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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Em memória de José Augusto Lindgren Alves: um diplomata incomum - Gelson Fonseca Jr. (Revista do CEBRI)

Revista do CEBRI: 

Policy Papers

Em memória de José Augusto Lindgren Alves: um diplomata incomum

Homenagem ao diplomata que contribuiu para a promoção dos direitos humanos

Resumo

Memória sobre a atuação diplomática e a contribuição intelectual de José Augusto Lindgren Alves para a promoção dos direitos humanos.

Palavras-chave:

direitos humanos; Nações Unidas; Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial; Conferência de Viena sobre Direitos Humanos.
Foto: José Augusto Lindgren Alves. Por Maria Leonor de Calasans/Mediateca IEA-USP

José Augusto Lindgren Alves foi, durante cinquenta anos, funcionário diplomático de carreira, tendo ingressado no serviço exterior em 1968. Exerceu chefias na Secretaria de Estado, foi embaixador na Bulgária, Hungria e Bósnia-Herzegovina, além de cônsul-geral em São Francisco e Barcelona. Sua trajetória profissional é impecável. Porém, a memória de sua contribuição para a vida pública brasileira, se nasce na carreira, vai muito além do Itamaraty. Lindgren tornou-se uma referência necessária na defesa e na promoção dos direitos humanos no Brasil e no plano internacional. Rever seu trabalho e seu pensamento, além do tributo a um diplomata incomum, serve também para lembrar a permanente necessidade de renovar a causa que defendeu. Ele nos deixou em maio de 2022, vítima da Covid-19[1]

A sua aproximação ao tema dos direitos humanos começa quando é transferido em 1985 para a Missão do Brasil nas Nações Unidas e passa a trabalhar na Terceira Comissão da Assembleia Geral, encarregada das questões sociais. No Brasil, a luta pela democratização saíra vitoriosa, e os direitos humanos foram uma de suas bandeiras inspiradoras. O artigo 4º da Constituição de 1988 os consagrava como princípio orientador das relações internacionais do país. Não obstante, apesar do início do processo de adesão do Brasil em 1985 a pactos regionais e universais na área, a política externa ainda dava passos tímidos ao lidar com o assunto na agenda dos organismos multilaterais. Havia também dificuldade em aceitar o diálogo com as organizações não governamentais, ainda vistas como intrusas quando alertavam para violações dos direitos humanos. E a adesão a convenções não integrava automaticamente a questão no metabolismo da política externa brasileira. Faltava atualizar o discurso e o desempenho diplomático. Aí se desenha o papel crucial que Lindgren vai desempenhar.

Em Nova York, ele descobre a sua afinidade com o tema, certamente reflexo da generosidade que marcava a sua personalidade. Ao voltar para o Brasil, apresenta, em 1989, ao Curso de Altos Estudos (um requisito à promoção na carreira) uma tese pioneira – As Nações Unidas e os Direitos Humanos. Entre 1990 e 1995, comanda a Divisão de Nações Unidas, quando convence a chefia do Itamaraty de que os direitos humanos mereciam um lugar institucional de mais autoridade. Nasce, assim, o Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, do qual Lindgren foi o primeiro diretor. Nessa função, e com a experiência prévia de ter sido um dos principais negociadores do documento final da Conferência Mundial de Direitos Humanos (ONU 1993), Lindgren teve participação ativa na preparação das posições brasileiras e nos processos negociadores das demais Conferências Globais das Nações Unidas na área social A agenda era, em certa medida, nova para a diplomacia brasileira. Íamos lidar com combate ao racismo, direitos das mulheres, assentamentos urbanos, desenvolvimento social, assuntos de interesse direto e permanente da sociedade civil. Um dos instrumentos que o Departamento de Lindgren usou para reforçar a legitimidade das posições brasileiras foi a criação de comissões que, sistemática e organizadamente, debatiam com as ONGs e os movimentos sociais quais os rumos que deveriam orientar a atuação da diplomacia brasileira nas conferências. A prática havia sido ensaiada na Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável de 1992 e, depois de plenamente implantada, serviu para transformar a maneira como o Itamaraty se aproximava da sociedade e respondia aos desafios postos pelo regime democrático. 

Lindgren tem, portanto, papel fundamental para situar a política externa na agenda internacional em que a problemática dos direitos humanos ganhava relevância crescente. Com sua tese e a produção intelectual que se seguiu, explica o tema, mostra suas implicações políticas e sociais, e, especialmente, esclarece porque interessava ao Brasil entrar, de forma aberta, no debate que se abria. A resposta diplomática teria consequências para definir a identidade internacional do país. Com a criação do Departamento, consegue que o argumento intelectual encontre solução institucional adequada. E, ao explorar caminhos novos de diálogo com a sociedade organizada, ganham consistência e legitimidade as posições diplomáticas que o Brasil levaria aos foros multilaterais. 

Ainda nesta fase, é preciso sublinhar a atuação de Lindgren, ao lado do embaixador Gilberto Saboia, outro diplomata notável, na Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993. Foram decisivos para  superar a distância de visões dos grupos que se formaram. Como lembra Benoni Belli, em expressivo depoimento, Lindgren, na delegação chefiada por Saboia, ajudou a “salvar do naufrágio a conferência” ao  encontrar fórmulas de equilíbrio aceitáveis para todos os países. E acrescenta, “a noção de legitimidade da preocupação internacional com a situação dos direitos humanos em qualquer país, um dos princípios consagrados na Declaração e Programa de Ação de Viena, tem as digitais inconfundíveis de Lindgren” (Belli 2022). A parceria se repete em 2001 na Conferência de Durban contra o racismo, que se origina de uma proposta de Lindgren, feita em 1994, na condição de membro (perito independente) da antiga Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, principal órgão subsidiário da então Comissão de Direitos Humanos da ONU. A proposta foi aprovada por consenso.

Depois de Viena, a sua trajetória intelectual se consolida. Em 1994, publica Direitos humanos como tema global, prefaciado por Celso Lafer. O livro tem repercussão positiva nos meios acadêmicos e é recebido por elogio entusiasmado da professora Maria Victoria Benevides (1994) em uma resenha para a revista Lua Nova (da qual, aliás, ele se torna colaborador frequente). Nessa fase, suas reflexões são especialmente voltadas para a dimensão multilateral do debate. Livros como Arquitetura internacional dos direitos humanos (Alves & Bicudo 1997) e Relações Internacionais e temas sociais: a década das conferências (2001) se tornam, pela combinação de conhecimento, rigor e sensibilidade diplomática, textos de consulta obrigatória para quem estuda a evolução da diplomacia brasileira de direitos humanos. A partir dos anos 2000, Lindgren amplia o horizonte de seus interesses para além da dimensão diplomática. Começa a olhar para os direitos humanos como uma questão civilizacional, envolvendo escolhas que definiram os rumos da  modernidade. Impressiona a maneira como Lindgren dialoga com os clássicos, como Weber, Marx e Hannah Arendt, e os pensadores modernos, como Bobbio, Zizek, Lyotard, Alain Badiou, Derrida, Amartya Sen, Bernard-Henry Levy e, entre os brasileiros, Abdias Nascimento, Flávia Piovesan, Celso Lafer e Paulo Sergio Pinheiro. Dois livros marcam o período – Os direitos humanos e a pós-modernidade (2005) e É preciso salvar os direitos humanos! (2018)[2]

A participação em reuniões e comitês das Nações Unidas deu a ele prestígio pessoal e respeito internacional. Assim, entre 2002 e 2017, foi eleito e reeleito para sucessivos mandatos como perito do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), o órgão formado por especialistas independentes encarregado de monitorar a implementação, pelos Estados-parte, de suas obrigações sob a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em vigor desde 1968. Entre 2018-2020, Lindgren foi designado secretário-executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH). A presença no CERD ofereceu um lugar privilegiado para acompanhar e opinar sobre as transformações na pauta de direitos humanos e suas implicações para as instituições multilaterais. Viu por dentro como funciona um órgão multilateral e escreveu artigos notáveis sobre os limites das instituições para aplicar as normas e resoluções na área de direitos humanos e as dificuldades para lidar com os conflitos de interpretações sobre o seu alcance. 

A coletânea de artigos que selecionou para o seu último livro abrange um amplo arco temporal, 1996 a 2018, e, por isso, é um registro valioso do balanço que faz Lindgren da história da luta pelos direitos humanos que começa em 1948 com a Declaração Universal. Ele sublinha as conquistas visíveis. Os direitos da mulher foram reconhecidos como integrantes dos direitos humanos universais; impôs-se o respeito aos homossexuais (e agora à comunidade LBGTQIA+); a escravidão foi equiparada aos crimes contra a humanidade; a expressão afrodescendentes se firmou nos foros internacionais. No âmbito do direito brasileiro, os crimes contra a honra deixaram de ser aceitos; aboliram-se conceitos de filhos bastardos e adulterinos; o próprio adultério deixou de ser crime; a união homoafetiva foi reconhecida como entidade familiar, regida pelas mesmas regras que se aplicam à união estável de casais heterossexuais; iniciaram-se as ações afirmativas para compensar desigualdades históricas. Cada uma dessas conquistas tem uma história própria, singular. Porém, a inspiração universalista dos direitos humanos, ao criar uma moldura ideológica consistente em defesa da dignidade individual, está presente em todas. 

A história de conquistas não iludiu o sentido realista das percepções de Lindgren, e os mais recentes escritos trazem uma medida de desencanto. Não por acaso, o título do último livro soa como um apelo: “é preciso salvar os direitos humanos!”. 

A história de conquistas não iludiu o sentido realista das percepções de Lindgren, e os mais recentes escritos trazem uma medida de desencanto. Não por acaso, o título do último livro soa como um apelo: “é preciso salvar os direitos humanos!”. Ele explica as razões essenciais da necessidade e da urgência de agir. Mostra como os consensos de Viena se tornaram frágeis e há sinais de retrocesso em conquistas que pareciam garantidas. Sublinha que a criação de uma frondosa burocracia multilateral no campo dos direitos humanos torna difícil acompanhar o que fazem os muitos órgãos e agências e, sobretudo, cobrar-lhes eficácia. Examina como emergem sinais e práticas de intolerância e xenofobia em sociedades que estiveram na vanguarda da promoção dos direitos humanos. O episódio das torturas em Guantánamo é analisado e suas consequências, medidas. A isto se soma o essencialismo multiculturalista, que traz o risco de fragmentar a perspectiva essencialmente universalista que Lindgren defendia como a plataforma necessária para organizar a melhor defesa dos direitos humanos. Ele oferece contribuições significativas para mostrar como as pautas identitárias, válidas em si, devem ter a abrangência para fertilizar e reforçar a luta que seria essencialmente universal. Teve a coragem intelectual para enfrentar questões conceituais intrincadas e socialmente polêmicas. São sempre equilibradas e sensíveis as respostas que sugere.

A soma de experiências de Lindgren é única; não houve outros brasileiros que tenham atuado em tantas frentes na luta pelos direitos humanos. Como diplomata, foi pioneiro para compreender o tema e formular a política externa brasileira de direitos humanos. Percebeu a necessidade de mudanças institucionais e liderou a sua implantação. Formou diplomatas. Negociou textos fundamentais que tecem os padrões contemporâneos da legitimidade internacional. Colaborou ativamente para a redação do I Plano Nacional de Direitos Humanos. O que aprendeu como diplomata é elaborado em reflexões conceitualmente sólidas que ficaram registradas em livros e artigos, sempre lidos com proveito. Tornou-se, por mérito pessoal, perito de órgão das Nações Unidas e olha por dentro o sistema multilateral e suas limitações. Divulga o que sabe em dezenas de intervenções em seminários, entrevistas, palestras e, recentemente, webinars.  O reconhecimento público se exprime quando recebe o Prêmio Nacional Heleno Fragoso de Direitos Humanos em 2001 e a Medalha Sergio Vieira de Mello, de Direitos Humanos e Direito Humanitário, em 2013. 

É exatamente a diversidade da experiência e a maneira como a viveu que o tornam um diplomata incomum. Foi além do Itamaraty, serviu à política externa e serviu ao país. Teve autoridade quando falava de direitos humanos. Deixa uma obra intelectual importante, mas deixa sobretudo um exemplo de integridade na dedicação a uma causa necessária quando se pensa em mundo mais igual, mais tolerante, melhor. Seu legado fica “à disposição da cidadania para a obtenção do avanço social com justiça (Alves 2018, 11).”  

Notas

[1] Agradeço os comentários de Celso Lafer, Benoni Belli e Silvio Albuquerque, que enriqueceram o texto. Eram amigos de Lindgren e, cada um à sua maneira, contribuiu para a história da promoção dos direitos humanos no Brasil. 

[2] Parte desta memória é baseada no prefácio que fiz para o livro. 

Referências Bibliográficas

Alves, José Augusto Lindgren. 1989. As Nações Unidas e os direitos humanos. Tese apresentada no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio-Branco. 

Alves, José Augusto Lindgren. 1994. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Editora Perspectiva. 

Alves, José Augusto Lindgren. 2001. Relações internacionais e temas sociais: a década das conferências. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI). 

Alves, José Augusto Lindgren. 2005. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva. 

Alves, José Augusto Lindgren. 2018. É preciso salvar os direitos humanos! São Paulo: Perspectiva. 

Alves, José Augusto Lindgren & Hélio Pereira Bicudo. 1997. Arquitetura internacional dos direitos humanos. São Paulo: FTD Educação.  

Belli, Benoni. 2022. “José Augusto Lindgren Alves: diplomata e intelectual público”. International Law Agendas, 6 de janeiro de 2022. http://ila-brasil.org.br/blog/jose-augusto-lindgren-alves/.  

Benevides, Maria Victoria de Mesquita. 1994. “Os direitos humanos como valor universal”. Lua Nova 34: 179-195. https://doi.org/10.1590/S0102-64451994000300011.  

Nações Unidas. 1993. Vienna Declaration And Programme Of Action. World Conference On Human Rights, Vienna, 14 a 25 de junho de 1993. https://www.ohchr.org/en/about-us/history/vienna-declaration.  

Recebido: 26 de outubro de 2022

Aceito para publicação: 11 de novembro de 2022 

Copyright © 2022 CEBRI-Revista. Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença de Atribuição Creative Commons, que permite o uso irrestrito, a distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o artigo original seja devidamente citado.


sábado, 28 de maio de 2022

José Augusto Lindgren Alves: Direitos Humanos e Política Externa (Instituto Diplomacia para Democracia)

 

Mais homenagens a J. A. Lindgren Alves - Silvio Albuquerque e Ronaldo Dunlop

 Um diplomata pranteado por todos: José Augusto Lindgren Alves



Escrevi, ainda no calor da emoção, uma nota sobre o Lindgren dirigida a jovens diplomatas em grupo de whatsapp de que que participo. Nenhum deles, creio, o havia conhecido pessoalmente. Felizmente, os que fazem parte deste grupo da ADB, puderam ler os lindos depoimentos dos Embaixadores Saboia e Benoni, além do de vários outros colegas. 


Compartilhei, em mensagem privada, mais cedo o texto abaixo com o Benoni, o Tadeu Valadares e outros amigos queridos. Aqui vai meu testemunho, levemente modificado, para os colegas que o conheceram e para os que não tiveram essa sorte:


Lindgren teve o cuidado de registrar em obras históricas toda a evolução da diplomacia multilateral em DH, que ele ajudou a construir. São livros essenciais. Há ali relatos do mundo que desbravaram dentro do Itamaraty ele e outros colegas no início da redemocratização do Brasil, em meados dos anos 80. São testemunhos de um tempo que se foi, de uma certa embriaguês com os direitos humanos que se concretizavam e transformavam ideais traçados na fundação da ONU em instrumentos de ação para as vítimas de violação. Os anos 80 e 90 foram anos mágicos de exaltação do multilateralismo e construção dos “andares de cima” do mundo com que meu avô sonhou e também ajudou a construir em outro espaço social como militante antirracista e parlamentar nos anos do pós-guerra.


Lindgren viveu isso no auge da maturidade profissional. Eu o conheci ali, começando a dar meus primeiros passos na carreira. Foi sempre generoso, leve, por vezes incisivo quando necessário na defesa de suas ideias. Era respeitado e querido pelas representantes das mais respeitadas ONGs mundiais de direitos humanos. Tinha erudição e charme. 


Mas havia algo mais. Era transparente e admitia sem pestanejar os muitos problemas que enfrentávamos na promoção dos DH no plano doméstico. Esse “dedo na ferida”, essa admissão do muito a ser feito no Brasil traduzia transparência, tudo que um interlocutor da sociedade civil pode esperar de um diplomata, sobretudo os que atuam com DH.


No plano pessoal, tinha a graça e a musicalidade típicas de um bom brasileiro produto da classe média de Niterói, nossa querida cidade natal.

Ele, Gilberto Saboia, Tadeu Valadares, Toninho Salgado, Marcos Pinta Gama, Abelardo Arantes, Marcela Nicodemos e outros colegas serviram de inspiração para mim e alguns outros diplomatas que nos entregamos ainda hoje à diplomacia multilateral dos DH, ao sonho utópico, para alguns, dos direitos humanos. Neste momento da história brasileira e do Itamaraty, um diplomata e uma figura humana como Lindgren fará muita falta.

Considero o Embaixador Saboia a grande referência em diplomacia de DH que o Itamaraty gerou na segunda metade do século XX. JALA foi um colaborador fiel e brilhante do Emb. Saboia em momentos cruciais da construção da Declaração e Plano de Ação de Viena, instrumento que de fato universalizou e ampliou os princípios consagrados na Declaração Universal de 48. Na histórica Conferência Mundial de Durban contra o Racismo, em 2001, lá estavam os dois novamente, desta vez ao lado de uma das maiores e mais representativas delegações oficiais do Brasil em conferências da ONU sobre DH. Além de habilidoso negociador (virtude reconhecida por respeitados especialistas estrangeiros em DH, como Marc Bossuyt, ex-membro do CERD e ex-juiz da Corte Constitucional da Bélgica), Lindgren foi de longe o mais brilhante diplomata brasileiro teórico da arte da diplomacia multilateral dos direitos humanos.


Num tema que me interessa particularmente, o combate ao racismo e à discriminação racial, ele deixou sua marca na atuação no sistema das Nações Unidas como perito independente em vários comitês, especialmente o CERD. Sua trajetória ali também está registrada em livros. E nos anais do secretariado do CERD. Como seu orgulhoso sucessor no CERD, testemunhei pessoalmente o apreço dos colegas peritos que com ele conviveram em Genebra.


Há tanto a dizer do Lindgren. Mas tenho muita resistência a obituários. 

Quero lembrar da vida do Lindgren, e não falar da sua morte. Importa lembrar o seu sorriso maroto, sua inteligência fina, sua leveza e sua coragem moral de desafiar convenções. Era apaixonado pela vida, pela música, pela literatura, pelo bom papo, pela sua filha Juliana, de quem falava sempre.

Partiu cedo.

Lindgren não veio ao mundo a passeio. Viveu intensamente. Deixou sua marca. Lutou contra a corrente numa instituição que nem sempre atribuiu o devido valor a temas diplomáticos no campo dos direitos humanos.


Semeou o terreno, no qual cresceram árvores que geraram frutos, na vida pessoal (o que de fato importa) e no Itamaraty. Lutou pelas boas causas. E curtiu a vida.

Isso não é pouca coisa.
Silvio José Albuquerque 


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               Foi, com imensa tristeza, que Regina e eu recebemos a notícia do falecimento do José Augusto.  Diferentes circunstâncias contribuíram para que nos aproximássemos, ainda mais, do JALA, como era carinhosamente chamado por muitos colegas, sobretudo os da nossa turma do IRBr.  

               José Augusto desempenhou um papel ativo e importante em prol da criação do Departamento de Direitos Humanos do MRE.  Foi, aliás, o seu primeiro chefe.  Naquela ocasião, integrei a equipe inicial da então recém criada Secretaria   Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça,  e pude testemunhar o fluido relacionamento entre o titular da Secretaria, José Gregori, e o nosso querido JALA.   Tais vínculos continuaram depois da saída de ambos, já que Gregori foi sucedido na Secretaria por dois grandes nomes do ramo: o Embaixador Gilberto Sabóia e o Professor Paulo Sérgio Pinheiro.  Regina, por outro lado, teve o privilégio de contar com a vasta contribuição do José Augusto, na área dos direitos humanos, quando foi a Representante Permanente junto `a ONU em  Genebra (Delbrasgen).  Ele, por sua experiência no setor, era frequentemente convidado a participar de eventos, no âmbito do Alto  Comissariado e outras entidades.

               Dotado de ampla cultura geral e de uma concepção humanista da História, José Augusto nos legou muitos textos, não só como o clássico "Os Direitos Humanos Como Tema Global" mas também sobre outros assuntos como "Os Novos Balcãs" que bem reflete sua enriquecedora passagem pela região.  Que tais obras e tantas outras  entre livros, relatórios, ensaios e artigos sejam igualmente apreciadas pelas novas gerações.  Grande perda.  Fará muita falta.  Nossos, Regina e meus, abraços de solidariedade `a família.

Ronaldo Dunlop

Resenhas de livros de José Augusto Lindgren Alves - Paulo Roberto de Almeida



 Abaixo, algumas das mini-resenhas dos livros de José Augusto Lindgren Alves, que preparei para o Boletim da ADB.


Tive a honra de recebê-lo em 2018 no IPRI, para uma palestra por ocasião do lançamento da segunda edição de seu grande livro sobre a Década das Conferências: 

 José Augusto Lindgren Alves: 

Os direitos humanos na pós-modernidade 

(São Paulo: Perspectiva, 2005, 254 p.).


 Depois de Os Direitos Humanos como Tema Global, publicado em 1994 e reeditado em 2003, Lindgren Alves comparece com sua continuidade natural, neste livro que resgata dezenas de ensaios escritos e publicados ao longo de sete anos. Trata-se, não apenas de direitos humanos, estrito senso, mas também de problemas como o da discriminação racial e o do “multiculturalismo”, no qual são evidenciadas as diferenças entre as situações nos EUA e no Brasil. O capítulo conclusivo, razoavelmente pessimista, indica que os valores universais associados aos direitos humanos vêm sendo atacados disfarçadamente por vários tipos de violadores de diversas tradições, sob argumentos de tipo “culturalista” ou supostamente para evitar sua “politização” nos órgãos da ONU. Mais patética é a recusa pelos EUA do Tribunal Penal Internacional, o que pode comprometer gravemente o seu funcionamento. Será que a história está andando para trás?

 


José Augusto Lindgren Alves: 

Viagens no Multiculturalismo – O comitê para a eliminação da discriminação racial, das Nações Unidas, e seu funcionamento 

(Brasília: Funag, 2010, 256 p.) 


Uma larga experiência com o tratamento multilateral dos direitos humanos autoriza o autor a tratar com notável maestria do CERD. O discurso multiculturalista é uma criação do Ocidente, pelo menos enquanto ideologia, diz Lindgren, que não deixa de refletir sobre os problemas suscitados pela passagem dos direitos humanos tradicionais, isto é, individuais, aos direitos coletivos, de minorias. O exagero das propostas pode levar a novas formas de segregacionismo e de etnocentrismo, ou seja, ao “racismo” de todos. Uma boa visão histórica e argumentos de bom-senso podem revelar como organismos bem-intencionados, como o CERD, podem resvalar para situações absurdas. O autor admite a validade de ações afirmativas, sem um viés racial mais explícito, o que o coloca do lado dos multiculturalistas moderados.

 


José A. Lindgren Alves

Os novos Bálcãs

(Brasília: Funag, 2013, 161 p.; ISBN 978-85-7631-478-3; Coleção Em Poucas Palavras)

 

         


   Os “novos Bálcãs” talvez se pareçam um pouco com os “velhos”, no sentido em que os muitos povos eslavos – católicos, ortodoxos, ou islamizados – voltaram a se dividir em meio a conflitos por vezes sanguinários. Depois de algumas décadas de socialismo, quando eles estavam “unidos” pela razão ou pela força, eles estão prontos para receber novamente o Orient Express, que ia das terras cristãs ao império dos otomanos justamente atravessando essas terras complicadas. Lindgren Alves esclarece como a fragmentação étnica reconstruiu a balcanização, com alguns massacres no caminho. Um alerta de como a Europa também pode recriar os velhos demônios da guerra e da violência étnica. O chauvinismo está na origem dessa utopia estilhaçada. Uma síntese que se apoia na melhor bibliografia e num conhecimento direto da região.

 

Lindgren Alves também possui estes livros, publicados pelo IPRI, pela Funag, ou por editoras comerciais: 


Cadernos do IPRI - Número 10 . 1994 . O sistema internacional de proteção dos direitos humanos e o Brasil (memória da Conferência Mundial de Direitos Humanos)

Descrição: A realização da Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena, o papel proeminente do Brasil naquele evento e a persistência de graves e frequentes violações desses direitos em nossa sociedade exigem uma reflexão aprofundada sobre o tema, que leve à adoção de medidas adequadas pelas autoridades competentes. Tais medidas, imprescindíveis ante os anseios do próprio povo brasileiro, são hoje um imperativo também pela ótica internacional. 


Detalhes: 
Autor(a)Antônio Augusto Cançado Trindade | José Augusto Lindgren Alves
EditoraFUNAG - Fundação Alexandre de Gusmão
AssuntoDireitos Humanos
Ano1994

Disponível neste link: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1037-cadernos_do_ipri_numero_10_1994_o_sistema_internacional_de_protecao_dos_direitos_humanos_e_o_brasil_memoria_da_conferencia_mundial_de_direitos_humanos_








José Augusto Lindgren Alves, In Memoriam - Gilberto Vergne Saboia


 Linda homenagem do embaixador Gilberto Saboia ao nosso colega recentemente falecido, autor de muitos livros de direitos humanos e diplomata especializado nessa área, como destacado nesta digna mensagem de adeus a um grande diplomata, amigo sincero. Escrevi algumas resenhas de seus livros, que transcreverei em próximas postagens.

Paulo Roberto de Almeida

Mensagem do embaixador Gilberto Saboia na lista da Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB), em 27/05/2022:

Queridos colegas e amigos,
Com grande pesar recebi a notícia do falecimento do grande amigo e companheiro de jornadas profissionais, Embaixador José Augusto Lindgren Alves. Ele exerceu muitos postos em sua carreira diplomática, sempre com sucesso e brilho. Mas foi no âmbito da diplomacia multilateral onde se notabilizou e, mais particularmente, nos temas de direitos humanos e questões sociais. José Augusto foi um dos primeiros chefes da Divisão de Direitos Humanos e o primeiro chefe do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, onde ficou vários anos, durante o período em que se sucederam as grandes conferências internacionais sobre direitos humanos e temas sociais que marcaram a década dos anos 90. 
Foi o condutor, no Itamaraty, da preparação dessas conferências e se esmerou na articulação com os demais órgãos governamentais brasileiros interessados, sem excluir os poderes legislativo e judiciário e o ministério público. Estávamos, convém lembrar, num período de entusiasmo com o exercício das liberdades de associação e de promoção de uma democracia mais inclusiva, oriundos da Constituição de 1988. Espero que esta chama volte a brilhar . Seu dom de comunicação facilitou o diálogo com a sociedade civil que passou a se incorporar na preparação das conferências . 
Nossa amizade e proximidade se reforçaram durante a preparação e realização da Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993, em Viena. Nessa conferência coube-me o delicado papel de presidir o Comitê de Redação, órgão ao qual incumbia negociar a declaração e o plano de ação, longos textos que estavam eivados de graves divergências. Busquei sem sucesso atrair algum delegado de outro pais para dividir o encargo dirigindo um grupo para avançar o exame do plano de ação. Finalmente o José Augusto assumiu o papel de coordenador do Plano de Ação, com o que deu uma contribuição inestimável a que fosse alcançada a aprovação consensual dos documentos, garantindo o êxito da Conferência.
José Augusto exerceu também cargos eletivos em órgãos de peritos da ONU como o Comitê sobre Eliminação da Discriminação Racial (CERD) . 
Outro capítulo importante da sua trajetória foi o extenso número de obras que publicou sobre os temas de sua especialidade e sua disponibilidade para dar palestras e realizar seminário com o ânimo de compartilhar seus conhecimentos e sua experiência. Associo-me ao tributo que, merecidamente lhe dedicou FUNAG. 
José Augusto era de fácil comunicação e tinha uma alegria contagiante… 
Meus sentidos pêsames a sua esposa Edna e a sua filha Juliana .
Sinceramente,
Gilberto Saboia 








quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Sobre o "comunista" João Cabral de Melo Neto, segundo o chanceler acidental - Paulo Roberto de Almeida

O João Cabral "comunista" da era MacCarthy no Itamaraty:

 Muitos anos atrás, às vésperas de mais um funesto aniversário do AI-5 – o instrumento da ditadura que cassou meus professores no recém ingressado curso de Ciências Sociais da USP, em parte responsável por minha saída do Brasil um ano depois, para um longo autoexílio na Europa, onde dei prosseguimento a meus estudos –, fui contatado por professores do Rio de Janeiro para colaborar numa obra projetada em torno do fatídico instrumento da ditadura, especificamente seu impacto no Itamaraty.

Argumentei que eu pouco poderia oferecer, pois em 1968, quando foi editado o mais violento ato "jurídico" da ditadura, eu era um jovem estudante, recém aprovado no vestibular da USP, tendo ingressado no Itamaraty dez anos depois, sem muito conhecimento do que havia ocorrido na Casa durante os anos de chumbo do regime militar. Tentei sugerir outros nomes, e cheguei a contatar diversos embaixadores aposentados que haviam sido contemporâneos do arbítrio, alguns até vítimas dele. Nenhum quis aceitar. Sob insistência dos organizadores acabei aceitando colaborar, e fiz algumas pesquisas e recolhi alguns depoimentos sobre o assunto.

Mas, para isso, fui pesquisar alguns casos anteriores, inclusive o da funesta investigação em torno da "célula Bolivar", no Itamaraty dos anos 1950 (segundo governo Vargas, em plena Guerra Fria), quando João Cabral de Melo Neto e outros foram afastados do serviço diplomático, por medidas que depois foram corrigidas pelo STF. Mas eu apenas tratei perfunctoriamente do caso, como se poderá verificar pelo trabalho abaixo.

Transcrevi, na postagem anterior, o excelente artigo do embaixador José Augusto Lindgren Alves, "Religião e liberdades truncadas", que discorre sobre as muitas impropriedades do discurso do chanceler acidental na formatura da turma João Cabral de Melo Neto do Instituto Rio Branco, uma excelente peça analítica, da qual recomendo leitura atenta.

Meu ensaio histórico está disponível, e transcrevo abaixo apenas as partes pertinentes ao "comunista" João Cabral de Melo Neto, remetendo os interessados no AI-5 ao link para o texto completo.

Quanto ao medíocre, indigno e insultuoso discurso do chanceler acidental, ele está aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=eeEawfB7X-g

O anticomunismo no Brasil tem causas reais, em 1935, notadamente, mas muito do anticomunismo posterior é hidrofobia de fanáticos ignorantes que, como os canalhas de Samuel Johnson, se enrolam na bandeira da pátria para suas causas extremistas.

Paulo Roberto de Almeida

Eis a ficha de meu trabalho:

1847. “Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: o Itamaraty em tempos de AI-5”, Brasília, 31 dezembro 2007, 32 p. Ensaio histórico sobre os efeitos institucionais e o impacto do AI-5 na política externa para colaboração a livro coletivo. Publicado em Oswaldo Munteal Filho, Adriano de Freixo e Jacqueline Ventapane Freitas (orgs.), 'Tempo Negro, temperatura sufocante': Estado e Sociedade no Brasil do AI-5 (Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2008; 396 p. ISBN 978-85-7866-002-4; p. 65-89). Relação de Publicados n. 866.


Eis o sumário:  

1. Introdução: uma Casa conservadora, dotada de pensamento avançado

2. Pré-história: o Itamaraty nos tempos da Guerra Fria

3. Política Externa Independente: uma vocação recorrente

4. O realinhamento de 1964 a 1967: um interregno incômodo

5. Revolução na revolução: o Itamaraty na tormenta

6. Segurança e desenvolvimento: colaboração, ainda que relutante

7. Pós-história: os efeitos de longo prazo 

Referências bibliográficas

Aqui o link para o ensaio na íntegra em Academia.edu:

https://www.academia.edu/44479134/Do_alinhamento_recalcitrante_a_colaboracao_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_

Agora os trechos pertinentes ao João Cabral, nesta seção:

2. Pré-história: o Itamaraty nos tempos da Guerra Fria

O ambiente maniqueísta do pós-guerra, com a necessidade de posicionamento em favor do “Ocidente” na época da Guerra Fria, marcou várias gerações de intelectuais e de expoentes da classe ilustrada, entre os quais se situavam diplomatas e altos funcionários do Estado. Próximos dos intelectuais e acadêmicos progressistas, muitos diplomatas se identificavam com as teses “neutralistas” ou “não-alinhadas” defendidas pelos propugnadores de uma “política externa independente”, em voga no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Tratava-se de uma ruptura com os princípios “tradicionais” da diplomacia conservadora dos anos de entre-guerras e do início da Guerra Fria, quando o alinhamento da política brasileira com os interesses americanos era, no entender dos historiadores, proverbial. O governo Dutra teria sido o protótipo do alinhamento subserviente, embora outras interpretações minimizem a substância mesma da convergência entre as posições diplomáticas do Brasil e as dos EUA. [Nota: Cf. Paulo Roberto de Almeida, “A diplomacia do liberalismo brasileiro”, in José Augusto Guilhon de Albuquerque, Ricardo Seitenfus, Sergio Henrique Nabuco de Castro (orgs.), Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990), 2a. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; vol. 1: Crescimento, Modernização e Política Externa, p. 211-262.]

Essa época, marcada pelo maniqueísmo da era McCarthy nos EUA, produziu efeitos no Itamaraty, onde alguns diplomatas foram acusados de serem simpatizantes do Partido Comunista e do bloco socialista, tendo sido objeto de inquérito sumário e sancionados abusivamente, antes de serem absolvidos pela ação da Justiça. Em 1953, com base em denúncia de colega de carreira, Amaury Banhos Porto de Oliveira, Paulo Augusto Cotrim Rodrigues Pereira, Jatyr de Almeida Rodrigues e Antonio Houaiss foram submetidos a processo administrativo no Itamaraty, ao passo que outro diplomata, João Cabral de Mello Neto, foi objeto de inquérito a cargo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), como autor de crimes contra a segurança nacional. [Nota: O episódio teve início em 1952, com base em violação de correspondência pessoal por diplomata, que repassou o assunto ao jornalista Carlos Lacerda, o qual, por sua vez, denunciou a existência de uma célula comunista no Itamaraty, “Bolívar”, à qual estariam vinculados vários diplomatas, entre eles o ministro Orlando Leite Ribeiro: “Em inquérito presidido pelo embaixador Hildebrando Accioly, o Ministro Leite Ribeiro e os demais diplomatas foram inocentados da acusação pois se comprovou a inexistência da referida ‘célula’, fruto da maquinação de grupos anti-getulistas e do mesmo diplomata (...) que denunciou meu pai, Cotrim e outros colegas”; correspondência eletrônica do embaixador Guilherme Luiz Leite Ribeiro (Rio de Janeiro, 31/12/2007).]

Eles foram afastados do Itamaraty, sem qualquer defesa, pelo presidente Getúlio Vargas, que os colocou em disponibilidade inativa, não remunerada, com base em sumária “exposição de motivos” do Conselho de Segurança Nacional. A condenação dos quatro primeiros foi anulada em 1954 pelo Supremo Tribunal Federal, por vício de forma e cerceamento da defesa, “menos [João] Cabral, que teve de obter mandado de segurança separado, após o arquivamento do inquérito policial”.[Nota: Correspondência eletrônica do embaixador Amaury Banhos Porto de Oliveira (Campinas, 02/01/2008). Elementos da acusação de 1953 figuram no livro dedicado aos 80 anos de Antonio Houaiss, coordenado por Vasco Mariz: Antonio Houaiss: uma vida: homenagem de amigos e admiradores em comemoração de seus 80 anos, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995; ver, em especial, considerações de natureza jurídica sobre o processo no artigo de Evandro Lins e Silva, “Punições por convicção política”, p. 60-73; reproduzido em Comunicação & política, Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, vol. VIII, n. 1, nova série, janeiro-abril 2001, p. 197-206.]

Ler a íntegra do meu ensaio neste link: 

https://www.academia.edu/44479134/Do_alinhamento_recalcitrante_a_colaboracao_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_


Religião e liberdades truncadas: sobre o discurso do chanceler acidental na formatura do IRBr - José Augusto Lindgren Alves

Importante artigo do embaixador José Augusto Lindgren Alves comentando os muitos equívocos, as impropriedades políticas, os desvarios intelectuais e os absurdos diplomáticos do estarrecedor discurso do chanceler acidental na formatura da turma do Instituto Rio Branco que tinha como patrono o grande poeta João Cabral de Melo Neto.

Paulo Roberto de Almeida


RELIGIÃO E LIBERDADES TRUNCADAS: política externa e direitos humanos refletidos no curioso discurso do chanceler aos formandos do Instituto Rio-Branco

J. A. Lindgren-Alves*

Foi muito comentado o discurso do ministro das relações exteriores na cerimônia de formatura do Instituto Rio-Branco, em 22 de outubro, pela revolta que causou. As críticas, todas pertinentes diante dos absurdos enunciados, foram provocadas sobretudo pelo abuso do nome escolhido pelos formandos como patrono da turma, João Cabral de Melo Neto, assim como pela interpretação positiva do fato de o Brasil se ter tornado um pária na comunidade internacional. A par da falta de autocrítica de um profissional inexpressivo, autor de livro desconhecido, ao se declarar “diplomata e poeta” como João Cabral, o personagem que ocupa a cadeira do Barão de Rio-Branco sem qualquer ponto notável na carreira, declarou não ver problema, mas virtudes, no presente isolamento diplomático do Brasil. Insistindo numa ideia sui generis de liberdade, afirmou que “o Brasil de hoje fala de liberdade através do mundo”, para assinalar que os Presidentes Bolsonaro e Trump haviam sido, talvez, os únicos chefes de Estado a tocarem no assunto na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas deste ano.

Não vou tratar aqui das referências descabidas a João Cabral de Melo Neto, nem analisar a situação de nosso país no exterior. Tanto o primeiro como o segundo aspectos do discurso foram examinados, com justa indignação, por órgãos de imprensa sérios e personalidades competentes de diversos setores. Atenho-me, pois, à acepção exposta de liberdade e aos efeitos que ela reflete na política externa, com foco na área dos direitos humanos.

O conceito de Liberdade

Para esse estranho titular de uma pasta política laica voltada para a ação no exterior, “liberdade” nada tem a ver com o direito de ser livre em condições normais, de pensar, de se informar, de agir, de viver dignamente, no sentido que todos conhecem. Tampouco são as liberdades fundamentais, definidas com os direitos essenciais de todos os seres humanos, que abarcam o trabalho remunerado, a educação, a saúde, a alimentação, a moradia e a segurança social, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Qualificando esse documento multilateralista basilar de “verdadeiro hino à liberdade”, o orador anti-multilateralista o cita com indicação de artigos escolhidos, que, isolados e simplificados na enunciação, escondem mais que revelam o que ele deseja. Nem mesmo a “liberdade religiosa” expressamente mencionada corresponde à “liberdade de pensamento, consciência e religião”, prevista no Artigo 18 da Declaração Universal, cujo espírito abrange necessariamente o direito de não ter ou não seguir qualquer religião.

Nas palavras do ministro:

“A liberdade do ser humano reside na sua espiritualidade. Sem ela o homem é escravo do ciclo inútil do viver e do morrer. Sem ela o intelecto torna-se puramente calculador desprovido de poesia e criatividade. Sem a espiritualidade o homem perde o bom-senso e a capacidade de navegar num mundo de difíceis julgamentos morais, caindo em um dos extremos: ou a permissividade absoluta ou esse estranho hiper moralismo da atualidade, muito mais restritivo que o da era vitoriana.”[1] 

Por mais que eu próprio critique os paradoxos da cultura contemporânea, de um lado libertária e provocativa, de outro intolerante e castradora, denunciando exageros contraproducentes com o  objetivo de garantir o desenvolvimento dos direitos[2], não sei bem a que se refere o hermético pregador como “hiper moralismo muito mais restritivo do que o da era vitoriana”. Quanto a sua obsessão transcendental, ela se encontra mais explicada alhures, em artigo arcano de sua autoria intitulado “Liberdade Religiosa, Religião Libertadora”, publicado em 2019 em seu pretensioso blog Metapolítica 17:

“No meu caso, já fui ateu: mas quando comecei a ler e estudar sobre religião (inclusive, mas não apenas, a cristã), quando comecei a entender, quando comecei a compreender a profundidade do incompreensível, quando um dia li que os monges do Monte Atos eram capazes de enxergar o brilho da luz incriada, foi aí que voltei a crer.”[3]

Quase “contracultural” no irracionalismo místico, reminiscente dos cultos orientais em moda no Ocidente desde os tempos dos hippies, a teosofia do chanceler, que tem horror à teologia da libertação, enquadra-se na vertente neointegrista atual do catolicismo, diferenciada do integrismo tradicionalista de Bento XVI pela assimilação de posições protestantes em áreas específicas[4]. Carolas que não seguem o Santo Padre, opositores do profundamente humano Papa Francisco, os neointegristas, pelo menos no Brasil, se assemelham e se associam sem pruridos ao neopentecostalismo evangélico para impor “fundamentos” de ambas as fés ao Estado. Para eles, a questão preocupante da liberdade religiosa é menos o problema real das perseguições a cristãos em sociedades de religião diferente do que aquilo que denominam “cristofobia”: aversão patológica a Jesus Cristo como divino redentor. Perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, esse “fenômeno psíquico”, mencionado pelo neologismo no discurso do ministro aos formandos, já havia sido abordado um mês antes pelo Presidente da República, que nunca sabe bem o que está falando. Em alocução formal redigida provavelmente pelo próprio chanceler, disse ele:

“Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia. (…) O Brasil é um país cristão e conservador, e tem na família sua base.”[5]

De que o Brasil seja predominantemente cristão não há dúvida. Horror a Cristo não creio tenha tido em qualquer período da História. Que seja conservador é uma asserção recente, parcial, com generalização forçada. A inclinação pela sensualidade exuberante sempre foi cultivada como característica do povo brasileiro, alegre e desinibido. Os políticos de centro e de esquerda sempre foram eleitos com posições sociais relativamente progressistas. Quanto à família, reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos como “núcleo natural e fundamental da sociedade” com direito à proteção pelo Estado, no Brasil como em todo o Ocidente é, há anos, crescentemente unicelular, ou desfeita e recomposta por casamentos sucessivos. Tem sido valorizada também em formas heteróclitas, rejeitadas pelos evangélicos puristas, por católicos no estilo da Opus Dei espanhola e por falsos moralistas de formações variadas, em cuja rejeição agressiva a homossexuais em geral concentram seu excesso freudiano de frustações inseguras.

Embora Bolsonaro tenha lembrado mais tarde a expressão “cristofobia” ao condenar a recente queima de igrejas no Chile e os atentados terroristas na França, “cristófobos” para o chanceler são, em primeiro lugar, os compatriotas que não seguem posições da extrema direita. Considerados comunistas ateus, corruptos e impatrióticos, participantes de uma conspiração demoníaca do “marxismo cultural” para dominar o mundo por meio do “globalismo” sob controle da ONU, esses indivíduos “cristófobos”, responsabilizados pelo secularismo do Estado, seriam inimigos a ser exterminados. Isso se evidencia no discurso do chanceler aos formandos pela condenação insistente do marxismo como ameaça terrível. Curioso é que isso ocorra e seja assimilado com verdade num período histórico em que o projeto emancipatório comunista se apresenta, no máximo, como causa de nostalgia para os seguidores mais próximos de Marx.[6] Pensam e agem da mesma forma que o chanceler a ministra da mulher, família e direitos humanos e todos os atuais ocupantes de funções oficiais brasileiras na cultura, educação e políticas públicas. A eles se acrescem os “bolsominions” das redes sociais e os grupos violentos que se manifestam nas ruas e na internet contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, esteios institucionais necessários da democracia em qualquer parte do mundo.

Paranoia de fazer inveja ao teatro do absurdo, de Ionesco a Becket com toques de Campos de Carvalho, nosso surrealista tropical, essa teoria de conspiração como estratégia propagandística para semear o pânico tem figuras destacadas em pensadores da nova direita euro-americana Alt Right. Entre eles se pretende inserir o brasileiro Olavo de Carvalho, professor de invencionices eruditas pela internet, autor de best sellers demolidores de tudo e de todos, menos dele próprio, com palavrões e um lustro de sapiência cabotina. Entre seus seguidores se filiam o chanceler trumpista e o filho do Presidente quase embaixador em Washington, os quais, juntamente com um assessor presidencial evangélico de política externa, formam o núcleo duro de nossa atual antidiplomacia.

Exercida a contragosto por um Itamaraty em frangalhos, remanejado até no organograma interno para acomodar a ideologia e as características pessoais do profissional titular – mais moço e menos experiente que os chefes de departamentos antes existentes, hierarquicamente superiores, postos à disposição, como nem o regime militar cogitou fazer -, a nova política externa, inteiramente inspirada pela chamada franja lunática da direita norte-americana, reforçada pela arrogância de Donald Trump, absorve postulações de pastores fundamentalistas e católicos integristas, determinados a transformar o Brasil numa nação monolítica orientada pela religião. Tal orientação é implementada sub-repticiamente em inciativas domésticas, como a diretriz de educação em decreto de 27 de outubro sobre Estratégias de Desenvolvimento, que manda ensinar o direito à vida desde a concepção e os “direitos do nascituro”, ou as portarias do ministério da saúde que exigem comunicação constrangedora à polícia para quem precisa recorrer à prática legal de aborto em gravidez por estupro. Na área externa, ademais da participação do Brasil, como ouvinte, em comissão norte-americana criada pelo Secretário de Estado Mike Pompeo sobre “direitos inalienáveis” oriundos da história do país, destaca-se nossa ridícula rejeição a qualquer referência a “gênero” em resoluções sobre saúde ou direitos da mulher. Inflexível a críticas porque convicto – não sem razão – de que a popularidade do presidente se deve em grande parte às posturas agressivas contra o “politicamente correto”, o chanceler faz questão de afirmar, com frequência, ter sido para isso, para o desmonte de nossas posições estabelecidas, que o Governo foi eleito. 

Liberdade religiosa como regressão

No esforço para tornar o país uma utópica “cidade de Deus”, fundada na literalidade das Escrituras mais do que na obra de Santo Agostinho, era esperado que as prioridades se dirigissem à “esfera de valores”. Foi com esse objetivo em mente que o Presidente desde quando candidato anunciava uma intenção “revolucionária”, quase “leninista”: primeiro destruir tudo, ou seja, tudo o que foi feito nessa esfera depois do regime militar, para depois construir à sua maneira. Tal esfera, a par da questão do meio ambiente, internacionalmente prioritária por motivos de sobrevivência terráquea, é precisamente a outra em que o Brasil redemocratizado teve papel decisivo na diplomacia multilateral do final do Século XX: a dos direitos humanos. Falo dela, sem ânimo exclusivo, porque a conheço bem, consciente de que colegas coevos da carreira diplomática podem fazer o mesmo sobre as áreas onde atuaram.

Na esfera dos direitos humanos, ao contrário do que antes dizia a esquerda e hoje é dito pela direita, por conta da soberania nacional, temendo ou não intervenções armadas da “ingerência humanitária” que o Brasil sempre combateu, o máximo que se deseja é dispor de referências civilizadoras para todos os países. A responsabilidade por tais direitos foi e continua a ser dos Estados. Estes, quando retrocedem em posições previamente aceitas, fazem-no em desapreço pela credibilidade que tinham. A coerção é moral, não policial, muito menos bélica. A impossibilidade de intervenções externas pela força não elimina, porém, o acompanhamento internacional legítimo, nem a força moral das recomendações acordadas. Tampouco descarta a eventualidade de boicotes unilaterais de potências, ou sanções coletivas, como o embargo de armas, aprovadas pelo Conselho de Segurança.  

Fato pouco conhecido numa sociedade auto-despiciente como a brasileira, que atribui tudo de bom ao exterior, sobretudo aos Estados Unidos, foi a ação de nossa diplomacia que salvou a Conferência de Viena sobre direitos humanos, de 1993; que garantiu os estatutos do Tribunal Penal Internacional na Conferência de Roma, de 1998; que propôs na ONU, em 1994, uma conferência contra a discriminação racial na África do Sul, realizada em Durban, em 2001; que conseguiu a aprovação dos documentos finais de Durban, cujo Programa de Ação forneceu as bases da luta antirracista seguida no mundo inteiro até hoje. Foi também a atuação do Brasil que propiciou pontos de entendimento no Cairo, em 1994, sobre direitos reprodutivos e saúde da mulher, na conferência sobre população, assim como em Pequim, em 1995, para o reconhecimento dos direitos da mulher na categoria dos direitos humanos[7]. Tínhamos, portanto, importante soft power. Se os avanços doutrinários desse conjunto de eventos foram desvirtuados depois, e creio ter sido eu dos primeiros a expressar preocupação com isso, os atores principais foram outros, todos contrários ao Iluminismo e ao marxismo, em nome de um progressismo pós-moderno de matriz norte-americana.

Depreciar o que o Brasil soberano fez de positivo e orientar a política externa para destruir aquilo que se conseguiu em favor dos direitos humanos como fator indispensável ao progresso social, somente se pode explicar por um fanatismo semelhante ao que ameaçava as próprias conferências, associado em muitos aspectos às crenças do terror islâmico. Não surpreende, assim, que os aliados atuais desse Brasil dito “conservador” sejam líderes ocidentais de arrogância chocante. Ou Estados de religião historicamente antagônica ao cristianismo, com leis que desprezam a igualdade cristã divulgada pelo apóstolo São Paulo, e práticas cristianofóbicas frequentemente mortíferas. Nesses Estados cuja nacionalidade é construída a partir da religião pré-colonial monoteísta, liberdade religiosa inexiste, nem tem chance de existir. Tanto porque a fé dominante é excludente das outras, como porque os opositores aos governos, vistos como corruptos e vendidos ao Ocidente, são correligionários radicalizados contra tudo que não seja sua facção extremista.

Na medida em que os extremismos opostos se assemelham, as teocracias islâmicas mais medievalistas podem até servir de modelo aos ocidentais da extrema direita. Para o chanceler brasileiro, inimigo do Iluminismo desde Voltaire e do multilateralismo da ONU, nada parece melhor que a Idade das Trevas. Em sua linguagem labiríntica, supostamente translúcida, com citações em grego de fácil entendimento para o “povo que escandaliza os intelectuais prudentes e sofisticados”, brasileiros “severinos” que ele diz homenagear com o termo adjetivado de João Cabral, os formandos do Instituto Rio-Branco este ano não estariam entrando numa carreira, que ele chama de “burocracia”. Estariam ingressando numa cruzada, “numa grande demanda, no sentido medieval (sic), numa aventura nacional e mundial de proporções históricas” pela essência do Homem, da Pátria e da Civilização. Os “djihadistas” islâmicos, que derrubaram o World Trade Center, escravizam e estupram mulheres yazidis e esfaqueiam fiéis em igrejas da França, pensam da mesma forma. Com a diferença de que os “djihadistas” se consideram combatentes numa guerra cósmica. Nosso ministro é modesto. Fala apenas numa “batalha de gigantes” (sic).

O preço que pagamos

Na política externa brasileira quase tudo retrocedeu. Da independência mantida patrioticamente por várias décadas à submissão completa e voluntária, não aos Estados Unidos como potência, mas ao Governo de Donald Trump, passou-se num piscar de olhos. Na área dos direitos humanos, somos agora contrários aos direitos reprodutivos, rejeitamos a igualdade de gênero, demonstramos tamanha ojeriza pela possibilidade de aborto que tratamos como suspeitos os casos previstos em lei. Fazemos até vista grossa à mutilação genital feminina, quando a oposição a ela se insere em propostas de políticas que insinuem a prática disseminada do aborto como questão de saúde pública. Usamos os direitos civis para condenar a Venezuela de Maduro, mas não apoiamos monitoramento das Filipinas de Duterte. Ignoramos direitos de povos indígenas. Desconsideramos recomendações da Organização Mundial da Saúde sobre a pandemia, que minimizamos como “gripezinha” enquanto os contágios prosseguem. Rejeitamos preocupações da Alta Comissária da ONU com os direitos humanos no Brasil, e defendemos o regime instalado pelo golpe de 64 como movimento patriota, de salvação do país. Resta saber o que mais faremos. Já copatrocinamos com os Estados Unidos de Trump uma “Declaração do Consenso de Genebra”, formalizada em 22 de outubro com assinaturas de trinta e um Estados, entre os quais Arábia Saudita e Sudão do Sul, repressores aos direitos da mulher, um compromisso de atuação conjunta contra o aborto. Continuaremos seguindo a comissão dos direitos inalienáveis inventada pelo Secretário Mike Pompeo? Será que descartaremos a Declaração Universal laica de 1948 para abraçarmos uma eventual declaração religiosa de extrema direita? Imitaremos os Estados Unidos com seus habituais dois pesos e duas medidas na área dos direitos humanos e liberdades fundamentais, protegendo aliados violadores e condenando adversários? Continuaremos a funcionar como seus procuradores em Genebra desde que Trump decidiu, em 2019, retirá-los do Conselho de Direitos Humanos?    

O preço dessas reviravoltas, sem falar nas mudanças em outras áreas cruciais, foi o abandono da imagem do Brasil como país confiável, cumpridor das obrigações assumidas. O custo complementar deve parecer pequeno: o sacrifício de uma das instituições nacionais antes mais respeitadas, inclusive pelas Forças Armadas, e um enorme desgosto, que a maioria dos diplomatas brasileiros na ativa têm dificuldade de engolir. Numa carreira de Estado necessariamente hierárquica, sem órgão classista e com um único chefe poderoso, pensar em resistência sem punição arrasadora é mera ilusão de fora. Embaixadores de volta ao Brasil mais antigos que o ministro de Estado, antes aproveitados em chefias de departamentos importantes, passaram a ficar sem funções, nos corredores ou em casa, sem sequer serem claramente contrários às políticas correntes. Para a maioria dos profissionais em serviço restam o desgosto pessoal e a vergonha perante colegas estrangeiros. Assim como se exaspera o desespero inerme de aposentados que veem seu trabalho destruído.

Para justificar a política externa atual, o discurso do ministro, no dia 28 de outubro, lembrou, com enlevo agradecido, que seu chefe, presidente do Brasil “cristão e conservador”, na noite da vitória, em 2018, havia proclamado: “Vamos libertar o Itamaraty!” Parte dessa libertação escravista, na novilíngua de George Orwell às avessas, ocorreu. Os diplomatas formandos, que tiveram o bom senso de escolher um grande patrono, que se cuidem. O desafio mental e moral nas condições que já enfrentam é imenso. Só há um conselho a dar: resistam no que for possível! Quando o pesadelo passar, o trabalho de reconstrução será deles.

    Brasília, 31 de outubro de 2020

Notas:

[1] http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas

[2] v. meus livros “Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, Cap.6, e É Preciso Salvar os Direitos Humanos, São Paulo, Perspectiva, 2005 e 2018 respectivamente.

[3]https://www.metapoliticabrasil.com/post/liberdade-religiosa-religiao-libertadora

[4] Para a definição do neointegrismo, baseio-me em Gabriela Arguedas Ramírez, “Ideologia de gênero, neointegrismo católico e fundamentalismo evangélico: a vocação antidemocrática”, Revista Rosa 2, série 1, São Paulo, 2020.

[5]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/09/22/leia-a-integra-do-discurso-de-bolsonaro-na-assembleia-geral-da-onu.htm

[6] V. Enzo Traverso, Melancolia de Esquerda: Marxismo, História e Memória, Belo Horizonte, Editora Âiné Aut-aut. Nr. 2., 2018. V. também os encontros, seminários internacionais e esforços pessoais variados de Slavoj Zikek, Alain Badiou e outros para definir o que pode ser comunismo na situação presente.

[7] Para a descrição desses fatos v. J.A. Lindgren-Alves, A Década das Conferências, 2ª Ed. Brasília, FUNAG, 2018. Especificamente sobre Durban, v.Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, Cap.6.

Referência imagética:

Discurso do ministro Ernesto Araújo à turma João Cabral de Melo Neto. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eeEawfB7X-g