PAU QUE NASCE TORTO MORRE TORTO
Uma análise da paralisia, do esboroamento e da final dissolução do governo anômalo de Jair Bolsonaro
Por Christian Lynch
04/jan/2023
O governo Bolsonaro foi coerente até o fim em sua anormalidade congênita. Quando estão para terminar, governos normais reconhecem o resultado eleitoral e se limitam a tocar a rotina administrativa, limitando suas ações políticas em facilitar o advento do novo governo. O presidente que sai cede protagonismo ao que entra. Mas não poderia terminar normalmente um governo que se elegeu em circunstâncias anormais e viveu na anormalidade e de anormalidade. Hoje está mais do que claro que Bolsonaro nunca passou de um parasita; um reacionário muito limitado intelectual e emocionalmente, que encontrou na lacração reacionária um meio de viver da política e o ensinou aos filhos. Natural que acreditasse, portanto, que sua mais do que improvável chegada ao cargo mais elevado da República, que aliás ocorreu por muitos fatores aleatórios, resultasse de alguma forma dos insondáveis desígnios do Senhor.
Não por outro motivo, recebeu sua derrota, mais do que com fúria, com absoluto estupor. Caiu prostrado como um tolo dirigente de grêmio estudantil; um principiante que nunca houvesse cogitado a possibilidade de ser vencido, usual tanto no esporte como na política. Prostração típica dos negacionistas contrariados, que atribuem seus reveses não às suas limitações, mas à alguma maquinação conspiracionista — no caso, a satânica fraude eleitoral operada pelo Poder Judiciário para eleger Lula. Depois da prostração, porém, veio o pânico diante da perspectiva de privação da imunidade e do foro privilegiado, que por mais de três décadas lhe serviram de barreiras à possibilidade de responder por seus crimes, e da impossibilidade de continuar aparelhando a Polícia Federal para impedir as investigações.
Dali por diante, Bolsonaro emudeceu. Passou a fazer um jogo duplo: enquanto conspirava com seus generais aposentados pelo golpe que o salvaria da cadeia, impedindo a posse de Lula, o ex-presidente se fazia de pobre diabo, doente e deprimido, para que o mesmíssimo “sistema” viesse a ter pena dele, em caso de fracasso no golpe. Há quem diga que a mobilização da porção mais fanática de seus eleitores nas portas dos quartéis, que partiram do golpismo até chegar ao terrorismo, bloqueando estradas, incendiando veículos e explodindo bombas, tinha por finalidade criar o ambiente de caos e de legitimidade que permitisse a invocação do art. 142 da Constituição. Como se sabe, a interpretação golpista do bolsonarismo permitiria às Forças Armadas, neste caso, fechar o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral e manter Bolsonaro no poder. Valdemar Costa Neto se incumbiria de sossegar a turma do Centrão. Segundo a imprensa, o golpe teria fracassado por falta de apoio externo e pela ação enérgica do ministro Alexandre de Moraes, que impôs ao partido do presidente uma multa de valor astronômica diante da tentativa de usar o Judiciário para melar sem provas o resultado da eleição.
A verdade é que a possibilidade de um golpe exitoso nunca passou de um delírio de reacionários que pouco entendem de política, e ainda acham que a sociedade brasileira está onde estava 60 anos atrás.
Desde que a possibilidade do golpe se esvaiu, consultando advogado atrás de advogado, obcecado com a certeza de que seria preso no momento em que Lula subisse a rampa do Planalto, Bolsonaro começou a planejar sua fuga para a Flórida. Seu governo, já paralisado, se esboroou e enfim se dissolveu à luz do dia de forma tão escandalosa como silenciosa. Toda a responsabilidade pela gestão da República recaiu sobre um governo eleito cujo quadro de ministros sequer estava completo. Enquanto os filhos do presidente também preparavam sua saída do país antes do ano novo, ministros saíam de férias ou pediam para ser exonerados, para não sofrerem a humilhação de serem exonerados por Lula — os ministros mais identificados com o bolsonarismo, como Heleno, Guedes, Faria, Queiroga. Acusado de ter coibido a locomoção do eleitorado lulista no dia da eleição e subsequente leniência com os bloqueios das estradas cometidos pelos bolsonaristas, o diretor da Polícia Rodoviária Federal foi rapidamente aposentado com proventos integrais. O estratagema visou prevenir sua eventual demissão a bem do serviço público e a confissão das ordens recebidas, o que não convém ao bolsonarismo já encrencado com a polícia. Aliados de Bolsonaro justificaram a fuga com o temor de um “pacote de maldades” com chegada de Lula. Pacote este que, olhando de perto, não passa de um “choque de legalidade” sobre a prática diuturna de crimes contra a república por parte de um governo que acreditou que jamais deixaria o poder.
Em seus estertores, os poucos atos praticados pelo governo foram os mais vergonhosos jamais praticados por qualquer governo na história brasileira. Enquanto tentava agradar a Lula revogando a portaria que impedia a entrada do presidente da Venezuela no Brasil, Bolsonaro criou sinecuras no exterior para premiar servidores da Polícia Federal que se prestaram ao papel de colaboracionistas e embalá-los na ilusão de que o braço da sindicância não chegaria à Europa. A possibilidade da revogação da benesse pelo novo governo já estava nos planos do velho, que contava assim com aumentar a frustração dos colaboracionistas, para que doravante sirvam de infiltrados vazando informações sigilosas em benefício dos bolsonaristas na oposição.
Mas a esvaecimento da cúpula bolsonarista nos últimos meses tem outra explicação, para além da repulsa ideológica e do medo. Todos sabiam que não tinham competência nem qualificação para ali estarem; que foram recrutados para ocupar seus cargos, parte por oportunismo, parte por falta de pessoal disposto a colaborar. Estavam ali tão espantados quanto a opinião pública, aproveitando a situação especial criada pela existência de um governo absolutamente anormal. Uma vez moribundo este governo, nada mais lógico que se retirassem rapidamente de cena, voltando para o buraco de onde haviam saído ou sido saídos. De modo que, quando chegou a última semana, já não havia quem respondesse pelo governo Bolsonaro. Não havia sequer autoridade para lamentar oficialmente a morte de Pelé, o brasileiro mais famoso de todos os tempos. Os meios de comunicação tiveram de entrevistar a futura ministra dos esportes, designada de véspera, porque já não havia ninguém no governo ainda vigente oficialmente.
O último pronunciamento de Bolsonaro seguiu seu hábito de se dirigir diretamente ao país por meio de uma “live” informal no YouTube e já entrou para a história brasileira como a manifestação mais patética jamais proferida por um presidente às vésperas de ceder o poder. Em síntese, tratou-se de um deprimido e acovardado lamento de um populista reacionário, que buscava explicar ao seu eleitorado seu fracasso no projeto de derrubar a república e, ao mesmo tempo, cheio de temores e cautelas de dizer qualquer coisa que pudesse incriminá-lo ainda mais. Enquanto defendeu a suposta “liberdade de expressão” dos bolsonaristas de bloquear estradas e pedir o golpe militar na porta dos quartéis, Bolsonaro tentou simultaneamente eximir-se de responsabilidade por todos os atos subversivos por eles praticados, como explodir bombas, tocar fogo em ônibus e assassinar adversários. Tentou, em suma, explicar ao seu eleitorado por que não conseguiu dar o golpe, sem dar pretexto para ser preso.
No fim, Bolsonaro chorou como um impotente, suscitando perplexidade, riso e desprezo de um lado e decepção e fúria de sebastianistas fanáticos que por dois meses aguardaram o golpe que não veio.
Poucas horas depois, na tarde do dia 30 de dezembro, Bolsonaro embarcou pela última vez no avião presidencial com destino à Flórida, onde foi encontrar se encontrar com a família no “exílio”. O confesso objetivo era de descansar, entendendo-se por tal passear na Disneylândia e ouvir conselhos de Donald Trump sobre como continuar a enganar seu eleitorado fora do poder e escapar tanto da inelegibilidade quanto da prisão. A história da fuga de Bolsonaro é, claro, reflexo fiel de sua própria história como militar e político: aquela de um homem abaixo do medíocre, de caráter fascistóide e covarde, que descobriu como viver às custas do contribuinte, vivendo um casamento moralista de fachada, cercado por uma camarilha de militares de baixa patente, que o alimenta dia e noite com teorias da conspiração.
Quando se imaginava que nada pior poderia ainda acontecer até a posse do novo presidente, o respeitável público foi surpreendido com a notícia de que o vice-presidente, o general Mourão, aproveitaria o vácuo de poder de 24 horas para ocupar como presidente interino no dia 31 de dezembro o vazio deixado por Bolsonaro. Desejoso de catalisar para si a frustração do eleitorado radical com a fuga ignominiosa do “Mito” para seu exílio na Disneylândia, Mourão se comportou como herdeiro dos generais-presidentes da ditadura militar e convocou uma cadeia nacional de rádio e televisão, na qual buscou apresentar-se ao público conservador como um Figueiredo redivivo: autoritário, mas pretensamente comprometido com a ordem constitucional.
Era um modo de contrastar com a imagem patética de golpista molambento e chorão ostentada por Bolsonaro na véspera. Depois de criticar simultaneamente o Centrão, o Supremo Tribunal Federal e o próprio Bolsonaro, que teria jogado a responsabilidade de sua incompetência sobre as Forças Armadas, Mourão concluiu colocando-se à disposição dos bolsonaristas arrependidos como “o verdadeiro Bonaparte”, ou seja, um militar autoritário respeitável, autêntico herdeiro do regime militar, capaz de capitanear como senador eleito a oposição conservadora a Lula e, quem sabe, ganhar seu voto como candidato a presidente da República daqui a quatro anos. Nada disso retirou do pronunciamento o caráter do mais fantástico oportunismo. No fim das contas, Mourão aproveitou seus quinze minutos como interino para fazer uso dos poderes presidenciais para propaganda eleitoral, de forma escancaradamente antirrepublicana.
O fato de que o antirrepublicanismo tenha no final se voltado contra o próprio Bolsonaro só foi possível porque este foi um governo disfuncional de fio a pavio; um governo que nasceu anômalo e anômalo morreu. Como já dizia minha avó, pau que nasce torto morre torto.
* Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor IESP-UERJ