações de ciências humanas.


Paralelamente, como complemento de seus livros, José Murilo escreveu dezenas de artigos dedicados a fenômenos políticos e sociais, como o mandonismo, e a personagens da vida intelectual brasileira, como Vasconcelos, Uruguai, João Francisco Lisboa, Alencar, Nabuco, Rui Barbosa, José do Patrocínio, José Veríssimo, Eduardo Prado e Juarez Távora.


Os mais importantes, talvez, tenham sido os dois textos dedicados a Oliveira Vianna, autor que considerava crucial para compreender os problemas das elites republicanas e cuja obra cumpria, portanto, "resgatar do inferno".


José Murilo concluiu sua conversão pública para "historiador" ao se tornar titular do programa de história da UFRJ, em 1997, mas o essencial de suas pesquisas giraria dali por diante no aprofundamento das teses já expostas nos livros anteriores.


Por meio do projeto Caminhos da Política no Império do Brasil, financiado pela CNPq, ele se cercou de uma rede interinstitucional de excelentes historiadores, cujos trabalhos comuns resultaram em várias coletâneas, como "Linguagens e Fronteiras do Poder" (2011).


Uma mudança importante no período foi a maneira de José Murilo pensar a participação popular. As pesquisas com Lúcia Bastos e Marcelo Basile sobre os panfletos da Independência, que resultaram no livro "Guerra Literária" (2014), o convenceram de que, ao contrário do que se dizia, a revolução de emancipação do Brasil teve considerável participação popular, não sendo restrita às elites.


Nos últimos tempos, porém, a fé republicana de José Murilo sofreu múltiplos revezes. A esperança nos governos do PT tropeçou nos escândalos de corrupção que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. As eventuais expectativas de melhora do padrão de vida cívica se esvaíram quando a bandeira anticorrupção passou às mãos da extrema direita aliada ao militarismo.


A história de sua mocidade parecia se repetir na velhice, reavivando seus traumas e decepções cívicas. Se a campanha udenista que denunciara o "mar de lama" resultara no suicídio de Getúlio Vargas e no golpe militar de 1964, o moralismo lavajatista desaguara na prisão de Lula e na eleição de Bolsonaro.


Nos últimos anos, José Murilo parecia mais interessado em tirar a limpo o próprio passado, reatando amizades e concedendo depoimentos sobre sua carreira e instituições de que fizera parte. Evitava entrevistas, porque no final de seu longo apostolado lhe parecia que tudo tinha sido inútil.


Em "O Pecado Original da República" (2017), ele chegava a afirmar que a condição republicana parecia incompatível com a identidade brasileira. Poderia ter desabafado como um de seus mestres, o sociólogo Guerreiro Ramos, em entrevista de 1981: "Este é o país da picaretagem. Não tem ninguém com grandeza, a grandeza de Alberto Torres, do Visconde de Uruguai, do Barão do Rio Branco, de José Bonifácio, Getúlio Vargas. Acabou, o país destruiu a nós todos".


A missão do homem José Murilo de Carvalho, mineiro tímido e modesto, terminou. Ela segue agora por meio de sua obra monumental e de seus admiradores das gerações mais novas, de cujos visionários o Brasil continua precisando para se republicanizar.


JOSÉ MURILO DE CARVALHO


Vida


Nasceu em 1939. Formado em sociologia e política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), fez mestrado e doutorado em ciência política na Universidade de Stanford, nos EUA. Foi professor nas duas instituições, assim como, no Brasil, na UFRJ e, no exterior, em Oxford (Reino Unido) e Princeton (também nos EUA). Fazia parte do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e da Academia Brasileira de Letras (ABL). Morreu em 13 de agosto, aos 83 anos

Principais livros

"A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial" (1980), "Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República Que não Foi" (1987), "Teatro de Sombras: a Política Imperial" (1988), "A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil" (1990), "A Cidadania no Brasil: o Longo Caminho" (2001), "Forças Armadas e Política no Brasil" (2005), "D. Pedro 2º: Ser ou Não Ser" (2007)

Foto: O historiador José Murilo de Carvalho na biblioteca de sua casa, no Rio - Raquel Cunha-25.mai.19/Folhapress


sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Introdução do livro Interpretações do Brasil: uma nova história da pensamento político brasileiro - Christian Lynch, Diogo Cunha (FGV Editora)

 Introdução do livro Interpretações do Brasil: uma nova história da pensamento político brasileiro

Por Christian Lynch (IESP/UERJ) &

Diogo Cunha (UFPE)

Este livro oferece uma nova abordagem da história do pensamento político brasileiro, destinada especialmente a estudantes de graduação em ciência política, ciências sociais e história que estão sendo apresentados aos grandes pensadores do país. Embora tenhamos priorizado esse público-alvo, estudantes de pós-graduação, pesquisadores experientes e entusiastas da nossa tradição intelectual também encontrarão grande valor neste trabalho. O impulso para esse empreendimento veio da constatação da falta de uma obra que fosse simultaneamente ampla em termos temporais e profunda em sua análise. Em outras palavras, buscávamos um texto que oferecesse mais do que meros perfis introdutórios e resumos superficiais das obras principais dos pensadores brasileiros. Dessa forma, solicitamos às autoras e aos autores de cada capítulo que se esforçassem para reconstruir a trajetória de cada pensador em análise e, a partir da contextualização de suas obras políticas, explicar e explorar em detalhes os principais conceitos mobilizados. O resultado são capítulos densos e acessíveis ao mesmo tempo, que servem como uma excelente porta de entrada ou suporte para quem deseja se aprofundar nesse estudo.

O pensamento político brasileiro deve ser compreendido como uma interseção complexa de influências europeias e americanas adaptadas às idiossincrasias históricas e culturais do Brasil. A tradição jurídica e o constitucionalismo desempenham um papel central em sua formação, moldada por confrontos e adaptações entre modelos exógenos e realidades endógenas, resultando em um ideário autóctone que busca equilibrar a modernidade com as peculiaridades nacionais. Esse arcabouço intelectual pode referir-se tanto ao conjunto de ideologias que compõem a cultura política brasileira quanto aos clássicos da teoria política nacional, escritos antes da institucionalização universitária na década de 1970.

Por seu caráter “periférico”, o pensamento político brasileiro apresenta menor grau de generalização e maior sentido prático nas reflexões. A centralidade da retórica, da oratória e do argumento de autoridade é notável, assim como a tendência dos autores de se apresentarem como pioneiros da modernidade e a orientação prospectiva da política brasileira.

A principal manifestação do “fantasma da condição periférica” expressa-se na per sistente crença de que a produção intelectual do país é inferior à dos países “cêntricos”, principalmente aqueles situados na Europa e os Estados Unidos. Essa percepção de inferioridade, internalizada pelas elites intelectuais brasileiras ao longo dos séculos XIX e XX, resulta na recorrente desqualificação da produção nacional como mera “aplicação”, “cópia” ou “deformação” das ideias e teorias elaboradas no centro. Consequentemente, o estudo do pensamento político brasileiro frequentemente foi relegado a uma posição subalterna, visto como desprovido de originalidade e relevância fora das fronteiras nacionais.

Os autores analisados demonstram como essa percepção se manifestou em diferentes contextos e perspectivas ideológicas. Por exemplo, a preferência pelo termo “pensa mento” em detrimento de “teoria” para designar a produção intelectual brasileira reflete essa ideia de inferioridade. Enquanto a “teoria” era associada à produção intelectual universalizante dos países centrais, o “pensamento” era visto como uma produção de caráter local, pragmático, voltado para a resolução de problemas específicos da realidade brasileira. Essa classificação dicotômica deixa transparecer a relação assimétrica entre periferia e centro, reforçando uma noção de hierarquia na produção do conhecimento.

A filosofia da história do século XIX, com sua visão linear e teleológica do progresso, contribuiu para consolidar a imagem de um Brasil “atrasado”, ainda em processo de formação, desprovido de um “povo” e de uma “cultura”, no sentido pleno dessas palavras. Mesmo durante o período marcado pela ascensão do nacionalismo, a partir da década de 1930, a sombra da “condição periférica” continuou a pairar sobre o pensamento político brasileiro. Embora reconhecessem a importância de estudar a realidade nacional, muitos partiam do pressuposto de que as “leis gerais da evolução dos povos” haviam sido elaboradas nos países centrais. A superação da condição periférica, nesse contexto, passaria pela elaboração de um projeto nacional capaz de, a partir da compreensão das “singularidades” brasileiras, conduzir o país a um patamar de desenvolvimento similar ao dos países centrais.

O pensamento político brasileiro, em sua essência, pode ser compreendido de duas maneiras principais: uma abordagem abrangente e uma interpretação mais específica. Em um sentido amplo, ele abarca o conjunto completo de escritos ideológicos – liberais, conservadores, socialistas – que moldaram e representam a cultura política brasileira. Tal perspectiva reconhece que o pensamento político brasileiro é profundamente influenciado pela posição do país na periferia do cenário global, em contraste com os centros estabelecidos de poder e civilização. Nessa visão, destaca-se a importância do estilo de escrita “periférico”, caracterizado por um menor grau de generalização e uma ênfase em abordar os desafios práticos e imediatos enfrentados pelo Brasil.

Em contraste, a definição mais restrita de pensamento político brasileiro concentra–se em um grupo seleto de obras consideradas “clássicas” devido à sua profundidade, sistematização e impacto duradouro. Essas obras, frequentemente produzidas por figuras proeminentes da “velha” ciência política brasileira, que antecedeu a institucionalização acadêmica formal da disciplina, representam um núcleo fundamental do nosso pensamento.

Neste livro, o que se pretende é apresentar uma visão o mais completa e abrangente possível do pensamento político brasileiro, focando principalmente o horizonte do Brasil como comunidade imaginada. Os autores elencados como objetos de estudo compõem uma lista ilustrativa, embora não exaustiva, de figuras que pertencem a essa categoria: José Bonifácio, Evaristo da Veiga, José de Alencar, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Alberto Torres, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda, Guerreiro Ramos, Celso Furtado, Florestan Fernandes, entre outros.

Esses autores não apenas analisaram a realidade brasileira, mas também moldaram a maneira como o país se compreende. Suas “interpretações do Brasil” transcenderam os limites da academia, influenciando debates políticos, movimentos sociais e a própria identidade nacional. E, embora eles frequentemente tenham se embasado em ideologias existentes, suas obras não são redutíveis a rótulos ideológicos simples. Além disso, a maioria delas tinha entre seus objetivos, implícitos ou explícitos, influenciar ativamente o discurso e os processos políticos no Brasil.

Essa dupla abordagem – abrangente e específica – é essencial para entender a evolução e a dinâmica do cenário político e intelectual do país, oferecendo uma com preensão mais rica e nuançada a seu respeito. Mas, para entender completamente o pensamento político brasileiro em um sentido estrito, é essencial situá-lo dentro de seu contexto histórico e intelectual. Seu desenvolvimento, desde a Independência até a atualidade, pode ser compreendido com a análise de três períodos distintos, cada um com suas características e abordagens próprias.

De 1822 a 1889, durante o Império, a política era vista como uma “arte de governar”, exigindo a sabedoria de estadistas ilustrados que buscavam inspiração em modelos estrangeiros, adaptando-os à realidade brasileira. Enquanto os liberais defendiam princípios universais e imutáveis, os conservadores priorizavam a flexibilidade e a adaptação às circunstâncias específicas do Brasil. O debate entre liberais e conservadores foi marcado pela tentativa de encontrar um equilíbrio entre os ideais iluministas e a singularidade da sociedade brasileira, culminando em um pensamento político que buscava conciliar a modernidade com a tradição.

O segundo período, que se estendeu de 1889 a 1930, marcou a República e a ascensão de uma perspectiva “científica” da política, influenciada pelo positivismo e pelo evolucionismo. Muitos intelectuais buscavam uma “política científica”, baseada na observação e na análise crítica, citando autores estrangeiros. Outros defendiam uma ciência política pragmática, atenta às particularidades do contexto brasileiro. Esse período foi caracterizado pela tentativa de aplicar teorias científicas ao governo, na busca de um progresso racional e ordenado, em contraste com o empirismo e o pragmatismo do período imperial.

Em 1930, iniciou-se o terceiro período, marcado por uma crítica ao formalismo jurídico e à dependência em relação a modelos estrangeiros. Intelectuais comprometidos com o ideário nacionalista defenderam uma ciência política pragmática, com foco na transformação da realidade nacional, utilizando a sociologia como ferramenta de análise. Após a Segunda Guerra, o nacionalismo passou a falar a linguagem do desenvolvimento, buscando formular uma teoria que respondesse aos desafios do Brasil. O marxismo também ganhou espaço, analisando as contradições sociais e as relações de poder no país. Esse período é caracterizado pelo empenho em se criar uma ciência política brasileira apta a interpretar e transformar a sociedade nacional a partir de suas próprias bases.

Apesar da influência de diferentes correntes, o pensamento político brasileiro sempre buscou uma identidade, capaz de articular ideias universais à realidade específica do país. Novas vozes e perspectivas continuam a enriquecer e desafiar as interpretações tradicionais, garantindo que a produção intelectual brasileira permaneça dinâmica.

Do ponto de vista metodológico, é fundamental considerar o contexto histórico e evitar a aplicação anacrônica de conceitos contemporâneos. É preciso reconhecer que a interpretação do Brasil é sempre influenciada pelo sujeito que a realiza, e a busca por uma resposta definitiva é um desafio constante. Também é crucial evitar o eurocentrismo, reconhecendo o valor autônomo, a originalidade, a capacidade de inovação – em suma, a relevância – da produção intelectual brasileira, que reflete as especificidades da experiência nacional.

A dicotomia entre “idealismo” e “realismo” é frequentemente utilizada para analisar o pensamento político brasileiro. No entanto, essa classificação pode ser simplista e obscurecer a riqueza e diversidade de perspectivas presentes na história do país. O idealismo, frequentemente associado a autores liberais, é criticado por sua suposta desconexão com a realidade. Por outro lado, o realismo, frequentemente associado a autores conservadores ou nacionalistas, é valorizado por sua atenção às condições específicas do Brasil. Porém, é importante analisar as nuances e as diferentes formas como os autores lidaram com a relação entre ideias e realidade.

Podem ser identificados três principais modelos de história intelectual que influenciaram a interpretação do pensamento político brasileiro: o liberal, o nacionalista e o marxista. É preciso reconhecer seus efeitos e suas diferentes abordagens, evitando a adesão acrítica a um único ponto de vista. A análise do pensamento político brasileiro deve combinar o rigor textual com a contextualização. Ou seja, as ideias dos autores devem ser compreendidas em seus próprios termos textuais, mas também considerando as condições históricas, as relações de poder e os debates que influenciaram suas obras.

A influência do contexto é particularmente evidente na forma como os intelectuais do país se apropriaram de conceitos estrangeiros. Esse processo não pode ser reduzido a uma simples importação de ideias. Pelo contrário: é um campo dinâmico e criativo, no qual conceitos universais são reinterpretados e transformados à luz das experiências e desafios locais. Essa adaptação e inovação é o que pode conferir ao pensamento brasileiro sua originalidade e relevância.

***

O termo “nova história”, que figura no subtítulo desta obra, não é mero artifício retórico, mas sim uma escolha que se justifica plenamente. Cada capítulo foi meticulosamente redigido por especialistas nos pensadores em análise; autores cujos extensos registros de publicações sobre seus temas abrangem desde teses de doutorado até artigos em revistas acadêmicas de renome, além de capítulos de livros relevantes. Desse modo, cada texto desta coletânea reflete um profundo amadurecimento reflexivo em relação ao seu objeto, embasado em um diálogo contínuo com as mais recentes contribuições da teoria política, tanto nacional quanto internacional. As reflexões aqui apresentadas fundamentam-se em referenciais teóricos sofisticados, como a história dos conceitos alemã de Reinhart Koselleck, o contextualismo da escola de Cambridge, a abordagem francesa do político, bem como os estudos recentes sobre linguagem política, história das circulações e transferências culturais. O resultado são releituras extraordinariamente sugestivas e instigantes dos clássicos do pensamento político brasileiro.

Qualquer obra que se proponha a oferecer uma história do pensamento político é, inevitavelmente, incompleta. Nenhuma é capaz de abranger toda a produção intelectual gerada ao longo de um extenso período em um determinado país, e esta não é uma exceção. Toda seleção é desafiadora. Por que Evaristo da Veiga, e não Hipólito da Costa? Visconde do Uruguai, e não Bernardo Pereira de Vasconcelos? Alberto Sales, e não Campos Sales? Gilberto Freyre, e não Gilberto Amado? Miguel Reale, e não Plínio Salgado? Nelson Werneck Sodré, e não Caio Prado Júnior? Florestan Fernandes, e não Octávio Ianni? A lista poderia continuar. É inegável que, nessas escolhas, há uma dimensão subjetiva considerável. No entanto, dentro das limitações de cada período, guiamo-nos por critérios de representatividade histórica e teórica em cada uma das cinco fases em que dividimos o século e meio que vai da Independência ao início da Nova República.

Optamos por não nos estender aos pensadores contemporâneos, na medida em que nenhum ainda se sagrou “clássico”. Além disso, diferentemente das décadas que precederam a Constituição de 1988, quando predominava a preocupação com a questão nacional, novos temas emergiram na virada do século XX, como o feminismo, o racismo e a identidade de gênero. Isso não significa que não seja possível elaborar uma “história do tempo presente” do pensamento político, mas sim que tal empreitada exigiria um enfoque distinto, a ser desenvolvido em um volume separado.

Assim, a primeira fase, intitulada “A construção do Estado nacional”, abrange a primeira metade do século XIX e inclui estudos sobre figuras como José Bonifácio, marquês de Caravelas, frei Caneca, Evaristo da Veiga e visconde do Uruguai. A segunda fase, “A emergência da sociedade nacional”, situa-se entre o final do século XIX e o início do século XX, com análises dedicadas a Tavares Bastos, José de Alencar, Joaquim Nabuco, Alberto Sales e Rui Barbosa. A terceira fase, “A reestruturação do Estado nacional: nacionalismo e autoritarismo”, aborda a primeira metade do século XX, período marcado pelo florescimento do pensamento autoritário, com estudos sobre Alberto Torres, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Azevedo Amaral e Otávio de Faria. Na quarta fase, “A transição para a sociedade de massas (1): o experimento democrático”, adentramos um momento de mudanças significativas após o ciclo autoritário encerrado em 1945, com análises de figuras como Sérgio Buarque de Holanda, Afonso Arinos de Melo Franco, Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré e Celso Furtado. Por fim, a seção “Transição para a sociedade de massas (2): o regime militar” examina autores cujas obras, ao menos em parte, foram produzidas durante o regime militar e estão, portanto, intrinsecamente ligadas ao autoritarismo da segunda metade do século XX. Essa seção inclui estudos sobre João Camilo de Oliveira Torres, Miguel Reale, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes e Wanderley Guilherme dos Santos.

Esperamos oferecer, assim, um estudo minucioso da história do pensamento político brasileiro, tanto em sua amplitude histórica quanto em sua profundidade conceitual. Ao contemplar desde os primórdios da construção do Estado nacional até os desafios enfrentados durante o regime militar e os contemporâneos processos de democratização, buscamos não apenas desvelar as complexidades intrínsecas desse pensamento, mas também explorar as sutilezas e implicações das diversas abordagens sobre uma ampla gama de temas. Estes abrangem desde a formação e o papel do Estado, a questão da identidade nacional, as dinâmicas das relações sociais em uma nação periférica, passando por questões como liberdade, igualdade e democracia, até a legitimidade, participação e funcionamento das instituições democráticas. Assim, almejamos que nossa obra, além de proporcionar uma visão abrangente do desenvolvimento do pensamento político no Brasil, ofereça ferramentas analíticas para a compreensão dos desafios democráticos que a sociedade brasileira enfrenta na contemporaneidade.


domingo, 6 de outubro de 2024

Brasil está embarcando na destruição do seu sistema político-partidário: a mentira se tornou personagem - texto não identificado, Christian Lynch e Paulo Roberto de Almeida

Brasil está embarcando na destruição do seu sistema político-partidário: a mentira se tornou personagem - texto não identificado, Christian Lynch e Paulo Roberto de Almeida 

Li a postagem abaixo como uma confirmação do que de pior pode ocorrer no atual sistema político brasileiro, sendo praticamente DESTROÇADO pelo oportunismo mais vil de certos personagens obscuros.

O cenário politico tradicional que conhecemos — centro (e os oligarcas do Centrão), esquerda, direita, radicais de esquerda, extrema-direita, evangélicos em ascensão — já pode deixar de existir em 2026, quando esse tipo de confusão deliberada pode desmantelar o quadro “normal” do sistema político brasileiro. 

Deixo de indicar a fonte dos argumentos que seguem entre aspas, pois que tudo também pode já fazer parte dessa gigantesca operação de manipulação política que está em curso a partir de grupos obscuros. Seu autor pode me contatar, se achar que estou colocando em dúvida sua “análise” aqui exposta, mas eu me permito ser muito cético no tocante à validade dessas afirmações.

Este blog Diplomatizzando se dedica à discussão responsável de temas relevantes para o Brasil, e não pode ser utilizado ou instrumentalizado em favor de quaisquer forças políticas. 

Minha postura atual é a de que estamos ingressando, na política brasileira, numa fase de alteração significativa dos meios, métodos, instrumentos e objetivos de diferentes forças e movimentos, e que essa evolução é para pior, da pior forma possivel. 

Esclareço: essa ruptura dos padrões tradicionais da política brasileira começou lá atrás, com o PT fraturando a política e dividindo a sociedade entre “nós” e “elites”, ou seja, o povo, supostamente de esquerda, ou progressista, e as elites, mesquinhas, anti-povo, concentradoras de riqueza.

Agora, é a direita extrema, a mais raivosa, reacionária e odiosa e odienta, que está fragmentando a política do Brasil.

Não sou nada otimista quanto ao futuro da política nacional.

Ao final transcrevo uma nota do cientista politico e editor da revista Insight Inteligência Christian Lynch.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 6/10/2024

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 “Marçal já ganhou a eleição no 1º turno.

Enquanto todos estão focados na disputa pela prefeitura de São Paulo, Marçal está dois passos à frente—e não é para ocupar a cadeira de prefeito.

Pablo Marçal transformou a campanha eleitoral em um trampolim para amplificar sua marca pessoal, seguindo estratégias de marketing do mestre do digital Russell Brunson.

Inclusive, ele faturou milhões primeiro aplicando ("Expert Secrets") e depois vendendo ("Dotcom Secrets") o conhecimento de Brunson como sua metodologia próprietária.

Ele não busca votos para governar São Paulo agora; busca atenção para converter em faturamento e construir seu caminho rumo ao Planalto.

- Criou polêmicas calculadas para gerar engajamento nas redes sociais.

- Incentivou a criação de cortes de seus vídeos, ampliando exponencialmente seu alcance.

- Transformou debates e sabatinas em oportunidades de marketing, não em discussões políticas construtivas.

Sua verdadeira vitória está em construir uma legião de seguidores fiéis, possivelmente representando 10-20% do eleitorado. Com essa base, ele pode lançar produtos digitais, cursos e mentorias que podem render cifras astronômicas.

Preparem-se para testemunhar talvez o maior lançamento digital já visto no Brasil—quem sabe, do mundo—além de preparar terreno para sua futura candidatura presidencial.

No fim das contas, Marçal nos mostra que, a atenção é a moeda mais valiosa, ganhar uma eleição pode significar algo muito além de ocupar um cargo público.

Este é o primeiro passo de uma estratégia maior para faturar muito e simultaneamente buscar alcançar o mais alto posto político do país.

Fama, dinheiro e poder ao mesmo tempo.”

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Christian Lynch:

MARÇAL É AMEAÇA POTENCIAL À DEMOCRACIA 

Então Marçal AINDA nao é ameaça à democracia, porque não tem poder. Mas sua forma de fazer política o TORNARÁ uma ameaça se adquirir poder. 

Eu pergunto como a democracia pode funcionar entregando poder a um candidato que se recusa a debater com adversários, reduzindo todos à condição de criminosos - comunistas, drogados e ladroes - , e que incita o público todo o tempo pelo seu próprio exemplo a produzir violência contra eles.“


sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

O populismo reacionário: resenha de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro: O populismo reacionário - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Excelente resenha de um livro magistral 

O populismo reacionário

Imagem: Kartick Chandra Pyne

Por ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY*

Comentário sobre o livro de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro

O populismo reacionário, de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro, é um dos livros nacionais mais importantes para uma tentativa de compreensão da situação política atual. Os autores são professores e pesquisadores no Rio de Janeiro. Em quase 200 páginas apresentam uma radiografia do populismo reacionário que levou quase a metade dos votos nas últimas eleições (o livro é anterior ao pleito). Não tratam de uma aventura política transitória e passageira. Tratam de um assunto sério que exige enfrentamento.

A partir da crise da Nova República, e com foco no judiciarismo lava-jatista, os autores exploram nosso tempo político, tateiam uma obtusidade que desdenhamos (e hoje pagamos por isso) e apontam para uma aporia intransponível: o paradoxo do parasita. O parasita precisa do corpo invadido para sobreviver, não pode destruí-lo. A destruição do corpo invadido tem como pressuposto e resultado a morte do parasita. Essa metáfora implica na relação ambígua entre o líder populista reacionário e a democracia. No último dia 8 de janeiro essa tensão chegou ao limite.

Os autores identificam essa nova onda populista (especialmente brasileira) no contexto da crise do liberalismo democrático, que se desdobra da ressaca da euforia da globalização, dos atentados às torres gêmeas e da crise econômica de 2008. Nesses últimos tempos discutiu-se seriamente sobre o destino da agenda democrática, isto é, se haveria uma revitalização desse projeto ou se a ameaça era realmente verdadeira. O que acha o leitor?

Parece-me, venceu esse último postulado. A ameaça transcendeu o espaço digital e foi para a praça com porretes na mão (literalmente). Tudo condimentado por perigos potencializados por um universo de informação paralela, no qual um comunismo idealizado, a imigração estrangeira, um sentido recorrente de injustiça e de mudanças sociais foram fomentados pelo compartilhamento de valores identitários.

Para os autores, o populista reacionário não se interessa por assuntos de governo e de administração. Comanda um partido digital disperso e ao mesmo tempo unido em torno de uma conta também digital. Lê-se nesse corajoso livro que a conta digital do populista reacionário não é lugar democrático com espaço aberto para a crítica do cidadão. A conta digital do populista reacionário “é um altar, cujo acesso é privativo dos fieis para fins de adoração de seu ídolo”. Quando materializado, e agora a opinião é minha, esse espaço de veneração é concomitante ao entorno topográfico oficial: é o cercadinho.

O populista radical, segundo os autores, apresenta-se como o herói antissistema. Gerencialmente é incompetente. Vale-se dessa incompetência como um selo de autenticidade. Entre a competência e a autenticidade (ainda que fingida, o que possível) o medíocre insatisfeito com a mediocridade de sua vida não pensa duas vezes: quer o autêntico.

Que caminho histórico pavimentou o populista reacionário, porta-voz de uma utopia regressiva de restauração a tempos imaginados? Era latente essa utopia? Na tentativa de explicar essas duas perguntas os autores primeiramente exploram uma revolução judiciarista, que se dizia instrumento de uma suposta capacidade regenerativa da Nação. O Judiciário resolveria tudo. Aplicaria a lei.

É o lavajatismo, em sua versão mais completa, que assumiu o padrão de um tenentismo togado. O ex-juiz de Curitiba e o ex-procurador da República que lá atuava tentaram ser versões contemporâneas de Juarez Távora e de Eduardo Gomes. Creio que não conseguiram, ainda que incensados na imprensa e nas redes, aplaudidos em aviões e restaurantes, ouvidos em gravações suspeitas.

Na tese dos autores de O populismo reacionário o judiciarismo escorava-se em legitimidade oriunda do acesso meritocrático ao serviço público. Acrescentaram também o tema do neoconstitucionalismo, que resultou na valorização das corporações jurídicas e, paradoxalmente, na massificação do ensino de Direito. Havia uma multidão de bacharéis que falavam o tempo todo em regras e princípios, citavam autores alemães em tradução (Hesse, Häberle, Müller e Alexy) e remoíam o aspartame jurídico anglo-saxão (Dworkin e Rawls). Defendiam uma maior participação do Judiciário em detrimento dos demais poderes. A restauração se dava no curul, a cadeira dos altos dignitários romanos que ditavam a jurisprudência.

Segundo os autores, basta que consultemos os livros de Direito Constitucional para constatarmos que o espaço dedicado ao Legislativo é ínfimo em relação ao espaço dedicado ao Judiciário e às corporações jurídicas. O judiciarismo que já se verificava em Rui Barbosa e em Pedro Lessa voltou para o proscênio. O moralismo recorrente da UDN, na voz de Afonso Arinos, Bilac Pinto e Aliomar Balleeiro estava na espinha dorsal dessa revolução do judiciário, que também, o que mais paradoxal, escorou-se em intepretações padronizadas do Brasil, como lemos em Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta.  Esse diálogo seria impossível. Os autores nos lembram que os udenistas de Carlos Lacerda pularam do barco em 1965, do mesmo modo que Sergio Moro e o MBL o fizeram em tempo próximo.

No argumento de O populismo reacionário o núcleo da nova expressão de poder orbitava em torno do culturalismo reacionário de Olavo de Carvalho e do neoliberalismo de Paulo Guedes. Do primeiro apreendeu-se uma concepção petrificada de cultura, centrada na obsessão em face do marxismo cultural, contra o qual se opôs o decadentismo, a crítica à globalização e a âncora da metapolítica, para a qual a cultura vem depois da política. Do segundo, de acordo com os autores, sabe-se que o ponto fraco dos neoliberais tem sido sempre a impopularidade do programa.

O populismo reacionário distancia-se muito da referência e da reverência que tem para com a tecnocracia militar. É que o conservadorismo estatista de Golbery do Couto e Silva subordinou e dominou o culturalismo de Gilberto Freyre e de Miguel Reale, bem como o neoliberalismo de Roberto Campos e de Octávio Bulhões. Os autores não chegam a conjecturar sobre uma explicação para essa disfunção. Talvez, a adesão do populismo reacionário ao negacionismo estrutural possa ser uma chave interpretativa para o enigma.

Os autores dão pistas. A negação do aquecimento global, do holocausto, a fé no terraplanismo, a crença na hipótese de que nazismo e fascismo seriam de esquerda, o racismo reverso, o conspiracionismo, a pandemia, a eficiência da vacina, a ortodoxia das urnas e o tema da ideologia de gênero transitariam nesse quadro explicativo. Na pergunta de Fernando Gabeira, “por que se afastam tanto da realidade e quando se dão conta dela ficam tão revoltados?”.

O populista reacionário cerca-se de quadros medíocres e servis, fomentando um macarthismo administrativo. Os dissidentes são perseguidos. Na construção do caminho para o populismo reacionário formulou-se uma teoria constitucional de sustentação, sempre servida por juristas desfrutáveis (a expressão é dos autores) que retomaram o tema da razão do Estado, agora justificativa de segredos quase perpétuos (100 anos).

Acrescento ao argumento dos autores o papel de certa teologia da prosperidade. Para Carl Schmitt (o príncipe dos juristas desfrutáveis) o milagre estaria para a fé como a jurisprudência para o direito. Para sua quase versão brasileira (Francisco Campos) o Estado totalitário seria uma técnica a serviço da democracia. É a união entre o templo e o palácio da justiça.

Penso que a grande mensagem de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro nesse belíssimo livro consiste na constatação de que se abandonou a busca racional da verdade como fundamento da vida coletiva. Os autores instigam mais para a busca racional da verdade do que para a própria verdade. Afinal, sobre essa última, e a questão é bíblica (João 18:38) nem mesmo Pilatos sabia do que se tratava.

*Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Referência


Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro. O populismo reacionário. São Paulo, Contracorrente, 196 págs.

Do site A Terra é Redonda

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Pau que nasce torto morre torto: sobre a paralisia e a dissolução final do governo Bolsonaro - Christian Lynch

 PAU QUE NASCE TORTO MORRE TORTO

Uma análise da paralisia, do esboroamento e da final dissolução do governo anômalo de Jair Bolsonaro

Por Christian Lynch

04/jan/2023


O governo Bolsonaro foi coerente até o fim em sua anormalidade congênita. Quando estão para terminar, governos normais reconhecem o resultado eleitoral e se limitam a tocar a rotina administrativa, limitando suas ações políticas em facilitar o advento do novo governo. O presidente que sai cede protagonismo ao que entra. Mas não poderia terminar normalmente um governo que se elegeu em circunstâncias anormais e viveu na anormalidade e de anormalidade. Hoje está mais do que claro que Bolsonaro nunca passou de um parasita; um reacionário muito limitado intelectual e emocionalmente, que encontrou na lacração reacionária um meio de viver da política e o ensinou aos filhos. Natural que acreditasse, portanto, que sua mais do que improvável chegada ao cargo mais elevado da República, que aliás ocorreu por muitos fatores aleatórios, resultasse de alguma forma dos insondáveis desígnios do Senhor.

Não por outro motivo, recebeu sua derrota, mais do que com fúria, com absoluto estupor. Caiu prostrado como um tolo dirigente de grêmio estudantil; um principiante que nunca houvesse cogitado a possibilidade de ser vencido, usual tanto no esporte como na política. Prostração típica dos negacionistas contrariados, que atribuem seus reveses não às suas limitações, mas à alguma maquinação conspiracionista — no caso, a satânica fraude eleitoral operada pelo Poder Judiciário para eleger Lula. Depois da prostração, porém, veio o pânico diante da perspectiva de privação da imunidade e do foro privilegiado, que por mais de três décadas lhe serviram de barreiras à possibilidade de responder por seus crimes, e da impossibilidade de continuar aparelhando a Polícia Federal para impedir as investigações.

Dali por diante, Bolsonaro emudeceu. Passou a fazer um jogo duplo: enquanto conspirava com seus generais aposentados pelo golpe que o salvaria da cadeia, impedindo a posse de Lula, o ex-presidente se fazia de pobre diabo, doente e deprimido, para que o mesmíssimo “sistema” viesse a ter pena dele, em caso de fracasso no golpe. Há quem diga que a mobilização da porção mais fanática de seus eleitores nas portas dos quartéis, que partiram do golpismo até chegar ao terrorismo, bloqueando estradas, incendiando veículos e explodindo bombas, tinha por finalidade criar o ambiente de caos e de legitimidade que permitisse a invocação do art. 142 da Constituição. Como se sabe, a interpretação golpista do bolsonarismo permitiria às Forças Armadas, neste caso, fechar o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral e manter Bolsonaro no poder. Valdemar Costa Neto se incumbiria de sossegar a turma do Centrão. Segundo a imprensa, o golpe teria fracassado por falta de apoio externo e pela ação enérgica do ministro Alexandre de Moraes, que impôs ao partido do presidente uma multa de valor astronômica diante da tentativa de usar o Judiciário para melar sem provas o resultado da eleição.

A verdade é que a possibilidade de um golpe exitoso nunca passou de um delírio de reacionários que pouco entendem de política, e ainda acham que a sociedade brasileira está onde estava 60 anos atrás.

Desde que a possibilidade do golpe se esvaiu, consultando advogado atrás de advogado, obcecado com a certeza de que seria preso no momento em que Lula subisse a rampa do Planalto, Bolsonaro começou a planejar sua fuga para a Flórida. Seu governo, já paralisado, se esboroou e enfim se dissolveu à luz do dia de forma tão escandalosa como silenciosa. Toda a responsabilidade pela gestão da República recaiu sobre um governo eleito cujo quadro de ministros sequer estava completo. Enquanto os filhos do presidente também preparavam sua saída do país antes do ano novo, ministros saíam de férias ou pediam para ser exonerados, para não sofrerem a humilhação de serem exonerados por Lula — os ministros mais identificados com o bolsonarismo, como Heleno, Guedes, Faria, Queiroga. Acusado de ter coibido a locomoção do eleitorado lulista no dia da eleição e subsequente leniência com os bloqueios das estradas cometidos pelos bolsonaristas, o diretor da Polícia Rodoviária Federal foi rapidamente aposentado com proventos integrais. O estratagema visou prevenir sua eventual demissão a bem do serviço público e a confissão das ordens recebidas, o que não convém ao bolsonarismo já encrencado com a polícia. Aliados de Bolsonaro justificaram a fuga com o temor de um “pacote de maldades” com chegada de Lula. Pacote este que, olhando de perto, não passa de um “choque de legalidade” sobre a prática diuturna de crimes contra a república por parte de um governo que acreditou que jamais deixaria o poder.

Em seus estertores, os poucos atos praticados pelo governo foram os mais vergonhosos jamais praticados por qualquer governo na história brasileira. Enquanto tentava agradar a Lula revogando a portaria que impedia a entrada do presidente da Venezuela no Brasil, Bolsonaro criou sinecuras no exterior para premiar servidores da Polícia Federal que se prestaram ao papel de colaboracionistas e embalá-los na ilusão de que o braço da sindicância não chegaria à Europa. A possibilidade da revogação da benesse pelo novo governo já estava nos planos do velho, que contava assim com aumentar a frustração dos colaboracionistas, para que doravante sirvam de infiltrados vazando informações sigilosas em benefício dos bolsonaristas na oposição.

Mas a esvaecimento da cúpula bolsonarista nos últimos meses tem outra explicação, para além da repulsa ideológica e do medo. Todos sabiam que não tinham competência nem qualificação para ali estarem; que foram recrutados para ocupar seus cargos, parte por oportunismo, parte por falta de pessoal disposto a colaborar. Estavam ali tão espantados quanto a opinião pública, aproveitando a situação especial criada pela existência de um governo absolutamente anormal. Uma vez moribundo este governo, nada mais lógico que se retirassem rapidamente de cena, voltando para o buraco de onde haviam saído ou sido saídos. De modo que, quando chegou a última semana, já não havia quem respondesse pelo governo Bolsonaro. Não havia sequer autoridade para lamentar oficialmente a morte de Pelé, o brasileiro mais famoso de todos os tempos. Os meios de comunicação tiveram de entrevistar a futura ministra dos esportes, designada de véspera, porque já não havia ninguém no governo ainda vigente oficialmente.

O último pronunciamento de Bolsonaro seguiu seu hábito de se dirigir diretamente ao país por meio de uma “live” informal no YouTube e já entrou para a história brasileira como a manifestação mais patética jamais proferida por um presidente às vésperas de ceder o poder. Em síntese, tratou-se de um deprimido e acovardado lamento de um populista reacionário, que buscava explicar ao seu eleitorado seu fracasso no projeto de derrubar a república e, ao mesmo tempo, cheio de temores e cautelas de dizer qualquer coisa que pudesse incriminá-lo ainda mais. Enquanto defendeu a suposta “liberdade de expressão” dos bolsonaristas de bloquear estradas e pedir o golpe militar na porta dos quartéis, Bolsonaro tentou simultaneamente eximir-se de responsabilidade por todos os atos subversivos por eles praticados, como explodir bombas, tocar fogo em ônibus e assassinar adversários. Tentou, em suma, explicar ao seu eleitorado por que não conseguiu dar o golpe, sem dar pretexto para ser preso.

No fim, Bolsonaro chorou como um impotente, suscitando perplexidade, riso e desprezo de um lado e decepção e fúria de sebastianistas fanáticos que por dois meses aguardaram o golpe que não veio.

Poucas horas depois, na tarde do dia 30 de dezembro, Bolsonaro embarcou pela última vez no avião presidencial com destino à Flórida, onde foi encontrar se encontrar com a família no “exílio”. O confesso objetivo era de descansar, entendendo-se por tal passear na Disneylândia e ouvir conselhos de Donald Trump sobre como continuar a enganar seu eleitorado fora do poder e escapar tanto da inelegibilidade quanto da prisão. A história da fuga de Bolsonaro é, claro, reflexo fiel de sua própria história como militar e político: aquela de um homem abaixo do medíocre, de caráter fascistóide e covarde, que descobriu como viver às custas do contribuinte, vivendo um casamento moralista de fachada, cercado por uma camarilha de militares de baixa patente, que o alimenta dia e noite com teorias da conspiração.

Quando se imaginava que nada pior poderia ainda acontecer até a posse do novo presidente, o respeitável público foi surpreendido com a notícia de que o vice-presidente, o general Mourão, aproveitaria o vácuo de poder de 24 horas para ocupar como presidente interino no dia 31 de dezembro o vazio deixado por Bolsonaro. Desejoso de catalisar para si a frustração do eleitorado radical com a fuga ignominiosa do “Mito” para seu exílio na Disneylândia, Mourão se comportou como herdeiro dos generais-presidentes da ditadura militar e convocou uma cadeia nacional de rádio e televisão, na qual buscou apresentar-se ao público conservador como um Figueiredo redivivo: autoritário, mas pretensamente comprometido com a ordem constitucional.

Era um modo de contrastar com a imagem patética de golpista molambento e chorão ostentada por Bolsonaro na véspera. Depois de criticar simultaneamente o Centrão, o Supremo Tribunal Federal e o próprio Bolsonaro, que teria jogado a responsabilidade de sua incompetência sobre as Forças Armadas, Mourão concluiu colocando-se à disposição dos bolsonaristas arrependidos como “o verdadeiro Bonaparte”, ou seja, um militar autoritário respeitável, autêntico herdeiro do regime militar, capaz de capitanear como senador eleito a oposição conservadora a Lula e, quem sabe, ganhar seu voto como candidato a presidente da República daqui a quatro anos. Nada disso retirou do pronunciamento o caráter do mais fantástico oportunismo. No fim das contas, Mourão aproveitou seus quinze minutos como interino para fazer uso dos poderes presidenciais para propaganda eleitoral, de forma escancaradamente antirrepublicana.

O fato de que o antirrepublicanismo tenha no final se voltado contra o próprio Bolsonaro só foi possível porque este foi um governo disfuncional de fio a pavio; um governo que nasceu anômalo e anômalo morreu. Como já dizia minha avó, pau que nasce torto morre torto.

* Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor IESP-UERJ

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

As novas tábuas da Lei; revista Inteligência, n. 95, Dezembro 2021

 Acredito que o autor destas novas tábuas da Lei, Christian Lynch, editor da revista Inteligência Insight, deve ter falado com Moisés, antes de redigi-las...





sábado, 6 de fevereiro de 2021

130 anos atrás, em 1891, a primeira Constituição republicana: teríamos mais seis - Agencia Senado

A Constituição republicana de 1891  

D. Pedro II, o imperador deposto, e Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente (fotos: Mathew Brady e Irmãos Bernardelli)

A Constituição de 1891, promulgada pelos senadores e deputados constituintes 15 meses após a derrubada de D. Pedro II, estabeleceu as bases políticas sobre as quais o país se ergue até os dias de hoje: a República, o presidencialismo, os três Poderes e o federalismo.

Até 1889, as bases eram bem diferentes. Como Monarquia parlamentarista, o Brasil tinha imperador e primeiro-ministro. Havia o Poder Moderador, que era exercido pelo monarca e prevalecia sobre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Diferentemente dos atuais estados, as antigas províncias eram meros braços do governo central e quase não tinham autonomia política e financeira. Nem sequer escolhiam seus próprios presidentes (como se chamavam os governadores).

Entre as raras vozes da sociedade que conseguiram se manifestar na Constituinte de 1890-1891, estiveram o Apostado Positivista e a Igreja Católica, ambos por meio de carta. Os seguidores do positivismo (filosofia na época em voga que pregava que só a ciência garantiria o progresso da humanidade) recomendaram aos parlamentares que ficassem atentos para não cair em “utopias comunistas”. Os religiosos, por sua vez, não gostaram de ver o catolicismo perdendo o status de religião oficial do Brasil e os subsídios dos cofres públicos.

“A separação violenta, absoluta e radical não só entre a Igreja e o Estado, mas entre o Estado e toda religião, perturba gravemente a consciência da nação e produzirá os mais funestos efeitos, mesmo na ordem das coisas civis e políticas. Uma nação separada oficialmente de Deus torna-se ingovernável e rolará por um fatal declive de decadência até o abismo, em que a devorarão os abutres da anarquia e do despotismo”, escreveu o arcebispo primaz do Brasil, D. Antônio de Macedo Costa.

Os católicos não foram ouvidos. Além da separação entre Igreja e Estado, a Constituição de 1891 determinou que o casamento religioso não teria mais validade pública, apenas o casamento civil.

O Senado também passou por mudanças. Os senadores deixaram de ser vitalícios e passaram a ter mandato limitado. O Supremo Tribunal, que no Império era quase decorativo, ganhou poderes e pôde julgar processos políticos.

Charge mostra chegada de 1891 e da Constituição (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

De acordo com o cientista político Christian Lynch, da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o governo republicano recorreu a vários artifícios para ter controle sobre o conteúdo da Constituição que seria aprovada:

— Primeiro, a eleição para o Congresso Constituinte foi regida por uma legislação fraudulenta, que impediu a entrada de todos que fossem adversários do novo regime, como os monarquistas, os parlamentaristas e os unitaristas [opositores do federalismo]. Depois, o governo enviou um projeto de Constituição pronto e deu aos constituintes parcos três meses para aprová-lo, o que restringiu as discussões e dificultou as modificações. Por fim, os constituintes automaticamente se tornariam senadores e deputados ordinários, sem nova eleição, após a dissolução do Congresso Constituinte. Isso foi ruim porque eles perderam a liberdade de decidir. Estando com o mandato garantido pelos próximos anos, não faria sentido que mudassem as regras do jogo político em seu prejuízo. Jamais, por exemplo, aprovariam uma Constituição prevendo o Poder Legislativo unicameral. No fim das contas, o Congresso Constituinte fez pouco mais que carimbar o projeto do governo provisório.

Apesar de a escravidão ter sido abolida apenas três anos antes, o Congresso Constituinte não tocou na complicada situação dos antigos escravizados, que foram libertados sem ganhar nenhum tipo de compensação ou apoio do poder público. A escravidão foi citada, por exemplo, quando um constituinte parabenizou o governo por incinerar todos os registros públicos relativos à posse de escravizados e também quando um político de Campos (RJ) afirmou que a Lei Áurea havia levado sua cidade à ruína econômica.

Alguns parlamentares chegaram a questionar se o povo teria condições intelectuais para, pelo voto direto, escolher os presidentes da República.

— O voto direto traz o país constantemente sobressaltado por ocasião das eleições, às quais concorre grande massa de povo ignorante, e não raro são os distúrbios e desordens que provoca, o que se economiza perfeitamente com o voto indireto, dando-se a faculdade eletiva a um eleitorado escolhido — argumentou o deputado Almeida Nogueira (SP).

— No Brasil, como em toda parte, qualquer que seja o sistema preferido, quem governa não é a maioria da nação. É a classe superior da sociedade, uma porção mais adiantada e, conseguintemente, mais forte da comunhão nacional — acrescentou o deputado Justiniano de Serpa (CE).

Apesar desse tipo de raciocínio, a Constituição de 1891 entrou em vigor prevendo a eleição direta para presidente. Grande parte dos ex-escravizados, contudo, foi alijada desse direito, já que a Carta republicana negou o voto aos analfabetos, como já faziam as leis do Império desde 1881. O deputado Lauro Sodré (PA) tentou, sem sucesso, permitir que os iletrados votassem:

— Estamos em uma fase social que se acentua pela elevação do proletariado. Se lançarmos os olhos para os povos civilizados, havemos de ver que em todos eles se vai levantando a grande massa. Chamem-na socialismo, niilismo ou fenianismo, um só é o fenômeno social: o advento do Quarto Estado. Não posso dar o meu voto a este verdadeiro esbulho com que se tenta ferir todos os que não sabem ler nem escrever, ainda que trabalhem tanto na obra do progresso da nação quanto aqueles que tiveram a fortuna de aprender a assinar o seu nome.

As províncias do Império, que se transformaram nos estados da República (imagem: Biblioteca do Senado)

As oligarquias estaduais aproveitaram o Congresso Constituinte para, na adoção do federalismo (transformação das províncias em estados), tentar obter o máximo possível de liberdades, prerrogativas e benesses. Sugeriu-se que o governo federal assumisse as dívidas de todos os estados, que os governos locais tivessem o poder para abrir bancos emissores de papel-moeda e que cada governador indicasse um ministro para o Supremo Tribunal Federal. Outra ideia debatida foi a liberdade para que os estados criassem suas próprias leis civis, processuais, comerciais, eleitorais e até penais.

— Os crimes de homicídio, de roubo e de furto hão de ser crimes de homicídio, de roubo e de furto no Rio Grande do Sul, no Pará, em Minas, no Amazonas e em toda parte, mas a penalidade pode diversificar. No Rio Grande do Sul, onde o povo é dado à indústria pastoril, infelizmente há em abundância o furto de gado e lá nós precisamos punir mais gravemente esse delito do que puniriam os pernambucanos, os mineiros e os alagoanos, para evitar sua reprodução — argumentou o deputado Cassiano do Nascimento (RS).

À exceção dos códigos processuais estaduais, nenhuma dessas ideias vingou. Em compensação, as oligarquias conseguiram incluir na Constituição a criação dos Judiciários estaduais (antes só havia o Judiciário nacional) e a concessão das terras devolutas aos estados (antes pertenciam à União).

— As antigas províncias, feudos da Monarquia, aqueles territórios estéreis onde dominavam o imperialismo e o niilismo, aquelas províncias verdadeiramente esfarrapadas e nuas, como se fossem mendigas, aí surgem, como que mudando de sexo, transformadas em estados — festejou o senador Américo Lobo (MG).

Trecho inicial da Constituição de 1891 (imagem: Arquivo do Senado)

A partilha do dinheiro público também mobilizou as oligarquias estaduais. Dos poucos embates ocorridos nos três meses do Congresso Constituinte, esse foi o mais renhido. No Império, a autonomia financeira das províncias era quase nula. Elas não tinham poder sobre o dinheiro arrecadado em seus territórios pelo governo central, que fazia a seu critério a distribuição dos recursos. No Congresso Constituinte, os estados mais ricos buscaram acabar com essa dependência. São Paulo, por exemplo, que não gostava de ver as volumosas somas geradas pela exportação do seu café sendo aplicadas em outros cantos do Império, agiu para ter o controle de todo o dinheiro.

— Diante da decadência que se abateu sobre o Nordeste na década de 1870, em razão da crise do açúcar, a Monarquia passou a redistribuir para as províncias nordestinas o dinheiro dos tributos arrecadados em São Paulo. Por esse motivo, a Monarquia era popular no Nordeste e impopular em São Paulo. Os paulistas, que se viam como a locomotiva que puxava os 20 vagões das demais províncias vazios, abraçaram a ideia do federalismo republicano porque não queriam mais perder dinheiro — explica o cientista político Christian Lynch. 

A bancada do Rio Grande do Sul apresentou uma proposta radical de federalismo: a arrecadação tributária passaria para as mãos dos governos locais, e a União se tornaria dependente de uma mesada paga pelos estados.

— Se dermos aos estados toda a autonomia, mas não lhes dermos renda, isso equivalerá à liberdade da miséria — argumentou o deputado Júlio de Castilhos (RS). — A federação, para ter realização efetiva, completa, satisfatória, depende da devolução aos estados não somente dos serviços que lhes competem, mas também da devolução das rendas que no regime decaído [Monarquia], o qual tanto combatemos, eram absorvidas quase que totalmente pelo governo central.

— Neste momento em que se tratamos de organizar os estados, se me afigura como que uma cena de família em que os filhos da casa, chegados à maioridade, deixam o teto paterno para constituírem em separado suas famílias. Os estados, antigas províncias, vão neste momento, depois de sua independência, adotar um novo regime que deve produzir sua grandeza e felicidade — comparou o senador Ramiro Barcellos (RS).

Charge da Revista Ilustrada mostra desejo de federalismo no fim do Império (Imagem: Biblioteca Nacional Digital)

Para os adversários da ideia, esse federalismo extremado fortaleceria tanto certos estados que poderia levá-los a desejar o separatismo, comprometendo a União.

— O que se está propondo é uma confederação de republiquetas — criticou o senador José Hygino (PE).

— Os estados brasileiros têm tido nesta Casa tantos defensores quantos são os seus representantes. A União, porém, a pátria comum, parece que não tem advogado — lamentou o senador Ubaldino do Amaral (PR), acrescentando que, caso os estados em algum momento se recusassem a transferir os impostos, o governo federal não teria como custear o Exército, a Marinha, as embaixadas no exterior, o serviço de correios e a segurança interna.

Para o senador Ruy Barbosa (BA), a União estaria fadada à morte se passasse a depender das “migalhas” dos estados:

— Os estados são órgãos; a União é o agregado orgânico. Os órgãos não podem viver fora do organismo assim como o organismo não existe sem os órgãos. Separá-los é matá-los. Não vejamos na União uma potência isolada no centro, mas a resultante das forças associadas disseminando-se equilibradamente até as extremidades. Fora da União, não há conservação para os estados.

Por uma margem apertada, 123 votos contrários e 103 favoráveis, a proposta da bancada gaúcha foi derrotada. O federalismo previsto na Constituição de 1891 garantiu recursos equilibrados para a União e o conjunto do estados. A estes últimos coube, entre outros, o imposto de exportação — justamente o principal pleito de São Paulo.

Ruy Barbosa e Júlio de Castilhos: adversário na questão do federalismo (fotos: Fundação Casa Rui Barbosa e Virgílio Calegari)

Aristides Lobo, o jornalista que descreveu o povo assistindo “bestializado” ao golpe de Estado de 1889, elegeu-se deputado pelo Distrito Federal (na época o Rio de Janeiro) e participou da elaboração da Constituição de 1891. O artigo ficou tão famoso já na época que, no Congresso Constituinte, ele ouviu colegas avaliando que o adjetivo “bestializado” era exagerado e jurando que o povo havia, sim, ajudado a derrubar a Monarquia. Lobo discordou: 

— O acontecimento deu-se no meio de uma população surpresa pela oscilação revolucionária. Esse é o aspecto natural da questão.

Na tribuna do Paço de São Cristóvão, o deputado Serzedello Correia (PA) fez uma avaliação semelhante à de Aristides Lobo:

— A República devia vir como veio: calma, silenciosa, de modo que as tropas percorreram as ruas em triunfo e as crianças continuavam a brincar no colo de suas mães.

Terminado o Congresso Constituinte, os parlamentares deixaram o improviso do Paço de São Cristóvão e se mudaram para o Centro do Rio de Janeiro. Os senadores passaram a trabalhar no mesmo prédio do Senado imperial e os deputados, no mesmo prédio da Câmara imperial. São Cristóvão se transformou no Museu Nacional — o mesmo que seria devastado em 2018 por um incêndio.

A seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre a Agência Senado e o Arquivo do Senado, é publicada na primeira sexta-feira do mês no Portal Senado Notícias. 

Mensalmente, sempre no dia 15, a Rádio Senado lança um episódio do Arquivo S na versão podcast, disponível nos principais aplicativos de streaming de áudio.


Reportagem e edição: Ricardo Westin
Pesquisa histórica: Arquivo do Senado
Edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Pintura da Capa: Gustavo Hastoy/ Museu do Senado

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

Fonte: Agência Senado

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