O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Christian Lynch. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Christian Lynch. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

O populismo reacionário: resenha de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro: O populismo reacionário - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Excelente resenha de um livro magistral 

O populismo reacionário

Imagem: Kartick Chandra Pyne

Por ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY*

Comentário sobre o livro de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro

O populismo reacionário, de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro, é um dos livros nacionais mais importantes para uma tentativa de compreensão da situação política atual. Os autores são professores e pesquisadores no Rio de Janeiro. Em quase 200 páginas apresentam uma radiografia do populismo reacionário que levou quase a metade dos votos nas últimas eleições (o livro é anterior ao pleito). Não tratam de uma aventura política transitória e passageira. Tratam de um assunto sério que exige enfrentamento.

A partir da crise da Nova República, e com foco no judiciarismo lava-jatista, os autores exploram nosso tempo político, tateiam uma obtusidade que desdenhamos (e hoje pagamos por isso) e apontam para uma aporia intransponível: o paradoxo do parasita. O parasita precisa do corpo invadido para sobreviver, não pode destruí-lo. A destruição do corpo invadido tem como pressuposto e resultado a morte do parasita. Essa metáfora implica na relação ambígua entre o líder populista reacionário e a democracia. No último dia 8 de janeiro essa tensão chegou ao limite.

Os autores identificam essa nova onda populista (especialmente brasileira) no contexto da crise do liberalismo democrático, que se desdobra da ressaca da euforia da globalização, dos atentados às torres gêmeas e da crise econômica de 2008. Nesses últimos tempos discutiu-se seriamente sobre o destino da agenda democrática, isto é, se haveria uma revitalização desse projeto ou se a ameaça era realmente verdadeira. O que acha o leitor?

Parece-me, venceu esse último postulado. A ameaça transcendeu o espaço digital e foi para a praça com porretes na mão (literalmente). Tudo condimentado por perigos potencializados por um universo de informação paralela, no qual um comunismo idealizado, a imigração estrangeira, um sentido recorrente de injustiça e de mudanças sociais foram fomentados pelo compartilhamento de valores identitários.

Para os autores, o populista reacionário não se interessa por assuntos de governo e de administração. Comanda um partido digital disperso e ao mesmo tempo unido em torno de uma conta também digital. Lê-se nesse corajoso livro que a conta digital do populista reacionário não é lugar democrático com espaço aberto para a crítica do cidadão. A conta digital do populista reacionário “é um altar, cujo acesso é privativo dos fieis para fins de adoração de seu ídolo”. Quando materializado, e agora a opinião é minha, esse espaço de veneração é concomitante ao entorno topográfico oficial: é o cercadinho.

O populista radical, segundo os autores, apresenta-se como o herói antissistema. Gerencialmente é incompetente. Vale-se dessa incompetência como um selo de autenticidade. Entre a competência e a autenticidade (ainda que fingida, o que possível) o medíocre insatisfeito com a mediocridade de sua vida não pensa duas vezes: quer o autêntico.

Que caminho histórico pavimentou o populista reacionário, porta-voz de uma utopia regressiva de restauração a tempos imaginados? Era latente essa utopia? Na tentativa de explicar essas duas perguntas os autores primeiramente exploram uma revolução judiciarista, que se dizia instrumento de uma suposta capacidade regenerativa da Nação. O Judiciário resolveria tudo. Aplicaria a lei.

É o lavajatismo, em sua versão mais completa, que assumiu o padrão de um tenentismo togado. O ex-juiz de Curitiba e o ex-procurador da República que lá atuava tentaram ser versões contemporâneas de Juarez Távora e de Eduardo Gomes. Creio que não conseguiram, ainda que incensados na imprensa e nas redes, aplaudidos em aviões e restaurantes, ouvidos em gravações suspeitas.

Na tese dos autores de O populismo reacionário o judiciarismo escorava-se em legitimidade oriunda do acesso meritocrático ao serviço público. Acrescentaram também o tema do neoconstitucionalismo, que resultou na valorização das corporações jurídicas e, paradoxalmente, na massificação do ensino de Direito. Havia uma multidão de bacharéis que falavam o tempo todo em regras e princípios, citavam autores alemães em tradução (Hesse, Häberle, Müller e Alexy) e remoíam o aspartame jurídico anglo-saxão (Dworkin e Rawls). Defendiam uma maior participação do Judiciário em detrimento dos demais poderes. A restauração se dava no curul, a cadeira dos altos dignitários romanos que ditavam a jurisprudência.

Segundo os autores, basta que consultemos os livros de Direito Constitucional para constatarmos que o espaço dedicado ao Legislativo é ínfimo em relação ao espaço dedicado ao Judiciário e às corporações jurídicas. O judiciarismo que já se verificava em Rui Barbosa e em Pedro Lessa voltou para o proscênio. O moralismo recorrente da UDN, na voz de Afonso Arinos, Bilac Pinto e Aliomar Balleeiro estava na espinha dorsal dessa revolução do judiciário, que também, o que mais paradoxal, escorou-se em intepretações padronizadas do Brasil, como lemos em Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta.  Esse diálogo seria impossível. Os autores nos lembram que os udenistas de Carlos Lacerda pularam do barco em 1965, do mesmo modo que Sergio Moro e o MBL o fizeram em tempo próximo.

No argumento de O populismo reacionário o núcleo da nova expressão de poder orbitava em torno do culturalismo reacionário de Olavo de Carvalho e do neoliberalismo de Paulo Guedes. Do primeiro apreendeu-se uma concepção petrificada de cultura, centrada na obsessão em face do marxismo cultural, contra o qual se opôs o decadentismo, a crítica à globalização e a âncora da metapolítica, para a qual a cultura vem depois da política. Do segundo, de acordo com os autores, sabe-se que o ponto fraco dos neoliberais tem sido sempre a impopularidade do programa.

O populismo reacionário distancia-se muito da referência e da reverência que tem para com a tecnocracia militar. É que o conservadorismo estatista de Golbery do Couto e Silva subordinou e dominou o culturalismo de Gilberto Freyre e de Miguel Reale, bem como o neoliberalismo de Roberto Campos e de Octávio Bulhões. Os autores não chegam a conjecturar sobre uma explicação para essa disfunção. Talvez, a adesão do populismo reacionário ao negacionismo estrutural possa ser uma chave interpretativa para o enigma.

Os autores dão pistas. A negação do aquecimento global, do holocausto, a fé no terraplanismo, a crença na hipótese de que nazismo e fascismo seriam de esquerda, o racismo reverso, o conspiracionismo, a pandemia, a eficiência da vacina, a ortodoxia das urnas e o tema da ideologia de gênero transitariam nesse quadro explicativo. Na pergunta de Fernando Gabeira, “por que se afastam tanto da realidade e quando se dão conta dela ficam tão revoltados?”.

O populista reacionário cerca-se de quadros medíocres e servis, fomentando um macarthismo administrativo. Os dissidentes são perseguidos. Na construção do caminho para o populismo reacionário formulou-se uma teoria constitucional de sustentação, sempre servida por juristas desfrutáveis (a expressão é dos autores) que retomaram o tema da razão do Estado, agora justificativa de segredos quase perpétuos (100 anos).

Acrescento ao argumento dos autores o papel de certa teologia da prosperidade. Para Carl Schmitt (o príncipe dos juristas desfrutáveis) o milagre estaria para a fé como a jurisprudência para o direito. Para sua quase versão brasileira (Francisco Campos) o Estado totalitário seria uma técnica a serviço da democracia. É a união entre o templo e o palácio da justiça.

Penso que a grande mensagem de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro nesse belíssimo livro consiste na constatação de que se abandonou a busca racional da verdade como fundamento da vida coletiva. Os autores instigam mais para a busca racional da verdade do que para a própria verdade. Afinal, sobre essa última, e a questão é bíblica (João 18:38) nem mesmo Pilatos sabia do que se tratava.

*Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Referência


Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro. O populismo reacionário. São Paulo, Contracorrente, 196 págs.

Do site A Terra é Redonda

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Pau que nasce torto morre torto: sobre a paralisia e a dissolução final do governo Bolsonaro - Christian Lynch

 PAU QUE NASCE TORTO MORRE TORTO

Uma análise da paralisia, do esboroamento e da final dissolução do governo anômalo de Jair Bolsonaro

Por Christian Lynch

04/jan/2023


O governo Bolsonaro foi coerente até o fim em sua anormalidade congênita. Quando estão para terminar, governos normais reconhecem o resultado eleitoral e se limitam a tocar a rotina administrativa, limitando suas ações políticas em facilitar o advento do novo governo. O presidente que sai cede protagonismo ao que entra. Mas não poderia terminar normalmente um governo que se elegeu em circunstâncias anormais e viveu na anormalidade e de anormalidade. Hoje está mais do que claro que Bolsonaro nunca passou de um parasita; um reacionário muito limitado intelectual e emocionalmente, que encontrou na lacração reacionária um meio de viver da política e o ensinou aos filhos. Natural que acreditasse, portanto, que sua mais do que improvável chegada ao cargo mais elevado da República, que aliás ocorreu por muitos fatores aleatórios, resultasse de alguma forma dos insondáveis desígnios do Senhor.

Não por outro motivo, recebeu sua derrota, mais do que com fúria, com absoluto estupor. Caiu prostrado como um tolo dirigente de grêmio estudantil; um principiante que nunca houvesse cogitado a possibilidade de ser vencido, usual tanto no esporte como na política. Prostração típica dos negacionistas contrariados, que atribuem seus reveses não às suas limitações, mas à alguma maquinação conspiracionista — no caso, a satânica fraude eleitoral operada pelo Poder Judiciário para eleger Lula. Depois da prostração, porém, veio o pânico diante da perspectiva de privação da imunidade e do foro privilegiado, que por mais de três décadas lhe serviram de barreiras à possibilidade de responder por seus crimes, e da impossibilidade de continuar aparelhando a Polícia Federal para impedir as investigações.

Dali por diante, Bolsonaro emudeceu. Passou a fazer um jogo duplo: enquanto conspirava com seus generais aposentados pelo golpe que o salvaria da cadeia, impedindo a posse de Lula, o ex-presidente se fazia de pobre diabo, doente e deprimido, para que o mesmíssimo “sistema” viesse a ter pena dele, em caso de fracasso no golpe. Há quem diga que a mobilização da porção mais fanática de seus eleitores nas portas dos quartéis, que partiram do golpismo até chegar ao terrorismo, bloqueando estradas, incendiando veículos e explodindo bombas, tinha por finalidade criar o ambiente de caos e de legitimidade que permitisse a invocação do art. 142 da Constituição. Como se sabe, a interpretação golpista do bolsonarismo permitiria às Forças Armadas, neste caso, fechar o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral e manter Bolsonaro no poder. Valdemar Costa Neto se incumbiria de sossegar a turma do Centrão. Segundo a imprensa, o golpe teria fracassado por falta de apoio externo e pela ação enérgica do ministro Alexandre de Moraes, que impôs ao partido do presidente uma multa de valor astronômica diante da tentativa de usar o Judiciário para melar sem provas o resultado da eleição.

A verdade é que a possibilidade de um golpe exitoso nunca passou de um delírio de reacionários que pouco entendem de política, e ainda acham que a sociedade brasileira está onde estava 60 anos atrás.

Desde que a possibilidade do golpe se esvaiu, consultando advogado atrás de advogado, obcecado com a certeza de que seria preso no momento em que Lula subisse a rampa do Planalto, Bolsonaro começou a planejar sua fuga para a Flórida. Seu governo, já paralisado, se esboroou e enfim se dissolveu à luz do dia de forma tão escandalosa como silenciosa. Toda a responsabilidade pela gestão da República recaiu sobre um governo eleito cujo quadro de ministros sequer estava completo. Enquanto os filhos do presidente também preparavam sua saída do país antes do ano novo, ministros saíam de férias ou pediam para ser exonerados, para não sofrerem a humilhação de serem exonerados por Lula — os ministros mais identificados com o bolsonarismo, como Heleno, Guedes, Faria, Queiroga. Acusado de ter coibido a locomoção do eleitorado lulista no dia da eleição e subsequente leniência com os bloqueios das estradas cometidos pelos bolsonaristas, o diretor da Polícia Rodoviária Federal foi rapidamente aposentado com proventos integrais. O estratagema visou prevenir sua eventual demissão a bem do serviço público e a confissão das ordens recebidas, o que não convém ao bolsonarismo já encrencado com a polícia. Aliados de Bolsonaro justificaram a fuga com o temor de um “pacote de maldades” com chegada de Lula. Pacote este que, olhando de perto, não passa de um “choque de legalidade” sobre a prática diuturna de crimes contra a república por parte de um governo que acreditou que jamais deixaria o poder.

Em seus estertores, os poucos atos praticados pelo governo foram os mais vergonhosos jamais praticados por qualquer governo na história brasileira. Enquanto tentava agradar a Lula revogando a portaria que impedia a entrada do presidente da Venezuela no Brasil, Bolsonaro criou sinecuras no exterior para premiar servidores da Polícia Federal que se prestaram ao papel de colaboracionistas e embalá-los na ilusão de que o braço da sindicância não chegaria à Europa. A possibilidade da revogação da benesse pelo novo governo já estava nos planos do velho, que contava assim com aumentar a frustração dos colaboracionistas, para que doravante sirvam de infiltrados vazando informações sigilosas em benefício dos bolsonaristas na oposição.

Mas a esvaecimento da cúpula bolsonarista nos últimos meses tem outra explicação, para além da repulsa ideológica e do medo. Todos sabiam que não tinham competência nem qualificação para ali estarem; que foram recrutados para ocupar seus cargos, parte por oportunismo, parte por falta de pessoal disposto a colaborar. Estavam ali tão espantados quanto a opinião pública, aproveitando a situação especial criada pela existência de um governo absolutamente anormal. Uma vez moribundo este governo, nada mais lógico que se retirassem rapidamente de cena, voltando para o buraco de onde haviam saído ou sido saídos. De modo que, quando chegou a última semana, já não havia quem respondesse pelo governo Bolsonaro. Não havia sequer autoridade para lamentar oficialmente a morte de Pelé, o brasileiro mais famoso de todos os tempos. Os meios de comunicação tiveram de entrevistar a futura ministra dos esportes, designada de véspera, porque já não havia ninguém no governo ainda vigente oficialmente.

O último pronunciamento de Bolsonaro seguiu seu hábito de se dirigir diretamente ao país por meio de uma “live” informal no YouTube e já entrou para a história brasileira como a manifestação mais patética jamais proferida por um presidente às vésperas de ceder o poder. Em síntese, tratou-se de um deprimido e acovardado lamento de um populista reacionário, que buscava explicar ao seu eleitorado seu fracasso no projeto de derrubar a república e, ao mesmo tempo, cheio de temores e cautelas de dizer qualquer coisa que pudesse incriminá-lo ainda mais. Enquanto defendeu a suposta “liberdade de expressão” dos bolsonaristas de bloquear estradas e pedir o golpe militar na porta dos quartéis, Bolsonaro tentou simultaneamente eximir-se de responsabilidade por todos os atos subversivos por eles praticados, como explodir bombas, tocar fogo em ônibus e assassinar adversários. Tentou, em suma, explicar ao seu eleitorado por que não conseguiu dar o golpe, sem dar pretexto para ser preso.

No fim, Bolsonaro chorou como um impotente, suscitando perplexidade, riso e desprezo de um lado e decepção e fúria de sebastianistas fanáticos que por dois meses aguardaram o golpe que não veio.

Poucas horas depois, na tarde do dia 30 de dezembro, Bolsonaro embarcou pela última vez no avião presidencial com destino à Flórida, onde foi encontrar se encontrar com a família no “exílio”. O confesso objetivo era de descansar, entendendo-se por tal passear na Disneylândia e ouvir conselhos de Donald Trump sobre como continuar a enganar seu eleitorado fora do poder e escapar tanto da inelegibilidade quanto da prisão. A história da fuga de Bolsonaro é, claro, reflexo fiel de sua própria história como militar e político: aquela de um homem abaixo do medíocre, de caráter fascistóide e covarde, que descobriu como viver às custas do contribuinte, vivendo um casamento moralista de fachada, cercado por uma camarilha de militares de baixa patente, que o alimenta dia e noite com teorias da conspiração.

Quando se imaginava que nada pior poderia ainda acontecer até a posse do novo presidente, o respeitável público foi surpreendido com a notícia de que o vice-presidente, o general Mourão, aproveitaria o vácuo de poder de 24 horas para ocupar como presidente interino no dia 31 de dezembro o vazio deixado por Bolsonaro. Desejoso de catalisar para si a frustração do eleitorado radical com a fuga ignominiosa do “Mito” para seu exílio na Disneylândia, Mourão se comportou como herdeiro dos generais-presidentes da ditadura militar e convocou uma cadeia nacional de rádio e televisão, na qual buscou apresentar-se ao público conservador como um Figueiredo redivivo: autoritário, mas pretensamente comprometido com a ordem constitucional.

Era um modo de contrastar com a imagem patética de golpista molambento e chorão ostentada por Bolsonaro na véspera. Depois de criticar simultaneamente o Centrão, o Supremo Tribunal Federal e o próprio Bolsonaro, que teria jogado a responsabilidade de sua incompetência sobre as Forças Armadas, Mourão concluiu colocando-se à disposição dos bolsonaristas arrependidos como “o verdadeiro Bonaparte”, ou seja, um militar autoritário respeitável, autêntico herdeiro do regime militar, capaz de capitanear como senador eleito a oposição conservadora a Lula e, quem sabe, ganhar seu voto como candidato a presidente da República daqui a quatro anos. Nada disso retirou do pronunciamento o caráter do mais fantástico oportunismo. No fim das contas, Mourão aproveitou seus quinze minutos como interino para fazer uso dos poderes presidenciais para propaganda eleitoral, de forma escancaradamente antirrepublicana.

O fato de que o antirrepublicanismo tenha no final se voltado contra o próprio Bolsonaro só foi possível porque este foi um governo disfuncional de fio a pavio; um governo que nasceu anômalo e anômalo morreu. Como já dizia minha avó, pau que nasce torto morre torto.

* Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor IESP-UERJ

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

As novas tábuas da Lei; revista Inteligência, n. 95, Dezembro 2021

 Acredito que o autor destas novas tábuas da Lei, Christian Lynch, editor da revista Inteligência Insight, deve ter falado com Moisés, antes de redigi-las...





sábado, 6 de fevereiro de 2021

130 anos atrás, em 1891, a primeira Constituição republicana: teríamos mais seis - Agencia Senado

A Constituição republicana de 1891  

D. Pedro II, o imperador deposto, e Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente (fotos: Mathew Brady e Irmãos Bernardelli)

A Constituição de 1891, promulgada pelos senadores e deputados constituintes 15 meses após a derrubada de D. Pedro II, estabeleceu as bases políticas sobre as quais o país se ergue até os dias de hoje: a República, o presidencialismo, os três Poderes e o federalismo.

Até 1889, as bases eram bem diferentes. Como Monarquia parlamentarista, o Brasil tinha imperador e primeiro-ministro. Havia o Poder Moderador, que era exercido pelo monarca e prevalecia sobre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Diferentemente dos atuais estados, as antigas províncias eram meros braços do governo central e quase não tinham autonomia política e financeira. Nem sequer escolhiam seus próprios presidentes (como se chamavam os governadores).

Entre as raras vozes da sociedade que conseguiram se manifestar na Constituinte de 1890-1891, estiveram o Apostado Positivista e a Igreja Católica, ambos por meio de carta. Os seguidores do positivismo (filosofia na época em voga que pregava que só a ciência garantiria o progresso da humanidade) recomendaram aos parlamentares que ficassem atentos para não cair em “utopias comunistas”. Os religiosos, por sua vez, não gostaram de ver o catolicismo perdendo o status de religião oficial do Brasil e os subsídios dos cofres públicos.

“A separação violenta, absoluta e radical não só entre a Igreja e o Estado, mas entre o Estado e toda religião, perturba gravemente a consciência da nação e produzirá os mais funestos efeitos, mesmo na ordem das coisas civis e políticas. Uma nação separada oficialmente de Deus torna-se ingovernável e rolará por um fatal declive de decadência até o abismo, em que a devorarão os abutres da anarquia e do despotismo”, escreveu o arcebispo primaz do Brasil, D. Antônio de Macedo Costa.

Os católicos não foram ouvidos. Além da separação entre Igreja e Estado, a Constituição de 1891 determinou que o casamento religioso não teria mais validade pública, apenas o casamento civil.

O Senado também passou por mudanças. Os senadores deixaram de ser vitalícios e passaram a ter mandato limitado. O Supremo Tribunal, que no Império era quase decorativo, ganhou poderes e pôde julgar processos políticos.

Charge mostra chegada de 1891 e da Constituição (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

De acordo com o cientista político Christian Lynch, da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o governo republicano recorreu a vários artifícios para ter controle sobre o conteúdo da Constituição que seria aprovada:

— Primeiro, a eleição para o Congresso Constituinte foi regida por uma legislação fraudulenta, que impediu a entrada de todos que fossem adversários do novo regime, como os monarquistas, os parlamentaristas e os unitaristas [opositores do federalismo]. Depois, o governo enviou um projeto de Constituição pronto e deu aos constituintes parcos três meses para aprová-lo, o que restringiu as discussões e dificultou as modificações. Por fim, os constituintes automaticamente se tornariam senadores e deputados ordinários, sem nova eleição, após a dissolução do Congresso Constituinte. Isso foi ruim porque eles perderam a liberdade de decidir. Estando com o mandato garantido pelos próximos anos, não faria sentido que mudassem as regras do jogo político em seu prejuízo. Jamais, por exemplo, aprovariam uma Constituição prevendo o Poder Legislativo unicameral. No fim das contas, o Congresso Constituinte fez pouco mais que carimbar o projeto do governo provisório.

Apesar de a escravidão ter sido abolida apenas três anos antes, o Congresso Constituinte não tocou na complicada situação dos antigos escravizados, que foram libertados sem ganhar nenhum tipo de compensação ou apoio do poder público. A escravidão foi citada, por exemplo, quando um constituinte parabenizou o governo por incinerar todos os registros públicos relativos à posse de escravizados e também quando um político de Campos (RJ) afirmou que a Lei Áurea havia levado sua cidade à ruína econômica.

Alguns parlamentares chegaram a questionar se o povo teria condições intelectuais para, pelo voto direto, escolher os presidentes da República.

— O voto direto traz o país constantemente sobressaltado por ocasião das eleições, às quais concorre grande massa de povo ignorante, e não raro são os distúrbios e desordens que provoca, o que se economiza perfeitamente com o voto indireto, dando-se a faculdade eletiva a um eleitorado escolhido — argumentou o deputado Almeida Nogueira (SP).

— No Brasil, como em toda parte, qualquer que seja o sistema preferido, quem governa não é a maioria da nação. É a classe superior da sociedade, uma porção mais adiantada e, conseguintemente, mais forte da comunhão nacional — acrescentou o deputado Justiniano de Serpa (CE).

Apesar desse tipo de raciocínio, a Constituição de 1891 entrou em vigor prevendo a eleição direta para presidente. Grande parte dos ex-escravizados, contudo, foi alijada desse direito, já que a Carta republicana negou o voto aos analfabetos, como já faziam as leis do Império desde 1881. O deputado Lauro Sodré (PA) tentou, sem sucesso, permitir que os iletrados votassem:

— Estamos em uma fase social que se acentua pela elevação do proletariado. Se lançarmos os olhos para os povos civilizados, havemos de ver que em todos eles se vai levantando a grande massa. Chamem-na socialismo, niilismo ou fenianismo, um só é o fenômeno social: o advento do Quarto Estado. Não posso dar o meu voto a este verdadeiro esbulho com que se tenta ferir todos os que não sabem ler nem escrever, ainda que trabalhem tanto na obra do progresso da nação quanto aqueles que tiveram a fortuna de aprender a assinar o seu nome.

As províncias do Império, que se transformaram nos estados da República (imagem: Biblioteca do Senado)

As oligarquias estaduais aproveitaram o Congresso Constituinte para, na adoção do federalismo (transformação das províncias em estados), tentar obter o máximo possível de liberdades, prerrogativas e benesses. Sugeriu-se que o governo federal assumisse as dívidas de todos os estados, que os governos locais tivessem o poder para abrir bancos emissores de papel-moeda e que cada governador indicasse um ministro para o Supremo Tribunal Federal. Outra ideia debatida foi a liberdade para que os estados criassem suas próprias leis civis, processuais, comerciais, eleitorais e até penais.

— Os crimes de homicídio, de roubo e de furto hão de ser crimes de homicídio, de roubo e de furto no Rio Grande do Sul, no Pará, em Minas, no Amazonas e em toda parte, mas a penalidade pode diversificar. No Rio Grande do Sul, onde o povo é dado à indústria pastoril, infelizmente há em abundância o furto de gado e lá nós precisamos punir mais gravemente esse delito do que puniriam os pernambucanos, os mineiros e os alagoanos, para evitar sua reprodução — argumentou o deputado Cassiano do Nascimento (RS).

À exceção dos códigos processuais estaduais, nenhuma dessas ideias vingou. Em compensação, as oligarquias conseguiram incluir na Constituição a criação dos Judiciários estaduais (antes só havia o Judiciário nacional) e a concessão das terras devolutas aos estados (antes pertenciam à União).

— As antigas províncias, feudos da Monarquia, aqueles territórios estéreis onde dominavam o imperialismo e o niilismo, aquelas províncias verdadeiramente esfarrapadas e nuas, como se fossem mendigas, aí surgem, como que mudando de sexo, transformadas em estados — festejou o senador Américo Lobo (MG).

Trecho inicial da Constituição de 1891 (imagem: Arquivo do Senado)

A partilha do dinheiro público também mobilizou as oligarquias estaduais. Dos poucos embates ocorridos nos três meses do Congresso Constituinte, esse foi o mais renhido. No Império, a autonomia financeira das províncias era quase nula. Elas não tinham poder sobre o dinheiro arrecadado em seus territórios pelo governo central, que fazia a seu critério a distribuição dos recursos. No Congresso Constituinte, os estados mais ricos buscaram acabar com essa dependência. São Paulo, por exemplo, que não gostava de ver as volumosas somas geradas pela exportação do seu café sendo aplicadas em outros cantos do Império, agiu para ter o controle de todo o dinheiro.

— Diante da decadência que se abateu sobre o Nordeste na década de 1870, em razão da crise do açúcar, a Monarquia passou a redistribuir para as províncias nordestinas o dinheiro dos tributos arrecadados em São Paulo. Por esse motivo, a Monarquia era popular no Nordeste e impopular em São Paulo. Os paulistas, que se viam como a locomotiva que puxava os 20 vagões das demais províncias vazios, abraçaram a ideia do federalismo republicano porque não queriam mais perder dinheiro — explica o cientista político Christian Lynch. 

A bancada do Rio Grande do Sul apresentou uma proposta radical de federalismo: a arrecadação tributária passaria para as mãos dos governos locais, e a União se tornaria dependente de uma mesada paga pelos estados.

— Se dermos aos estados toda a autonomia, mas não lhes dermos renda, isso equivalerá à liberdade da miséria — argumentou o deputado Júlio de Castilhos (RS). — A federação, para ter realização efetiva, completa, satisfatória, depende da devolução aos estados não somente dos serviços que lhes competem, mas também da devolução das rendas que no regime decaído [Monarquia], o qual tanto combatemos, eram absorvidas quase que totalmente pelo governo central.

— Neste momento em que se tratamos de organizar os estados, se me afigura como que uma cena de família em que os filhos da casa, chegados à maioridade, deixam o teto paterno para constituírem em separado suas famílias. Os estados, antigas províncias, vão neste momento, depois de sua independência, adotar um novo regime que deve produzir sua grandeza e felicidade — comparou o senador Ramiro Barcellos (RS).

Charge da Revista Ilustrada mostra desejo de federalismo no fim do Império (Imagem: Biblioteca Nacional Digital)

Para os adversários da ideia, esse federalismo extremado fortaleceria tanto certos estados que poderia levá-los a desejar o separatismo, comprometendo a União.

— O que se está propondo é uma confederação de republiquetas — criticou o senador José Hygino (PE).

— Os estados brasileiros têm tido nesta Casa tantos defensores quantos são os seus representantes. A União, porém, a pátria comum, parece que não tem advogado — lamentou o senador Ubaldino do Amaral (PR), acrescentando que, caso os estados em algum momento se recusassem a transferir os impostos, o governo federal não teria como custear o Exército, a Marinha, as embaixadas no exterior, o serviço de correios e a segurança interna.

Para o senador Ruy Barbosa (BA), a União estaria fadada à morte se passasse a depender das “migalhas” dos estados:

— Os estados são órgãos; a União é o agregado orgânico. Os órgãos não podem viver fora do organismo assim como o organismo não existe sem os órgãos. Separá-los é matá-los. Não vejamos na União uma potência isolada no centro, mas a resultante das forças associadas disseminando-se equilibradamente até as extremidades. Fora da União, não há conservação para os estados.

Por uma margem apertada, 123 votos contrários e 103 favoráveis, a proposta da bancada gaúcha foi derrotada. O federalismo previsto na Constituição de 1891 garantiu recursos equilibrados para a União e o conjunto do estados. A estes últimos coube, entre outros, o imposto de exportação — justamente o principal pleito de São Paulo.

Ruy Barbosa e Júlio de Castilhos: adversário na questão do federalismo (fotos: Fundação Casa Rui Barbosa e Virgílio Calegari)

Aristides Lobo, o jornalista que descreveu o povo assistindo “bestializado” ao golpe de Estado de 1889, elegeu-se deputado pelo Distrito Federal (na época o Rio de Janeiro) e participou da elaboração da Constituição de 1891. O artigo ficou tão famoso já na época que, no Congresso Constituinte, ele ouviu colegas avaliando que o adjetivo “bestializado” era exagerado e jurando que o povo havia, sim, ajudado a derrubar a Monarquia. Lobo discordou: 

— O acontecimento deu-se no meio de uma população surpresa pela oscilação revolucionária. Esse é o aspecto natural da questão.

Na tribuna do Paço de São Cristóvão, o deputado Serzedello Correia (PA) fez uma avaliação semelhante à de Aristides Lobo:

— A República devia vir como veio: calma, silenciosa, de modo que as tropas percorreram as ruas em triunfo e as crianças continuavam a brincar no colo de suas mães.

Terminado o Congresso Constituinte, os parlamentares deixaram o improviso do Paço de São Cristóvão e se mudaram para o Centro do Rio de Janeiro. Os senadores passaram a trabalhar no mesmo prédio do Senado imperial e os deputados, no mesmo prédio da Câmara imperial. São Cristóvão se transformou no Museu Nacional — o mesmo que seria devastado em 2018 por um incêndio.

A seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre a Agência Senado e o Arquivo do Senado, é publicada na primeira sexta-feira do mês no Portal Senado Notícias. 

Mensalmente, sempre no dia 15, a Rádio Senado lança um episódio do Arquivo S na versão podcast, disponível nos principais aplicativos de streaming de áudio.


Reportagem e edição: Ricardo Westin
Pesquisa histórica: Arquivo do Senado
Edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Pintura da Capa: Gustavo Hastoy/ Museu do Senado

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

Fonte: Agência Senado

sábado, 25 de janeiro de 2020

Rui Barbosa, o maior liberal brasileiro, para Christian Lynch, da Casa Rui Barbosa - João Paulo Charleaux (Nexo)

Qual a importância de Rui Barbosa para o liberalismo brasileiro

Cientista político Christian Edward Cyril Lynch fala ao ‘Nexo’ sobre o pensador que marcou a virada do Brasil Império para a República
Foto: Fritz Gerald/Domínio Público
Retrato antigo de Rui Barbosa
Rui Barbosa, advogado, escritor, político e diplomata brasileiro
O doutor em ciência política Christian Edward Cyril Lynch é um dos maiores pesquisadores da obra de Rui Barbosa (1849-1923), advogado, escritor e diplomata que marcou a história política do Brasil na passagem do Império para a República, na virada do século 19 para o século 20.
Além de membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Lynch trabalha desde 2014 na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, uma instituição do governo federal dedicada a preservar as ideias do pensador.
No dia 16 de janeiro, Lynch foi anunciado como o novo chefe do Setor Ruiano da Casa de Rui Barbosa. Horas depois, teve sua indicação recusada pelo então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim – o mesmo que seria exonerado do cargo no dia seguinte, depois de ter veiculado um discurso oficial no qual plagiava mensagens nazistas.
O episódio revelou as incongruências entre Alvim e Lynch, um cientista político crítico do governo Bolsonaro. Nesta entrevista concedida por telefone para o Nexo na terça-feira (21), Lynch também revela as incongruências de fundo que envolvem a própria instituição, que foi colocada no centro do episódio.
Para ele, Rui Barbosa foi “o maior liberal brasileiro”, um legado incompatível com o conservadorismo do governo Bolsonaro. Lynch diz que mesmo os apelos anacrônicos pela volta da monarquia entre membros do atual governo, hoje, são historicamente mal informados, e não resistem à leitura do legado deixado pelo patrono da fundação que se tornou pivô da disputa.
Na entrevista, Lynch dá atenção especial à influência de Rui Barbosa na área de política externa – coincidentemente, uma das áreas nas quais o conservadorismo do governo Bolsonaro é mais evidente. O jurista liderou a posição brasileira na criação do que hoje é a Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia, na Holanda, num episódio estruturante dos debates que viriam a desembocar, anos depois, na formação das Nações Unidas e de outras instâncias multilaterais, hoje criticadas abertamente pelo governo do Brasil.

Qual a importância de Rui Barbosa para a política externa brasileira?

Christian Edward Cyril Lynch Rui Barbosa não era diplomata profissional. O Brasil teve grandes diplomatas ao longo de sua história, mas Rui Barbosa não foi um deles, embora tenha dado contribuições importantes nessa área. Antes de Rui tivemos diplomatas como o Visconde do Uruguai [Paulino José Soares de Sousa], o Visconde do Rio Branco [José Maria da Silva Paranhos], o Barão de Cotegipe [José Maurício Wanderley]. Depois tivemos os contemporâneos de Rui Barbosa, como o Barão do Rio Branco [José Maria da Silva Paranhos Júnior] e Joaquim Nabuco, notadamente.
Rui era um fenômeno. Como ele falava muito bem, dominava muitos idiomas, estava bem informado sobre tudo o que acontecia no mundo e tinha convicções liberais muito fortes, ele foi aproveitado em três ocasiões como embaixador extraordinário do Brasil. Naquele tempo, ainda não havia embaixadas fixas, mas apenas legações, chefiadas por ministros. O Rio Branco foi ministro do Brasil na Alemanha, por exemplo, e Joaquim Nabuco [diplomata e abolicionista] foi ministro do Brasil em Londres, antes de assumir a primeira embaixada do Brasil em Washington [cargo que ocupou de 1905 a 1910].
Embora Rui Barbosa não fosse, como eles, um diplomata de carreira, ele teve duas participações muito importantes na história da diplomacia brasileira, sendo que uma dessas participações foi importante para a história das relações internacionais no mundo todo, não apenas no Brasil.
A primeira delas foi a participação na Segunda Conferência da Paz de Haia [Países Baixos], em 1907. A segunda foi em 1916, 1917 [período que corresponde à Primeira Guerra Mundial], quando ele foi enviado à Argentina como embaixador extraordinário do Brasil, e fez nessa ocasião uma conferência chamada “O dever dos neutros”, na Faculdade de Direito de Buenos Aires. A terceira, que não chegou a acontecer, é a representação que ele faria do Brasil na Conferência da Paz de Versalhes, ao final da Primeira Guerra Mundial [1914-1918], mas ele acabou não indo.
A primeira, então, a Conferência da Paz de Haia, era estratégica para o Brasil porque foi a primeira vez que o país apareceu [desde a Proclamação da República, em 1889] em um foro onde estavam representadas todas as nações do mundo à época. Não existia ainda o que hoje nós chamamos de sistema internacional. Havia um sistema pan-americano, que começava a se formar na América. Havia um sistema que era europeu, que estava em vigência desde a Paz de Westfália [nome dado a uma série de tratados que pela primeira vez reconheceram a soberania do Estado-nação na Europa nos moldes próximos aos existentes hoje], no século 17, mas não havia nenhum foro que tentasse reunir todas as nações independentes do globo. A primeira vez que isso ocorreu foi na Primeira Conferência da Paz de Haia [em 1899], à qual o Brasil não foi. O Brasil participou da Segunda, com Rui.

E qual foi o papel do Rui Barbosa nessa conferência?

Christian Edward Cyril Lynch A diplomacia brasileira, em termos gerais, era muito preocupada com a América do Sul. O Barão do Rio Branco [então ministro das Relações Exteriores] estava preocupado em tentar restabelecer a respeitabilidade do Brasil no cenário internacional, passar ao mundo a impressão de que o país continuava a ter hegemonia política no continente. Essa respeitabilidade havia sido baqueada pela [proclamação da] República, que tinha criado, aos olhos de Rio Branco, uma espécie de baderna. O Brasil havia deixado de ser um Império constitucional respeitável e tinha virado uma república das bananas, com ditadura militar.
Nessa Segunda Conferência de Haia, em 1907, estava sendo discutida a criação de um tribunal internacional de arbitragem, no qual os diferentes países estariam representados conforme o poder de cada um. O Barão do Rio Branco havia comprado a agenda pan-americanista de maneira tática para mostrar ao mundo que os EUA reconheciam o Brasil como potência na América Latina – e não a Argentina, que estava em ascensão – e que apoiariam o pleito brasileiro de ter um juiz nomeado nessa nova corte.
Rui Barbosa, nessa época, estava bem com o regime republicano – o que é relevante dizer, porque ele tinha um comportamento de oposicionista crônico. Rui Barbosa foi então convidado a ir a Haia representar o Brasil na conferência, o que foi um aceno de boa vontade e de reconhecimento da importância dele. Ele não era um profissional de relações internacionais e só tinha estado fora do Brasil uma vez, quando fugiu da ditadura do Marechal Floriano Peixoto [1891-1894].
O Joaquim Nabuco, que já era o embaixador brasileiro em Washington, foi a Paris para se encontrar com o Rui Barbosa e passar a ele o mapa da reunião, informar quem eram os aliados do Brasil na conferência. Depois disso, Rui foi para Haia e notou um cenário totalmente diferente do imaginado. Havia um escalonamento em curso que colocava o Brasil como um país de terceira categoria na indicação dos juízes do tribunal. O critério de composição não reconhecia a igualdade dos países no cenário internacional.
Rui escreveu de Haia ao Barão do Rio Branco no Brasil dizendo que a conferência era uma cilada. O Barão do Rio Branco perguntou qual era a posição dos EUA na conferência, e Rui respondeu que os EUA não estavam defendendo o Brasil. Isso deixou claro que a política do pan-americanismo, para os EUA, era uma política que visava apenas a aglutinar os países latino-americanos em torno deles e mostrar na Europa que os americanos tinham a liderança de todo o continente americano.
E o ponto extraordinário de Rui foi o seguinte: ele pediu carta branca para organizar a resistência dos países mais fracos para defender um critério de paridade dos países dentro desse órgão de arbitragem que estava sendo criado. Ele aplicou o princípio liberal de que todos são iguais perante a lei enquanto indivíduos e ampliou esse conceito para as nações. Ele passou a sustentar que todos os países deveriam ter o mesmo peso, que todos deviam ter o direito de indicar um juiz. O Rio Branco queria colocar o Brasil como o último dos melhores, e o que Rui Barbosa conseguiu fazer foi transformar o Brasil no primeiro dos últimos. E ele conseguiu.
O tribunal não saiu, porque Rui Barbosa liderou uma espécie de rebelião que inviabilizou a composição do tribunal. Essa foi considerada uma vitória, à medida que o Brasil não saiu humilhado como uma potência de terceiro mundo. Ele criou um precedente que seria observado a partir daí na Liga das Nações [precursora das Nações Unidas], de que todos os países têm de estar em condição de igualdade e têm direito a um voto.

Há mais de 100 anos, Rui Barbosa foi um defensor do multilateralismo, um homem que apoiou a criação de instâncias como a Corte Internacional de Justiça. Hoje, todo esse sistema que impõe limites à soberania total dos Estados vem sendo combatido pelo Itamaraty sob o governo Bolsonaro. Nesse sentido, a política externa brasileira de hoje renega o legado de Rui Barbosa?

Christian Edward Cyril Lynch Contradiz. A ideia de alinhamento do pan-americanismo com os EUA não era nem uma ideia originária do Barão do Rio Branco, mas de Joaquim Nabuco, na verdade. A adesão do Rio Branco a isso era uma adesão tática, tanto que, quando ele descobriu que os EUA não estavam apoiando o Brasil em Haia, ele endossou o Rui Barbosa para contrariar os EUA e resistir a essa proposta.
Rui Barbosa foi o campeão do liberalismo e foi um sujeito que o tempo todo advertiu para os riscos do imperialismo, qualquer que fosse. Rui Barbosa buscava que o Brasil tivesse uma certa autonomia para defender seus próprios interesses nacionais. Ele temia a ideia de protetorado americano.
Já Nabuco acreditava que, sem a monarquia, o Brasil ficaria tão fragilizado que ele temia que caíssemos no redemoinho das repúblicas ditas bananeiras da América Hispânica. Portanto, seria bom que o Brasil seguisse o exemplo dos EUA. Da parte do Rio Branco, a preocupação era garantir uma imagem de respeitabilidade do Brasil na América Latina e uma posição de liderança em relação à Argentina.
Hoje, a política de alguém como o chanceler Ernesto Araújo contém um paradoxo até em relação a alguém como Nabuco, porque Nabuco era um liberal, enquanto Araújo é um conservador. O paralelo da política externa atual é muito mais com a do governo Dutra [do presidente Eurico Gaspar Dutra, que governou o Brasil de 1946 a 1951]. Quando acabou a Segunda Guerra Mundial, o chanceler do Dutra [Raul Fernandes] apostou numa política de alinhamento automático com os EUA. À época, aquele era um governo liberal-conservador.
Além de Dutra, Araújo lembra também o governo Castelo Branco [que governou o Brasil de 1964 a 1967, durante os três primeiros anos da ditadura]. Havia ali também essa combinação do liberalismo conservador com o conservadorismo estatista, que aconteceu em 1946, 1947 e 1948, com a proibição do Partido Comunista no Brasil, por exemplo. O governo Castelo Branco tinha uma coalizão muito semelhante à que hoje sustenta o governo Bolsonaro, formada por conservadores estatistas, que são os militares; pelos liberais de mercado, que à época era o Roberto Campos e hoje é o Paulo Guedes; e por um grupo de conservadores culturalistas, que tratam a cultura brasileira como algo português e católico. A diferença é que a força do núcleo reacionário não era tão forte à época quanto é hoje.

Alguns temas discutidos por Rui Barbosa há 130 anos voltaram a ser contemporâneos, como o debate sobre o valor da Proclamação da República (1889) e o saudosismo em relação ao Brasil Império (1922-1889). Como o sr. interpreta o regresso a esses temas hoje, e o que Rui Barbosa deixou de legado a esse respeito?

Christian Edward Cyril Lynch No Brasil, o Império só foi conservador até em torno de 1870. Quando foi proclamada a Independência [1822] o Brasil não existia. Todos os países passam naturalmente por um período de construção do Estado. Nesse período, é adotada uma política de centralização, que é meio autoritária, porque você tem que combater coronel, tem que unificar, centralizar, criar burocracia, e você não faz isso com federalismo. Não foi só aqui que isso aconteceu, foi na Inglaterra dos Tudor [1485-1603], foi na França de Luis 14 [1643-1715]. No começo, esses governantes tentam juntar os cacos e monopolizar o exercício legítimo do poder. Então, o final da Regência [1831-1840] e o começo do Segundo Reinado [1840-1889] correspondem a esse período no Brasil.
Entretanto, de 1870 em diante, já há a sensação de que o Brasil estabilizou como nação. Aí começa a haver um movimento de liberalização das instituições, que é uma espécie de segunda fase do Segundo Reinado [de Dom Pedro 2º], que é uma fase liberal, em que os liberais vão fazendo reforma atrás de reforma: a reforma da instrução, a reforma bancária, a reforma eleitoral, a abolição da escravatura – que foi empurrada pelos liberais, embora as leis tenham sido aprovadas pelos conservadores. Há uma tentativa de reforma da educação, enfim, grandes reformas liberais acontecem no país.
Rui Barbosa, no fim do Império, começa a brigar com o próprio partido [liberal] porque ele, Rui, torna-se muito radical. Ele se torna federalista, mas nunca foi republicano. Ele achava que a monarquia brasileira devia ficar igual à monarquia inglesa, com um rei que reinasse mas não governasse, com um primeiro-ministro que mandasse.

Mas ele fez parte do primeiro governo da República.

Christian Edward Cyril Lynch Quando tem início a conspiração que vai dar no golpe militar [que inaugura a República, em 1889], Rui é procurado por Benjamin Constant [militar positivista envolvido no movimento republicano], que conta a ele sobre a conspiração para derrubar a monarquia e que o convida a fazer parte de um futuro governo provisório. Rui aceita, mas isso aconteceu menos de uma semana antes do golpe, e ele diz que só aceitou porque o golpe já era um fato consumado. Entre os conspiradores só havia gente antiliberal, a começar pelos positivistas, além de militares de mentalidade autoritária e civis conservadores, como Campos Sales [que presidiria o Brasil de 1898 a 1902]. Rui diz então que embarcou na República porque esse já era um fato consumado, e ele tentaria fazer uma República que se parecesse mais com a americana do que com a francesa de 1793 [período que corresponde ao Terror Jacobino].
O negócio do Rui sempre foi o liberalismo. As formas de governo foram, para ele, uma questão secundária. A monarquia inglesa era, para Rui Barbosa, tão boa quanto a república americana. Nessa condição, ele aderiu à República, virou ministro, mas depois se decepcionou. Depois de pouco mais de um ano no governo – um governo que fechou o Congresso, as assembleias estaduais – ele passou a enfrentar esse regime republicano jacobino, tentou apelar à moderação e por fim passou a dizer que o Império era mais liberal que a República. Mas ele nunca renegou a República. Como liberal democrata, as questões de monarquia ou república simplesmente sempre foram secundárias para ele.

Essa monarquia idealizada por Rui Barbosa é a mesma almejada pelos monarquistas de hoje?

Christian Edward Cyril Lynch Hoje, os monarquistas brasileiros querem uma monarquia que nunca existiu no Brasil. A tradição da monarquia brasileira e portuguesa é, desde o Marquês de Pombal [1699-1782], uma tradição na qual o Estado enquadra a Igreja, é uma tradição de monarquia guiada pela ideia do absolutismo ilustrado, uma ideia modernizadora, que é o que José Bonifácio pregava. Essa é uma tradição que continua no Brasil por meio da República, com os positivistas, com os desenvolvimentistas, com os tenentes, com Getúlio Vargas, todos eles com essa consciência de que o Brasil é um país atrasado que precisa de modernizar, e que o Estado tem que ser o motor dessa modernização.
Essa monarquia reacionária que se apresenta hoje, essa monarquia católica, de descendentes da família real beijando uma santa, isso nunca existiu no Brasil. Pelo contrário, Dom Pedro 2º prendeu bispos que se negaram a casar maçons, contrariando com isso posições do Vaticano, porque essas posições violavam as leis brasileiras. Dom Pedro 2º reafirmou, portanto, o valor das leis brasileiras e do Estado contra Igreja. Então, se nós temos alguma tradição aí é a tradição do regalismo, da supremacia do Estado sobre a Igreja. Não chega a ser a separação entre Estado e Igreja, mas a Igreja não manda no Estado no Brasil desde o Marquês de Pombal. Há então algo de ficcional no saudosismo brasileiro pela monarquia porque a monarquia da época era provavelmente mais liberal do que o governo Bolsonaro é hoje.

Outro tema que volta à tona hoje é a resistência de alguns setores à vacinação. Rui Barbosa também se opôs à campanha de vacinação em 1904. O que essa posição indica sobre o perfil dele de forma geral?

Christian Edward Cyril Lynch Ele nunca foi contra a ciência, era um homem moderno. Ele era um campeão entre os liberais democratas no Brasil, foi o maior liberal brasileiro, o de maior repercussão. Ele criou uma mentalidade e uma cultura política, uma forma de as classes médias pensarem a política.
O problema de Rui Barbosa com a vacina não era de ser contra ou a favor da vacina em si. A questão é que a vacinação obrigatória veio num contexto em que o presidente da República [Rodrigues Alves] tinha conferido ao prefeito do Rio [Pereira Passos] e ao [médico sanitarista] Oswaldo Cruz poderes ditatoriais. O governo impunha que os fiscais sanitários entrassem à força dentro das casas das pessoas e as vacinassem à força.
Rui Barbosa, no fundo, disse uma coisa óbvia: isso é contra a Constituição, porque isso violava a inviolabilidade do domicílio e a inviolabilidade do corpo. Eram princípios liberais contra o autoritarismo do governo, não era uma posição obscurantista. Tanto é assim que, hoje, quando é preciso vacinar, há uma campanha de vacinação. A campanha orienta as pessoas a se vacinarem. Ninguém entra na casa de ninguém à força.

O secretário que o retirou do cargo na Fundação Casa de Rui Barbosa foi exonerado por ter copiado um discurso nazista logo depois. O sr. espera que essa decisão do presidente altere sua situação? Que percepção o sr. tem desse episódio?

Christian Edward Cyril Lynch Eu não fui exonerado porque não fui nomeado. Foi manifestada a intenção de me nomear e, horas depois, o secretário [Roberto Alvim] expressou sua recusa pública em me nomear. Foi isso. Não chegou a haver um ato administrativo, eu não assinei nada. Esse episódio demonstra que existem em certos setores deste governo um espírito de intolerância que é incompatível com um regime democrático liberal, tal como previsto na Constituição.
Esse setor acha que é preciso fazer uma espécie de revolução autoritária e entrar num regime de expurgo de pessoas a partir de critérios ideológicos que, na verdade, são critérios de adesão incondicional ao governo, que impedem qualquer funcionário de emitir qualquer tipo de crítica ao chefe de Estado.
No caso do secretário Alvim, tratava-se de um caso delirante de culto à personalidade do chefe de Estado, o que é próprio de regimes totalitários. Espero que, com a substituição de Alvim, venha alguém animado de um espírito mais constitucional, mais liberal, democrático e tolerante. Pode ser conservador, porque o povo brasileiro escolheu esse governo e a Constituição autoriza a existência de um governo conservador, mas um governo que se atenha à Constituição, que seja liberal e respeite o pluralismo de opiniões, que respeite a liberdade, que não persiga ninguém.

João Paulo Charleaux é repórter especial do Nexo e escreve de Paris

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Macarthismo Administrativo do Bolsonarismo - Claudio Gonçalves Couto (Valor)

O Macarthismo Administrativo é mais amplo ainda do que o mencionado por Cláudio Gonçalves Couto neste excelente artigo: ele começou mesmo antes do governo ter início no Itamaraty, onde o chanceler acidental mandou demitir por telefone, em dezembro de 2018, todos os subsecretários do MRE, embaixadores experientes, nomeando no lugar diplomatas mais jovens, ministros segunda classe, de sua faixa geracional, invertendo a tradicional hierarquia do serviço exterior. Uma situação que os militares descrevem como sendo a de “coroneis mandando em generais”, ou seja, um macarthismo etário. A prática continuou em outras esferas, num arbítrio inédito nos anais do Itamaraty.
Paulo Roberto de Almeida

Enviado por Christian Lynch:

MACARTHISMO ADMINISTRATIVO

(Artigo publicado pelo colega cientista político  Cláudio Gonçalves Couto
hoje, 23/01/2020, no Valor, citando meu caso como exemplo do macarthismo em questão)

Ao controlar até a nomeação de pessoas para cargos de funções sem teor partidário, governo aparelha a máquina pública

Um dia antes da divulgação de performance de inspiração nazista que lhe custou o cargo, o então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, manifestou-se no Twitter sobre a indicação do cientista político Christian Lynch para a chefia do Serviço de Pesquisa Ruiano, na Fundação Casa de Rui Barbosa. O posto, segundo o emulador de Goebbels, não poderia ser ocupado por Lynch por ter ele “ideias execráveis sobre Jair Bolsonaro”. Mais que isso, sugeriu que apenas não o dispensaria por se tratar de servidor concursado da Fundação em que exerceria o cargo. Assim, determinou à presidente da organização que cancelasse a nomeação do desafeto.

A missão da Casa de Rui Barbosa é preservar não só memória e obra de seu patrono, como promover “a pesquisa, o ensino e a difusão do conhecimento sobre temáticas relevantes para a história do Brasil”. Lynch, como pesquisador do pensamento jurídico, político e social brasileiro, em especial o de Rui, reunia os atributos profissionais e intelectuais exigidos para a ocupação da chefia que fora oferecida - que é, inclusive, do setor em que trabalha naquela entidade. Bolsista de produtividade do CNPq, com projetos e publicações sobre o tema do setor que dirigiria, seria natural exercer a função e ter o comissionamento condizente com a nova responsabilidade.

Comissionamento nem sempre requer laços partidários. Órgãos de pesquisa como esse, assim como fundações, universidades, institutos e autarquias, contam com cargos comissionados cujo exercício depende de nomeação por superiores hierárquicos. São chefias de departamento, coordenações de curso, superintendências e coisas do tipo. A natureza de tais cargos requer a nomeação por superiores não em decorrência da necessidade de alinhamentos pessoais ou político-partidários, mas pelo reconhecimento da competência profissional e da experiência, requerida para se desincumbir da função.

No caso de uma instituição de pesquisa na área de política, nada mais natural que, por sua própria atividade profissional, pesquisadores escrevam textos críticos sobre os mais diversos aspectos desse mundo - como o governo do dia. E foi um artigo de Lynch que levou o secretário, leal escudeiro do presidente, a impedir sua nomeação. Fiel a seu ofício, o autor teceu considerações críticas acerca do bolsonarismo, observando numa passagem: “A adesão ao extremismo ideológico é escada para os candidatos que desejarem assumir cargos na administração”. Como observou depois o próprio Lynch, o cancelamento de sua nomeação confirmou tal afirmação.

Mas não se trata apenas da adesão ao extremismo bolsonarista, como também a adulação do chefe. Foram as “ideias execráveis” de um servidor sobre o presidente que justificaram o veto. Da mesma forma, foi a atitude severa de outro funcionário, José Olímpio Augusto Morelli, que gerou, em março de 2019, sua exoneração do cargo em comissão de Chefe do Centro de Operações Aéreas do Ibama. Morelli foi o fiscal que multou Bolsonaro por pescar ilegalmente na estação ecológica de Angra dos Reis. Era, há mais de uma década e meia, servidor concursado do órgão em que exercia sua chefia e foi secretário de Meio Ambiente do município. Ou seja, contava com atributos técnicos e experiência para o cargo, mas foi exonerado por ter-se tornado desafeto do presidente ao cumprir o dever funcional e multar quem pesca ilegalmente.

Em maio do ano passado, o Decreto 9.794 conferia à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) a atribuição de fiscalizar a vida pregressa de ocupantes de cargos comissionados em instituições federais de ensino superior, submetendo-as à Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República. Assim, a ocupação de um cargo como de diretor de um centro de ensino, ou de uma faculdade, dependeria de avaliação do gabinete presidencial. Que propósito haveria em controlar tão centralmente a nomeação para um cargo dessa monta, no âmbito de uma instituição universitária que, por sua função e determinação constitucional, goza de autonomia? É demasiado.

Nem todo cargo comissionado na administração pública se reveste de caráter político-partidário ou de lealdade pessoal. Quanto mais próximo aos representantes eleitos, mais relevante e legítimo é tal critério; porém, quanto mais próximo da ponta, ou da burocracia do nível de rua, menos adequado é que o preceito pessoal ou partidário dos dirigentes máximos do governo seja determinante. Pelo contrário, nesse nível do aparato governamental o que deve contar, em prol do bom desempenho da gestão, do cumprimento de funções administrativas, do pluralismo e da impessoalidade, são parâmetros de desempenho e experiência no âmbito das atividades exercidas. Noutros termos: em tal patamar, comissionamento não se justifica por confiança política, mas por reconhecimento e responsabilização decorrentes do bom desempenho profissional.

Não seguir tal diretriz - ou pior, violá-la deliberadamente - implica o aparelhamento e na partidarização da máquina pública. Ou, nos termos de Lynch na conclusão de seu artigo: autoritarismo, hierarquia mantida pela violência, personalismo, nepotismo, guerra política, intimidação, espírito de vingança, perseguição e exercício da violência psicológica.

Portanto, o viés autoritário do bolsonarismo não se traduz apenas em ideias antipluralistas, tensionamento constante com os demais poderes do Estado, enaltecimento da violência ou ataque reiterado à imprensa, à ciência e às artes não alinhadas. Ele também se faz presente na forma como o Poder Executivo organiza sua estrutura administrativa até as fímbrias mais remotas, aparelhando-a com aduladores e correligionários, bem como perseguindo críticos ou não alinhados cuja crítica ou não alinhamento decorrem justamente do cumprimento de obrigações funcionais.

A contraface desse aparelhamento é a ideia, presente na proposta de reforma administrativa, de proibir servidores de terem filiação partidária. Ora, se isso é irrelevante para o bom desempenho de suas funções, tal regra tem apenas um propósito: instaurar um macarthismo administrativo.

Cláudio Gonçalves Couto; é cientista político, professor da FGV-SP e colunista convidado do “Valor”. Maria Cristina Fernandes volta a escrever em fevereiro