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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Sobre o "comunista" João Cabral de Melo Neto, segundo o chanceler acidental - Paulo Roberto de Almeida

O João Cabral "comunista" da era MacCarthy no Itamaraty:

 Muitos anos atrás, às vésperas de mais um funesto aniversário do AI-5 – o instrumento da ditadura que cassou meus professores no recém ingressado curso de Ciências Sociais da USP, em parte responsável por minha saída do Brasil um ano depois, para um longo autoexílio na Europa, onde dei prosseguimento a meus estudos –, fui contatado por professores do Rio de Janeiro para colaborar numa obra projetada em torno do fatídico instrumento da ditadura, especificamente seu impacto no Itamaraty.

Argumentei que eu pouco poderia oferecer, pois em 1968, quando foi editado o mais violento ato "jurídico" da ditadura, eu era um jovem estudante, recém aprovado no vestibular da USP, tendo ingressado no Itamaraty dez anos depois, sem muito conhecimento do que havia ocorrido na Casa durante os anos de chumbo do regime militar. Tentei sugerir outros nomes, e cheguei a contatar diversos embaixadores aposentados que haviam sido contemporâneos do arbítrio, alguns até vítimas dele. Nenhum quis aceitar. Sob insistência dos organizadores acabei aceitando colaborar, e fiz algumas pesquisas e recolhi alguns depoimentos sobre o assunto.

Mas, para isso, fui pesquisar alguns casos anteriores, inclusive o da funesta investigação em torno da "célula Bolivar", no Itamaraty dos anos 1950 (segundo governo Vargas, em plena Guerra Fria), quando João Cabral de Melo Neto e outros foram afastados do serviço diplomático, por medidas que depois foram corrigidas pelo STF. Mas eu apenas tratei perfunctoriamente do caso, como se poderá verificar pelo trabalho abaixo.

Transcrevi, na postagem anterior, o excelente artigo do embaixador José Augusto Lindgren Alves, "Religião e liberdades truncadas", que discorre sobre as muitas impropriedades do discurso do chanceler acidental na formatura da turma João Cabral de Melo Neto do Instituto Rio Branco, uma excelente peça analítica, da qual recomendo leitura atenta.

Meu ensaio histórico está disponível, e transcrevo abaixo apenas as partes pertinentes ao "comunista" João Cabral de Melo Neto, remetendo os interessados no AI-5 ao link para o texto completo.

Quanto ao medíocre, indigno e insultuoso discurso do chanceler acidental, ele está aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=eeEawfB7X-g

O anticomunismo no Brasil tem causas reais, em 1935, notadamente, mas muito do anticomunismo posterior é hidrofobia de fanáticos ignorantes que, como os canalhas de Samuel Johnson, se enrolam na bandeira da pátria para suas causas extremistas.

Paulo Roberto de Almeida

Eis a ficha de meu trabalho:

1847. “Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: o Itamaraty em tempos de AI-5”, Brasília, 31 dezembro 2007, 32 p. Ensaio histórico sobre os efeitos institucionais e o impacto do AI-5 na política externa para colaboração a livro coletivo. Publicado em Oswaldo Munteal Filho, Adriano de Freixo e Jacqueline Ventapane Freitas (orgs.), 'Tempo Negro, temperatura sufocante': Estado e Sociedade no Brasil do AI-5 (Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2008; 396 p. ISBN 978-85-7866-002-4; p. 65-89). Relação de Publicados n. 866.


Eis o sumário:  

1. Introdução: uma Casa conservadora, dotada de pensamento avançado

2. Pré-história: o Itamaraty nos tempos da Guerra Fria

3. Política Externa Independente: uma vocação recorrente

4. O realinhamento de 1964 a 1967: um interregno incômodo

5. Revolução na revolução: o Itamaraty na tormenta

6. Segurança e desenvolvimento: colaboração, ainda que relutante

7. Pós-história: os efeitos de longo prazo 

Referências bibliográficas

Aqui o link para o ensaio na íntegra em Academia.edu:

https://www.academia.edu/44479134/Do_alinhamento_recalcitrante_a_colaboracao_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_

Agora os trechos pertinentes ao João Cabral, nesta seção:

2. Pré-história: o Itamaraty nos tempos da Guerra Fria

O ambiente maniqueísta do pós-guerra, com a necessidade de posicionamento em favor do “Ocidente” na época da Guerra Fria, marcou várias gerações de intelectuais e de expoentes da classe ilustrada, entre os quais se situavam diplomatas e altos funcionários do Estado. Próximos dos intelectuais e acadêmicos progressistas, muitos diplomatas se identificavam com as teses “neutralistas” ou “não-alinhadas” defendidas pelos propugnadores de uma “política externa independente”, em voga no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Tratava-se de uma ruptura com os princípios “tradicionais” da diplomacia conservadora dos anos de entre-guerras e do início da Guerra Fria, quando o alinhamento da política brasileira com os interesses americanos era, no entender dos historiadores, proverbial. O governo Dutra teria sido o protótipo do alinhamento subserviente, embora outras interpretações minimizem a substância mesma da convergência entre as posições diplomáticas do Brasil e as dos EUA. [Nota: Cf. Paulo Roberto de Almeida, “A diplomacia do liberalismo brasileiro”, in José Augusto Guilhon de Albuquerque, Ricardo Seitenfus, Sergio Henrique Nabuco de Castro (orgs.), Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990), 2a. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; vol. 1: Crescimento, Modernização e Política Externa, p. 211-262.]

Essa época, marcada pelo maniqueísmo da era McCarthy nos EUA, produziu efeitos no Itamaraty, onde alguns diplomatas foram acusados de serem simpatizantes do Partido Comunista e do bloco socialista, tendo sido objeto de inquérito sumário e sancionados abusivamente, antes de serem absolvidos pela ação da Justiça. Em 1953, com base em denúncia de colega de carreira, Amaury Banhos Porto de Oliveira, Paulo Augusto Cotrim Rodrigues Pereira, Jatyr de Almeida Rodrigues e Antonio Houaiss foram submetidos a processo administrativo no Itamaraty, ao passo que outro diplomata, João Cabral de Mello Neto, foi objeto de inquérito a cargo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), como autor de crimes contra a segurança nacional. [Nota: O episódio teve início em 1952, com base em violação de correspondência pessoal por diplomata, que repassou o assunto ao jornalista Carlos Lacerda, o qual, por sua vez, denunciou a existência de uma célula comunista no Itamaraty, “Bolívar”, à qual estariam vinculados vários diplomatas, entre eles o ministro Orlando Leite Ribeiro: “Em inquérito presidido pelo embaixador Hildebrando Accioly, o Ministro Leite Ribeiro e os demais diplomatas foram inocentados da acusação pois se comprovou a inexistência da referida ‘célula’, fruto da maquinação de grupos anti-getulistas e do mesmo diplomata (...) que denunciou meu pai, Cotrim e outros colegas”; correspondência eletrônica do embaixador Guilherme Luiz Leite Ribeiro (Rio de Janeiro, 31/12/2007).]

Eles foram afastados do Itamaraty, sem qualquer defesa, pelo presidente Getúlio Vargas, que os colocou em disponibilidade inativa, não remunerada, com base em sumária “exposição de motivos” do Conselho de Segurança Nacional. A condenação dos quatro primeiros foi anulada em 1954 pelo Supremo Tribunal Federal, por vício de forma e cerceamento da defesa, “menos [João] Cabral, que teve de obter mandado de segurança separado, após o arquivamento do inquérito policial”.[Nota: Correspondência eletrônica do embaixador Amaury Banhos Porto de Oliveira (Campinas, 02/01/2008). Elementos da acusação de 1953 figuram no livro dedicado aos 80 anos de Antonio Houaiss, coordenado por Vasco Mariz: Antonio Houaiss: uma vida: homenagem de amigos e admiradores em comemoração de seus 80 anos, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995; ver, em especial, considerações de natureza jurídica sobre o processo no artigo de Evandro Lins e Silva, “Punições por convicção política”, p. 60-73; reproduzido em Comunicação & política, Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, vol. VIII, n. 1, nova série, janeiro-abril 2001, p. 197-206.]

Ler a íntegra do meu ensaio neste link: 

https://www.academia.edu/44479134/Do_alinhamento_recalcitrante_a_colaboracao_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_


sábado, 18 de julho de 2020

O globalismo e seus descontentes - Paulo Roberto de Almeida


O globalismo e seus descontentes: notas de um contrarianista – Paulo Roberto de Almeida



O artigo a seguir é uma participação especial de Paulo Roberto de Almeida, doutor em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia e licenciado em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles


  1. Fixando os termos do debate: a contracorrente do pensamento único
Todo processo social, todo movimento econômico, toda tendência política, sendo o produto da ação consciente ou inconsciente, deliberada ou involuntária, de indivíduos, de grupos humanos ou de qualquer entidade organizada burocraticamente, despertam naturalmente a reação adversa dos mesmos entes ou personagens, quando os processos, movimentos ou tendências contrariam benefícios consolidados, situações estabelecidas, ganhos reais ou esperados ou quaisquer outras vantagens e privilégios existentes ex ante ou simultaneamente à percepção de uma ruptura do status quo. Trata-se de fenômeno secular, senão milenar, ou seja, forças sociais emergentes provocam, inevitavelmente, sua cota de descontentes, os seus frustrados, os seus órfãos, os seus perdedores.
A revolução industrial produziu o seu quinhão de luddistas, os revoltados contra a modernização da tecelagem, com alguma destruição de teares mecânicos até que se conseguisse empregar os anacrônicos dos teares manuais nas fábricas movidas a caldeiras a vapor. A lâmpada elétrica deixou quase todos os fabricantes de velas sem crescimento da demanda e, logo, sem clientes de qualquer tipo. O automóvel aposentou cavalos, estrebarias, recolhedores de esterco nas cidades e vários outros servidores cavalares. O computador desempregou antigas datilógrafas e operadores de máquinas de calcular, presentes antigamente em quase todas as corporações e escritórios de governo. Vários outros exemplos poderiam ser citados, aliás indefinidamente.
Não foi diferente com a globalização, embora ela seja um fenômeno mais do que antiquíssimo, propriamente existente desde a pré-história, como já revelado no livro de Nayan Chanda: Bound Together: How Traders, Preachers, Adventurers, and Warriors Shaped Globalization (New Haven: Yale University Press, 2007). Mas, após décadas de alternativas antimercado, sob o socialismo real, a nova onda da globalização trouxe consigo certo número de perdedores, como resultado da nova divisão internacional do trabalho e da deslocalização de empresas e investimentos. Ela criou os descontentes da globalização, como já tinha alertado muitos anos atrás o economista indiano Jagdish Bhagwati: In Defense of Globalization (New York: Oxford University Press, 2004; edição brasileira: Em Defesa da Globalização: como a globalização está ajudando ricos e pobres; Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2004).
Com o globalismo, ocorre o mesmo: assim como a expansão das economias de mercado, supostamente capitalistas (mas não se deve confundir as duas coisas, como poderia lembrar o historiador Fernand Braudel), produziu a sua cota de altermundialistas, mais conhecidos como antiglobalizadores, o monstro metafísico do globalismo também produziu o seu pequeno grupo de antiglobalistas, como é natural existir em qualquer fenômeno social, como já adiantado no primeiro parágrafo. Os antiglobalistas são, assim como os luddistas da globalização, seres deslocados pelo multilateralismo contemporâneo, aspirando defender antigas concepções de tempos passados, o nacionalismo estreito do período pré-onusiano, o bilateralismo estrito dos antigos acordos de comércio e navegação, e que pretendem, parafraseando Marx, fazer rodar para trás a roda da História.
Os conceitos e argumentos acima já balizam o espírito sob o qual foi redigida esta nota sobre os inimigos do globalismo, que eu considero um exército brancaleônico de templários, que estaria mais à vontade no terreno mitológico dos unicórnios e das sereias, ou seja, seres bizarros que pretendem se contrapor às correntes de vento ou às marés dos oceanos. Não tenho nenhuma hesitação em revelar desde já meu julgamento sobre esse patético ajuntamento de novos cruzados, depois de já ter enfrentado as hostes mais caóticas de antiglobalizadores, como exemplificado em meu livro Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011), pela simples razão que eu mesmo estou acostumado a nadar contra a corrente. A caução preliminar a ser introduzida aqui é a identificação de qual globalismo se está falando: a versão “paranoica” é a que se vai discutir aqui, se é que ela tem condições de persistir em um mundo aparentemente entregue a uma marcha irrefreável de conquistas científicas. Quanto ao globalismo “normal”, é propriamente patético constatar que se pretenda lutar, num ambiente diplomático, contra a essência fundamental do trabalho dos diplomatas, o ambiente natural de nosso ganha-pão diário.
  1. Nota pessoal do ponto de vista de quem pratica ativamente o ceticismo sadio
Independentemente do tema, assunto, questão ou problema que se apresente em face de minhas aventuras intelectuais aleatórias, sou um praticante ativo, desde a adolescência pelo menos, daquela atitude que foi, pela primeira vez, sintetizada, por um professor de arqueologia ao grupo de estudantes de ginásio que o visitava na USP, pelo conceito de “ceticismo sadio”. Ele explicava a postura como sendo feita de indagações sucessivas ao objeto em exame, ou seja, questionamentos, perguntas, exame acurado das origens e dos fundamentos do problema com o qual se confronta um pesquisador qualquer, o que até parecia inadequado para um “arqueólogo”, sempre pautado pelas evidências da geologia, paleontologia e outras vertentes das ciências naturais. Nunca esqueci a lição, e sempre a cultivei, inclusive instruído desde muitos anos antes pelas leituras de Monteiro Lobato, pois resolvi ater-me à modesta racionalidade desta regra básica no trabalho intelectual: apresentado a qualquer proposição, tese ou argumento no terreno das ciências sociais aplicadas e das humanidades, busque os fundamentos, anote as evidências empíricas, questione os dados, aprofunde a pesquisa antes de aderir a qualquer proposta ou opinião que se lhe apresente, por mais “racionais” ou “evidentes” que possam parecer essas proposições oferecidas para o seu “consumo”.
Devo, entretanto, alertar que a minha atitude cética em face de questões que me são apresentadas não é doentia, ou sistematicamente aplicada a todos os problemas em análise; ela apenas se manifesta de forma racional (pelo menos espero) e de forma compatível com os dados da questão em exame. Continuei aprofundando e refinando o meu “ceticismo sadio” ao longo de toda uma vida dedicada aos estudos e pesquisas nos meus campos de interesse intelectual, que vão de uma ponta a outra das ciências humanas e sociais (inclusive ciências naturais, paleontologia, biologia e outras áreas afins ou vinculadas). Pois foi armado da mesma atitude cética que fui apresentado, não muito tempo atrás, ao tal de antiglobalismo, um movimento para o qual minha atenção foi despertada no contexto de uma diatribe involuntária mantida com o autoproclamado “filósofo” Olavo de Carvalho, a quem eu comecei a chamar de “sofista da Virgínia”, quando eu sequer desconfiava que existisse qualquer tipo de problema com a sua suposta base conceitual, o globalismo, que sempre considerei como uma espécie de equivalente ao processo bem mais conhecido da globalização (termo que os franceses rejeitam, por anglofobia visceral, preferindo o conceito de mundialização, e o seu contrário, o altermundialismo). Vou relatar brevemente como foi essa confrontação, antes de voltar a tratar do globalismo e do antiglobalismo.
No segundo semestre de 2017 – tendo já concedido uma entrevista individual, um ano antes, sobre política externa e economia do Brasil a um novo grupo de mídia – fui solicitado pelo mesmo grupo, Brasil Paralelo, a conceder uma nova entrevista, via hangout, para um programa especial, desta vez sobre o processo de globalização e o conceito de globalismo. Concordei, uma vez que costumo atender essas demandas de caráter didático, colocando minhas pesquisas acadêmicas e minha experiência de vida a serviço de um círculo maior de interessados, e para tal preparei algumas notas, seguindo um roteiro feito pelos organizadores. Essas notas sumárias – “Globalismo e globalização: os bastidores do mundo”, disponíveis no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/12/globalizacao-e-globalismo-como.html) – foram divulgadas no próprio dia da “entrevista”, que afinal revelou-se um “diálogo” com aquele a quem passei a chamar de “Rasputin de subúrbio”: Academia.edu (link: https://www.academia.edu/39178804/Globalismo_e_globalizacao_os_bastidores_do_mundo). No seguimento do “diálogo”, o dito sofista entendeu ser seu dever ofender-me sob diversos epítetos, no que foi seguido por uma horda de seguidores fanáticos, com aqueles impropérios escatológicos que também se tornaram doravante marca registrada do próprio guru da seita, e por ele aplicados a diversos militares do governo Bolsonaro.
Num sentido inverso ao de Buffon, meu “debate” involuntário com Olavo de Carvalho demonstrou como o “estilo faz o homem”, uma vez que ele ocupou-se de me ofender em seus canais próprios, sempre endossado pelos fundamentalistas de uma nova crença: o fantasma do globalismo, como registrei em nova postagem no Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2018/01/olavo-de-carvalho-o-estilo-faz-o-homem.html). Já enfastiado por esse entrevero surrealista e inútil, dei por encerrado esse exercício desprovido de qualquer charme e interesse num “dossiê” por meio do qual disponibilizei o conjunto dos materiais relativos ao assunto, disposto a não mais voltar ao tema: “Dossiê Globalismo: Brasil Paralelo e seu seguimento”, Academia.edu (http://www.academia.edu/35667769/Dossi%C3%AA_Globalismo_Brasil_Paralelo_e_seu_seguimento). Mas, admito, o assunto é tão aborrecido que não merece atenção.
  1. Globalização real e globalismo surreal: da física à metafísica
Venho agora ao objeto principal deste texto: o globalismo e os “anti”. Não creio ser necessário discutir qualquer aspecto real – inclusive porque ele não existe – do chamado “globalismo”, em vários trabalhos considerado um sinônimo virtual do processo de globalização, este sim abundantemente mapeado na literatura acadêmica e jornalística. Na verdade, o globalismo é geralmente considerado nas diatribes dos “anti” como um tipo particular de globalização, aquela produzida sorrateiramente nas fímbrias da governança global e que se destina, na concepção dessa tribo, a retirar soberania dos Estados nacionais e atribuir toda a potestade a uma “ordem global” dotada de características similares aos grandes organismos multilaterais da atualidade, dentre eles a ONU. Não é possível discutir aqui o tema da globalização, mas permito-me uma referência a um pequeno texto meu, no qual faço uma distinção entre a globalização real, de nível “micro”, e sua vertente “macro”: “Globalização micro e macro: o que é isso?” (blog Diplomatizzandohttp://diplomatizzando.blogspot.com.br/2018/01/globalizacao-economica-e-globalizacao.html).
A primeira forma, de caráter individual ou empresarial, considero a verdadeira globalização: impessoal, irrefreável, não administrada por qualquer poder ou Estado organizado, já que correspondendo justamente ao que Adam Smith chamou de “mão invisível”, o trabalho empreendido pelos agentes econômicos diretos visando objetivos privados absolutamente egoístas, mas não coordenados entre si. A segunda forma não deveria, normalmente, corresponder ao conceito de globalização, uma vez que comporta a ação de Estados e de organismos internacionais com vistas a ordenar e controlar esse processo, não administrável por nenhuma força identificada com um objetivo predeterminado, embora se acredite que ele possa ser objeto de normas e regulamentos instituídos por burocratas nacionais ou internacionais; ou seja, se poderia classificar a forma “macro” da globalização como um esforço de antiglobalização, ou pelo menos de contenção, esforços de controle, por parte de “planejadores sociais” dos efeitos mais evidentes – alguns nefastos para certas categorias sociais – desse processo irrefreável.
Vejamos agora o conceito de “globalismo”, que é praticamente, como já dito, um sinônimo de globalização. Contudo, aos olhos de certos adeptos das teorias da conspiração, ele assume um sentido ideológico, uma vez que costuma despertar reações de cunho soberanista ou nacionalista, que é aquilo que eu costumo chamar de “metafísica do antiglobalismo”. Tanto a esquerda quanto a direita alimentaram suas versões respectivas do antiglobalismo. Na visão da esquerda, mais identificada com os franceses de um conhecido movimento anti ou altermundialista, a globalização (ou mundialização) só trouxe desgraças ao mundo: pobreza, desigualdade social, destruição da natureza e dos recursos da biodiversidade, discriminação racial e de gênero, reforço dos “poderes do grande capital” contra os interesses dos trabalhadores (argumento mais utilizado nas denúncias dos sindicatos de países avançados contra a “deslocalização”, ou seja, os investimentos diretos em países periféricos, de baixos salários), enfim um conjunto de efeitos negativos que precisam ser ativamente combatidos pelos movimentos sociais.
 Estes de fato tentaram, durante vários anos, nas manifestações ruidosas dos anos 1990 e 2000, contra as reuniões das organizações de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), contra as rodadas de negociações do GATT e contra a própria OMC, contra as reuniões do G7, G8, G20 e todas as cúpulas supostamente identificadas com o “capitalismo global”, como as reuniões empresariais anuais do World Economic Forum (em Davos, na Suíça), mas também nos inúmeros convescotes ruidosos reunidos sob a égide do Fórum Social Mundial (um contraponto ao Fórum de Davos), realizados durante vários anos em capitais teoricamente identificadas com suas teses “progressistas” e “por um outro mundo possível”; Porto Alegre (durante muitos anos dominada por governos do PT), Caracas durante a presidência de Hugo Chávez, e outras capitais “alternativas” serviram de cenário para esses convescotes barulhentos, mas pouco efetivos, tanto no plano doutrinal, quanto no que se refere a recomendações práticas para governos.
Como as piores desgraças da globalização não se manifestaram de forma tão evidente quanto o pretendido pelos adeptos do altermundialismo – e como, ao contrário, diversos países da periferia, especialmente na Ásia Pacífico, progrediram de modo espetacular, arrancando milhões de pessoas de uma miséria ancestral para levá-las a uma situação de pobreza aceitável, e até de moderada prosperidade –, esse movimento foi perdendo força, de modo que o antiglobalismo de esquerda deixou de ter aquele charme muito pouco discreto que ele exibia nos anos 1990 e 2000, para se prolongar apenas em pequenos núcleos de irredutíveis anticapitalistas, mais evidentes na academia do que nos movimentos políticos reais.
O que mais contribuiu para provar o fracasso prático dos antiglobalizadores – objeto de muitos artigos meus e até de um livro já referido Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização, reunindo o essencial do que escrevi sobre eles – e a consequente progressiva perda de influência desses “anti” de esquerda nos tempos mais recentes? Algo muito evidente: o mundo deixou de ser caracterizado pela “Grande Divergência” – o processo de aumento das disparidades de renda entre países avançados e economias periféricas, grosso modo entre a segunda revolução industrial e os anos 1980 do século XX – para adentrar no que parece ser uma “Convergência Parcial”, pelo menos envolvendo aqueles países e regiões que se inseriram de modo mais assertivo no processo de globalização capitalista. A diminuição das desigualdades entre os países não impediu, porém, um aumento (temporário?) das desigualdades dentro dos países, o que abriu uma janela de oportunidade para um economista socialista (francês, of course) que pretendeu navegar sobre glórias passadas de Karl Marx: o magnum opus de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, opera um mau diagnóstico sobre as origens da nova concentração de renda (considerada em sua forma unicamente financeira) e prescrições ainda piores para a superação dessa desigualdade, pela taxação dos ricos obviamente.
Estudos econométricos de um outro economista, o catalão Xavier Sala-i-Martin, professor na Columbia University, demonstraram amplamente que a desigualdade – evidente em diversos indicadores de distribuição de renda, especialmente no coeficiente de Gini – diminuiu sensivelmente a partir da terceira “onda” da globalização a partir dos anos 1980, que corresponde aproximadamente à volta da China à divisão mundial do trabalho com as reformas de Deng Xiaoping, seguida pouco depois por igual adesão por parte da Índia aos princípios mais elementares da economia de mercado, da qual ela tinha se afastado desde seu entusiasmo pelo planejamento estatal ainda nos anos 1950. A implosão final da União Soviética, em 1991, e a transição de praticamente todos os países socialistas ao velho e duro capitalismo de modo mais ou menos rápido terminou por encerrar o culto beato que mantinham acadêmicos e sindicalistas ao estatismo e à “soberania econômica nacional”, inclusive porque a volta à prosperidade de alguns desses países congelados na estagnação socialista foi real e espetacular (sobretudo na Europa).
Na América Latina, sempre alimentada por velhas teorias e doutrinas ditas “desenvolvimentistas” com muita influência nas academias e, portanto, entre as elites econômicas igualmente, os resultados foram bastante contraditórios, inclusive porque o fracasso da “década perdida” (a crise da dívida externa nos anos 1980) não foi seguido por reformas realmente profundas na maior parte dos países. Poucos dentre eles aderiram ao novo “cânone” liberal, supostamente simbolizado nas regras do “Consenso de Washington”, de modo que a conversão a economias livres de mercado foi apenas parcial – em parte no México, moderadamente na Colômbia, mais decisivamente no Chile, e tardiamente no Peru –, ao passo que grandes economias, como Argentina, Brasil e também a Venezuela, experimentaram um pouco de “neoliberalismo”, mas tornaram a recorrer às velhas receitas do estatismo e do populismo econômico, mais uma vez guiadas por demagogos de esquerda (os Kirchner, na Argentina; Lula, no Brasil; Hugo Chávez na Venezuela). De forma não surpreendente, aqueles quatro países da franja do Pacífico se engajaram mais resolutamente na globalização, e passaram a experimentar taxas de crescimento mais robustas, ao passo que os demais estagnavam, quando não recuavam no caminho da prosperidade e da inserção na economia global.
  1. Do lado da direita: todo globalismo será castigado, mesmo sem doutrina
Tudo indica, portanto, que o antiglobalismo de esquerda perdeu relevância, mantendo-se apenas em poucos nichos acadêmicos, eventualmente influentes em alguns movimentos políticos e sociais, mas desprovidos de maiores evidências capazes de sustentar uma nova escalada ascensional ao poder, como talvez tenha sido o caso localmente em certos países. Abriu-se então uma janela de oportunidade para o antiglobalismo de direita, de certa forma alimentado pelo efeitos da globalização em países avançados, nos quais as velhas indústrias da segunda revolução industrial deixaram de representar parte relevante do PIB, para abrir espaço às novas economias de serviço, apoiadas bem mais no oferecimento de bens intangíveis do que na produção de manufaturados (que foi deslocada para os países periféricos, ou “emergentes”, em grande parte na Ásia).
Ao mesmo tempo, o fracasso econômico de algumas grandes regiões, assoladas por guerras civis, como na África e no Oriente Médio, ou pelo velho populismo como na América Latina, realimentou novos fluxos migratórios, alguns espetaculares, como resultado de guerras prolongadas e afundamento econômico em Estados falidos. O fato desses novos imigrantes acudirem aos borbotões e de forma frequentemente ilegal às portas de países avançados da Europa e da América do Norte despertou – ao lado de alguns ataques espetaculares de terroristas islâmicos no próprio coração dessas velhas metrópoles coloniais, ou imperialistas – como seria de se esperar, reações xenófobas, e até racistas, por parte das populações brancas, cristãs, e relativamente afluentes nesses países. O fato de que a ONU e suas agências especializadas tendem a assumir uma postura política tendencialmente favorável ao fenômeno migratório, e pragmaticamente assistencialista no tocante ao acolhimento de refugiados econômicos e de catástrofes humanitárias, também contribuiu para a formação de uma reação negativa, por parte das populações dos países “assediados”, o que alimentou o crescimento e o reforço político de partidos e movimentos de direita, excludentes por definição, nacionalistas em sua essência, e manifestamente “antiglobalistas” no que tange à expansão contínua do multilateralismo ao longo dos primeiros setenta anos da ONU e seus órgãos assessórios.
Não existe uma “doutrina” unificada do antiglobalismo, pela simples razão de que as situações nacionais são substancialmente diversas, tanto em termos de “pressões” advindas de fluxos migratórios “não-cristãos”, quanto como resultado de trajetórias políticas nacionais bastante diferentes entre si, mesmo numa Europa supostamente “comunitária”, exibindo algumas políticas comuns de “segurança” ou de política externa, como o “espaço Schengen”, por exemplo, compreendendo, em teoria, 26 dos 28 países membros da União Europeia. Nos Estados Unidos, já pressionados por algumas dezenas de milhões de imigrantes ilegais, a maior parte latino-americanos, a situação política também se modificou sensivelmente a partir da eleição de Donald Trump, e sua assunção à presidência em janeiro de 2017; deliberadamente contrário às políticas de imigração já relativamente restritivas da administração anterior, o novo presidente começou uma ofensiva anti-imigratória simbolizada na construção de um muro na fronteira com o México, até o momento ainda não materializado por inteiro.
No plano mais global das ideias políticas é certo que o multilateralismo, em vigor durante mais de meio século sob a égide da ONU, e dos grandes empreendimentos comunitários ao estilo da EU, encontram-se temporariamente sob os ataques dos novos movimentos de direita, com seus diversos componentes políticos, étnicos, religiosos e culturais, que assumiram algum poder em diversos desses países “assediados”, com a perspectiva de que alguma associação mais flexível entre esses diversos movimentos se manifeste de forma mais ruidosa no plano político-eleitoral, sobretudo na Europa. Os casos mais evidentes se referem à Itália, à Hungria e à Polônia, não por acaso sob a vigilância das instâncias comunitárias que examinam atentamente a evolução de suas políticas nacionais nos terrenos da democracia política, das liberdades de expressão e do respeito aos direitos humanos. Talvez também não por acaso são os países escolhidos como novos “aliados políticos” do novo governo brasileiro, assumidamente de direita e partidário de uma pouco explicada adesão a valores “judaico-cristãos” que estavam, pelo menos aparentemente, esquecidos nas últimas décadas em nosso país.
  1. Teorias conspiratórias sobre o globalismo: déjà vu, all over again
Mais até que no âmbito das políticas nacionais em matéria educacional ou de direitos humanos – que praticamente não existem ou são suficientemente confusas para desafiar qualquer interpretação a respeito –, é no âmbito da política externa que se tem manifestado a mais espetacular inversão de tendências das últimas décadas, ou, mais exatamente, desde sempre, ao se ter evidências fáticas, ainda que igualmente confusas, sobre o antiglobalismo notório da nova administração diplomática brasileira. Ela está a cargo de um funcionário pouco experiente no exercício de funções de alta chefia, muito devotado às ideias da “nova direita” europeia – na verdade, de extrema direita –, e especialmente submisso aos eflúvios antiglobalistas expelidos pelo já referido “sofista da Virgínia”, que não possui nenhum discurso articulado sobre o fenômeno.
Ainda que Olavo de Carvalho não possua nenhum estudo academicamente respeitável sobre o pretenso fenômeno do globalismo, não há dúvida de que ele está na origem da formação de um pequeno grupo de discípulos, organizados em forma de seita antiglobalista, seguidores de suas diatribes – na verdade, reproduzindo tendências já presentes na nova direita americana – contra a globalização e o suposto globalismo. De fato, sem produzir qualquer conhecimento original, na completa ausência de pesquisas baseadas em fontes credíveis, ele vocaliza suspeitas há muito disseminadas em certos meios esotéricos, e as transmite a seus “discípulos” propensos a acreditar na ação obscura de determinados grupos supostamente influentes na sociedade. Completamente desprovidos de fundamentação empírica, reproduzindo verdadeiros absurdos do ponto de vista da história econômica, os poucos escritos e afirmações esparsas de Olavo de Carvalho a propósito desse globalismo fantasmagórico não apresenta nenhum dos requerimentos básicos para eventual submissão a algum journal peer-reviewed.
Sua reação epidérmica, próxima da indigência subintelectual, se parece muito com as teorias conspiratórias de alguns grupos, eventualmente conectados em rede, já detectados em algumas obras de especialistas acadêmicos, dentre eles o historiador escocês (radicado nos EUA), Niall Ferguson, em especial em um livro recente: The Square and the Tower: Networks and Power, from the Freemasons to Facebook(Londres: Penguin Books, 2018), aqui transcrito:
A suspeita cresce [entre os deslocados do mercado de trabalho] de que o mundo é controlado por redes poderosas e exclusivas: os banqueiros, o Establishment, o Sistema, os Judeus, os Maçons, os Illuminati. Quase tudo o que se escreve nessa linha é lixo. Mas seria improvável que as teorias da conspiração fossem tão persistentes se redes desse tipo não existissem.
O problema com os teóricos da conspiração é que, como deslocados ressentidos, eles invariavelmente não compreendem e deformam os meios pelos quais as redes operam. Em especial, eles tendem a acreditar que redes de elites controlam, disfarçadamente, mas facilmente, as estruturas formais de poder. Minha pesquisa – assim como minha experiência – sugere que esse não é o caso. Ao contrário, redes informais frequentemente exibem uma relação altamente ambivalente com respeito às instituições estabelecidas, e em muitos casos mesmo uma relação hostil. (tradução livre do prefácio: “O historiador em rede”)
Mas, o historiador britânico também alerta logo em seguida: “Frequentemente, grandes mudanças na história são o resultado de grupos informalmente organizados de pessoas, parcamente documentados.” Ele também indica, imediatamente, dois nos quais é formalmente envolvido, o World Economic Forum e encontros do grupo Bilderberg, este último frequentemente citado nas diatribes antiglobalistas de Olavo de Carvalho. A despeito de pertencer a muitos outros grupos e redes, na Grã-Bretanha e nos EUA, Niall Ferguson confessa candidamente que não tem “quase nenhum poder” (idem). No entanto, alguns dos exemplos examinados em seu livro chegaram a ter essa ilusão de conseguir mudar o mundo, começando, no século XVIII, pela Illuminatenorden, a Ordem dos Iluminados, na qual circularam intelectuais como Goethe e Herder. Seu fundador a chamava de Liga dos Perfeitabilistas – Bund der Perfektibilisten –, cujo objetivo era assegurar a “vitória da virtude e da sabedoria sobre a estupidez e a malícia” (Cap. 1: “The Mystery of the Illuminati”). Alcançando os Estados Unidos depois da revolução francesa, os Illuminati podem ter estado na origem do “estilo paranoico na política americana”, segundo o historiador Richard Hofstader; eles também teriam tido um papel na fundação da John Birch Society, a mais anticomunista das associações políticas americanas, assim como certa influência na obra do maior conservador cristão do país, Pat Robertson, autor do livro New World Order (1991), uma das possíveis bases do pensamento antiglobalista de Olavo de Carvalho.
Em meu debate involuntário com Olavo de Carvalho fui “presenteado” com a descrição completa do “alto comando” que, segundo essa teoria conspiratória, manda soberanamente nos destinos do mundo, já tendo colocado na teia do globalismo as mais influentes associações e os mais ricos magnatas cooptados para esse projeto sinistro. Ele me citou os Bilderbergers, os Rockefellers e os Rothschilds, além da Fabian Society e uma cesta inteira de think tanks e ONGs, todos eles engajados na consolidação da Ordem Global, inclusive por meio da ONU. Niall Ferguson resume de forma magnífica essa “teoria da conspiração” numa das passagens mais representativas de seu livro – sobre as redes que circulam em volta do poder –, ilustrando aliás seus parágrafos sobre a coalizão dos Illuminati contemporâneos com um quadro apropriado, que já reproduzimos abaixo, seguido de seu texto-síntese sobre a “conspiração para dominar o mundo”:
Um painel bastante representativo descreve os Illuminati como uma ‘elite super rica do Poder com a ambição de criar uma sociedade escrava’:
Os Illuminati possuem todos os bancos internacionais, as companhias de petróleo, as mais poderosas empresas da indústria e do comércio, eles se infiltram na política e na educação e eles dominam quase todos os governos – ou pelo menos controlam-nos. Eles possuem até mesmo Hollywood e a indústria da música… [O]s Illuminati comandam também a indústria do comércio de drogas… Os principais candidatos à Presidência são cuidadosamente escolhidos dentre as linhas ocultas de sangue de treze famílias de Illuminati… O maior objetivo é o de criar um Governo Único Mundial, com seus membros no topo para dominar o mundo na direção da escravidão e da ditadura… Eles querem criar uma ‘ameaça externa’, uma falsa Invasão Extraterrestre [a fake Alien Invasion], de forma a que os países deste mundo se declarem dispostos a se unir num Único.
A versão padrão da teoria da conspiração vincula aos Illuminati a família Rothschild, a Távola Redonda, o Grupo Bilderberg e a Comissão Trilateral – sem esquecer o administrador de fundos de risco, doador político e filantropista George Soros. (Cp. 1 de FERGUSON, ““The Mystery of the Illuminati”, in: The Square and the Tower, p. 3)
  1. A contrafação dos neoilluminati no Brasil: globalismo, climatismo, marxismo
Aqueles dispostos a assistir à “entrevista-diálogo” que mantive com Olavo de Carvalho em dezembro de 2017 ouvirão de sua própria voz as mesmas referências a esse sinistro projeto conspiratório globalista, com o desfilar nominativo daqueles mesmos personagens suspeitos de financiar dezenas de organizações – inclusive várias de esquerda, uma vez que se sabe que Soros é um “homem de esquerda” – com a meta de instaurar um governo mundial. O representante en titredo antiglobalismo no Brasil se exerce com toda a sua arrogância autosapiente neste vídeo gravado pela equipe do Brasil Paralelo, disponível no Canal YouTube (link: https://youtu.be/6Q_Amtnq34g).
Segundo os neoilluminati e seus representantes no Brasil qualquer projeto que tenda a retirar poderes dos Estados soberanos para colocá-los nas mãos de burocratas não eleitos está irremediavelmente contaminado pela ideia globalista, e deve, portanto, ser rejeitado in limine.  Encontra-se nessa situação, obviamente, o projeto comunitário da União Europeia, aliás desde sua origem no Tratado de Paris (1951) e nos tratados de Roma de 1957 e todas as suas derivações posteriores, até o de Maastricht, que criou a União Europeia em 1993, e que inclusive tentou instituir uma espécie de “governo central”, com presidente e constituição escrita. Para ser fiel a esse credo soberanista, os novos responsáveis pela política externa do Brasil deveriam, presumivelmente, recusar não só o acordo de liberalização comercial Mercosul-União Europeia, como o próprio princípio do Mercosul, cujo tratado constitutivo – assinado em Assunção, em 1991 – prevê o coroamento do atual processo de consolidação da união aduaneira por meio de um mercado comum, como no precedente europeu de 1957. O nome oficial do bloco, aliás, é “Mercado Comum do Sul”, aparentemente uma insustentável renúncia de soberania, na visão dos antiglobalistas.
O fato de que todo e qualquer tratado internacional, seja ele bilateral, regional ou multilateral, implique necessariamente uma renúncia de soberania por parte dos Estados signatários – no sentido em que eles concordam em fazer e deixar de fazer certas coisas de comum acordo, se comprometendo, portanto, a não aplicar medidas unilaterais nas áreas cobertas pelo tratado – deveria fazer com que os antiglobalistas convictos recusem a essência mesma da diplomacia, que é justamente a arte de estabelecer convivência e cooperação entre Estados, num exercício de autolimitação de seus poderes soberanos. O extremo nacionalismo, como já observado em algumas trajetórias históricas, termina por resultar na autarquia, isto é, a tentativa de se libertar de qualquer dependência com respeito a fornecedores estrangeiros, amigos ou inimigos. Exemplos conhecidos na era moderna compreendem a União Soviética – “socialismo num só país” –, a economia nazista na Alemanha sob Hitler e o próprio Brasil, em diversos períodos sob dominação militar (na era Vargas e sob a ditadura militar, 1964-85), quando também se praticou uma espécie de “stalinismo industrial”, com indústrias verticalmente integradas e basicamente dedicadas a se abastecer e a fornecer produtos para o mercado interno.
Os principais inimigos dos antiglobalistas brasileiros são, sem qualquer ordem predeterminada, os adeptos do marxismo cultural, do aquecimento global (chamado de climatismo), do comercialismo (ou seja, o comércio sem alma), do multilateralismo, do universalismo e, evidentemente, do globalismo. Todos eles passaram a ser combatidos, em nome da pureza na adesão ao novo credo oficial, muito próximo das mesmas posturas já exibidas pela nova direita europeia e pelo presidente Trump, objeto dos maiores elogios do novo chanceler ao ser considerado o “salvador do Ocidente”, em especial em sua vertente “judaico-cristã”. Ao lado dessas ameaças, persistem diversos outros equívocos teorizados especialmente para o caso do Itamaraty pelo encarregado da diplomacia bolsonarista: o nominalismo, o tematismo, o isolamento do Itamaraty da sociedade brasileira e das demais políticas públicas, e uma suposta indiferença dos diplomatas no tocante aos valores profundos do povo brasileiro, que seria conservador por excelência e, ipso facto, partidário de todas essas posturas quase que naturalmente.
Trata-se de uma agenda demolidora, stricto et lato sensi, pois para colocar o Itamaraty no mesmo diapasão que vigorou no Império até a gestão do Barão do Rio Branco – uma vez que todo o período posterior, até o governo Bolsonaro, é considerado um desvio em relação aos verdadeiros valores da sociedade brasileira –, é preciso desmantelar, literalmente, os padrões culturais e ideológicos seguidos durante esse largo período intermediário, quando a política externa e a diplomacia distanciaram-se da real identidade do povo brasileiro, praticando o terceiro-mundismo, o antiamericanismo e o antiocidentalismo.
Suprema ironia: todo esse combate contra as más ideias – de fato, a destruição da inteligência no Itamaraty – tem como justificativa a luta contra as ideologias. Soit!
Paulo Roberto de Almeida
2019

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Do “marxismo cultural” ao “marxismo científico” - Luiz Marques (Jornal da UniCamp)

Do "marxismo cultural" ao "marxismo científico"
Luiz Marques
Jornal da Unicamp, maio 2019


Luiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 3a edição, 2018. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br).


“Marxismo cultural é uma teoria da conspiração difundida nos círculos conservadores e de extrema-direita estadunidense desde a década de 1990. Refere-se a uma suposta forma de marxismo, alegadamente adaptada de termos econômicos a termos culturais pela Escola de Frankfurt, que teria se infiltrado nas sociedades ocidentais com o objetivo final de destruir suas instituições e valores tradicionais através do estabelecimento de uma sociedade global, igualitária e multicultural”. 

O atual ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, bate-se renhidamente contra o “marxismo cultural globalista”. Ele inicia seu artigo, intitulado “Trump e o Ocidente”, [I] com as seguintes palavras: 
“O presidente Donald Trump propõe uma visão do Ocidente não baseada no capitalismo e na democracia liberal, mas na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais”. 
Trump é um homem de negócios cercado de pessoas às voltas com 16 inquéritos criminais e não exonerado, ele próprio, de crime de obstrução à justiça. [II]O emprego sistemático da mentira pelo presidente do EUA tem suscitado preocupação entre psiquiatras de que seus padrões de comportamento sejam típicos de um psicopata. [III] Mas Araújo obstina-se em ver nele um alterSteve Bannon, isto é, alguém que se importa com ideologias. Não percebe que Trump se desfez de Bannon justamente por isso. A apologia que Araújo faz do Trump “ideólogo” que ele inventa é de matriz nitidamente fascista. Ela ecoa, quase com as mesmas palavras, por exemplo, o discurso de Benito Mussolini, pronunciado na data fatídica de 1933: “Hoje podemos afirmar que o modo de produção capitalista está superado e com ele a teoria do liberalismo econômico que o ilustrou e dele fez apologia”. [IV] Impregnado dessa retórica pseudo-anticapitalista, Araújo parte de lança em riste contra o moinho de vento do “marxismo cultural”:
“A partir dos anos 90 foi‑se vendo que o niilismo (alimentado pelo marxismo cultural) tinha‑se substituído ao inimigo comunista. Na verdade, pode‑se argumentar que o comunismo soviético era apenas uma entre tantas máscaras desse niilismo fundamental que precede Lênin e Stálin, precede Marx, precede Nietzsche, que vem dos philosophes ateus anticristãos que prepararam a revolução francesa”. 
Não apenas Trump veio para salvar o capitalismo de si mesmo, mas Stalin, como todos sabem, é descendente direto de d’Alembert e Diderot, fabricantes daquela maçã do paraíso que causou a queda da humanidade... Araújo é, em suma, apenas uma mistura pretensiosa, mal digerida e regurgitada de Spengler, Mussolini e Plínio Corrêa de Oliveira (1908-1995), fundador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), que tinha na Revolução francesa sua bête noire

O “marxismo científico”
Ocorre que o “marxismo cultural”, não contente de corroer o Ocidente, parece ter infectado a própria ciência, que se tornou agora vítima de algo que poderíamos chamar, por extensão, de “marxismo científico”. Os ministros de Bolsonaro competem em denúncias de que o marxismo “vampiriza” a ciência. Para Ernesto Araújo, a esquerda “perverteu” a causa ambiental e a transformou na “ideologia da mudança climática”. [V] Na semana passada, ele instruiu os cientistas do mundo todo de que “não há um termostato que meça a temperatura global. Existem vários termostatos locais”. [VI] Demonstrando seu total analfabetismo científico, o ministro confundiu termostato com termômetro, na mesma linha das pérolas “kaftianas” de Abraham Weintraub. Seria ótimo, de resto, se pudéssemos regular a temperatura do planeta através de vários termostatos... Infelizmente, os únicos termostatos de que dispomos são a descontinuação da queima de combustíveis fósseis, o desmatamento zero, o reflorestamento em grande escala e o fim de nossa dieta baseada em carne.

Ricardo de Aquino Salles foi condenado em 19 de dezembro de 2018 por fraudar o processo do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê, em 2016, quando estava à frente da pasta do Meio Ambiente do ex-governador Alckmin. Além disso, de acordo com a promotora de justiça Miriam Borges, Salles é suspeito de participar, nesse período, como interlocutor de interesses de empresas, tendo sido investigado em inquéritos policiais por enriquecimento ilícito e advocacia administrativa. [VII] Um antigo artigo seu na Folha de S. Paulo termina com a seguinte referência: “Ricardo Salles, 36, mestre em direito público pela Universidade Yale”. Só que a University of Yale afirmou, num email enviado a Leandro Demori: “A Faculdade de Direito não conseguiu localizar nenhum registro indicando que Ricardo de Aquino Salles frequentou a Faculdade de Direito de Yale”. [VIII]
Em suma, Ricardo Salles reúne todas as condições para ser ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, Ministério que ele se encarregou de transformar em força subalterna do agronegócio. O ministro não fica atrás de Araújo em sua galeria de despautérios e de exibições despudoradas da mais crassa ignorância, igualmente insultuosa à inteligência e aos cientistas. Declarou não saber quem era Chico Mendes, figura de renome nacional e internacional, agraciado com o prêmio Global 500, oferecido pela ONU por sua luta em defesa do meio ambiente. E arrematou, em defesa própria: “O fato é que é irrelevante. Que diferença faz quem é Chico Mendes neste momento?”. Tão irrelevante, para ele, quanto as mudanças climáticas, uma vez que as considera um tema “acadêmico” e uma preocupação “para daqui a 500 anos”. [IX] De onde se conclui que a Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), o IPCC, 50 anos de pesquisas internacionais sobre o aquecimento global, o Acordo de Paris e todos os esforços internacionais, nacionais e subnacionais para conter a aceleração em curso da crise climática são pura perda de tempo. Vamos tratar de coisas mais imediatas e deixar essa questão para 2400... Por essa razão, Salles cancelou o encontro em Salvador da “Semana Climática” América Latina e Caribe, evento da UNFCCC, com a alegação de que este seria apenas uma oportunidade para que os participantes fizessem turismo em Salvador e comessem acarajé. [X]Levou um pito de gente grande e, garoto obediente que é, engoliu o choro e retrocedeu.

Algo mais sério...
Outro ministro, esse de verdade, a detectar essa epidemia de “marxismo científico” foi o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI). Dando sua pequena contribuição ao ódio aos fatos e à evidência científica pelo qual se pauta o governo Bolsonaro, ele atacou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), ligado ao CNPq e, portanto, ao Ministério da Ciência e Tecnologia. O INPE é uma instituição que goza da mais irrestrita credibilidade nacional e internacional e presta uma gama de serviços de inestimável importância ao país, entre os quais o monitoramento por satélites da perda de cobertura florestal, trabalho que seus cientistas desenvolvem há mais de quarenta anos, conforme se lê no histórico da instituição em sua página na internet. [XI]  Todo esse patrimônio nacional acumulado de conhecimento, que envolveu diversas gerações de estudiosos formados com os recursos do povo brasileiro, é desqualificado pelo ministro com a seguinte declaração à GloboNews[XII]
“Esses dados do desmatamento eu coloco muito em dúvida. Se nós somarmos o percentual de desmatamento que anualmente aparece no jornal, o Brasil já estava sem uma árvore. Isso também é muito manipulado”. 
Com que autoridade, baseado em que dados, o ministro se permite insultar a ciência brasileira? Eleito à base de fake & hate news, o governo de que o general é peça central nutre um ódio pueril à complexidade do real, baseado na simples e pura negação de tudo o que não couber no vaso de formol em que se conservam suas fobias e suas fixações. Ocorre que os números do INPE são reais. E por serem reais, são trágicos. Quais são os dois números essenciais do INPE sobre as florestas brasileiras, que o general permite-se pôr em dúvida? Todos sabemos quais são, e Carlos Nobre, cientista sênior do próprio INPE, resume o primeiro numa frase: “ A Amazônia já tem 20% de área desmatada, equivalente a 1 milhão de km2.” [XIII] O segundo número diz respeito ao Cerrado, o bioma mais ameaçado do Brasil atualmente: 50% de sua área já foi arrasada pelo agronegócio, segundo o Prodes-Cerrado, também do INPE. Essas duas regiões são as que abrigam os principais mananciais da malha hidrográfica brasileira e ninguém ignora que sem essa vegetação não há chuva, nem lá, nem cá na parte sul do continente. E contudo apenas 8% da área do Cerrado está protegida pela legislação.
Já se aniquilou, repita-se, um quinto da área original da floresta amazônica, “a mais exuberante, colorida e diversa expressão da natureza que encheu de graça a face desse planeta em muitos milhões de anos” (Norman Myers). Apenas nos últimos três anos (2016-2018), o desmatamento da Amazônia supera 20 mil km2, ou seja, os níveis mais altos por triênio do segundo decênio do século, sendo que 95% dessa destruição vem sendo feita ilegalmente pelo agronegócio ou em seu benefício. E aqui estamos falando apenas de desmatamento por corte raso, não de degradação. Já em 2013, mais de um quarto da área de floresta da Amazônia brasileira – cerca de 1,2 milhão de km2 – era então considerado degradado e fragmentado, conforme dados aportados por Antônio Donato Nobre, também do INPE [XIV]:
“Até 2013 a área total degradada pode ter alcançado 1.255.100 km2. Somando com a área mensurada de corte raso, o impacto cumulativo no bioma pela ocupação humana pode ter atingido 2.018.079 km2. Mas a área de impacto no sentido ecológico pode ser ainda maior, porque florestas contíguas a áreas de degradação ou corte raso sofrem indiretamente dos efeitos das mudanças biogeofísicas e biogeoquímicas vizinhas. No processo de degradação, a destruição do dossel, frequentemente superior a 60% da cobertura, muda as características estruturais, ecológicas e fisiológicas da floresta, comprometendo suas capacidades ambientais”.
Os números fornecidos pelo INPE são, segundo o general Heleno, “manipulados”. Quem os manipula? Os cientistas, cujas frágeis mentes terão talvez sido sequestradas pelo “marxismo científico”? Ou estariam eles mancomunados com as potências estrangeiras, tais como a Noruega e a Alemanha, que, em seus malignos desígnios, conspiram para impedir que, através da liquidação final da floresta amazônica e do Cerrado, conquistemos nosso “desenvolvimento”? Não. Os cientistas estão apenas descrevendo a realidade com os seus instrumentos de mensuração. E é isso que apavora, porque, como se sabe, nada há de mais insuportável que a rigorosa descrição da realidade.

Os militares dos EUA e do Brasil
Os Ricardo Salles, os Ernesto Araújo, os Weintraub et caterva são casos perdidos. Mas o alto comando militar não é composto de ignorantes. Ao contrário. Recebem uma educação técnica aprimorada. O que os impede de ver a gravidade extrema das crises climáticas e do colapso da biodiversidade não pode ser, portanto, uma deficiência de formação intelectual. O que os está impedindo de compreender o que está em jogo é o anacronismo dos paradigmas sobre os quais se assenta seu ideário: segurança territorial, percepção dos povos indígenas, sobretudo os de fronteira, como potenciais ameaças a essa segurança e a ideia – a mais equivocada e desastrosa de todas – de que a Amazônia é um espaço desabitado a conquistar. Desmatar é intensificar em todos os sentidos as mudanças climáticas e as mudanças climáticas são uma ameaça existencial gravíssima e iminente ao Brasil e ao mundo. Se os militares duvidam dos cientistas e dos ambientalistas, que ouçam então os militares do Pentágono e do Ministério da Defesa dos EUA, por certo menos influenciados pelo “marxismo científico”...  Leiam o relatório de 13 de outubro de 2014, “Climate Change Adaptation Roadmap”, que afirma logo em sua abertura: [XV]
“As mudanças climáticas afetarão a capacidade do Departamento de Defesa de defender a Nação e coloca riscos imediatos para a segurança dos EUA”.
Os militares norte-americanos não embarcam na estupidez de seu presidente, quando este afirma que as mudanças climáticas são “a hoax” (um embuste), apenas uma ideologia, como repete, entre nós, Ernesto Araújo. Sabem que se trata de um problema de extrema gravidade e imediato, isto é, não para daqui a 500 anos, como afirma Salles, mas para o segundo quarto deste século. O Departamento de Defesa dos EUA afirma estar empenhado em adaptação e mitigação das mudanças climáticas. E as Forças Armadas do Brasil, como estarão elas respondendo a essa ameaça real e iminente ao país? Há vários trabalhos mostrando a vulnerabilidade do Brasil às mudanças climáticas, inclusive de cientistas brasileiros. O mais recente deles é o livro organizado por Carlos Nobre, José A. Marengo e Wagner R. Soares, Climate Change Risks in Brazil, Springer, 2019. No prefácio, esses autores voltam a alertar o que já demonstraram em trabalhos anteriores: “Num cenário de altas emissões de gases de efeito estufa [e esse é precisamente nosso cenário atual], o país tem uma alta probabilidade (acima de 70%) de sofrer um aumento de temperatura maior que 4oC antes do fim do século”.
Juntamente com o Mediterrâneo, os Estados Unidos e o Brasil compõem três das regiões do planeta mais particularmente vulneráveis às mudanças climáticas. Sonia Seneviratne, Professora titular na ETH de Zurique, e colegas publicaram em 2016 um artigo na Nature [XVI] no qual demonstram que: “O limite de 2oC das temperaturas médias em relação ao período pré-industrial pode ser cruzado em 2030 no Mediterrâneo, na região central do Brasil e nos EUA”. Eis, no mapa abaixo, as regiões em questão.




As três regiões que podem sofrer já por volta de 2030 um aquecimento médio anual de 2oC acima do período pré-industrial. Fonte: Sonia Seneviratne et al., “Allowable CO2 emissions based on regional and impact-related climate targets”. Nature, 529, 28/I/2016

No Brasil, a forma mais direta, imediata e eficaz de mitigação e adaptação é reduzir a zero o desmatamento e passar a um reflorestamento com espécies nativas em grande escala. O desmatamento é, no Brasil, como mostra o SEEG, o maior responsável pelas emissões de gases de efeito estufa (GEE). Por causa do desmatamento, o Brasil é o sétimo maior emissor de GEE do mundo. Defender as florestas é o maior serviço que os militares brasileiros podem e têm o dever de prestar ao país, de hoje e de amanhã. Até quando nossos militares se obstinarão em não perceber a importância estratégica, em todos os sentidos, das florestas brasileiras? Até quando persistirão no absurdo preconceito geopolítico oitocentista de que ela é um obstáculo ao desenvolvimento do país? A floresta amazônica é o que o Brasil tem de mais importante! É o que faz do Brasil uma singularidade planetária. Os biólogos e ecologistas consideram a floresta amazônica (mas até quando?) o lar de 10% das espécies conhecidas do planeta, [XVII] sendo que 75% das espécies vegetais que aí se encontram são únicas dessa região. A maior floresta tropical do mundo é também, com suas três mil espécies de peixes, o maior viveiro de espécies de peixe de água doce do mundo. 

A Amazônia está por um fio
Embora imenso, esse conjunto de ecossistemas é muito vulnerável, pois uma pequena alteração dos parâmetros climáticos e/ou de precipitação na floresta pode representar seu desmantelamento. É o que já está começando a acontecer! Uma equipe de 158 pesquisadores de 21 países, coordenada por Hans ter Steege, publicou uma avaliação dos riscos atuais de extinção dessa floresta: [XVIII]
“Ao menos 36% e até 57% de todas as espécies de árvores da Amazônia devem provavelmente ser consideradas como globalmente ameaçadas segundo os critérios da União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN). Esses resultados, se confirmados, aumentariam em 22% o número de espécies vegetais ameaçadas no planeta”.
De seu lado, repercutindo o editorial da revista Science Advances, de 28 de Fevereiro de 2018, escrito por Thomas Lovejoy e Carlos Nobre, o Centro de Ciência do Sistema Terra (CCST) do INPE divulgou uma informação que deve suscitar um sobressalto das consciências: o “desmatamento na Amazônia está prestes a atingir um limite irreversível”: [XIX]
“Nas últimas décadas, outros fatores além do desmatamento começaram a impactar o ciclo hidrológico amazônico, como as mudanças climáticas e o uso indiscriminado do fogo por agropecuaristas durante períodos secos – com o objetivo de eliminar árvores derrubadas e limpar áreas para transformá-las em lavouras ou pastagens. A combinação desses três fatores [desmatamento, mudanças climáticas e incêndios] indica que o novo ponto de inflexão a partir do qual ecossistemas na Amazônia oriental, Sul e Central podem deixar de ser floresta seria atingido se o desmatamento alcançar entre 20% e 25% da floresta original”.
A Amazônia, ou ao menos toda a sua porção sul, central e leste, está quase ultrapassando seu limiar de resiliência, isto é, sua capacidade de resistir ao desmatamento e aos incêndios perpetrados por fazendeiros. As secas de 2005, 2010 e 2015/2016 são sintomas inequívocos dessa crescente desestabilização. Não sabemos quando a grande floresta cruzará esse ponto crítico, além do qual ela transitará, mais ou menos rapidamente (e não se exclui uma transição abrupta) para uma vegetação de savana e em direção a uma sempre maior aridez. De uma coisa, em todo o caso, sabemos: essa é a maior ameaça, real e iminente, à nação, que as Forças Armadas se dizem empenhadas em defender. O Ministro Augusto Heleno deveria ser o primeiro a se preocupar com isso. Mas, como afirma o excelente site ClimaInfo, “frente à febre, o general ataca o termômetro”.
Recapitulemos. A maior ameaça à segurança nacional não são os cientistas. Eles estão cumprindo seu dever de clamar aos quatro ventos que estamos nos aproximando celeremente de um colapso socioambiental. É melhor ouvir a mensagem, por sombria que seja, que atirar no mensageiro.  Tampouco as nações indígenas constituem uma ameaça à segurança nacional. Ao contrário, cientistas e indígenas são parte essencial da solução. A maior ameaça à segurança nacional é o agronegócio brasileiro, peça local da grande engrenagem global corporativa que controla o sistema alimentar e energético. Essa engrenagem global, motor decisivo do desmatamento, inclui as megacorporações agroquímicas, os grandes traders, o sistema financeiro, a especulação com as soft commodities nos mercados futuros, as mineradoras, as empreiteiras e, não por último, os economistas e demais ideólogos do “desenvolvimentismo”, que continuam afirmando que desenvolvimento é um conceito indissociável do crescimento do PIB. A destruição da floresta levada a cabo por essa grande coalizão já tem, e terá cada vez mais, consequências funestas para a sociedade brasileira e para o planeta. No espaço de uma geração, provavelmente menos, ela destruirá os alicerces de nossa agricultura.

A visão da ciência para a Amazônia
Os militares continuam a propor hoje o que propunham nos anos 1960: cegados por um anacrônico conceito de desenvolvimento, propõem, ou toleram como um mal menor, desmatar, queimar, devastar esse conjunto único de ecossistemas. O que propõem, ao contrário, os cientistas? [XX]
“Propomos um novo paradigma de desenvolvimento (...) no qual pesquisamos, desenvolvemos e conferimos escala a uma abordagem de inovação high-tech que vê a Amazônia como um bem público global de ativos biológicos, capacitando a criação de produtos inovadores de alto valor, serviços e plataformas, pela combinação das tecnologias digitais, biológicas e materiais da Quarta Revolução Industrial em curso”.
A proposta dos cientistas representa um passo de gigante na superação do vandalismo ecocida e suicida que caracteriza a atual devastação da cobertura vegetal brasileira pelo agronegócio. Eis sua mensagem essencial: é preciso admitir a premissa de que, mantida a via atual, nosso único destino é o colapso socioambiental. Admitida essa premissa, um futuro diferente de um colapso terminal para a civilização ainda é possível.




[II] Cf. Garrett M. Graff, “Trump’s world still faces 16 known criminal probes”. Wired, 30/IV/2019.
[III] Cf. Charles M. Blow, “Trump Isn’t Hitler. But the Lying...”. New York Times, 19/X/2017; Glenn Kessler, Meg Kelly, Nicole Lewis, “President Trump has made 1,628 false or misleading claims over 298 days”. The Washington Post, 14/XI/2017; Bandy X. Lee (org.), The Dangerous Case of Donald Trump: 27 Psychiatrists and Mental Health Experts Assess a President, Nova York, Thomas Dunes Books, 2017; Bandy X. Lee, “Psychiatrists Warn About Trump’s Mental State”. New York Times, 30/XI/2017; Ben Kentish, “Donald Trump is a psychopath, suffers psychosis and is an ‘enormous present danger’, says psychiatrist”. The Independent, 30/IX/2017.
[IV] Cf. Benito Mussolini, “Il discorso dello Stato Corporativo”, Il Popolo d’Italia, n. 271, 15/XI/1933. Versão impressa do discurso pronunciado no dia anterior na reunião do Consiglio Nazionale dele Corporazioni: “Oggi possiamo affermare che il modo di produzione capitalistica è superato e con esso la teoria del liberalismo economico che lo ha illustrato ed apologizzato”.
[V] Cf. Raphael Di Cunto, Carla Araújo e Carolina Freitas, “Novo chanceler diz que esquerda criou ‘ideologia da mudança climática'”. Valor, 15/11/2018.
[VI] Cf. Denise Chrispim Marin, “Chanceler atribui aumento da temperatura da Terra a asfalto quente”. Veja, 30/V/2019: Ernesto Araújo questiona aquecimento global: "Não há um termostato que meça a temperatura global. Existem vários termostatos locais".
[VII] “Justiça de SP condena futuro ministro do Meio Ambiente por improbidade administrativa”. G1, 19/XII/2019.
[VIII] Cf. Leandro Demori, “Quem inventou a mentira de que o Ministro Ricardo Salles estudou em Yale?”. The Intercept, 23/II/2019.
[IX] Cf. Claudio Angelo, “A ignorância de Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente, sobre Chico Mendes”. Época, 15/II/2019.
[X] “Em recuo, Ministério do Meio Ambiente confirma reunião da ONU em Salvador”. Folha de São Paulo, 19/V/2019.
[XIII] “Desmatamento na Amazônia está prestes a atingir limite irreversível”. CCST/INPE, 22/II/2018.
Carlos Nobre afirma que 15% dessa área está em recuperação, mas se trata de uma recuperação espontânea, em terras abandonadas, após serem desmatadas e poluídas por agrotóxicos que empobrecem os solos. O Brasil não está honrando seu compromisso de reflorestar 12 milhões de hectares, assumido no Acordo de Paris.
[XIV] Cf. Antônio Donato Nobre, “O futuro climático da Amazônia”.Relatório de Avaliação para a Articulación Regional Amazônica (ARA), 2014, p. 25.
[XVI]Sonia Seneviratne et al., “Allowable CO2 emissions based on regional and impact-related climate targets”. Nature, 529, 28/I/2016.
[XVIII] Cf. Hans ter Steege et al. “Estimating the global conservation status of more than 15,000 Amazonian tree species”. Science Advances, 1, 10, 20/XI/2015.
[XX] Cf. Carlos A. Nobre Gilvan Sampaio Laura S. Borma Juan Carlos Castilla-Rubio José S. Silva, and Manoel Cardoso, Land-use and climate change risks in the Amazon and the need of a novel sustainable development paradigm”. Proceedings of the National Academy of Sciences, 113, 39, 27 de Setembro de 2016: “We argue for a new development paradigm—away from only attempting to reconcile maximizing conservation versus intensification of traditional agriculture and expansion of hydropower capacity—in which we research, develop, and scale a high-tech innovation approach that sees the Amazon as a global public good of biological assets that can enable the creation of innovative high-value products, services, and platforms through combining advanced digital, biological, and material technologies of the Fourth Industrial Revolution in progress”.