Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
A Argentina não se tornou uma Austrália basicamente por uma diferença nas instituições, não apenas pela mecânica do protecionismo e da oferta de commodities. Uma análise meramente econômica não dá conta da perda de oportunidades da Argentina no século XX. (PRA)
Comentário sobre o livro que identifica os fatores que determinaram caminhos diferentes para países que tinham no início características em comum
A Argentina e a Austrália tinham características comuns. Desse modo, permitiam a comparação por historiadores, mas economistas e politicólogos tiveram de identificar os fatores determinantes da bifurcação posterior a 1930.
Um terceiro objeto de comparação – um terceiro país idealizado – é ao qual Pablo Gerchunoff e Pablo Fajgelbaum, no livro ¿Por qué Argentina no fue Australia?, se dedicam à descrição. Buscam extrair do emaranhado enredo da história os elementos presentes (convergentes e divergentes) em ambos os países.
Para fins puramente pedagógicos, apelam à licença para chamar Argentália para este país imaginário. Nessa mistura, ela possui uma variedade de climas, com predominância de temperaturas temperadas.
Na longa história do planeta, é uma nação jovem, pertencente àquele raro grupo conhecido como “regiões de colonização recente”, localizado no hemisfério Sul (Buenos Aires e Sydney estão no paralelo 34) e a grande distância dos centros de poder (Buenos Aires fica a 11.082 quilômetros de Londres e a 8.454 quilômetros de Nova York; Sydney, 16.997 e 15.989, respectivamente). Mas a Austrália está mais próxima da Ásia…
Argentália, desde a sua origem, teve uma pequena população e terras abundantes – em 1896, Argentina e Austrália eram os dois países com menor número de habitantes por quilometro quadrado de terras produtivas. Como consequência desta dotação de fatores de produção, com escassez de trabalhadores, teve salários relativamente elevados em relação à média mundial.
Como produtor de matérias-primas, Argentália viu os dois lados da moeda: durante décadas estabeleceu uma relação privilegiada com a potência dominante, exportando os produtos da terra necessitados pela Inglaterra para facilitar a sua industrialização e importando os insumos, bens de capital e mão de obra da qual necessitava para seu progresso. Contudo, desde a Grande Depressão na nova potência (Estados Unidos), o país sofreu em primeira mão o declínio do comércio de bens primários.
No calor da expansão do mercado interno e da evolução tecnológica dos processos produtivos, surgiram algumas manufaturas dentro de suas fronteiras, principalmente aquelas transformadoras das matérias-primas exportadas. Mas limitada como era pela escassez de mão de obra, Argentália não era um país bem equipado para enfrentar um processo de industrialização sustentado e diversificado.
Enquanto o intercâmbio global continuasse a ser vigoroso e a beneficiar à Argentália, o comércio livre seria conveniente para ambos os países, porque impulsionava o crescimento. Mas o protecionismo passará a ser conveniente para os seus trabalhadores porque, dadas as condições estruturais do país, a proteção econômica aumentará o emprego e os salários reais, e melhorará a distribuição de rendimentos.
O protecionismo melhorará o preço relativo daquilo importado. Considerando, devido à sua dotação original de fatores de produção – abundância de terras e escassez de trabalhadores –, Argentália importar bens relativamente intensivos em mão-de-obra, medidas protecionistas melhorariam o rendimento relativo do trabalho.
As políticas econômicas mais eficazes do ponto de vista do crescimento, por exemplo, comércio livre ou quase livre, determinariam uma distribuição de rendimento favorável os proprietários do fator de produção mais abundante, ou seja, a terra.
Essa lógica específica liga a dotação original de fatores à política econômica, tal como existe uma lógica ligando esta política à dinâmica do crescimento. Este conflito distributivo é característico de Argentália.
Quanto mais agudo for o conflito, mais distributivo será o protecionismo. E quanto mais protecionista for distributivo, mais intensivos em trabalho serão os setores industriais nascidos sob sua proteção, maior será a proporção do emprego total explicada pelas atividades protegidas e maior será a participação dos alimentos e lãs exportadas, componentes da cesta de consumo popular.
Quando o protecionismo distributivo já foi instalado como regime de política econômica, o risco é o stop and go, um termo familiar para argentinos e australianos. Quando se expandem, os setores industriais protegidos exigem importações (insumos e bens de capital) e não fornecem exportações, daí a sua contribuição para as exportações líquidas é baixa e pode até ser negativa.
Se as exportações de matérias-primas crescerem fracamente, haverá desequilíbrios recorrentes no balanço comercial e os governos tentarão corrigir com desvalorizações nominais. Mas, desta forma, os salários reais antes crescentes, devido ao protecionismo distributivo, serão reduzidos.
Enquanto os trabalhadores mantiverem a sua capacidade de resistência, isso resultará em aumento da volatilidade do crescimento e da inflação. Esta só será atenuada se as exportações de matérias-primas forem reavivadas ou os setores industriais começarem a dar uma contribuição positiva para as exportações líquidas.
Na fase de divergência, a Austrália teve um conflito distributivo e um ciclo de stop and go mais moderados diante dos da Argentina. Embora na Argentália o protecionismo seja distributivo, isso não implica as políticas distributivas terem necessariamente origem no protecionismo.
Na Austrália, assim como na Argentina, isto é, na Argentália, se existirem políticas distributivas não emergentes do protecionismo, o protecionismo será necessário para sustentá-las. Enfrenta, portanto, um conflito distributivo e um ciclo de stop and go, derivados da sua própria arquitetura econômica, moldada em grande parte pela natureza e pela geografia – e sobre ela a política tem influência: para o mal, para o bem.
Cada um desses dois países é uma versão de Argentália, mas em algo eles diferem desse mix e em algo eles diferem um do outro.
Historiadores e economistas australianos concentraram-se no declínio da Austrália em relação aos países mais desenvolvidos do planeta. Em 1900, o país tinha o maior rendimento por habitante do mundo. Em 1950, caiu para o terceiro lugar. Em 1970, era o oitavo e na década de 1990 já não estava entre os vinte primeiros.
Exceto em períodos esporádicos, durante o século XX, o produto per capita dos dois países cresceu mais lentamente diante o do painel das nações desenvolvidas. Na Austrália, a relação começa nos 170%, quando os seus poucos habitantes eram “os mais ricos do mundo”, em renda per capita, e termina nos 90%. A Argentina começa com 75%, mas no fim da série o seu produto relativo por habitante é de 35%. Só.
Mesmo depois da grave crise económica do início do século XXI, a Argentina continuou a ter uma economia de rendimento médio. De um total de 179 países, segundo dados do FMI, em 2016, a Argentina ocupava a 61ª posição no ranking de renda per capita.
Embora longe dos padrões de vida da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos, o rendimento por habitante argentino de 20.000 dólares (em PPC de 2016) era muito superior ao de quase todos os países africanos, e superior ao dos não-petroleiros do Médio Oriente, do Leste Europeu e as nações do Sul da Ásia.
Em 2021, com US$ 9.997 e em 66º lugar, Argentina já não era o país mais rico da América do Sul como foi durante a maior parte do século XX. Ficou abaixo do Uruguai (49º. US$ 17.029), Chile (53º. US$ 15.399) e Brasil (63º. US$ 11.136). O seu rendimento per capita era consideravelmente inferior ao de Portugal (37º. US$ 23.030) – o país mais pobre da Europa Ocidental – e ao das economias mais ricas da Europa Oriental.
Alerto: não se deve comparar renda per capita sem apresentar a população de cada país. Quaisquer commodities com alta cotação de mercado, dada por fatores exógenos ao país exportador de pequena população, pode lhe propiciar elevada renda per capita – sem ser ela bem distribuída.
Em 2008, dos quase 7,2 bilhões de habitantes do planeta, aproximadamente 5,8 bilhões viviam em países com rendimentos inferiores a US$ 18 mil, e quase um bilhão em países com rendimentos superiores a US$ 34 mil, considerados ricos. Em 2021, os países de renda média do mundo – 30 na faixa de renda per capita entre US$ 11.355 (média mundial) e US$ 27.871 (31º.) – eram poucos com população superior a 10 milhões.
Há cinco grandes grupos principais de commodities: petróleo, mineração, celulose, proteína animal e agrícolas. Em geral, as mais lucrativas, devido à demanda global e à volatilidade de preços, são na ordem: petróleo, minério de ferro, ouro, prata, cobre, café, soja, gás natural, milho. Falta ainda o gasoduto para conectar vaca muerta até o Brasil…
Conectaria essa região com grandes reservas de gás não convencional por 467 km a outro gasoduto já existente por meio de financiamento com o BNDES. Além disso, a Argentina possui 21% das reservas mundiais de lítio (a 3ª. maior do mundo) e é a 4ª. maior produtora mundial do mineral, “o petróleo branco”…
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]
Referência
Pablo Gerchunoff e Pablo Fajgelbaum. ¿Por qué Argentina no fue Australia? México, Siglo XXI Editores, 2019, 108 págs. [https://amzn.to/49m6pgV]
A China contemporânea está profundamente integrada ao capitalismo global. No entanto, o estonteante crescimento chinês não levou o país à completa convergência institucional com o neoliberalismo. Isso desafia o triunfalismo do pós-Guerra Fria, que previa a “vitória incondicional do liberalismo econômico e político” em todo o mundo. Embora a era da revolução tenha terminado em 1989, isso não resultou na aguardada universalização do modelo econômico “ocidental”. Acontece que a mercantilização gradual facilitou o crescimento econômico da China sem que isso a levasse à assimilação generalizada. A tensão entre a ascensão da China e essa assimilação parcial define nosso momento atual e encontra suas origens na abordagem das reformas de mercado pela China.
A literatura sobre as reformas da China é ampla e diversificada. As políticas econômicas que o país adotou em sua transformação a partir do socialismo de Estado são bem conhecidas e investigadas. Muito negligenciado, no entanto, é o fato de que a mercantilização gradual e guiada pelo Estado chinês foi tudo menos uma conclusão inevitável ou uma escolha “natural”, predeterminada pelo excepcionalismo chinês. Na primeira década da “reforma e abertura”, sob Deng Xiaoping (1978-1988), o modo de mercantilização da China foi cinzelado em um debate acirrado. Economistas que defendiam uma liberalização ao estilo da terapia de choque lutaram pelo futuro da China contra aqueles que promoviam a mercantilização gradual a partir das margens do sistema econômico. Por duas vezes, a China tinha tudo preparado para um “big bang” na reforma dos preços. Por duas vezes, absteve-se de implementá-lo.
O que estava em jogo no debate da reforma de mercado é ilustrado pelo contraste entre a ascensão da China e o colapso econômico da Rússia. A terapia de choque – a prescrição política quintessencialmente neoliberal – havia sido aplicada na Rússia, o outro ex-gigante do socialismo de Estado. O prêmio Nobel Joseph Stiglitz atesta “um nexo causal entre as políticas da Rússia e seu fraco desempenho”. As posições da Rússia e da China na economia mundial inverteram-se desde que implementaram modos diferentes de entrada no mercado. A participação russa no Produto Interno Bruto (PIB) mundial caiu quase pela metade – de 3,7% em 1990 para cerca de 2% em 2017 –, enquanto a participação da China aumentou quase seis vezes – de apenas 2,2% para cerca de um oitavo da produção global (ver figura 1).
A Rússia passou por uma drástica desindustrialização, enquanto a China se tornou a notória fábrica do capitalismo mundial. A renda média real de 99% dos russos foi menor em 2015 que em 1991, enquanto na China, apesar do rápido aumento da desigualdade, esse número mais que quadruplicou no mesmo período, superando o da Rússia em 2013 (ver figura 2). Como resultado da terapia de choque, a Rússia teve um aumento de mortalidade acima de qualquer experiência anterior em um país industrializado em tempos de paz.
Dado o baixo nível de desenvolvimento da China em comparação com o da Rússia no início da reforma, a terapia de choque provavelmente teria causado um sofrimento humano em escala ainda maior. Teria minado, se não destruído, as bases para o crescimento econômico chinês. É difícil imaginar como seria o capitalismo global hoje se a China tivesse seguido o caminho da Rússia.
Apesar de suas importantes consequências, o papel fundamental que o debate econômico desempenhou nas reformas de mercado na China é amplamente ignorado. O famoso economista do desenvolvimento Dani Rodrik, professor de Harvard, representa a profissão de economista de forma mais geral quando responde a sua própria pergunta se “alguém [pode] nomear os economistas (ocidentais) ou [foi] a pesquisa que desempenhou um papel fundamental nas reformas da China” afirmando que “a pesquisa econômica, pelo menos como convencionalmente entendida”, não desempenhou “um papel significativo”.
Figura 1. Participação da China e da Rússia no PIB mundial (1990-2017)
Figura 2. Renda média por adulto na China e na Rússia por quantis populacionais (1980-2015)
Nos capítulos seguintes, volto à década de 1980 e pergunto quais razões intelectuais desviaram a China da terapia de choque. Revisitar o debate acerca da reforma de mercado revela a economia da ascensão da China e as origens das relações entre o Estado e o mercado chineses.
O desvio da China em relação ao ideal neoliberal reside não no tamanho do Estado chinês, mas principalmente na natureza de sua governança econômica. O Estado neoliberal não é pequeno nem fraco, mas forte. Seu objetivo é fortalecer o mercado. Em termos básicos, isso significa proteger a liberdade de preços como mecanismo econômico central. Em contraste, o Estado chinês usa o mercado como ferramenta na busca de seus objetivos mais amplos de desenvolvimento.
Como tal, preserva um grau de soberania econômica que protege sua economia contra o mercado global – como demonstraram de forma contundente a crise financeira asiática de 1997 e a crise financeira global de 2008. Abolir essa forma de “isolamento econômico” é um objetivo de longa data dos neoliberais, e nossa atual governança global foi projetada para acabar com a proteção nacional contra o mercado global. O fato de a China ter escapado da terapia de choque mostrou que o Estado manteve a capacidade de isolar os setores estratégicos da economia – aqueles mais essenciais para a estabilidade e o crescimento econômico – à medida que se integrava ao capitalismo global.
Para estabelecer as bases de minha análise da escapada da China, primeiro recapitularei brevemente a lógica da terapia de choque.
A lógica da terapia de choque
A terapia de choque estava no centro da “doutrina de transição do Consenso de Washington”, propagada em países em desenvolvimento, Europa oriental e central e Rússia pelas instituições ligadas aos acordos de Bretton Woods. Em aparência, tratava-se de um amplo pacote de políticas que seriam implementadas de uma só tacada, para causar um choque nas economias planejadas, transformando-as de uma só vez em economias de mercado. O pacote consistia de: (i) liberalização de todos os preços em um único big bang; (ii) privatização; (iii) liberalização do comércio; e (iv) estabilização, na forma de políticas fiscais e monetárias rígidas.
As quatro medidas da terapia de choque, implementadas simultaneamente, deveriam, em teoria, formar um pacote abrangente. Uma análise mais atenta revela que a parte desse pacote que podia ser implementada de uma só tacada resume-se a uma combinação dos itens 1 e 4: liberalização de preços e austeridade estrita.
David Lipton e Jeffrey Sachs falaram pelos proponentes da terapia de choque de forma mais geral quando admitiram complicações com relação à velocidade da privatização na prática. Eles reconheceram a magnitude da tarefa de privatização em uma economia com propriedade principalmente pública. Comparando o grande número de empresas estatais nas economias socialistas com o histórico de privatizações no Reino Unido, apontaram que “Margaret Thatcher, a maior defensora mundial da privatização”, havia liderado a transferência de apenas algumas dezenas de empresas estatais para o setor privado no decorrer da década de 1980.
Assim, observaram que o “grande enigma é como privatizar uma vasta gama de empresas de maneira equitativa, célere, politicamente viável e suscetível de criar uma estrutura efetiva de controle corporativo”. Recomendaram vagamente que “a privatização talvez deva ser feita por muitos meios” e que o “ritmo deve ser rápido, mas não desenfreado”. O relatório conjunto sobre a economia da União Soviética também alerta contra o avanço muito rápido da privatização, “quando os preços relativos ainda não estão estabilizados”. Da mesma forma, a liberalização do comércio aos olhos dos defensores da terapia de choque tem como precondição a liberalização dos preços internos. Um big bang na liberalização dos preços aparece, assim, como condição tanto para a privatização quanto para a liberalização do comércio e constitui o verdadeiro “choque” da terapia de choque.
O que foi apresentado como um amplo pacote de reformas acabou sendo uma política extremamente enviesada para apenas um elemento da economia de mercado: a determinação de preços pelo mercado. No entanto, essa unilateralidade não foi mero resultado de viabilidade. A razão mais profunda do viés voltado para a liberalização de preços está no conceito neoclássico do mercado como um mecanismo de preços que se abstrai das realidades institucionais. De modo mais geral, na visão dos neoliberais, o mercado é a única forma de organizar racionalmente a economia, e seu funcionamento depende de preços livres.
De acordo com a lógica da terapia de choque como a entendem, por exemplo, Lipton e Sachs, a liberalização de todos os preços “de uma só vez” corrigiria os preços relativos distorcidos, que, em consequência da herança stalinista, eram muito baixos para a indústria pesada e os bens de capital e muito altos para a indústria leve, os serviços e os bens de consumo.
De maneira similar, o relatório conjunto sobrea economia da União Soviética realizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Mundial, pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (Berd) advertiu: “Nada será mais importante para a realização de uma transição bem-sucedida para uma economia de mercado do que a liberação dos preços para orientar a alocação de recursos. A liberalização ampla e antecipada dos preços é essencial para acabar com a escassez e os desequilíbrios macroeconômicos que afligem cada vez mais a economia”.
Essa liberalização generalizada dos preços precisaria ser combinada com uma política de estabilização para controlar o nível geral dos preços. Desde que macromedidas complementares fossem implementadas, a liberalização dos preços “poderia levar a um salto único nos preços, mas não a uma inflação contínua”, alegaram os defensores da terapia de choque. Segundo eles, as verdadeiras causas da inflação persistente nas economias socialistas estatais eram o excesso de demanda (em razão dos grandes déficits orçamentários), a “restrição orçamentária branda”, as políticas monetárias frouxas e os aumentos salariais resultantes da política de desemprego zero. Na visão deles, esses problemas poderiam ser aliviados com uma “forte dose de austeridade macroeconômica”, pois eram, em essência, monetários e não estruturais.
O “salto único nos preços” que se esperava como resultado da liberalização generalizada dos preços era bem-vindo, pois “absorveria o excesso de liquidez” e, desse modo, reforçaria a austeridade. Em outras palavras, um aumento no nível geral de preços desvalorizaria a poupança e, assim, reduziria o excesso crônico de demanda agregada que se experimentava nas economias socialistas. O custo de privar os cidadãos da modesta riqueza que haviam acumulado sob o socialismo de Estado era considerado um mal necessário. Com efeito, tratava-se de uma redistribuição regressiva que beneficiava as elites detentoras de ativos não monetários. A redistribuição de baixo para cima fazia parte da terapia de choque desde o início, desde a reforma monetária e de preços do pós-guerra na Alemanha ocidental, sob Ludwig Erhard. Forçar relações de mercado na sociedade da noite para o dia dependia da imposição de uma maior desigualdade.
A natureza e as estruturas das instituições predominantes que comporiam a nova economia de mercado não receberam muita atenção dos defensores da terapia de choque. O pacote recomendado por Lipton, Sachs e muitos outros, entre eles economistas do mundo socialista da época, não “criava” uma economia de mercado, como sugere o título do importante estudo desses economistas sobre a Polônia. Ao contrário, esperava-se que a destruição da economia de comando desse automaticamente origem a uma economia de mercado. Era uma receita para a destruição, não para a construção. Uma vez que a economia planificada estivesse “morrendo sob o choque”, esperava-se que a “mão invisível” operasse e, de maneira um tanto milagrosa, permitisse o surgimento de uma efetiva economia de mercado.
Essa é uma perversão da famosa metáfora de Adam Smith. Smith, um observador atento da Revolução Industrial, que se desenrolava diante de seus olhos, viu a “propensão humana a intercambiar, permutar e trocar uma coisa por outra” como o “princípio que dá origem à divisão do trabalho”, mas imediatamente advertiu que esse princípio era “limitado pela extensão do mercado”. O mercado, de acordo com Smith, desenvolvia-se devagar, à medida que eram construídas as instituições que facilitavam as trocas de mercado. Nesse processo, a mão invisível entraria em jogo apenas gradualmente e, com ela, o mecanismo de preços. Em contrapartida, a lógica da terapia de choque nos leva a crer que é possível um país “saltar para a economia de mercado”.
A destruição prescrita pela terapia de choque não se atém ao sistema econômico. Uma segunda condição deve ser cumprida: uma “mudança revolucionária nas instituições”. Ou, como disseram Lipton e Sachs, o “colapso do regime comunista de partido único era a condição sine qua non para uma transição efetiva para uma economia de mercado”. De fato, foi necessário o colapso do Estado soviético e do regime comunista de partido único em dezembro de 1991 para que o big bang pudesse ser implementado; o presidente russo Boris Iéltsin eliminou quase todos os controles de preços em 2 de janeiro de 1992. Sob o secretário-geral Mikhail Gorbatchov, a reforma radical dos preços estava na agenda desde 1987, mas nunca foi realizada, pois os cidadãos russos reclamavam em massa e os intelectuais alertavam sobre uma possível inquietação social. Gorbatchov tentou o gradualismo ao estilo chinês, mas em vão.
Prometendo ganhos de longo prazo, o big bang prescrevia males de curto prazo que afetavam imediatamente os interesses dos trabalhadores e das empresas, bem como dos departamentos governamentais. A liberalização radical dos preços tornou-se politicamente viável apenas após a dissolução do Estado soviético. “O colapso do regime comunista de partido único” acabou sendo, de fato, “a condição sine qua non” para o big bang, mas o big bang não conseguiu alcançar “uma transição efetiva para a economia de mercado”. Em vez do aumento pontual previsto no nível dos preços, a Rússia entrou em um longo período de inflação altíssima, queda na produção e baixas taxas de crescimento (ver figura 3).
Quase todos os países pós-socialistas que implementaram alguma versão da terapia de choque experimentaram uma recessão longa e profunda. Além da devastação documentada pelos indicadores econômicos (ver figura 2), a maioria dos indicadores de bem-estar, como acesso à educação, ausência de pobreza e saúde pública, entrou em colapso.
*Isabella M. Weberé professora de economia na University of Massachusetts Amherst, EUA.
Referência
Isabella M. Weber. Como a China escapou da terapia de choque. Tradução: Diogo Fernandes. Revisão técnica: Elias Jabbour. São Paulo, Boitempo, 2023, 476 págs (https://amzn.to/447aDoD).
Análise do estado atual do teatro de guerra e o significado da batalha de Artyomovsk para russos e ucranianos
A Rússia declarou vitória na Batalha de Artyomovsk no sábado, 21 de maio, depois de 224 dias de combates. Volodymyr Zelensky previu, no início de março, que seus oponentes poderiam avançar pelo resto do Donbass se isso acontecesse, razão pela qual o líder ucraniano ordenou às suas forças que lutassem até o fim, apesar de os Estados Unidos o terem aconselhado a retirar-se dali já em janeiro. Este artigo avalia o estado atual da situação com o objetivo de obter uma melhor ideia do que poderá vir a seguir.
Artyomovsk não é uma cidade estratégica
Não há nada de especial em Artyomovsk que a distinga de outras cidades de tamanho semelhante no Donbass, embora seu controle, de uma forma ou de outra, possa facilitar o acesso ao resto das posições mais estratégicas da região.
Em vez de retirar pragmaticamente suas forças para salvar vidas e reforçar posições muito mais facilmente defensáveis em outros locais, Volodymyr Zelensky decidiu transformar Artyomovsk em outra Mariupol por razões puramente políticas relacionadas com o reforço do moral de suas tropas e com o fomento da guerra de informação anti-russa.
A Rússia virou o jogo
À medida que a Batalha de Artyomovsk se arrastava, Volodymyr Zelensky tentou justificar sua decisão de não se retirar com o falso argumento de que queria esmagar as forças de seu adversário e ganhar tempo para a contraofensiva de Kiev, mas a Rússia virou o jogo, esmagando as forças dele e ganhando tempo para preparar seus próprios planos.
O plano de Volodymyr Zelensky para reforçar o moral de sua tropa ao longo desta batalha saiu totalmente pela culatra depois que a vitória da Rússia mostrou que milhares de ucranianos morreram literalmente por nada, o que pode levar a uma crise de confiança com implicações de longo alcance para este conflito se ele não reparar rapidamente este dano.
A cisão entre o Ministério da Defesa russo e o Grupo Wagner
Apesar dos receios de que a escalada da rivalidade entre o Ministério da Defesa e o Grupo Wagner pudesse fazer com que a Rússia perdesse a Batalha de Artyomovsk, ao final, ela não se revelou fatal e parece ter sido gerida discretamente pelo presidente Vladimir Putin, como demonstrado no domingo pelo agradecimento a ambos por esta vitória.
A contraofensiva de Kiev apoiada pela OTAN parece ser iminente
A proposta de Henry Kissinger para que a Ucrânia se junte à OTAN e o artigo do Politico prevendo um conflito congelado do tipo coreano sugerem que os EUA, o Reino Unido e/ou a Polônia farão promessas de segurança a Kiev na próxima cúpula do bloco, tal como as que os EUA fizeram à Finlândia e à Suécia em maio passado ou à Coreia do Sul após o armistício.
A pressão por um cessar-fogo
A China, a Arábia Saudita, alguns países africanos e o Vaticano pressionam por um cessar-fogo, mas as perspectivas de que isso seja bem sucedido (independentemente de quem desempenha esse papel) dependerão em grande medida do resultado da próxima contraofensiva de Kiev e da próxima Cúpula da OTAN.
A menos que Kiev, apoiada pela OTAN, ou a Rússia consiga um avanço militar até o final do ano, um cessar-fogo de algum tipo parece inevitável, tornando assim seus respectivos esforços de gestão da percepção fundamentais, uma vez que terão que convencer sua população de que ganharam mesmo que não tenham atingido seus objetivos máximos.
Teorias da conspiração
Quer se trate da teoria da conspiração “xadrez 5D”, que afirma que “tudo está acontecendo de acordo com o plano”, ou da teoria da “perdição e melancolia”, que diz a todos para “abandonarem todas as esperanças”, os apoiadores de ambos os lados vão certamente deparar-se com estas falsas narrativas com mais frequência à medida que a guerra por procuração entre a OTAN e a Rússia entra na sua próxima fase.
As observações acima partilhadas sobre o estado atual deste conflito sugerem que este se intensificará em breve com o início da contraofensiva de Kiev apoiada pela OTAN, mas que não é provável qualquer avanço de ambos os lados, a menos que o comando e controle e/ou a logística entrem em colapso. Qualquer uma destas situações pode acontecer devido aos ataques do adversário e/ou a intrigas internas, mas nenhuma delas deve ser considerada um fato consolidado. Assim sendo, um cessar-fogo ao longo da linha de contato poderá começar a ser seriamente discutido no final do ano.
*Andrew Korybkoé mestre em Relações Internacionais pelo Instituto Estadual de Relações Internacionais de Moscou. Autor do livro Guerras Híbridas – Das Revoluções Coloridas aos Golpes(Expressão Popular).
Jacob Gorender.Marxismo sem utopia. São Paulo, Ática, 1999, 288 págs.
Sob muitos aspectos, Marxismo sem utopia é um livro notável. Diferentemente do usual na tradição do marxismo local, não busca adaptar as teorias de Marx e de seus seguidores à especificidade brasileira nem destacar as singularidades de nossa formação social (assunto abordado com brilhantismo por Jacob Gorender em O escravismo colonial). Propõe-se nada mais nada menos que atualizar o próprio marxismo. Sintoma de maturidade intelectual (do autor e do marxismo brasileiro), mas também de lucidez diante dos impasses da prática e da teoria depois da derrocada do socialismo do Leste europeu e da ascensão do neoliberalismo.
A flexibilidade, implícita no projeto de revisar as teses marxistas levando em conta a atual situação do mundo, destoa do disseminado dogmatismo de teóricos e militantes de esquerda e não deixa de ser inesperada (apesar de sua trajetória heterodoxa) em um antigo membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro. Tampouco é comum – numa época em que prevalecem expectativas de curto prazo – a atitude de elaborar propostas que assumidamente só poderão ser efetivadas pelas gerações futuras.
Por fim, o leitor haverá de se surpreender com a riqueza enciclopédica do livro. Encontram-se lá sumariados, com clareza, didatismo e uma espantosa capacidade de destacar o essencial: (i) as discussões contemporâneas acerca de temas como os desdobramentos do capitalismo no século XX, (ii) a história da tradição marxista e do “socialismo real”; (iii) a dita globalização e tudo que afeta a atualidade e o futuro do mundo do trabalho; (iv) a situação presente das classes, dos partidos e do Estado, bem como suas mútuas relações; (v) o debate acerca da pertinência da teoria de Marx acerca da extração da mais-valia, da queda tendencial da taxa média de lucro e das crises de superprodução; (vi) a questão da transição e das características da sociedade socialista etc.
A construção enciclopédica do livro nos esclarece sobre a variante do marxismo retomada por Jacob Gorender. A organização do legado de Marx como um sistema aberto, atento às discussões internas nos diversos campos do saber, foi a estratégia utilizada por Friedrich Engels para atualizar o materialismo histórico após a morte de Marx. Nessa versão, denominada “socialismo científico”, ascendeu ao primeiro plano a dicotomia ciência/utopia presente no título e retomada no decorrer do livro.
No que tange ao método, Jacob Gorender está mais próximo de Eduard Bernstein, um discípulo de Engels que, levando ao pé da letra a associação entre marxismo e ciência, não hesitou em adotar como fio a tese de que “Marx desviou-se da disciplina científica e cedeu a propensões utópicas”. A proximidade entre Eduard Bernstein e Jacob Gorender, no entanto, é puramente formal. Como a convergência entre teoria e prática, método e política é ainda apenas um ideal, Jacob Gorender pôde retomar o mote a partir do qual Eduard Bernstein procedeu à revisão do marxismo e, ao mesmo tempo, rejeitar peremptoriamente o reformismo social-democrata preconizado por ele. Mas nem por isso está imune, por exemplo, às críticas metodológicas que György Lukács endereçou a Eduard Bernstein em História e consciência de classe, particularmente à ilusão de que a simples seleção dos fatos relevantes já não contenha uma interpretação.
Para Jacob Gorender, a fonte dos equívocos de Marx e do marxismo, dado fundamental que o impele a revisar essa tradição, seria a constatação de que, ao contrário do que sempre se supôs, “o proletariado é ontologicamente reformista”. Para corroborar o que considera uma evidência, recorre ao artigo “Século Marxista, Século Americano” de Giovanni Arrighi (em A ilusão do desenvolvimento, Vozes) que destaca a cisão do marxismo em movimentos reformistas no centro e revolucionários na semi-periferia do capitalismo.
Entretanto, o que preocupa Giovanni Arrighi não é uma definição sobre o caráter ontológico da classe operária, mas sobretudo o fato de que a desigualdade do sistema interestatal (entre os países do núcleo orgânico e os demais) parece ter determinado a ação do proletariado mais fortemente que o objetivo socialista. Isto é, a classe operária das nações do centro esforça-se por manter a posição privilegiada de seu país, enquanto os trabalhadores da periferia anteviram (equivocadamente) na revolução um meio de alcançar o padrão dos países centrais.
Diante desse dilema não basta propor a substituição da força social preponderante no processo revolucionário, como fez Jacob Gorender ao apostar suas fichas nos assalariados intelectuais (os assim chamados “colarinhos brancos”). A existência de um sistema interestatal hierarquicamente estruturado e imune a alterações tornou-se uma questão incontornável para quem quiser propor modificações no modo de organizar o mundo, sejam marxistas ou não.
*Ricardo Musseé professor no Departamento de Sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de Émile Durkheim: Fato social e divisão do trabalho (Ática).
Uma exposição bem feita de todos os argumentos favoráveis à diplomacia lulopetista, com os bônus atribuídos à própria, e os malus devidos unicamente ao neoliberalismo e a uma política externa "de direita", quando não reacionária e subserviente ao imperialismo. Um maniqueísmo bem construído.
A pobreza intelectual da mídia brasileira que parece não entender a mudança de rota da política externa do país
Desde o processo de redemocratização do país após 21 anos de ditadura militar, foi sendo construída no Brasil uma política externa assentada em uma visão multilateral do mundo, porém com foco na defesa dos interesses nacionais e em sintonia com os processos econômicos, sociais e políticos em curso em cada período histórico. Tal trajetória começou a ser alterada a partir do golpe jurídico-parlamentar de 2016, tendo sido fortemente modificada a partir de janeiro de 2019, quando o governo Bolsonaro nomeou para o Ministério das Relações Exteriores um embaixador que acreditava piamente que a terra é plana e que a grande ameaça ao país dizia respeito ao globalismo, expressão que representa um acinte para todos aqueles que já exerceram tal cargo no serviço público federal.
Em outra oportunidade (Mattei, 2016), mostramos que a política externa brasileira, embora aparentemente possa representar a cara da diplomacia do país, ressente-se de uma multiplicidade de interações sociais e de jogos de interesses das frações de classes sociais, em especial da classe empresarial; dos interesses econômicos e políticos aos quais o poder executivo esteja vinculado; da própria configuração política parlamentar originária de diferentes segmentos e atores sociais; e da possibilidade de ação da sociedade civil organizada nos debates e discussões sobre a inserção do país no cenário global.
A década de 1990 é bastante ilustrativa nesta linha interpretativa, especialmente se considerarmos que a política externa desse período promovida pelo país foi de subordinação passiva à conjuntura internacional dominado pela globalização econômica e pelo neoliberalismo político. Nesta lógica, durante o governo FHC (1995-2002) prevaleceu uma intervenção vertical que privilegiou determinados setores da burguesia brasileira, especialmente daqueles representados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e pelas entidades representativas do Agronegócio.
É verdade que muitos acordos sobre alguns produtos foram sendo postergados, assim como outros que foram celebrados, mas que acabaram sendo ignorados, bem como de alguns setores de commodities baseados nos recursos naturais, cujas demandas foram impulsionadas pela crescente presença da China no mercado mundial. De alguma forma, essa política subordinada e marcada por uma intervenção verticalizada acabou privilegiando as relações com alguns países aos quais o Brasil era muito dependente economicamente, em especial os Estados Unidos. Talvez esta seja a razão que explique porque o país nunca teve uma posição clara em relação à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) proposta pelos EUA, a qual gerou discussões conflituosas em vários países latino-americanos.
Além disso, afirmamos naquela oportunidade que o processo de inserção internacional do Brasil nos primórdios do século XXI foi sendo alterado significativamente em relação à política externa do país que vinha sendo seguida, principalmente na década de 1990, quando a ideologia neoliberal também passou a ser parte integrante da política externa brasileira. De um modo geral, pode-se dizer que o projeto político vencedor nas eleições de 2002 estabeleceu dois pontos de inflexão nessa trajetória.
Por um lado, ao implementar um projeto econômico denominado genericamente de “Novo Desenvolvimentista”, o governo Lula (2003-2010) conseguiu reduzir a dependência econômica do país em relação aos EUA e, por outro, rearticulou as ações diplomáticas mais fortemente na direção Sul-Sul. Com isso, a política externa passou também a fortalecer relações com países denominados de “não desenvolvidos” (também chamados de emergentes), o que lhe deu a característica de uma política mais horizontalizada, mesmo que as relações com as grandes potências mundiais tivessem sido mantidas (Mattei, 2016).
Para Castelan & Mattei (2016), é neste contexto que tanto o Mercosul como o bloco do BRICS foram priorizados.[i] No caso deste último, formado em 2009 e que contou com a adesão da África do Sul a partir de 2010, o Brasil teve um papel fundamental na conformação e expansão do bloco, cujas ações econômicas e políticas passaram a ser devidamente reconhecida pelas grandes potências mundiais. Seja através de mecanismos de cooperação, seja através da mobilização de investimentos e de relações comerciais mútuas, o bloco conseguiu se estabelecer como um importante player no cenário mundial, ao mesmo tempo em que propiciou uma melhor horizontalização das relações internacionais. Neste caso, merecem destaque as ações firmes do BRICS em defesa de reformas no sistema de cotas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (WB) e a constituição do G-20 no âmbito da organização Mundial do Comércio (OMC), processo este que alterou o padrão das negociações comerciais em nível mundial.
A partir de 2016, Castelan & Mattei (2016) mostraram que após o impeachment do 2º Governo Dilma e ascensão ao poder de Michel Temer (2016-2018), o viés ideológico da política externa começou a ganhar maior efetividade. Isso pode ser constatado nas declarações de posse do novo Chanceler (José Serra) no dia 18 de maio de 2016 quando, ao enumerar sua “nova política externa embasado em dez princípios e diretrizes programáticas” afirmou: “nossa política não estará mais de acordo com as conveniências e preferências ideológicas de um partido político e seus aliados no exterior”.[ii]Além disso, após criticar quase que cegamente o multilateralismo existente nas relações internacionais, que segundo o novo chanceler não aconteceu e, pior, só prejudicou, passou-se a defender o bilateralismo como o caminho da nova política externa.
Quanto às relações Sul-Sul (casos do Mercosul) tratou-se apenas de uma visão meramente econômica e equivocada, segundo muitos analistas da política externa em vigor à época. Chama atenção neste caso, as menções em relação à África que expuseram a ideia central da “nova política”: abrir um acelerado processo de negociações comerciais visando abrir novos mercados para as exportações brasileiras com base em uma “reciprocidade equilibrada”, revelando um pragmatismo imediatista.
É importante assinalar que ao longo dos três anos de mandato do governo Temer essas dez diretrizes serviram apenas como “Termo de Posse do Chanceler José Serra”, uma vez que a maioria delas foi abandonada, prevalecendo apenas o ideário da “desideologização da política externa”, a ampliação das ações bilaterais, especialmente com os EUA, e o enfraquecimento das relações Sul-Sul, particularmente dos processos de integração regional.
Assim, aos poucos foram sendo abandonados os pilares básicos da política externa brasileira de décadas, a qual esteve acoplada às estratégias gerais de desenvolvimento brasileiro. Foi nesse contexto que ganharam espaços a autonomia e o multilateralismo dos governos pós-redemocratização do país. Ou Seja, a grande marca desse período (1985-2016) foi a defesa da diversificação das ações, especialmente em termos da inserção do país na nova ordem internacional, com ênfase na cooperação entre os países e regiões, fatos que reposicionaram o Brasil perante os demais países do mundo.
A política externa do governo Bolsonaro
Entre os anos de 2016-2018 o país vivenciou um acirramento de conflitos econômicos e políticos, cujas emulações remetem ao golpe jurídico-parlamentar de 2016 que alçou o senhor Michel Temer à condição de Presidente da República. Sua gestão geral foi marcada por grandes conflitos políticos e uma crise econômica inacabada marcada por baixo crescimento econômico, elevado grau de desemprego e aumento expressivo das desigualdades sociais. Politicamente, foi um período marcado por reformas de natureza neoliberal e fisiológica que impuseram à sociedade brasileira grandes retrocessos.
Foi nesse cenário que o país elegeu Jair Bolsonaro como presidente da República em 2018, um deputado que fazia parte do “baixo clero” do parlamento brasileiro, uma vez que em 28 anos de mandatos consecutivos aprovou apenas dois projetos políticos, além de sua presença no parlamento ser marcada pelo radicalismo de extrema direita e pelo conservadorismo social e político explicitado em seu mantra que se tornou jargão em todas as suas falas públicas como presidente: “Deus, Pátria, Família e Liberdade”. Mais do que uma ideologia conservadora, esse mantra representa a recapitulação dos lemas fascistas que antecederam à Segunda Guerra Mundial.
É nesse cenário que emerge a política externa do governo Bolsonaro, cuja ênfase se assentada em alguns eixos fundamentais: defesa intransigente do liberalismo conservador como ordem econômica e política, o que significa uma forte ideologização das ações; enfraquecimento do multilateralismo e dos processos de cooperação e integração regional, especialmente na América Latina, com a justificativa ideológica de que o Brasil não se relacionava com ditaduras, mas apenas com países que poderiam trazer vantagens econômicas ao povo brasileiro; rompimento com a autonomia da política externa ao se inserir de forma dependente com os EUA e alinhar internamente os interesses desse país junto ao Brasil; retirada do país de fóruns regionais (UNASUL e CELAC), além de constantes atritos no âmbito do MERCOSUL; estabelecimento de relações externas conflituosas com diversos países, especialmente em termos das relações comerciais e do tratamento da temática ambiental, particularmente quando o assunto dizia respeito à preservação da Amazônia; além do tratamento descortês de um Chefe de Estado em relação às autoridades de outros países.
Enfim, a lista de retrocessos ao longo dos últimos quatro anos é enorme, fazendo com que a maioria dos analistas da política externa qualifique o período de Jair Bolsonaro como de grandes retrocessos, uma vez que em seu governo foram rompidos os pilares básicos que definiam a estratégia de décadas da diplomacia brasileira, a qual construiu uma política externa soberana, autônoma e eficaz.
A seguir sistematizamos algumas dessas passagens ideológicas que estiveram sob a orientação do astrólogo Olavo de carvalho – referência teórica do Chanceler – as quais marcaram fortemente esse processo de rompimento de uma tradição de décadas da política externa do país. Em oposição à política clássica de defesa do multilateralismo aparece o discurso permanente de combate ao “globalismo”, por se entender que a política externa deveria “trabalhar pelo país”, prática que abre espaço para um alinhamento ideológico com o governo Trump (EUA), cuja marca foi a submissão do Brasil aos interesses globais norte-americanos. Neste caso, se sobressaiu a proposta do governo Bolsonaro de trocar a sede da embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, rompendo uma tradição da política externa brasileira de equilíbrio no conflito Israel-Palestina.[iii]
Outro ponto relevante desse rompimento ocorreu nos fóruns da Organização das Nações Unidas (ONU), destacando-se duas passagens. A primeira delas aconteceu na Assembleia Geral da ONU de 2019 quando o Brasil, pela primeira vez, votou a favor do embargo econômico à Cuba imposto pelos EUA. Naquele momento, o presidente do Brasil assim se manifestou: “somos favoráveis ao embargo porque aquilo é uma ditadura”. Todavia, deve-se se registrar que a política externa ideologizada aproximou o país de governos de extrema-direita na Europa (Hungria e Polônia), além de aprofundar a subserviência ao extremismo de direita praticado pelo governo Trump. A segunda menção diz respeito ao posicionamento do país durante reunião do Conselho dos Direitos Humanos da ONU realizada em 23 de março de 2021, momento em que o Brasil foi o único país da América Latina e Caribe a votar contra a resolução que condenava os impactos de medidas coercitivas, como são os casos de embargos econômicos.
Na seara internacional, cabem ainda os seguintes destaques: os conflitos permanentes com a China, o principal parceiro comercial do país; o rompimento do princípio de não intervenção e de respeito à autodeterminação dos povos ao reconhecer equivocadamente Juan Guaidó como presidente da Venezuela, atitude que com o passar do tempo se revelou em um grande fiasco diplomático, uma vez que se tratava de uma invenção política do governo Trump; o não comparecimento à cerimônia de posse do Presidente da Argentina Alberto Fernandez, simplesmente pelo fato de que o candidato apoiado por Jair Bolsonaro perdeu as eleições presidenciais naquele país, o principal parceiro comercial do Brasil no âmbito do Mercosul; as grandes controvérsias e conflitos estabelecidos com outros chefes de Estado em relação à problemática da Amazônia; etc.
Enfim, o conjunto desses fatos (e muitos outros) impôs ao país um isolamento regional e internacional. Tal situação ficou evidente quando Jair Bolsonaro participou de algumas reuniões e fóruns internacionais, momentos em que sequer era procurado para se reunir com os principais líderes mundiais. É justamente esse cenário que começou a ter novos ares a partir de 2023, quando Lula inaugura seu terceiro governo do Brasil.
A primeira viagem oficial
Ainda no dia da posse o Lula anunciou que sua primeira viagem oficial iria ser para a Argentina, o principal parceiro comercial do Brasil no continente Sul-Americano. Considerando-se os problemas e os conflitos causados pelo governo Bolsonaro nessa relação com a Argentina, a visita de Lula em 23 de janeiro de 2023 sinalizou uma mudança de rumo da política externa brasileira que estava em curso em relação ao país vizinho. Portanto, mais que manter a tradição do novo presidente do Brasil de visitar primeiramente o país vizinho, essa viagem buscou resgatar e aprofundar os laços com a Argentina diante de sua importância econômica, social e política na região.
Especificamente em termos econômicos, o Brasil só tem a ganhar com essa reaproximação, uma vez que a Argentina ainda é um dos três principais destinos das exportações brasileiras. Já em termos políticos, uma melhor sintonia entre esses dois países poderá beneficiar bastante o andamento das negociações no Mercosul, bem como auxiliar nas negociações finais do acordo entre esse Bloco e a União Europeia, processo que praticamente entrou em “stand by” durante o Governo Bolsonaro. Ou seja, tanto o reposicionamento do Mercosul como os possíveis avanços na escala global dependem fortemente de uma relação política normalizada entre os governos do Brasil e da Argentina.
Registre-se, também, que no dia 25 de janeiro de 2023 (logo após a reunião da CELAC) Lula viajou ao Uruguai para uma reunião com o presidente Uruguaio Luis Lacalle Pou, cuja finalidade foi debater o futuro do Mercosul diante da insistência do Uruguai de celebrar acordos diretos com a China, o que fere mortalmente as regras do Bloco. Governado atualmente por um presidente caracterizado como neoliberal, o Uruguai está buscando se colocar unilateralmente no comércio chinês por meio de sua produção agrícola e pecuária, mesmo que bastante limitada.
Registre-se que esse posicionamento do presidente do Uruguai está gerando certos descontentamentos entre os demais membros do Bloco, os quais foram manifestados durante a última reunião dos líderes do Mercosul realizada em dezembro de 2022. Naquela data, o presidente da Argentina afirmou que o Uruguai estava descumprindo as regras do Bloco, comportamento que poderia levar a um rompimento entre os Estados-membros. Dois aspectos merecem destaque nesse debate. O primeiro diz respeito à nota enviada ao Uruguai em novembro de 2022 pelos coordenadores da Argentina, Brasil e Paraguai criticando o pedido desse país de adesão ao Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CPTPP), tratado que busca estabelecer uma área de livre comércio envolvendo os seguintes países: Austrália, Brunei, Canadá, Chila, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura e Vietnã. Na essência, esse tratado se propõe a remover em 95% as tarifas dos produtos e bens comercializados entre esses países. O segundo diz respeito à defesa de um acordo unilateral do Uruguai com a China, sem qualquer mediação pelo Mercosul.
Segundo o novo chanceler brasileiro (embaixador Mauro Vieira), esse posicionamento poderá representar, no limite, a destruição do Mercosul por uma razão muito simples: o Bloco possui uma Tarifa Externa Comum e se algum Estado-membro negociar tarifas diferentes (mais baixas, por exemplo), essas mercadorias chegariam mais baratas nesse país, mas acabariam circulando também pelos demais países porque há um acordo de livre circulação de bens e mercadorias entre os país do Bloco. Isso acabaria gerando um forte desequilíbrio entre as importações e exportações porque não haveria mais a coordenação da política tarifária.
Neste sentido, é importante registrar literalmente a posição do Brasil defendida pelo Presidente Lula em reunião com o presidente do Uruguai: “quero dizer ao presidente e à imprensa uruguaia que os pleitos do presidente Lacalle são mais que justos. Primeiro, porque o papel de um presidente é defender os interesses de seu país, os interesses de sua economia e os interesses do seu povo. Segundo, porque é justo querer produzir mais e querer vender mais e, por isso, é preciso se abrir o quanto for possível para o mundo dos negócios. Todavia, o que precisamos fazer para modernizar o Mercosul? Queremos sentar à mesa primeiramente com nossos técnicos, depois com nossos ministros e, finalmente, com os presidentes para que a gente possa renovar aquilo que for necessário renovar”.
Este posicionamento do Presidente Lula deixou claro dois pontos: primeiro, que o Brasil concorda que o Mercosul precisa ser renovado (como defende o Presidente do Uruguai); segundo, que qualquer acordo com a China deve ser feito em Bloco. Para tanto, Lula destacou que, apesar da China ser o maior parceiro comercial brasileiro, o país defende que o melhor neste momento é fazer acordos comerciais via Mercosul.
A reunião da CELAC realizada em Buenos Aires
O ano de 2023 começou, para a América Latina e Caribe, com um grande encontro do principal fórum de articulação política da região, uma vez que todos os chefes dos estados-membros estiveram presentes, destacando-se o retorno do Brasil, país que há anos não participava mais do encontro.
A CELAC (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos) é um bloco composto por 33 países da América Latina e Caribe e que atualmente se constitui no principal fórum de articulação política dos países dessa imensa região geográfica. É importante registrar que a conformação atual dessa organização deriva de um conjunto de ações políticas que inicialmente eram mais localizadas e bastante restritas, mas que foram, com o passar do tempo, ganhando corpo, capacidade de articulação e densidade política. Por isso, é importante resgatar alguns aspectos relevantes desse processo histórico.
O primeiro passo foi dado no início da década de 1980 (1983) que resultou na formação do Grupo de Contadora[iv] por iniciativa do México, Panamá, Colômbia e Venezuela, todos contrários à política intervencionista do Governo Reagan (EUA), especialmente na América Central. Ainda na mesma década (1985), Peru, Brasil, Argentina e Uruguai se reuniram em Lima e formaram o Grupo de Apoio ao Grupo de Contadora. Com isso, cresceu o processo de articulação mais autônoma dos países latino-americanos em relação aos poderosos interesses norte-americanos.
Dessa iniciativa decorre o segundo momento importante com a formação, em 1986, do Grupo do Rio, o qual contou com as presenças dos países originários (Grupo Contadora) mais o Grupo de Lima. Tal Fórum nasceu com o objetivo de fortalecer a democracia e o desenvolvimento econômico e social da região. É importante ressaltar que a partir daí se constituiu um fórum político que articulava as Américas (Sul e Central), sendo composto exclusivamente por países latino-americanos. Além disso, o Grupo do Rio impôs a responsabilidade de se transformar em um mecanismo permanente de consulta política sobre os problemas latino-americanos e caribenhos, além de promulgar uma maior cooperação entre as nações.
Com a chegada da “Onda Rosa” na América Latina na primeira década dos anos 2000 (eleições de presidentes de centro-esquerda em vários países da região), o clima ficou mais favorável para se ampliar as articulações políticas em escalas maiores. Assim, em 2008 o Presidente Lula organizou, na Costa do Sauípe (BA), o primeiro encontro com governantes Latino-Americanos e Caribenhos, porém sem a participação dos EUA. Na verdade, naquele momento se encontraram integrantes do Mercosul, da Unasul e das demais nações Latino-Americanas e Caribenhas para debater o futuro da Organização dos Estados Americanos (OEA), organização que no entender de muitos dos participantes representava fortemente os interesses dos EUA porque sempre era mantida sob a influência desse país imperialista. Esteve evento teve como resultado a criação da CALC (Cúpula da América Latina e do Caribe), cujo objetivo retomava a questão da cooperação e do desenvolvimento de todos os países da região.
Esse processo foi ganhando corpo nos anos seguintes com uma maior integração entre as diversas iniciativas (Grupo do Rio e CALC), sendo que nas reuniões realizadas entre os dias 22 e 23 de fevereiro de 2010, optou-se pela fusão dos diversos grupos, processo esse que deu origem à CELAC, a qual foi oficializada em 2011 com o objetivo de buscar uma maior integração entre as nações, além de fortalecer os processos econômicos, políticos e sociais de todas as nações integrantes. Para alguns analistas, esse foi um marco na luta por autonomia por parte da América Latina e do Caribe.
Particularmente no caso do Brasil, país que sempre exerceu uma forte liderança nesse processo, foi um grande retrocesso registrar que em 2020, sob o Governo Bolsonaro, o país se afastou da organização e não participou mais das reuniões alegando divergências políticas com Cuba e Venezuela. Com isso, o Brasil perdeu seu protagonismo, sendo que a organização passou a ser liderada pela Argentina e pelo México desde então. Com isso, a volta de Lula ao poder poderá possibilitar que o país retome seu papel no Continente, uma vez que é praticamente impossível pensar uma América Latina e Caribe com estabilidade e desenvolvimento sem a presença do Brasil. Por isso, a reunião da CELAC realizada em Buenos Aires (Argentina) no dia 24 de janeiro de 2023 foi um novo marco para a organização política do Continente.
O retorno do Brasil à CELAC e ao cenário Latino-Americano e Caribenho
Em sua fala na reunião oficial, Lula destacou ter afirmado, em seu primeiro pronunciamento após vencer as eleições presidenciais em outubro de 2022, que o Brasil estava de volta ao mundo. E nada melhor do que começar esse caminho de retorno pela reunião da CELAC. Registrou, ainda, que desde a redemocratização do país a partir de 1985 sempre houve empenho dos governos brasileiros em prol da integração regional, exceto no último governo (2019-2022) quando, sem qualquer justificativa plausível, o Brasil deixou de participar de todos os debates promovidos e organizados pela CELAC.
Neste sentido, destacou que seu retorno é para renovar o espírito de 2008 quando, na Costa do Sauípe (BA), realizou-se a primeira reunião da Cúpula da América Latina e Caribe, a qual teve continuidade e resultou na criação da CELAC em 2011. Registrou também que o sentido histórico daquele momento segue bastante atual, uma vez que agora se reúnem sem a tutela estrangeira para discutir os problemas do conjunto de países da região visando buscar soluções próprias embasadas em três princípios fundamentais: solidariedade, diálogo e cooperação.
Além disso, podem ser destacados diversos pontos da fala do Presidente Lula, os quais revelam a retomada da política externa brasileira, tão maltratada nos últimos quatro anos. Retomando a trajetória histórica, o Presidente destacou que os países do Continente são marcados por muitos pontos comuns: o passado colonial; a presença intolerável da escravidão e as tentações autoritárias que desafiam as democracias. Mesmo diante de tudo isso se sobressaem a imensa riqueza cultural dos povos indígenas e da diáspora africana, as diversidades das raças, origens e credos, bem como a história compartilhada de resistência e de luta por autonomia.
Partindo do pressuposto de que há uma clara contribuição a ser dada pela região para a construção de uma ordem mundial pacífica, baseada no diálogo, no reforço do multilateralismo e na construção coletiva da multipolaridade, o Presidente declarou que o Brasil está de volta à região e pronto para trabalhar lado a lado com todos porque o país volta a olhar para seu futuro com a certeza de que estará associado aos vizinhos bilateralmente, tanto no Mercosul como na Unasul e na Celac. Também mereceu destaque neste campo o diálogo com consórcios extrarregionais, como a União Europeia, a união Africana, a China, a índia e a ASEAN.
Além disso, destacou-se que a comunidade da CELAC é uma região pacífica que repudia o extremismo, o terrorismo e a violência política. Neste momento, Lula agradeceu o apoio de todos em relação aos atos terroristas contra o país praticados por uma horda de bolsonaristas no dia 08 de janeiro de 2023 que invadiram e depredaram as sedes dos três poderes da República em Brasília.
Do ponto de vista energético, o Presidente Lula afirmou que se localizam em nossos territórios alguns dos principais biomas do mundo; recursos naturais estratégicos; parcelas significativas da biodiversidade do planeta, além do potencial dos recursos aquíferos, questão chave para o futuro da humanidade. Por isso, a região tem uma capacidade especial para participar de forma vantajosa da transição energética global, dado o grande potencial em energias renováveis e limpas.
Em sua fala o presidente também mencionou que a recente pandemia da Covid-19 evidenciou os riscos associados à excessiva dependência dos insumos fundamentais para o bem-estar das sociedades. Por isso, essas crises acabam revelando a importância dos processos de integração dos países, pois é necessário unir esforços visando buscar melhorar a infraestrutura física e digital, além de ampliar os in
Em sua fala o presidente também mencionou que a recente pandemia da Covid-19 evidenciou os riscos associados à excessiva dependência dos insumos fundamentais para o bem-estar das sociedades. Por isso, essas crises acabam revelando a importância dos processos de integração dos países, pois é necessário unir esforços visando buscar melhorar a infraestrutura física e digital, além de ampliar os investimentos em pesquisa e inovação em todos os países da região visando à criação de cadeias globais de valor.
Por fim destaca-se o ápice da fala presidencial: “é com esse sentimento de destino comum e de pertencimento que o Brasil regressa à CELAC, com a sensação de quem se reencontra consigo mesmo”. Certamente, essa é uma frase bem refletida para uma reestreia em um fórum político onde o país nunca deveria ter se ausentado. Isto porque, seguindo o legado do Barão do Rio Branco, a política externa brasileira vinha atuando fortemente no Continente Latino-Americano desde a redemocratização em prol do bem-estar de todos os povos. Na verdade, essa fala, ao finalizar homenageando o pensador Darci Ribeiro – o maior pensador/defensor dos povos originários – pode ser considerada uma das melhores manifestações de um presidente em todos os eventos da CELAC.
Algumas repercussões da presença de Lula na reunião da CELAC
A reunião da CELAC, com a presença do Brasil, mereceu destaque em diversos órgãos da imprensa mundial. Um jornal francês destacou a nova ofensiva diplomática do Brasil e suas influências na região, cujo retorno à CELAC revela o papel preponderante do Brasil para o conjunto dos estados-membros da organização. Além disso, destaca-se que a grande novidade foi a discussão de uma proposta de moeda para viabilizar o comércio externo entre Brasil e Argentina, assunto que foi considerado pelo periódico econômico como uma “pedra no sapato” nas pretensões e interesses norte-americanos.
Também foi destacado por vários correspondentes internacionais que a participação do Presidente Lula, além de simbólica, representou um aceno para a retomada de relações políticas com outros países para além da fronteira do Mercosul, com o intuito de exercer toda sua influência na região, bem como reorganizar a diplomacia Sul-Sul que marcou suas passagens anteriores pela presidência do Brasil. Tudo isso sem esquecer de seu protagonismo na esfera global.
Para tanto, mencionou-se três agendas iniciais no âmbito internacional: no final de janeiro de 2023 Lula recebeu a visita do Chanceler Alemão; no início do mês de fevereiro foi aos EUA e em breve estará na China. Ou seja, além do protagonismo na região, o governo Lula recoloca o Brasil novamente nos debates no cenário mundial. Também já estão sendo agendadas possíveis visitas na Europa, particularmente em Portugal, ainda no primeiro semestre de 2023. Essa é grande diferença da trajetória da política externa brasileira em relação ao que ocorreu nos últimos quatro anos.
Na essência, essas novas incursões da política externa brasileira em um mundo fortemente bipolar e dominado pelo eixo Pequim-Washington simboliza a intenção do governo atual de ampliar seus raios de influências para além das fronteiras latino-americanas. Sem dúvida alguma, a discussão da temática ambiental e das mudanças climáticas é um dos grandes trunfos do Brasil neste cenário bipolarizado.
Enquanto isso, a ressentida imprensa brasileira….
Em reportagem do jornal Folha de S. Paulo, assinada por Renato Machado, Victória Azevedo e Matheus Teixeira, também divulgada no portal UOL em 29 de janeiro de 2023 cravou-se o seguinte título: “Lula enfrenta desgastes para se consolidar como líder da América Latina”. E são impressionantes os argumentos utilizados para sustentar tais afirmações, muito das quais referendando mais pelas posições bolsonaristas do que por análises do que de fato ocorreu durante os três dias da primeira viagem oficial do Presidente Lula. Na sequência ficam claros que esses argumentos midiáticos são desprovidos de qualquer análise da questão principal: a mudança de rota da política externa brasileira.
O primeiro argumento bolsonarista parte do pressuposto de que o Presidente Lula procura se firmar junto aos países vizinhos e como líder da América Latina utilizando-se, novamente, do BNDES para financiar projetos no exterior. Qual foi a fonte desse argumento? O Twitter do Senador Flávio Bolsonaro: “caridade com chapéu alheio, com o seu, com o nosso chapéu. Querem transformar o BNDES no que era antes do Governo Bolsonaro: um ralo de dinheiro de espertalhões”.
O segundo argumento é mais evasivo ainda, uma vez que se afirma que “outros parlamentares já pediram explicações sobre essas iniciativas”, porém sem citar quem são os tais de “outros”. Além disso, afirma-se que “há ações no Congresso para tentar desarquivar projetos que visam impedir empréstimos para governos estrangeiros”. Novamente, essas passagens revelam o caráter ideológico-conservador da reportagem, uma vez que está amparada em suposições e sem citar os agentes em ação.
O terceiro argumento da reportagem é um atestado de quem efetivamente sequer entendeu o que aconteceu na viagem oficial do presidente Lula à Argentina e ao Uruguai, uma vez que se afirma que a “ida de Lula à Argentina e ao Uruguai expôs a estratégia do petista de priorizar o Mercosul, mesmo que em casos impopulares, para tentar se firmar como protagonistas”. Essa é a ignorância de parte da mídia brasileira, uma vez que se os responsáveis pela matéria tivessem dedicado um tempinho mínimo para ler o discurso de Lula na CELAC poderiam ter compreendido o que estava sendo exposto aos demais Chefes de Estado da América Latina e do Caribe.
O quarto argumento despeja a soberba e a ignorância política. Critica-se o Presidente Lula pelo fato de que ele se diz defensor da democracia, mas ao mesmo tempo faz “sinalizações às ditaduras de Cuba e da Venezuela, além de propor a reabertura da embaixada na Venezuela”. Também não escapou desse besteirol o fato de que Lula elogiou a “Argentina – que é governada por seu aliado Alerto Fernandez – mas que a economia em 2022 apresentou uma inflação próxima a 5%”. Neste caso, vemos o quanto uma aula básica de relações internacionais faz falta a esses jornalistas!
O quinto argumento apresentado na reportagem – de forma descontextualizada – crítica abstratamente a fala de Lula quando este afirmou que “Bolsonaro fez uma coisa abominável ao aceitar o Guiadó como presidente da Venezuela”. Ou seja, ainda procuram defender um sujeito que nem sequer seus apoiadores na própria Venezuela o reconhecem como tal.
Finalmente, a reportagem apresenta o óbvio quando afirma que “a estratégia é similar à adotada em seus primeiros oito anos de governo, quando Lula foi um dos entusiastas da criação da CELAC, estreitando relações com os países vizinhos”. Esse desfecho mostra o quanto faz falta uma leitura mais séria do que de fato aconteceu em Buenos Aires entre os dias 23 e 24 de janeiro de 2023. Essa é a pobreza intelectual da mídia brasileira, da qual não poderia se esperar nenhum comportamento diferente! [v]
*Lauro Matteié professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC.
Referências
Castelan, D.; Mattei, L. A política externa do Governo Temer. Florianópolis (SC); NECAT-UFSC (Texto para Discussão Nº 021), 2016.
Mattei, L. O governo interino e os impasses políticos no Mercosul. Florianópolis (SC); NECAT-UFSC (Texto para Discussão Nº 019), 2016.
Notas
[i] Aqui também poderiam ser mencionadas as iniciativas de criação da UNASUL e o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), o que caracteriza o multilateralismo na política externa.
[ii] Registre-se que essa é uma crítica típica da direita neoliberal que vê partidarismo somente quando também ocorrem relações com partidos de esquerda. Agora quando se segue cegamente a cartilha neoliberal e conservadora não se qualifica essas relações como partidarização.
[iii] Ao final essa proposta não foi executada, sendo que em 15.12.2019 o Brasil instalou apenas um escritório comercial em Jerusalém. Se a mesma tivesse sido executada como originalmente pensada, significaria que o Brasil estaria reconhecendo Jerusalém como capital de Israel.
[iv] Contadora é uma pequena ilha no Panamá onde foi realizada a primeira reunião.
[v] Versão Original publicada como Texto para Discussão nº 51/2023 NECAT-UFSC.