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domingo, 8 de dezembro de 2024

A França se lança ao desconhecido - Daniel Afonso da Silva A Terra é Redonda,

A França se lança ao desconhecido

Daniel Afonso da Silva

A Terra é Redonda, 6/12/2024

https://aterraeredonda.com.br/a-franca-se-lanca-ao-desconhecido/ 

 

A classe política francesa e suas elites econômicas e culturais conseguiram, finalmente, lançar o país ao desconhecido, tornando a integralidade do regime disfuncional


Era previsível: um país – a França – ingovernável. Foi premonitório: o término das Olimpíadas de Paris com Tom Cruise e Missão Impossível. O primeiro-ministro francês, Michel Barnier, vem de ser demitido pelo Parlamento após 91 dias na função. Os parlamentares reuniram 331 votos – bem mais que os 289 necessários – para censurá-lo e ejetá-lo do cargo.

Jean-Luc Mélenchon foi o mentor e o tenor da manobra. Marine Le Pen, sua coadjuvante em convicção e apoio. As duas maiores forças político-partidárias da França, malgrado as suas diferenças, uniram-se em alma, em princípio, contra a proposta de orçamento apresentada pelo primeiro-ministro. Mas, em verdade, o seu objetivo indisfarçável sempre foi fragilizar o presidente Emmanuel Macron.

Que, doravante, precisa reconhecer a derrota, acatar a decisão do legislativo, acolher a demissão de Michel Barnier e de seu brevíssimo governo de três meses, nomear um outro primeiro-ministro e vistoriar a escolha de novos ministros, novas táticas e novas estratégias para superação da variedade de sinistros franceses momentâneos, conjunturais e estruturais extraordinariamente profundos. Sendo o colapso econômico muito grave. O constrangimento partidário gravíssimo. A entropia política sem precedentes. E a crise de regime, matizado pela Quinta República, perto de terminal.

Sem meias palavras, a classe política francesa e suas elites econômicas e culturais conseguiram, finalmente, lançar o país ao desconhecido, tornando a integralidade do regime disfuncional. Por claro, que em decorrência de operações sorrateiras. Que não vêm de hoje nem de ontem. Mas de tempos. Anos e mais anos com a embarcação fazendo água. E, agora, enfim, com furos aumentados, casco estourado e leme inteiramente avariado. Sendo improvável a solução por reparos. Restando apenas reconhecer-se a abertura de uma nova temporada de caos.

Forjada pelo general Charles de Gaulle, a partir de 1958, a Quinta República, enquanto regime político francês, foi, sim, uma resposta à instabilidade política e moral da Quarta República. Mas, também e fundamentalmente, um esforço de superação da “república de partidos”. Um cancro insistente permanente na vida política da França.

Como cotidianamente notada, a tensão no interior da classe política francesa jamais abdicou a sua condição efervescente. Desde a Revolução, passando pela Restauração, avançando pelo golpe – farsa ou não – de Napoleão III, chegando ao colapso de 1870-1871, amargando o após 1918 e 1929, vivenciando o cataclismo de 1940, entorpecendo-se com a resistência ao nazismo até 1944, juntando os cacos da humilhação de Vichy depois e tentando superar o tropismo da France Éternelle versus a vulgaridade da gestão do imediato. Um imediato que envolvia (i) a reconciliação nacional, (ii) a reconstrução do país e (iii) a definição do destino das colônias africanas.

O general De Gaulle fora retirado dessas incumbências desde 1946. Ele parecia controverso demais. Conduzira a resistência francesa desde 1940. Era herói inequívoco das guerras totais de 1914 a 1945. Mas – talvez também por isso – granjeou suspeição de todas as partes. Notadamente do primeiro-ministro Winston Churchill, que sempre lhe aplicou votos de desconfiança, e particularmente do presidente Roosevelt e todo o establishment norte-americano, que nutriam por ele um complexo sentimento de admiração e repulsa. Especialmente porque o general De Gaulle, no fundo, era a quintessência do marquês de La Fayette – “herói de dois mundos”, combatente da Guerra de Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa – com todo o seu estigma de ser admirado em bravura e menosprezado em reconhecimento.

Como todos podiam vivamente se lembrar, a étrange défaite francesa de 1940 tinha sido um choque planetário. Malgrado o extraordinário empenho do general francês na superação dessa situação, após a liberação de Paris e da França em 1944-1945, ele foi percebido como corpo estranho em seu próprio país quando a situação serenou. E, com isso, foi obrigado a retirar-se da vida pública e reduzir-se a singelo e silencioso observador distante. Longe de tudo, mas perto de todos. Especialmente com o avanço da Guerra Fria.

Contrário a todas as aparências, a Guerra Fria sempre foi um problema essencialmente europeu cujo impasse se devia ao destino da Alemanha. Que desde Yalta e Potsdam fora partilhada entre norte-americanos e soviéticos. Deixando bem claro o imperativo da tensão Leste-Oeste entre liberais e anti-liberais forjando um espaço de rivalidades sem perdão interiorizadas e simbolizadas pela ocupação de Berlim. Ainda não existia muro. Mas a cortina de ferro já era uma realidade inconteste.

Assim, desde 1945, a possibilidade de avanço vermelho causava apreensão. Especialmente entre os franceses. Que, por sua vez, suplicaram pelo apoio permanente e estrutural dos norte-americanos. Que, como resposta, retornaram ao Velho Mundo com o Plano Marshall e a Otan. Dois projetos que permitiram a efetiva reconstrução da França e a decisiva internalização notas de pacificação os franceses.

Mas, apenas, entre os metropolitanos. Pois, nas colônias, notadamente, africanas, desde 1944-1945, em lugar de fim da guerra e dos conflitos, acelerava-se o verdadeiro começo de uma guerra sem fim por independência e liberdade. E por razões plausíveis: os colonos franceses haviam participado dos esforços de guerra sob a aura da resistência implementada pelo general De Gaulle a partir de 1943 e, com o fim do embate ante o nazismo em 1944-1945, a sua demanda geral moveu-se ao encontro da supressão do sistema, do regime e do mando coloniais franceses. Lutava-se pela descolonização. Mas a gente de Paris seguia aturdida e indiferente. Especialmente após 1946, com a partida do general.

Nesse embate, a classe política francesa voltou rapidamente a viver entropias após 1946. Era, de uma só vez, impossível de se ignorar as demandas africanas como eles ignoravam e inconsequente ignorar o peso das colônias para o orçamento francês como os menos experimentados nunca conseguiram se dar conta. Frente a isso, a junção de insensibilidades, ignorância e indiferença acabou por conduzir o país à beira do precipício. Gerando um cenário de franca anomia. Onde a Quarta República deixou de se fazer funcional.

Isso porque a pressão parlamentar contrária à concessão de independências aos africanos conduziu – para ficar num simples exemplo – pressões orçamentárias insuportáveis para a manutenção de integridades territoriais coloniais e, por outro lado, a redução de impostos advindos das colônias. E se isso não bastasse, o francês metropolitano francês – leia-se: a sociedade civil – estava demasiado cansado de aventuras e guerra.

Para superar a situação, pôs pressão em sua classe política que, por não suportar, sucumbiu a uma imensa instabilidade partidária. Que contaminou o Parlamento. Que, por timorato, passou a padecer de convulsões sucessivas. Produzindo 24 governos e 12 primeiros-ministros nas legislaturas 1946 e 1958, e levando o regime político a uma disfuncionalidade total. Sem continuidade nem credibilidade na condução de seus destinos. O que impôs a reabilitação do general De Gaulle. Essencialmente para solucionar a problemática colonial. Mas, fundamentalmente, para superar essa guerra infindável de partidos.

Convocado em 1958, o general foi imediatamente tornado plenipotenciário. E, nessa condição, compôs às pressas uma Constituição. Foi à Argélia – principal e mais conturbada colônia. Apresentou aos argelinos o seu ambíguo “je vous ai compris” [eu lhes compreendi]. Iniciou a distensão com todas as colônias. Negociou com praticamente todas as lideranças metropolitanas e coloniais. Conduziu – ora tranquilamente, ora menos tranquilamente – a descolonização/independência.

Reposicionou o lugar da França no mundo. Forjou uma nova projeção interior e exteriori do país. Eliminou a possibilidade de alinhamentos automáticos com liberais ou comunistas. Passou a construir-se como terceira via e terceira voz no mundo. Falando a todos e tentando ser ouvido por todos. Em nome do presente, pensando no futuro e em louvor aos tempos em que o mundo venerava a França. Mesmo assim, a pressão interna seguiu imensa.

Especialmente porque, tecnicamente, o general havia sido entronizado no poder indiretamente por um colégio de notáveis. Sem, portanto, a participação nem a legitimidade popular. E, desse modo, gostando-se ou não, mais ou menos, refém do sistema e dos partidos. Que, por claro, poderiam amputar os seus meios de ação e ejetá-lo do poder a qualquer momento, tão logo a sua tarefa principal que era solucionar a problemática colonial fosse concluída.

Para, então, inibir essa possibilidade, o general convocou um referemdum para a instalação do sufrágio universal para a escolha de presidentes da República a começar por ele próprio. Como reação, o aglomerado de partidos do colégio de notáveis impetrou uma moção de censura contra o governo de George Pompidou, primeiro-ministro do general, com o propósito de acoimar o general. O ano era 1962. O mês, outubro. O dia, 5.

E, portanto, em atenção ao artigo 50 da Constituição de 1958, nesse dia 5 de outubro de 1962, pela primeira vez na Quinta República, um primeiro-ministro foi demitido pela vontade parlamentar.

Mas o general não se intimidou. Vendo que o propósito era fragilizá-lo, ele dissolveu o Parlamento, convocou novas eleições parlamentares, conseguiu constituir maioria parlamentar a seu favor, renomeou George Pompidou como seu primeiro-ministro e conseguiu o referendum favorável ao sufrágio presidencial universal. E, com isso, conduziu a querela de partidos à irrelevância. Vitalizando o espírito do novo regime ancorado na Constituição de 1958. Que fazia do presidente da um verdadeiro monarca, com amplos poderes e robusta legitimidade. Advindos diretamente do povo. Sem nenhum – ou quase nenhum – compromisso com partidos. Eis a essência da Quinta República.

O que acaba de ocorrer na França nesta primeira semana de dezembro de 2024 vai integralmente diferente daquele feito de 1962. Michel Barnier vem de ser demitido pelos parlamentares e o presidente Macron não possui nenhum mecanismo para “punir” os parlamentares. Vê-se, assim, um evidente retorno à odienta querela de partidos. Esterilizando o regime político da Quinta República e lançando o destino do país – da Quinta República e do presidente Macron – ao desconhecido.

Pois um retorno à Quarta República virou impossível e a implementação de uma Sexta, a partir de uma reforma política, também parece improvável. De modo que 1958 e 1962 foram, agora, tornados anacrônicos e 2024 ganhou a pecha de annus horribiblis francês. Ou melhor, o ano que em o empilhamento de crises chegou ao limite do suportável. Pois a crises são múltiplas e variadas. Para ficar apenas nas mais decisivas, olhando bem de perto, o cursor pode ser posicionado naquela fatídica decisão de dissolução do Parlamento na noite do 9 de junho de 2024 após a vitória acachapante do partido de Marine Le Pen nas eleições para deputação na União Europeia em Bruxelas.

Olhando mais ao longe, o 2 de dezembro de 2020, 26 de setembro de 2019 e o 8 de janeiro de 1996 – datas respectivas da morte dos presidentes Vallery Giscard d’Estaing, Jacques Chirac e François Mitterrand – sepultaram os últimos presidentes franceses capazes de suportar o fardo de sucessores do general De Gaulle. E olhando bem longe, a Quinta República talvez tenha começado a terminar com a resignação do general naquele terrível 28 de abril de 1969.

Voltando ao início e recompondo com calma seis meses, dia após dia, daquela fatídica decisão do 9 de junho de 2024, ninguém entendeu completamente as motivações do presidente Macron na dissolução do Parlamento. As eleições eram europeias. O partido de Marine Le Pen – e de seus similares radicais e extremistas na Europa e mundo afora – amplia a sua capilaridade de maneira profunda e estrutural desde a crise financeira de 2008. Tanto que chegou ao segundo turno das presidenciais francesas em 2017 e 2022 – nas duas ocasiões, contra Emmanuel Macron.

De maneira que já virou tácito que a sua ascensão vai constante, impressionante e irresistível. E, claramente, poderá – mais dia, menos dia – conduzir Marine Le Pen ou afins para a presidência em 2027 ou adiante. De modo que dissolver o Parlamento francês sob o pretexto de conter a ramificação do partido de Marine Le Pen continua sendo um argumento intelectualmente frágil, moralmente inconsequente e politicamente irresponsável. Assim como a tese da clarificação, mobilizada pelo presidente Macron.

Sem ser demasiado contundente ao encontro do nobre presidente francês, a defesa dessa tese beira o cinismo. Todo o macronismo entrou em crise terminal ao longo do primeiro mandato do presidente Macron. Após a sua reeleição em 2022, os despojos dessa crise só fizeram aumentar. De modo que impor ao povo “pensar melhor” e “rever” o sobre o seu ampliado apoio no partido de Marine Le Pen chega bem perto de ignomínia. Ou, dito de outro modo, parece brincadeira de péssimo gosto com a inteligência alheia. Tanto que o resultado dos dois para o legislativo deixou ainda mais clara a força de Marine Le Pen.

Em contrário, observe-se que esse resultado coloriu o Parlamento com a França Insubmissa (LFI) de Jean-Luc Mélenchou conquistando 78 cadeiras; o Partido Comunista Francês (PCF), 8; os Ecologistas (LE), 28; o Partido Socialista (PS), 69; os partidos esquerdistas diversos, 10; os partidos centristas diversos, 5; o Movimento Democrático (Modem) de François Bayrou, 33; Ensemble – reunindo Renascimento e outros aliados do presidente Macron – 99; o Horizontes do antigo primeiro-ministro Édouard Phillipe da presidência Macron, 26; a União Democrática e Independente, 3; o Os Republicanos (LR) do antigo presidente Nicolas Sarkozy, 39; partidos direitistas diversos, 26; a união LR-RN – aliança entre Éric Ciotti e Marine Le Pen –, 17; o RN de Marine Le Pen, 125; o partido de extrema direita, à direita do RN, 1; e o partido regionalista, 9.

Mirando tudo através de alianças, a Nova Frente Popular (NFP), liderada por Mélenchon aquinhoou 182 assentos. A Maioria Presidencial (MP) de Macron conseguiu 168. A Reunião Nacional (RN) de Marine Le Pen de braço com parcelas de LR de Éric Ciotti conseguiu 143. O grupo dos Republicanos levou 46. Enquanto a variedade independente à direita conseguiu 14, a à esquerda, 13, a ao centro, 6. Ao passo que o partido dos regionalistas levou 4 e outras agremiações nanicas unidas, 1.

Baralhando mais uma vez os números e vendo-os em perspectiva, o RN aparece como o único partido com ascensão constante, consistente e acelerada na ampliação de sua representação parlamentar nos últimos vinte e cinco anos. Essa força política sob a liderança dos Le Pen não tinha conseguido nenhuma cadeira em 2002 nem em 2007. Mas conquistou duas em 2012, nove em 2017, 89 em 2022 e às 125 – ou, em aliança, 143 – em 2024.

O conjunto dos partidos ancorados no agrupamento Ensemble conquistou 350 após a primeira eleição do presidente Macron em 2017, 249 após a sua reeleição em 2022, e desceu para 156 – ou 168 – cadeiras em 2024. Enquanto o agrupamento de Mélenchon – que também envolve, a contragosto de todos, frações do PS – variou de 162 em 2002 para 205 em 2007, 307 após a eleição do presidente François Hollande em 2012 para 58 em 2017, 131 em 2022 e 178 – ou 182 – em 2024.

Parece mais que claro que esses números não são números. Fitando apenas a realidade de 2024, após a dissolução e recomposição do Parlamento, existem 143 cadeiras a favor de Le Pen, 168 para Macron e 182 para Mélenchon. Constituindo-se três forças parlamentares disformes e dissonantes. Como jamais se viu sob a Quinta República.

Pois, voltando-se à essência, a Quinta República supõe a governabilidade através de uma maioria parlamentar. Qualquer que seja.

O general De Gaulle e todos os seus sucessores – exceto o presidente Jacques Chirac, em 1997 – supuseram dissolver o Parlamento como mecanismo de afirmação dessa maioria. E conseguiram.

O presidente Macron poderia até intuir e pode seguir imaginando que isso seria possível em junho de 2024. Mas nenhum dado da realidade corrobora a sua tese.

De modo que, sem mancar com o respeito ao encontro do distinto presidente francês afeiçoado em saltitar com o presidente Lula da Silva na Amazônia, a sua intempestividade na dissolução do Parlamento foi, sim, uma ação temerária e desprovida de pouco ou nenhum cálculo político revestido de interesse nacional francês.

Daí a perplexidade rumo ao desconhecido. Pois nesse cenário, qualquer primeiro-ministro tende a transitar por um Parlamento hostil. Que só poderá ser novamente dissolvido em junho de 2025. Tarde demais para um regime político que, sinceramente, claudica.

E claudica porque, de fato, “ninguém ganhou” as legislativas. Ou seja, nenhum partido conseguiu número suficiente de cadeiras para afirmar-se majoritário. O número mínimo seriam 289 cadeiras. Como ninguém chegou nem perto, o caos se instalou. Pois o grupo de Mélenchon conseguiu 182 e se acredita majoritário. O entorno de Marine Le Pen com suas 143 também se sente empoderado. E os 168 deputados fieis ao presidente sabem que não possuem nada a comemorar.

Nesse ambiente, a singela escolha de um primeiro-ministro tornou-se um risco ao regime. O presidente Macron escolheu Michel Barnier sabendo disso.

Michel Barnier é tido como experimentado quadro político francês. De seus variados serviços prestados, o mais recente, complexo e relevante foi a negociação do Brexit. Que demonstrou os seus predicados de portador de nervos de aço, paciência chinesa e sapiência carioca. Por isso, ele entrou no radar do presidente Macron para Matignon. Mas para aceder ao posto ele precisaria atar alianças. Essencialmente com Mélenchon e fundamentalmente com Marine Le Pen.

Com o primeiro, a resposta foi “não”. Com a segunda, conversou-se. E dessa conversa emergiu a perspectiva de integração das 143 cadeiras do RN às 168 do Ensemble como uma frente parlamentar para fazer passar projetos essenciais. Sendo o orçamento, o mais importante. Sob um custo moral, sinceramente, inacreditavelmente imperdoável da naturalização de Marine Le Pen e de seu RN na paisagem política francesa.

Tudo parecia bem. Bem mesmo. Malgrado os solavancos de Mélenchon. Até que o judiciário francês iniciou um procedimento de inviabilização política de Marine Le Pen. Denunciando-a de crimes políticos – “empregos fictícios” – no Parlamento europeu.

Michel Barnier havia sido empossado primeiro-ministro em setembro de 2024 e essa ofensiva jurídica ante Marine Le Pen começou em outubro. Quando durante duas ou três semanas não se falou de outra coisa que a possibilidade de a principal liderança da principal força política do país sob o risco de ser suprimida da competição eleitoral francesa.

Esse mal-estar causou desconforto de natureza física e espiritual em toda parte. Especialmente sobre Marine Le Pen, em seu partido e em seus eleitores.

Coetaneamente, Michel Barnier iniciou a apresentação do orçamento a ser votado pelo Parlamento. Uma operação complexa, decorrente da deterioração fiscal estrutural do país.

A situação fiscal francesa vem gravemente deficitária há quarenta ou cinquenta anos. O após pandemia e o “quoi qu’il en coûte” [custe o que custar] do presidente Macron simplesmente tornou a situação mais desafiadora. Com a eclosão da nova fase da tensão russo-ucraniana e o seu impacto direto sobre o fornecimento de energia, o que era desafiador ganhou ares de desespero. Diante a situação israelo-palestina, o desespero virou insuportável. E, se nada disso bastasse, a expectativa de retorno e o retorno de Donald J. Trump à Casa Branca transformaram o pesadelo em pandemônio. De maneira que o projeto orçamentário de Michel Barnier nasceu inviável e impossível de ser aprovado.

Sem adentrar em tecnicalidades, diante de todos esses vetores, o projeto propunha, simplesmente, o aumento de perto de 40 bilhões de euros em impostos ao contribuinte francês.

Entre os franceses, como se sabe, tudo: menos apreciação de impostos. Notadamente após 2008, a crise do euro, o Brexit, os Coletes Amarelos e a pandemia.

 

De toda sorte, era necessário tentar. E tentar por vias legislativas. Nesse sentido, do lado de Mélenchon, o apoio – independente da proposta – seria nulo, e foi. Ao passo que lado de Marine Le Pen apoiar projeto desse tipo seria uma traição aos seus 11 milhões de eleitores. Porquanto, essas duas forças parlamentares – o NFP e o RN, de Mélenchon e Marine Le Pen – bloquearam a proposta.

Diante disso, o primeiro-ministro lançou mão do artigo 49, alínea 3, da Constituição para fazer passar sem o aval do Parlamento. Frente à gravidade da manobra, Mélenchon formalizou uma proposição de censura. Que foi imediatamente aceita por Marine Le Pen e variados parlamentares de outros partidos. Concretizando-se nos 331 votos de censura ante Michel Barnier no último dia 04 de dezembro.

Como primeiro-ministro do presidente Macron, Michel Barnier foi lançado a feras. Todos sabiam disso. Mas, agora, com ares históricos. Não simplesmente por ser a primeira demissão após 1962 e a segunda no interior da Quinta República Francesa. Mas porque, essencialmente, o evento sugere novos tempos. Tempos de tormentas. Onde as estabilidades viraram voláteis. E ninguém parece saber o que fazer.

Fitando simplesmente o caso francês, quando Nicolas Sarkozy chegou à presidência da República em 2007, a intelligentsia francesa, europeia e mundial começou a sinalizar que um mundo umbilicalmente integrado às agruras do século XX começava a desaparecer. Nicolas Sarkozy era o primeiro presidente da Quinta República nascido após 1945 e, portanto, desprovido da imagem do trágico nas retinas.

Mas antes a situação já não ia bem. 2005, o “não” francês à Constituição europeia, sob a presidência de Jacques Chirac, foi um baque importante. 1992, o “quase não” francês a ingressar no sistema de Maastricht foi outro momento constrangedor. 1981, o “não” francês à reeleição do presidente Valery Giscard d’Estaing também segue complexo. Pois a disputa Giscard versus Mitterrand produziu duas narrativas que merecem meditação.

Giscard propôs ser Mitterrand um “homem do passado” ao passo que Mitterrand propôs ser Giscard um “homem do passivo”.

Observando-se com calma, esse “passivo” remetia a problemas fiscais, aumento de desemprego, da carga de impostos e afins. Todos problemas persistentes e anteriores a 1981. Para não dizer bem antes. Desde, ao menos, o fim dos Trinta Anos Gloriosos, que, de fato, terminaram em maio de 1968.

Maio de 1968 como outubro de 1962 levaram a autoridade do fundador da Quinta República ao descrédito. Da primeira vez, em 1962, o general conseguiu suportar e superar. Da segunda, em 1968, não. Como resultado, ele renunciaria onze meses depois sem deixar nenhum sucessor.

E por razões profundas que podem ser apreendidas na meditação atenta das concepções do general De Gaulle reportadas nesse fabuloso C’était de Gaulle de Alain Peyrefitte (Paris: Fayard, 1994).

Sob todos os seus aspectos, a Quinta República foi feita sob medita para o general. Essencialmente ao subentender que o exercício da presidência deveria ser, acima de tudo, um fato retórico e um fato moral. Onde a grandeur [grandiosidade] da França, tangida por sua história e por sua cultura, serviria de objetivo e obsessão. E a distinção de seu líder máximo conduziria o país acima dos arranjos do estado, do direito e dos partidos.

O presidente Mitterrand – único presidente francês a cumprir quatorze anos ininterruptos de presidência sob a Quinta República – levou esses preceitos às últimas consequências. Sendo a “quase” imposição de Maastricht a marca mais evidente dessa perspectiva estrutural e estruturante.

O presidente Chirac, por sua vez, tentou de tudo – e conseguiu – para seguir a senda do general. Sendo o “não” francês à invasão do Iraque a melhor mostra disso.

O presidente Macron chegou ao poder em 2017 ignorando De Gaulle, Mitterrand e Chirac e querendo ser Júpiter, o maior planeta do sistema solar. Mas, agora, por razões obtusas, após a dissolução de junho e moção de censura de dezembro, corre forte risco de terminar como Ícaro: singrando pelo desconhecido até ser definitivamente estraçalhado pelo seu misto de arrogância e ilusão.

 

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]

 

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Por que a Argentina não foi uma Austrália? - Fernando Nogueira da Costa, Pablo Gerchunoff, Pablo Fajgelbaum

Pablo Gerchunoff e Pablo Fajgelbaum:

 ¿Por qué Argentina no fue Australia?

A Argentina não se tornou uma Austrália basicamente por uma diferença nas instituições, não apenas pela mecânica do protecionismo e da oferta de commodities. Uma análise meramente econômica não dá conta da perda de oportunidades da Argentina no século XX. (PRA)

Argentina e Austrália

Imagem: Jan van der Zee

Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A Terra é Redonda, 6/11/2023

https://aterraeredonda.com.br/argentina-e-australia/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2023-11-06


Comentário sobre o livro que identifica os fatores que determinaram caminhos diferentes para países que tinham no início características em comum

A Argentina e a Austrália tinham características comuns. Desse modo, permitiam a comparação por historiadores, mas economistas e politicólogos tiveram de identificar os fatores determinantes da bifurcação posterior a 1930.

Um terceiro objeto de comparação – um terceiro país idealizado – é ao qual Pablo Gerchunoff e Pablo Fajgelbaum, no livro ¿Por qué Argentina no fue Australia?, se dedicam à descrição. Buscam extrair do emaranhado enredo da história os elementos presentes (convergentes e divergentes) em ambos os países.

Para fins puramente pedagógicos, apelam à licença para chamar Argentália para este país imaginário. Nessa mistura, ela possui uma variedade de climas, com predominância de temperaturas temperadas.

Na longa história do planeta, é uma nação jovem, pertencente àquele raro grupo conhecido como “regiões de colonização recente”, localizado no hemisfério Sul (Buenos Aires e Sydney estão no paralelo 34) e a grande distância dos centros de poder (Buenos Aires fica a 11.082 quilômetros de Londres e a 8.454 quilômetros de Nova York; Sydney, 16.997 e 15.989, respectivamente). Mas a Austrália está mais próxima da Ásia…

Argentália, desde a sua origem, teve uma pequena população e terras abundantes – em 1896, Argentina e Austrália eram os dois países com menor número de habitantes por quilometro quadrado de terras produtivas. Como consequência desta dotação de fatores de produção, com escassez de trabalhadores, teve salários relativamente elevados em relação à média mundial.

Como produtor de matérias-primas, Argentália viu os dois lados da moeda: durante décadas estabeleceu uma relação privilegiada com a potência dominante, exportando os produtos da terra necessitados pela Inglaterra para facilitar a sua industrialização e importando os insumos, bens de capital e mão de obra da qual necessitava para seu progresso. Contudo, desde a Grande Depressão na nova potência (Estados Unidos), o país sofreu em primeira mão o declínio do comércio de bens primários.

No calor da expansão do mercado interno e da evolução tecnológica dos processos produtivos, surgiram algumas manufaturas dentro de suas fronteiras, principalmente aquelas transformadoras das matérias-primas exportadas. Mas limitada como era pela escassez de mão de obra, Argentália não era um país bem equipado para enfrentar um processo de industrialização sustentado e diversificado.

Enquanto o intercâmbio global continuasse a ser vigoroso e a beneficiar à Argentália, o comércio livre seria conveniente para ambos os países, porque impulsionava o crescimento. Mas o protecionismo passará a ser conveniente para os seus trabalhadores porque, dadas as condições estruturais do país, a proteção econômica aumentará o emprego e os salários reais, e melhorará a distribuição de rendimentos.

O protecionismo melhorará o preço relativo daquilo importado. Considerando, devido à sua dotação original de fatores de produção – abundância de terras e escassez de trabalhadores –, Argentália importar bens relativamente intensivos em mão-de-obra, medidas protecionistas melhorariam o rendimento relativo do trabalho.

As políticas econômicas mais eficazes do ponto de vista do crescimento, por exemplo, comércio livre ou quase livre, determinariam uma distribuição de rendimento favorável os proprietários do fator de produção mais abundante, ou seja, a terra.

Essa lógica específica liga a dotação original de fatores à política econômica, tal como existe uma lógica ligando esta política à dinâmica do crescimento. Este conflito distributivo é característico de Argentália.

Quanto mais agudo for o conflito, mais distributivo será o protecionismo. E quanto mais protecionista for distributivo, mais intensivos em trabalho serão os setores industriais nascidos sob sua proteção, maior será a proporção do emprego total explicada pelas atividades protegidas e maior será a participação dos alimentos e lãs exportadas, componentes da cesta de consumo popular.

Quando o protecionismo distributivo já foi instalado como regime de política econômica, o risco é o stop and go, um termo familiar para argentinos e australianos. Quando se expandem, os setores industriais protegidos exigem importações (insumos e bens de capital) e não fornecem exportações, daí a sua contribuição para as exportações líquidas é baixa e pode até ser negativa.

Se as exportações de matérias-primas crescerem fracamente, haverá desequilíbrios recorrentes no balanço comercial e os governos tentarão corrigir com desvalorizações nominais. Mas, desta forma, os salários reais antes crescentes, devido ao protecionismo distributivo, serão reduzidos.

Enquanto os trabalhadores mantiverem a sua capacidade de resistência, isso resultará em aumento da volatilidade do crescimento e da inflação. Esta só será atenuada se as exportações de matérias-primas forem reavivadas ou os setores industriais começarem a dar uma contribuição positiva para as exportações líquidas.

Na fase de divergência, a Austrália teve um conflito distributivo e um ciclo de stop and go mais moderados diante dos da Argentina. Embora na Argentália o protecionismo seja distributivo, isso não implica as políticas distributivas terem necessariamente origem no protecionismo.

Na Austrália, assim como na Argentina, isto é, na Argentália, se existirem políticas distributivas não emergentes do protecionismo, o protecionismo será necessário para sustentá-las. Enfrenta, portanto, um conflito distributivo e um ciclo de stop and go, derivados da sua própria arquitetura econômica, moldada em grande parte pela natureza e pela geografia – e sobre ela a política tem influência: para o mal, para o bem.

Cada um desses dois países é uma versão de Argentália, mas em algo eles diferem desse mix e em algo eles diferem um do outro.

Historiadores e economistas australianos concentraram-se no declínio da Austrália em relação aos países mais desenvolvidos do planeta. Em 1900, o país tinha o maior rendimento por habitante do mundo. Em 1950, caiu para o terceiro lugar. Em 1970, era o oitavo e na década de 1990 já não estava entre os vinte primeiros.

Exceto em períodos esporádicos, durante o século XX, o produto per capita dos dois países cresceu mais lentamente diante o do painel das nações desenvolvidas. Na Austrália, a relação começa nos 170%, quando os seus poucos habitantes eram “os mais ricos do mundo”, em renda per capita, e termina nos 90%. A Argentina começa com 75%, mas no fim da série o seu produto relativo por habitante é de 35%. Só.

Mesmo depois da grave crise económica do início do século XXI, a Argentina continuou a ter uma economia de rendimento médio. De um total de 179 países, segundo dados do FMI, em 2016, a Argentina ocupava a 61ª posição no ranking de renda per capita.

Embora longe dos padrões de vida da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos, o rendimento por habitante argentino de 20.000 dólares (em PPC de 2016) era muito superior ao de quase todos os países africanos, e superior ao dos não-petroleiros do Médio Oriente, do Leste Europeu e as nações do Sul da Ásia.

Em 2021, com US$ 9.997 e em 66º lugar, Argentina já não era o país mais rico da América do Sul como foi durante a maior parte do século XX. Ficou abaixo do Uruguai (49º. US$ 17.029), Chile (53º. US$ 15.399) e Brasil (63º. US$ 11.136). O seu rendimento per capita era consideravelmente inferior ao de Portugal (37º. US$ 23.030) – o país mais pobre da Europa Ocidental – e ao das economias mais ricas da Europa Oriental.

Alerto: não se deve comparar renda per capita sem apresentar a população de cada país. Quaisquer commodities com alta cotação de mercado, dada por fatores exógenos ao país exportador de pequena população, pode lhe propiciar elevada renda per capita – sem ser ela bem distribuída.

Em 2008, dos quase 7,2 bilhões de habitantes do planeta, aproximadamente 5,8 bilhões viviam em países com rendimentos inferiores a US$ 18 mil, e quase um bilhão em países com rendimentos superiores a US$ 34 mil, considerados ricos. Em 2021, os países de renda média do mundo – 30 na faixa de renda per capita entre US$ 11.355 (média mundial) e US$ 27.871 (31º.) – eram poucos com população superior a 10 milhões.

Há cinco grandes grupos principais de commodities: petróleo, mineração, celulose, proteína animal e agrícolas. Em geral, as mais lucrativas, devido à demanda global e à volatilidade de preços, são na ordem: petróleo, minério de ferro, ouro, prata, cobre, café, soja, gás natural, milho. Falta ainda o gasoduto para conectar vaca muerta até o Brasil…

Conectaria essa região com grandes reservas de gás não convencional por 467 km a outro gasoduto já existente por meio de financiamento com o BNDES. Além disso, a Argentina possui 21% das reservas mundiais de lítio (a 3ª. maior do mundo) e é a 4ª. maior produtora mundial do mineral, “o petróleo branco”…

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]

Referência


Pablo Gerchunoff e Pablo Fajgelbaum. ¿Por qué Argentina no fue Australia? México, Siglo XXI Editores, 2019, 108 págs. [https://amzn.to/49m6pgV]

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Como a China escapou da terapia de choque (titulo equivocado) - Isabella M. Weber (A Terra é Redonda)

https://aterraeredonda.com.br/como-a-china-escapou-da-terapia-de-choque/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2023-08-10 

Como a China escapou da terapia de choque



Renê Burri, Antigo Palácio de Verão. Flores de lótus mortas no lago Kunming. Pequim, 19

Por ISABELLA M. WEBER*

Introdução do livro recém-lançado

A China contemporânea está profundamente integrada ao capitalismo global. No entanto, o estonteante crescimento chinês não levou o país à completa convergência institucional com o neoliberalismo. Isso desafia o triunfalismo do pós-Guerra Fria, que previa a “vitória incondicional do liberalismo econômico e político” em todo o mundo. Embora a era da revolução tenha terminado em 1989, isso não resultou na aguardada universalização do modelo econômico “ocidental”. Acontece que a mercantilização gradual facilitou o crescimento econômico da China sem que isso a levasse à assimilação generalizada. A tensão entre a ascensão da China e essa assimilação parcial define nosso momento atual e encontra suas origens na abordagem das reformas de mercado pela China.

A literatura sobre as reformas da China é ampla e diversificada. As políticas econômicas que o país adotou em sua transformação a partir do socialismo de Estado são bem conhecidas e investigadas. Muito negligenciado, no entanto, é o fato de que a mercantilização gradual e guiada pelo Estado chinês foi tudo menos uma conclusão inevitável ou uma escolha “natural”, predeterminada pelo excepcionalismo chinês. Na primeira década da “reforma e abertura”, sob Deng Xiaoping (1978-1988), o modo de mercantilização da China foi cinzelado em um debate acirrado. Economistas que defendiam uma liberalização ao estilo da terapia de choque lutaram pelo futuro da China contra aqueles que promoviam a mercantilização gradual a partir das margens do sistema econômico. Por duas vezes, a China tinha tudo preparado para um “big bang” na reforma dos preços. Por duas vezes, absteve-se de implementá-lo.

O que estava em jogo no debate da reforma de mercado é ilustrado pelo contraste entre a ascensão da China e o colapso econômico da Rússia. A terapia de choque – a prescrição política quintessencialmente neoliberal – havia sido aplicada na Rússia, o outro ex-gigante do socialismo de Estado. O prêmio Nobel Joseph Stiglitz atesta “um nexo causal entre as políticas da Rússia e seu fraco desempenho”. As posições da Rússia e da China na economia mundial inverteram-se desde que implementaram modos diferentes de entrada no mercado. A participação russa no Produto Interno Bruto (PIB) mundial caiu quase pela metade – de 3,7% em 1990 para cerca de 2% em 2017 –, enquanto a participação da China aumentou quase seis vezes – de apenas 2,2% para cerca de um oitavo da produção global (ver figura 1).

A Rússia passou por uma drástica desindustrialização, enquanto a China se tornou a notória fábrica do capitalismo mundial. A renda média real de 99% dos russos foi menor em 2015 que em 1991, enquanto na China, apesar do rápido aumento da desigualdade, esse número mais que quadruplicou no mesmo período, superando o da Rússia em 2013 (ver figura 2). Como resultado da terapia de choque, a Rússia teve um aumento de mortalidade acima de qualquer experiência anterior em um país industrializado em tempos de paz.

Dado o baixo nível de desenvolvimento da China em comparação com o da Rússia no início da reforma, a terapia de choque provavelmente teria causado um sofrimento humano em escala ainda maior. Teria minado, se não destruído, as bases para o crescimento econômico chinês. É difícil imaginar como seria o capitalismo global hoje se a China tivesse seguido o caminho da Rússia.

Apesar de suas importantes consequências, o papel fundamental que o debate econômico desempenhou nas reformas de mercado na China é amplamente ignorado. O famoso economista do desenvolvimento Dani Rodrik, professor de Harvard, representa a profissão de economista de forma mais geral quando responde a sua própria pergunta se “alguém [pode] nomear os economistas (ocidentais) ou [foi] a pesquisa que desempenhou um papel fundamental nas reformas da China” afirmando que “a pesquisa econômica, pelo menos como convencionalmente entendida”, não desempenhou “um papel significativo”.

Figura 1. Participação da China e da Rússia no PIB mundial (1990-2017)

Fonte: Banco Mundial, “GDP (Constant 2010 US$)”. The World Bank Data, 2019.

Figura 2. Renda média por adulto na China e na Rússia por quantis populacionais (1980-2015)

Nos capítulos seguintes, volto à década de 1980 e pergunto quais razões intelectuais desviaram a China da terapia de choque. Revisitar o debate acerca da reforma de mercado revela a economia da ascensão da China e as origens das relações entre o Estado e o mercado chineses.

O desvio da China em relação ao ideal neoliberal reside não no tamanho do Estado chinês, mas principalmente na natureza de sua governança econômica. O Estado neoliberal não é pequeno nem fraco, mas forte. Seu objetivo é fortalecer o mercado. Em termos básicos, isso significa proteger a liberdade de preços como mecanismo econômico central. Em contraste, o Estado chinês usa o mercado como ferramenta na busca de seus objetivos mais amplos de desenvolvimento.

Como tal, preserva um grau de soberania econômica que protege sua economia contra o mercado global – como demonstraram de forma contundente a crise financeira asiática de 1997 e a crise financeira global de 2008. Abolir essa forma de “isolamento econômico” é um objetivo de longa data dos neoliberais, e nossa atual governança global foi projetada para acabar com a proteção nacional contra o mercado global. O fato de a China ter escapado da terapia de choque mostrou que o Estado manteve a capacidade de isolar os setores estratégicos da economia – aqueles mais essenciais para a estabilidade e o crescimento econômico – à medida que se integrava ao capitalismo global.

Para estabelecer as bases de minha análise da escapada da China, primeiro recapitularei brevemente a lógica da terapia de choque.

A lógica da terapia de choque

A terapia de choque estava no centro da “doutrina de transição do Consenso de Washington”, propagada em países em desenvolvimento, Europa oriental e central e Rússia pelas instituições ligadas aos acordos de Bretton Woods. Em aparência, tratava-se de um amplo pacote de políticas que seriam implementadas de uma só tacada, para causar um choque nas economias planejadas, transformando-as de uma só vez em economias de mercado. O pacote consistia de: (i) liberalização de todos os preços em um único big bang; (ii) privatização; (iii) liberalização do comércio; e (iv) estabilização, na forma de políticas fiscais e monetárias rígidas.

As quatro medidas da terapia de choque, implementadas simultaneamente, deveriam, em teoria, formar um pacote abrangente. Uma análise mais atenta revela que a parte desse pacote que podia ser implementada de uma só tacada resume-se a uma combinação dos itens 1 e 4: liberalização de preços e austeridade estrita.

David Lipton e Jeffrey Sachs falaram pelos proponentes da terapia de choque de forma mais geral quando admitiram complicações com relação à velocidade da privatização na prática. Eles reconheceram a magnitude da tarefa de privatização em uma economia com propriedade principalmente pública. Comparando o grande número de empresas estatais nas economias socialistas com o histórico de privatizações no Reino Unido, apontaram que “Margaret Thatcher, a maior defensora mundial da privatização”, havia liderado a transferência de apenas algumas dezenas de empresas estatais para o setor privado no decorrer da década de 1980.

Assim, observaram que o “grande enigma é como privatizar uma vasta gama de empresas de maneira equitativa, célere, politicamente viável e suscetível de criar uma estrutura efetiva de controle corporativo”. Recomendaram vagamente que “a privatização talvez deva ser feita por muitos meios” e que o “ritmo deve ser rápido, mas não desenfreado”. O relatório conjunto sobre a economia da União Soviética também alerta contra o avanço muito rápido da privatização, “quando os preços relativos ainda não estão estabilizados”. Da mesma forma, a liberalização do comércio aos olhos dos defensores da terapia de choque tem como precondição a liberalização dos preços internos. Um big bang na liberalização dos preços aparece, assim, como condição tanto para a privatização quanto para a liberalização do comércio e constitui o verdadeiro “choque” da terapia de choque.

O que foi apresentado como um amplo pacote de reformas acabou sendo uma política extremamente enviesada para apenas um elemento da economia de mercado: a determinação de preços pelo mercado. No entanto, essa unilateralidade não foi mero resultado de viabilidade. A razão mais profunda do viés voltado para a liberalização de preços está no conceito neoclássico do mercado como um mecanismo de preços que se abstrai das realidades institucionais. De modo mais geral, na visão dos neoliberais, o mercado é a única forma de organizar racionalmente a economia, e seu funcionamento depende de preços livres.

De acordo com a lógica da terapia de choque como a entendem, por exemplo, Lipton e Sachs, a liberalização de todos os preços “de uma só vez” corrigiria os preços relativos distorcidos, que, em consequência da herança stalinista, eram muito baixos para a indústria pesada e os bens de capital e muito altos para a indústria leve, os serviços e os bens de consumo.

De maneira similar, o relatório conjunto sobrea economia da União Soviética realizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Mundial, pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (Berd) advertiu: “Nada será mais importante para a realização de uma transição bem-sucedida para uma economia de mercado do que a liberação dos preços para orientar a alocação de recursos. A liberalização ampla e antecipada dos preços é essencial para acabar com a escassez e os desequilíbrios macroeconômicos que afligem cada vez mais a economia”.

Essa liberalização generalizada dos preços precisaria ser combinada com uma política de estabilização para controlar o nível geral dos preços. Desde que macromedidas complementares fossem implementadas, a liberalização dos preços “poderia levar a um salto único nos preços, mas não a uma inflação contínua”, alegaram os defensores da terapia de choque. Segundo eles, as verdadeiras causas da inflação persistente nas economias socialistas estatais eram o excesso de demanda (em razão dos grandes déficits orçamentários), a “restrição orçamentária branda”, as políticas monetárias frouxas e os aumentos salariais resultantes da política de desemprego zero. Na visão deles, esses problemas poderiam ser aliviados com uma “forte dose de austeridade macroeconômica”, pois eram, em essência, monetários e não estruturais.

O “salto único nos preços” que se esperava como resultado da liberalização generalizada dos preços era bem-vindo, pois “absorveria o excesso de liquidez” e, desse modo, reforçaria a austeridade. Em outras palavras, um aumento no nível geral de preços desvalorizaria a poupança e, assim, reduziria o excesso crônico de demanda agregada que se experimentava nas economias socialistas. O custo de privar os cidadãos da modesta riqueza que haviam acumulado sob o socialismo de Estado era considerado um mal necessário. Com efeito, tratava-se de uma redistribuição regressiva que beneficiava as elites detentoras de ativos não monetários. A redistribuição de baixo para cima fazia parte da terapia de choque desde o início, desde a reforma monetária e de preços do pós-guerra na Alemanha ocidental, sob Ludwig Erhard. Forçar relações de mercado na sociedade da noite para o dia dependia da imposição de uma maior desigualdade.

A natureza e as estruturas das instituições predominantes que comporiam a nova economia de mercado não receberam muita atenção dos defensores da terapia de choque. O pacote recomendado por Lipton, Sachs e muitos outros, entre eles economistas do mundo socialista da época, não “criava” uma economia de mercado, como sugere o título do importante estudo desses economistas sobre a Polônia. Ao contrário, esperava-se que a destruição da economia de comando desse automaticamente origem a uma economia de mercado. Era uma receita para a destruição, não para a construção. Uma vez que a economia planificada estivesse “morrendo sob o choque”, esperava-se que a “mão invisível” operasse e, de maneira um tanto milagrosa, permitisse o surgimento de uma efetiva economia de mercado.

Essa é uma perversão da famosa metáfora de Adam Smith. Smith, um observador atento da Revolução Industrial, que se desenrolava diante de seus olhos, viu a “propensão humana a intercambiar, permutar e trocar uma coisa por outra” como o “princípio que dá origem à divisão do trabalho”, mas imediatamente advertiu que esse princípio era “limitado pela extensão do mercado”. O mercado, de acordo com Smith, desenvolvia-se devagar, à medida que eram construídas as instituições que facilitavam as trocas de mercado. Nesse processo, a mão invisível entraria em jogo apenas gradualmente e, com ela, o mecanismo de preços. Em contrapartida, a lógica da terapia de choque nos leva a crer que é possível um país “saltar para a economia de mercado”.

A destruição prescrita pela terapia de choque não se atém ao sistema econômico. Uma segunda condição deve ser cumprida: uma “mudança revolucionária nas instituições”. Ou, como disseram Lipton e Sachs, o “colapso do regime comunista de partido único era a condição sine qua non para uma transição efetiva para uma economia de mercado”. De fato, foi necessário o colapso do Estado soviético e do regime comunista de partido único em dezembro de 1991 para que o big bang pudesse ser implementado; o presidente russo Boris Iéltsin eliminou quase todos os controles de preços em 2 de janeiro de 1992. Sob o secretário-geral Mikhail Gorbatchov, a reforma radical dos preços estava na agenda desde 1987, mas nunca foi realizada, pois os cidadãos russos reclamavam em massa e os intelectuais alertavam sobre uma possível inquietação social. Gorbatchov tentou o gradualismo ao estilo chinês, mas em vão.

Prometendo ganhos de longo prazo, o big bang prescrevia males de curto prazo que afetavam imediatamente os interesses dos trabalhadores e das empresas, bem como dos departamentos governamentais. A liberalização radical dos preços tornou-se politicamente viável apenas após a dissolução do Estado soviético. “O colapso do regime comunista de partido único” acabou sendo, de fato, “a condição sine qua non” para o big bang, mas o big bang não conseguiu alcançar “uma transição efetiva para a economia de mercado”. Em vez do aumento pontual previsto no nível dos preços, a Rússia entrou em um longo período de inflação altíssima, queda na produção e baixas taxas de crescimento (ver figura 3).

Quase todos os países pós-socialistas que implementaram alguma versão da terapia de choque experimentaram uma recessão longa e profunda. Além da devastação documentada pelos indicadores econômicos (ver figura 2), a maioria dos indicadores de bem-estar, como acesso à educação, ausência de pobreza e saúde pública, entrou em colapso.

*Isabella M. Weber é professora de economia na University of Massachusetts Amherst, EUA.

Referência


Isabella M. Weber. Como a China escapou da terapia de choque. Tradução: Diogo Fernandes. Revisão técnica: Elias Jabbour. São Paulo, Boitempo, 2023, 476 págs (https://amzn.to/447aDoD).