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sexta-feira, 26 de maio de 2023

Política externa brasileira: história e historiografia - Gelson Fonseca Jr. (org.), Biblioteca Digital da Funag

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Organizei, em meus tempos de diretor do IPRI, os seminários que resultaram na produção deste livro, convidando todos os integrantes, inclusive eu, a escrever capítulos sobre a historiografia da política externa. O livro ficou pronto ainda em 2018, mas as tribulações do calendário eleitoral brasileiro delongaram sua publicação naquele ano, e depois vieram os novos bárbaros, que demoliram a política externa e a própria diplomacia, e eu fui exonerado do cargo de diretor do IPRI. Acabei retirando a minha contribuição do livro, que seria uma espécie de introdução geral ao volume, tratando da historiografia brasileira das relações internacionais, desde o século XIX até a atualidade, para ver se o livro era publicado, pois eu era considerado um opositor (com orgulho) da nefanda diplomacia bolsolavista. 

Nem assim o livro foi publicado, e ficou na geladeira durante os quatro anos de domínio da política externa (e de todas as demais políticas) pelos aloprados da franja lunática dos bolsonaristas. Acabei colocando o meu capítulo sobre a historiografia das relações internacionais do Brasil no meu livro Apogeu e Demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira (Appris, 2021) e agora, vejo com satisfação que o livro acabou sendo publicado, sob a direção do meu colega do CHDD, o embaixador Gelson Fonseca. Espero que ele sirva aos objetivos que nos propúnhamos em 2017 e 2018, quando organizamos o seminário, com todo o pessoal especialista nas diferentes fases da história das relações internacionais e da política externa brasileira.

Paulo Roberto de Almeida


Política externa brasileira: história e historiografia

Gelson Fonseca Junior (org.)

Descrição:
O objetivo desta obra é mostrar como os historiadores apresentaram os caminhos da política externa desde os primeiros momentos do Brasil independente até 1985. Foram convidados, para tanto, especialistas conhecidos nos diversos períodos. E, de fato, estão reunidos, neste volume, historiadores do mais alto quilate, com obras de referência em suas áreas. O livro é um primeiro esboço do que poderia ser o debate sobre a historiografia da história diplomática. Não pretende fechar questões, mas abri-las. Pela própria natureza da inserção internacional do Brasil, o campo da história diplomática é amplo; são muitos os temas em aberto. Espera-se que este livro sirva como um roteiro para estimular novas pesquisas e rever, com novas perspectivas, o que já se sabe, ou se pensa conhecer.
Detalhes
Organizador: Gelson Fonseca Junior
Editora: FUNAG - Fundação Alexandre de Gusmão
Assunto: Brasil – História – Independência, 1822 | Brasil – História - I Reinado, 1822-1831 | Brasil – História – Revolução, 1930 | História e historiografia | História – Fontes | Regime Militar - Brasil
Ano: 2023
Edição: 1ª Edição
Nº páginas: 556
Idioma: Português
ISBN: 978-85-7631-975-7

Sumário

Sobre os autores,  7

Introdução, 9 

    Gelson Fonseca Junior

Recortes historiográficos da independência – três imagens e meia sobre o desmembramento do Império português, 15

    João Daniel Lima de Almeida

Da legitimação ao questionamento: a historiografia sobre as relações exteriores brasileiras (1822‐1840), 107

    Francisco Doratioto

O Segundo Reinado (1840‐1889), 169 

    Gabriela Nunes Ferreira

Política externa da Primeira República: avaliação da historiografia, 199

    Clodoaldo Bueno

Da Revolução de 1930 ao fim de 1945, 283 

    Fábio Koifman

A historiografia das relações internacionais do Brasil sob a República Liberal‐Democrática (1945‐1964), 347

    Antônio Carlos Lessa

O regime militar e sua política externa: ideologia e pragmatismo (1964‐1985), 423

    Paulo G. Fagundes Visentini

Fontes diplomáticas, diplomática e historiografia da política externa brasileira, 491

    Eduardo Uziel


Sobre os autores

Antônio Carlos Lessa: professor titular de relações internacionais da Universidade de Brasília.

Clodoaldo Bueno: professor titular aposentado da Universidade Estadual Paulista Unesp – Marília.

Eduardo Uziel: diplomata de carreira. Doutorando na Universidade Livre de Bruxelas.

Fábio Koifman: professor associado do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Francisco Doratioto: professor associado no Departamento de História da Universidade de Brasília e bolsista produtividade 2 do CNPq.

Gabriela Nunes Ferreira: professora associada do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo – campus Guarulhos e pesquisadora do Cedec – Centro de Estudo de Cultura Contemporânea.

Gelson Fonseca Junior: diplomata de carreira. Diretor do Centro de História e Documentação Diplomática da Fundação Alexandre de Gusmão.

João Daniel Lima de Almeida: professor de história das relações internacionais da PUC-Rio.

Paulo G. Fagundes Visentini: professor titular de relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Introdução

O projeto de organizar uma coletânea sobre a historiografia da história diplomática brasileira foi desenvolvido entre 2018 e 2020 pelo Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) e pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG). Desde a concepção, para a qual foi decisiva a contribuição do Embaixador Paulo Roberto de Almeida, contamos com o empenho e o vasto conhecimento da história diplomática do professor Rogério de Souza Farias, pesquisador do IPRI. Em nossa convivência com pesquisadores e alunos da área de relações internacionais, e em nossas participações em seminários e debates acadêmicos, chegamos à conclusão de que faltava uma reflexão historiográfica sobre a política externa brasileira. Seria útil projetá-la, e cabia naturalmente à FUNAG, pela sua vocação de promover o estudo da história diplomática, levar adiante o projeto.

De outro lado, o projeto serviria para dar continuidade aos três volumes sobre pensamento diplomático brasileiro que a FUNAG lançou em 2013. Naquele, o foco eram personalidades que tiveram influência na definição da ação externa do Brasil. Neste, o objetivo é mostrar como os historiadores apresentaram os caminhos da política externa desde os primeiros momentos do Brasil independente até 1985.

(...)

Livro disponível no link: 

https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1226

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Em memória de José Augusto Lindgren Alves: um diplomata incomum - Gelson Fonseca Jr. (Revista do CEBRI)

Revista do CEBRI: 

Policy Papers

Em memória de José Augusto Lindgren Alves: um diplomata incomum

Homenagem ao diplomata que contribuiu para a promoção dos direitos humanos

Resumo

Memória sobre a atuação diplomática e a contribuição intelectual de José Augusto Lindgren Alves para a promoção dos direitos humanos.

Palavras-chave:

direitos humanos; Nações Unidas; Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial; Conferência de Viena sobre Direitos Humanos.
Foto: José Augusto Lindgren Alves. Por Maria Leonor de Calasans/Mediateca IEA-USP

José Augusto Lindgren Alves foi, durante cinquenta anos, funcionário diplomático de carreira, tendo ingressado no serviço exterior em 1968. Exerceu chefias na Secretaria de Estado, foi embaixador na Bulgária, Hungria e Bósnia-Herzegovina, além de cônsul-geral em São Francisco e Barcelona. Sua trajetória profissional é impecável. Porém, a memória de sua contribuição para a vida pública brasileira, se nasce na carreira, vai muito além do Itamaraty. Lindgren tornou-se uma referência necessária na defesa e na promoção dos direitos humanos no Brasil e no plano internacional. Rever seu trabalho e seu pensamento, além do tributo a um diplomata incomum, serve também para lembrar a permanente necessidade de renovar a causa que defendeu. Ele nos deixou em maio de 2022, vítima da Covid-19[1]

A sua aproximação ao tema dos direitos humanos começa quando é transferido em 1985 para a Missão do Brasil nas Nações Unidas e passa a trabalhar na Terceira Comissão da Assembleia Geral, encarregada das questões sociais. No Brasil, a luta pela democratização saíra vitoriosa, e os direitos humanos foram uma de suas bandeiras inspiradoras. O artigo 4º da Constituição de 1988 os consagrava como princípio orientador das relações internacionais do país. Não obstante, apesar do início do processo de adesão do Brasil em 1985 a pactos regionais e universais na área, a política externa ainda dava passos tímidos ao lidar com o assunto na agenda dos organismos multilaterais. Havia também dificuldade em aceitar o diálogo com as organizações não governamentais, ainda vistas como intrusas quando alertavam para violações dos direitos humanos. E a adesão a convenções não integrava automaticamente a questão no metabolismo da política externa brasileira. Faltava atualizar o discurso e o desempenho diplomático. Aí se desenha o papel crucial que Lindgren vai desempenhar.

Em Nova York, ele descobre a sua afinidade com o tema, certamente reflexo da generosidade que marcava a sua personalidade. Ao voltar para o Brasil, apresenta, em 1989, ao Curso de Altos Estudos (um requisito à promoção na carreira) uma tese pioneira – As Nações Unidas e os Direitos Humanos. Entre 1990 e 1995, comanda a Divisão de Nações Unidas, quando convence a chefia do Itamaraty de que os direitos humanos mereciam um lugar institucional de mais autoridade. Nasce, assim, o Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, do qual Lindgren foi o primeiro diretor. Nessa função, e com a experiência prévia de ter sido um dos principais negociadores do documento final da Conferência Mundial de Direitos Humanos (ONU 1993), Lindgren teve participação ativa na preparação das posições brasileiras e nos processos negociadores das demais Conferências Globais das Nações Unidas na área social A agenda era, em certa medida, nova para a diplomacia brasileira. Íamos lidar com combate ao racismo, direitos das mulheres, assentamentos urbanos, desenvolvimento social, assuntos de interesse direto e permanente da sociedade civil. Um dos instrumentos que o Departamento de Lindgren usou para reforçar a legitimidade das posições brasileiras foi a criação de comissões que, sistemática e organizadamente, debatiam com as ONGs e os movimentos sociais quais os rumos que deveriam orientar a atuação da diplomacia brasileira nas conferências. A prática havia sido ensaiada na Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável de 1992 e, depois de plenamente implantada, serviu para transformar a maneira como o Itamaraty se aproximava da sociedade e respondia aos desafios postos pelo regime democrático. 

Lindgren tem, portanto, papel fundamental para situar a política externa na agenda internacional em que a problemática dos direitos humanos ganhava relevância crescente. Com sua tese e a produção intelectual que se seguiu, explica o tema, mostra suas implicações políticas e sociais, e, especialmente, esclarece porque interessava ao Brasil entrar, de forma aberta, no debate que se abria. A resposta diplomática teria consequências para definir a identidade internacional do país. Com a criação do Departamento, consegue que o argumento intelectual encontre solução institucional adequada. E, ao explorar caminhos novos de diálogo com a sociedade organizada, ganham consistência e legitimidade as posições diplomáticas que o Brasil levaria aos foros multilaterais. 

Ainda nesta fase, é preciso sublinhar a atuação de Lindgren, ao lado do embaixador Gilberto Saboia, outro diplomata notável, na Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993. Foram decisivos para  superar a distância de visões dos grupos que se formaram. Como lembra Benoni Belli, em expressivo depoimento, Lindgren, na delegação chefiada por Saboia, ajudou a “salvar do naufrágio a conferência” ao  encontrar fórmulas de equilíbrio aceitáveis para todos os países. E acrescenta, “a noção de legitimidade da preocupação internacional com a situação dos direitos humanos em qualquer país, um dos princípios consagrados na Declaração e Programa de Ação de Viena, tem as digitais inconfundíveis de Lindgren” (Belli 2022). A parceria se repete em 2001 na Conferência de Durban contra o racismo, que se origina de uma proposta de Lindgren, feita em 1994, na condição de membro (perito independente) da antiga Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, principal órgão subsidiário da então Comissão de Direitos Humanos da ONU. A proposta foi aprovada por consenso.

Depois de Viena, a sua trajetória intelectual se consolida. Em 1994, publica Direitos humanos como tema global, prefaciado por Celso Lafer. O livro tem repercussão positiva nos meios acadêmicos e é recebido por elogio entusiasmado da professora Maria Victoria Benevides (1994) em uma resenha para a revista Lua Nova (da qual, aliás, ele se torna colaborador frequente). Nessa fase, suas reflexões são especialmente voltadas para a dimensão multilateral do debate. Livros como Arquitetura internacional dos direitos humanos (Alves & Bicudo 1997) e Relações Internacionais e temas sociais: a década das conferências (2001) se tornam, pela combinação de conhecimento, rigor e sensibilidade diplomática, textos de consulta obrigatória para quem estuda a evolução da diplomacia brasileira de direitos humanos. A partir dos anos 2000, Lindgren amplia o horizonte de seus interesses para além da dimensão diplomática. Começa a olhar para os direitos humanos como uma questão civilizacional, envolvendo escolhas que definiram os rumos da  modernidade. Impressiona a maneira como Lindgren dialoga com os clássicos, como Weber, Marx e Hannah Arendt, e os pensadores modernos, como Bobbio, Zizek, Lyotard, Alain Badiou, Derrida, Amartya Sen, Bernard-Henry Levy e, entre os brasileiros, Abdias Nascimento, Flávia Piovesan, Celso Lafer e Paulo Sergio Pinheiro. Dois livros marcam o período – Os direitos humanos e a pós-modernidade (2005) e É preciso salvar os direitos humanos! (2018)[2]

A participação em reuniões e comitês das Nações Unidas deu a ele prestígio pessoal e respeito internacional. Assim, entre 2002 e 2017, foi eleito e reeleito para sucessivos mandatos como perito do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), o órgão formado por especialistas independentes encarregado de monitorar a implementação, pelos Estados-parte, de suas obrigações sob a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em vigor desde 1968. Entre 2018-2020, Lindgren foi designado secretário-executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH). A presença no CERD ofereceu um lugar privilegiado para acompanhar e opinar sobre as transformações na pauta de direitos humanos e suas implicações para as instituições multilaterais. Viu por dentro como funciona um órgão multilateral e escreveu artigos notáveis sobre os limites das instituições para aplicar as normas e resoluções na área de direitos humanos e as dificuldades para lidar com os conflitos de interpretações sobre o seu alcance. 

A coletânea de artigos que selecionou para o seu último livro abrange um amplo arco temporal, 1996 a 2018, e, por isso, é um registro valioso do balanço que faz Lindgren da história da luta pelos direitos humanos que começa em 1948 com a Declaração Universal. Ele sublinha as conquistas visíveis. Os direitos da mulher foram reconhecidos como integrantes dos direitos humanos universais; impôs-se o respeito aos homossexuais (e agora à comunidade LBGTQIA+); a escravidão foi equiparada aos crimes contra a humanidade; a expressão afrodescendentes se firmou nos foros internacionais. No âmbito do direito brasileiro, os crimes contra a honra deixaram de ser aceitos; aboliram-se conceitos de filhos bastardos e adulterinos; o próprio adultério deixou de ser crime; a união homoafetiva foi reconhecida como entidade familiar, regida pelas mesmas regras que se aplicam à união estável de casais heterossexuais; iniciaram-se as ações afirmativas para compensar desigualdades históricas. Cada uma dessas conquistas tem uma história própria, singular. Porém, a inspiração universalista dos direitos humanos, ao criar uma moldura ideológica consistente em defesa da dignidade individual, está presente em todas. 

A história de conquistas não iludiu o sentido realista das percepções de Lindgren, e os mais recentes escritos trazem uma medida de desencanto. Não por acaso, o título do último livro soa como um apelo: “é preciso salvar os direitos humanos!”. 

A história de conquistas não iludiu o sentido realista das percepções de Lindgren, e os mais recentes escritos trazem uma medida de desencanto. Não por acaso, o título do último livro soa como um apelo: “é preciso salvar os direitos humanos!”. Ele explica as razões essenciais da necessidade e da urgência de agir. Mostra como os consensos de Viena se tornaram frágeis e há sinais de retrocesso em conquistas que pareciam garantidas. Sublinha que a criação de uma frondosa burocracia multilateral no campo dos direitos humanos torna difícil acompanhar o que fazem os muitos órgãos e agências e, sobretudo, cobrar-lhes eficácia. Examina como emergem sinais e práticas de intolerância e xenofobia em sociedades que estiveram na vanguarda da promoção dos direitos humanos. O episódio das torturas em Guantánamo é analisado e suas consequências, medidas. A isto se soma o essencialismo multiculturalista, que traz o risco de fragmentar a perspectiva essencialmente universalista que Lindgren defendia como a plataforma necessária para organizar a melhor defesa dos direitos humanos. Ele oferece contribuições significativas para mostrar como as pautas identitárias, válidas em si, devem ter a abrangência para fertilizar e reforçar a luta que seria essencialmente universal. Teve a coragem intelectual para enfrentar questões conceituais intrincadas e socialmente polêmicas. São sempre equilibradas e sensíveis as respostas que sugere.

A soma de experiências de Lindgren é única; não houve outros brasileiros que tenham atuado em tantas frentes na luta pelos direitos humanos. Como diplomata, foi pioneiro para compreender o tema e formular a política externa brasileira de direitos humanos. Percebeu a necessidade de mudanças institucionais e liderou a sua implantação. Formou diplomatas. Negociou textos fundamentais que tecem os padrões contemporâneos da legitimidade internacional. Colaborou ativamente para a redação do I Plano Nacional de Direitos Humanos. O que aprendeu como diplomata é elaborado em reflexões conceitualmente sólidas que ficaram registradas em livros e artigos, sempre lidos com proveito. Tornou-se, por mérito pessoal, perito de órgão das Nações Unidas e olha por dentro o sistema multilateral e suas limitações. Divulga o que sabe em dezenas de intervenções em seminários, entrevistas, palestras e, recentemente, webinars.  O reconhecimento público se exprime quando recebe o Prêmio Nacional Heleno Fragoso de Direitos Humanos em 2001 e a Medalha Sergio Vieira de Mello, de Direitos Humanos e Direito Humanitário, em 2013. 

É exatamente a diversidade da experiência e a maneira como a viveu que o tornam um diplomata incomum. Foi além do Itamaraty, serviu à política externa e serviu ao país. Teve autoridade quando falava de direitos humanos. Deixa uma obra intelectual importante, mas deixa sobretudo um exemplo de integridade na dedicação a uma causa necessária quando se pensa em mundo mais igual, mais tolerante, melhor. Seu legado fica “à disposição da cidadania para a obtenção do avanço social com justiça (Alves 2018, 11).”  

Notas

[1] Agradeço os comentários de Celso Lafer, Benoni Belli e Silvio Albuquerque, que enriqueceram o texto. Eram amigos de Lindgren e, cada um à sua maneira, contribuiu para a história da promoção dos direitos humanos no Brasil. 

[2] Parte desta memória é baseada no prefácio que fiz para o livro. 

Referências Bibliográficas

Alves, José Augusto Lindgren. 1989. As Nações Unidas e os direitos humanos. Tese apresentada no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio-Branco. 

Alves, José Augusto Lindgren. 1994. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Editora Perspectiva. 

Alves, José Augusto Lindgren. 2001. Relações internacionais e temas sociais: a década das conferências. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI). 

Alves, José Augusto Lindgren. 2005. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva. 

Alves, José Augusto Lindgren. 2018. É preciso salvar os direitos humanos! São Paulo: Perspectiva. 

Alves, José Augusto Lindgren & Hélio Pereira Bicudo. 1997. Arquitetura internacional dos direitos humanos. São Paulo: FTD Educação.  

Belli, Benoni. 2022. “José Augusto Lindgren Alves: diplomata e intelectual público”. International Law Agendas, 6 de janeiro de 2022. http://ila-brasil.org.br/blog/jose-augusto-lindgren-alves/.  

Benevides, Maria Victoria de Mesquita. 1994. “Os direitos humanos como valor universal”. Lua Nova 34: 179-195. https://doi.org/10.1590/S0102-64451994000300011.  

Nações Unidas. 1993. Vienna Declaration And Programme Of Action. World Conference On Human Rights, Vienna, 14 a 25 de junho de 1993. https://www.ohchr.org/en/about-us/history/vienna-declaration.  

Recebido: 26 de outubro de 2022

Aceito para publicação: 11 de novembro de 2022 

Copyright © 2022 CEBRI-Revista. Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença de Atribuição Creative Commons, que permite o uso irrestrito, a distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o artigo original seja devidamente citado.


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Bicentenário da Independência: A Construção da Nação e o seu futuro - Canal YouTube do IAB, 5/09/2022, 10:00hs

Nesta manhã, 5/09/2022, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), promove mais um evento da série Bicentenário da Independência, desta vez sobre A Construção da Nação e o seu futuro

O Evento será transmitido pelo Canal YouTube/IABNacional.

Clique no link abaixo para assistir ao webinar: 

www.youtube.com/user/tviab


segunda-feira, 4 de julho de 2022

João Almino homenageia Sergio Paulo Rouanet + Jorio Dauster e outros colegas

Mensagem de João Almino a colegas da ADB

 Como já foi noticiado, morreu ontem no Rio de Janeiro o grande diplomata e filósofo Sergio Paulo Rouanet. Realizou um importante trabalho para o Itamaraty, entre outras funções, como negociador no GATT e na UNCTAD, chefe da Divisão de Política Comercial, Chefe do Departamento da Ásia e Oceania, além da chefia de missões diplomáticas. Foi meu primeiro chefe na DPC. Sabia transitar com naturalidade da conversa  sobre os grandes temas da política externa ou das leituras de filosofia para as decisões cotidianas da sua área específica de atuação. Dialogava de maneira sempre cordata, segura e inteligente com seus subordinados e com o embaixador George Alvares Maciel, então em Genebra, sobre as questões relativas às instruções a serem preparadas. Nos tornamos amigos e dois anos depois compadres, quando me convidou para ser padrinho da Adriana Rouanet, nascida de seu segundo casamento, com a socióloga, sua grande companheira e interlocutora Bárbara Freitag Rouanet.

Acompanhei, sempre com grande admiração, a evolução de sua importante obra filosófica (tenho alguns de seus textos em cópias datilografadas e um que não veio a publicar). Foi um dos mais destacados filósofos brasileiros, com vasta obra publicada no Brasil e no exterior. Escreveu sobre Machado de Assis (Riso e Melancolia), sobre Freud (Édipo e o Anjo e Os dez amigos de Freud) e livros que estão no cerne de sua reflexão sobre o Iluminismo como uma nova utopia, que não se confunde com a Ilustração (entre outros, As Razōes do Iluminismo e Mal-estar na modernidade). É importante destacar que, como Secretário Nacional da Cultura, empreendeu um diálogo com os setores artísticos e culturais do país e conseguiu a aprovação da lei de incentivo à cultura. Era membro da Academia Brasileira de Letras.

Além de Adriana, que já citei, e da viúva, Barbara, deixa dois filhos, Marcelo e Luiz Paulo, de um primeiro casamento.

Seu legado inclui a criação recente do Instituto Rouanet, em Tiradentes.

João Almino

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Agregou o embaixador Jorio Dauster:

Meu caro João Almino,
Você prestou a homenagem devida ao grande homem que foi Sergio Paulo Rouanet. Graças a seu tirocínio, ele devotou a maior parte da vida a percorrer os caminhos rarefeitos da filosofia, mas quero recordar aqui uma passagem dos tempos em que "Ruana" ainda era um entusiasmado jovem diplomata dedicado às questões econômicas internacionais. 
Nos longínquos idos de l964, antes que fôssemos alijados como subversivos da Delegação brasileira à I UNCTAD após o 31 de março, ele e eu redigimos a proposta de criação do Conselho de Segurança Econômica das Nações Unidas. Tratava-se de um dos itens que o Brasil advogou quando a participação da delegação na conferência era de fato conduzida pelo pai de nossa brava presidente da ADB, o embaixador Jayme Azevedo Rodrigues, que posteriormente teve seus direitos políticos cassados pelo AI 5. É que ainda acreditávamos em muita coisa que o mundo nos negou... 
Abraço,
Jorio  

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Outros colegas e amigos agregaram: 

Gelson Fonseca Júnior: 
Parabéns pela iniciativa. O Rouanet merece muitas homenagens, como diplomata, como intelectual engajado, como criador da lei que garantiu bases produção cultural nos últimos, como colega e amigo. Foi um privilégio conviver com ele e, sempre, aprender com ele. Um grande brasileiro.

João Gualberto Marques Porto: 
Colegas, amigos muitos, 
Falar sobre o "Ruana", como vários o chamavam, é fácil. Dificil é, para os que não privaram com ele, avaliar o tamanho dessa perda, pela dimensão imensurável de seu caráter e personalidade.
Minha experiência com ele durou bem além das mais de quatro décadas que passei na carreira ativa, no Brasil e fora. Conheci-o de nome, antes de entrar para o IRBr, nos albores da "Gloriosa", seu nome vinculado a formulações sócio-políticas que apontavam para uma provável - felizmente jamais ocorrida - repressão.
Com efeito, a esquerda do Rouanet era iluminada por uma estrutura de pensar autenticamente humanitária e democrática, parâmetros filosóficos que guiaram suas atitudes ante a vida até sua morte. Era um mestre do pensamento, como cabe aos filósofos de porte. Sua obra é imensa e abrangente, sobre multidisciplinar, à semelhança de sua erudição e cultura.
Sua fama me veio da primeira informação a seu respeito, de que passara para o segundo ano de Direito, na PUC do RJ, sem dependência, como invariavelmente ocorria, em Filosofia do Direito, ministrada por jurista de origem polonesa, Sbrozec, implacável em sua avaliação dos alunos. O resultado, segundo consta, foi não só de aprovar, mas aplaudir, de pé, Sérgio Paulo Rouanet.
Foi meu Professor de Política Internacional, no segundo ano do IRBr, ainda nas dependências da Candelária, no RJ. Sua fala monocórdia podia dar sono, mas o entrecho não deixava jamais dormir. Nas aferições de conhecimento, que exigiam nota valorada, conforme os ditames de um sistema de ensino que julgava incoerente e ultrapassado, além de urdido com severas falhas, nunca deu menos do que 8, pois acreditava que as provas, ginasianas que eram em seu método de aferição, pouco indicavam do valor real do examinando.
Com isso, meu deu 10 em duas provas, cujas questões (Morgentau e a Teoria do Poder, Nash e a Teoria dos Jogos) ainda são de minha completa memória, como quase tudo que dele me veio. O mesmo ocorreu em seminário dinâmico que propôs à turma, para encenar confronto multilateral, no qual me coube o papel de representante da Comissão da então Comunidade Econômica Europeia, ato que situo na raiz de meu interesse por aquela integração econômica, e, em provir dinâmico, política, que terminou sendo um de meus avatares temáticos na Carreira e tema de minha tese de CAE.
Sempre em contato, após esse prelúdio acadêmico, viemos a reencontrar-nos na Delegação Permanente em Genebra, em minha primeira lotação lá (2 e 1S), período em que tive o privilégio efetivo de compartilhar com ele a mesma sala de trabalho, por inteiros quatro anos. Fui seu segundo em matéria de UNCTAD (Comissões de Manufaturados, de Produtos de Base e de Assuntos Financeiros e Junta de Comércio e Desenvolvimento), no que foi o melhor aprendizado de minha vida, ao habilitar-me a atuar em seu lugar e a pensar estrategicamente, no contexto da buscada reforma do sistema econômico internacional, em que, ademais, militavam algumas das melhores cabeças da Casa: Souto Maior, Amaury Bier, Ronaldo Costa, Lindenberg Sette, Paulo Cabral de Melo, Paulo Nogueira Batista, George Alvares Maciel, Antônio Sérgio Frazão, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, nos planos mais elevados, complementados por uma incrível turma de assessores da mais alta competência, e com outros bem menores, como eu, na rabeira da lista.
Esses foram anos realmente dourados, no dia a dia com Sérgio Paulo, na mesma diminuta sala de trabalho, com os papéis desencontrados de sua mesa derramando-se sobre a minha, em contraste com seu pensamento dialético, perfeitamente ordenado, que se vertia sobre mim. E isso numa convivência intra e extracurricular de grande variedade, entre almoços nos desvãos horários do Palais des Nations e um que outro jantar na Vieille Ville, em seu apartamento da Grand'Rue, ou em minha casa de Conches.
Nessa época, finalmente, após troca infinita de profissionais do campo, encontrou um analista que podia ouvi-lo sem perder-se ante o cérebro maciçamente informado e culto de seu paciente. Foram seis anos de "sessões", durante algumas das quais, nos quatro anos citados, pedia-me que o substituísse, quando se chocavam com nossa agenda unctadiana. Lembra-me bem o dito "rompimento final", em que, dada a profundidade dos laços assim formados, Rouanet encontrou certa dificuldade de liberar-se, o que, de repente, ocorreu quando, como me disse, se deu conta de que se tratara, verdadeiramente, de um diálogo com seu próprio inconsciente. 
Daí em frente, não mais trabalhamos juntos, a não ser ocasionalmente, em conferências internacionais, onde a liga que formáramos se repetia com facilidade.
Nossos papos nunca foram papos-cabeça por si mesmos, ainda que mormente inspirados pelo nível que inevitavelmente tomavam quaisquer tertúlias, sobre qualquer tema, de cinema a automóveis (com exceção de esportes, que não o atraiam, apesar de sua notável força muscular). Por exemplo, foi nessa época que, com José Guilherme Alves Merquior, outro exímio pensador e, curiosamente, sua nêmese ideológica, realizou a celebrada entrevista, seminal, de ambos com Michel Foucault. 
Singularmente, vem-me à lembrança que, naquele período genebrino, o governo brasileiro (apesar de ainda estar no poder a "gloriosa") decidiu condecorar com a Grã-Cruz do Cruzeiro do Sul o pensador e educador suíço Jean Piaget. O Embaixador Ramiro Saraiva Guerreiro, nosso então chefe em DELBRASGEN, fez a entrega da honraria em sua residência, para o quê incumbiu Sérgio Paulo de preparar-lhe breve discurso. Para admiração geral dos convivas, Piaget começou seu agradecimento pela menção de que jamais, em sua vida, ouvira tão concisa, precisa e substantivamente profunda análise de seu pensamento.
Tendo recebido do Brasil um dinheiro - muito bem-vindo naquela conjuntura de severa estagflação dos anos 70/80 e seus dois sucessivos Choques do Petróleo -, decorrente da venda de sitio que herdara de meu pai, resolvi investi-lo na compra de uma pequena Ferrari, marca que, à época, como várias outras de nome, davam desconto para diplomatas, pelo sentido de propaganda que seu uso por eles ensejava, o qual permitia revender o carro, mais tarde, sem perda de valor, a preço equivalente ao da compra, senão maior. Diferentemente de outros colegas que viam naquilo abuso ou irresponsabilidade, Sérgio Paulo achou engraçadíssima minha decisão e tratou de fazer juma análise psicanalítica do objeto da compra, que assim descreveu, precisamente, sem dela ter conhecimento, da publicidade da marca: "De corpo suave e sensual, é arrepiante em seu desempenho, como o som de seu motor". Ou seja, Rouanet era gente.
Daí para a frente, foram sempre águas tranquilas, confirmadas pela boa liga que formei com sua nova companheira, logo depois esposa, Bárbara Freitag, sólida intelectual por seus próprios méritos de socióloga do Grupo de Frankfurt, algo mais radical no uso de Marx do que seu marido, porém com encaixe que a comum das mortais nunca conseguiria com ele. Juntos, no final dos anos 70, no sítio que Sérgio Paulo comprara nos arredores de Brasília, em meio a jabuticabeiras, goiabeiras e mangueiras, glosávamos os ataques de Carlos Frederico Werneck de Lacerda, notável golpista de sempre, repudiado até pela "gloriosa", que tanto apoiou, à postura crítica, daquela que chamava, maldosamente, de "A Dama de Berlim". à educação no Brasil, severamente afetada pela visão, vinda dos militares no poder, das reformas de que esse setor tanto carecia, como ainda hoje, por sinal.
A Lei Rouanet, hoje posta em cheque pela mesma visão dantesca da "gloriosa", imperante até 1985, creio que resume bem Sérgio Paulo Rouanet. Enquanto as esquerdas desilustradas e pró-ditatoriais repelem, ou buscam corromper, o empresariado industrial, Rouanet insistia em que este deveria ser cooptado para compor, positivamente, com seus vultosos recursos, o quadro de redenção social de que o Brasil estruturalmente necessita com urgência. O uso de parte de suas receitas, em benefício da cultura, em última análise colima esse fim e tem efeito exemplar para estender medidas desse gênero a outros campos de nosso processo de desenvolvimento.
Sua entrada para a Academia Brasileira de Letras é prova marcante de quanto precede. Longe de ser aquele sarcófago para velhotes literatos, visto por muitos "revolucionários" como antro de conservadorismo, é, a rigor, o nec plus ultra da consagração do intelecto, hoje estendido para muito além de premiação da produção estritamente literária, para cobrir campos diversos com efeito sobre a cultura nacional.
Hoje, às 14 horas, despedi-me de meu amigo, de e para sempre, Sérgio Paulo Rouanet.
João Gualberto Marques Porto Junior.

Fernando Vidal: 
Fui designado para acompanhar o Embaixador Rouanet em Havana, quando ele esteve lá, em 1992, para reunião de Ministros da Cultura da América Latina. Fiquei com ele o tempo todo, alguns dias, e devo dizer que foi um prazer enorme, tão grande que lamentei quando ele partiu de volta a Brasília. Conversamos muito, sempre muito descontraidamente, porque ele me deixou muito à vontade, e pude perceber como ele tinha uma inteligência superior. Aprendi com ele algo que nunca esqueci: o altíssimo risco de um diplomata fazer previsões em política externa, que podem depois não se confirmar e deixar-nos mal. Meus pêsames à família. Fernando Vidal.

Ozorio Rosa: 
João Almino, você conseguiu sintetizar  com precisão e conhecimento de causa tudo o que de fundamental e significativo poderia ser destacada sobre o grande diplomata e ex-Ministro da Culturs que nos deixa agora. Como vizinhos de posto - ele em Praga e eu em Budapest - trocávamos com frequência informações sobre temas administrativos mas egoísta e unilateralmente eu aproveitava essas oportunidades para haurir um pouco de seus fenomenais conhecimentos sobre Kant  que ele sem soberba e com paciência me compartilhava. Um homem admirável.

Fernando Guimarães Reis: 
Para o perfil do saudoso colega - tão bem traçado por João Almino -  gostaria de mencionar algo, que me parece importante. Como toda pessoa, altamente inteligente, Rouanet (Rouana, afetuosamente}  era compreensivo e tolerante, o que nem sempre é o caso para os que se julgam de posse da luz da razão, sempre "cativa", ás às vezes cega. .Dentro de seu racionalismo, ele era afirmativo, sem dúvida, mas sempre esteve alerta para as "trapaças" do intelecto ( o depoimento de Fernando Vidal , nesse sentido, é  muito oportuno). .Ouso dizer que a própria obra do filósofo acusa uma evolução: das certezas iluministas ao humor desconfiado´(e melancólico) de  Lawrence Sterne, tão querido por Machado de Assis. .Sinal de que a  inteligência pura busca um contraponto.real. Não por acaso,  o Acadêmico dedicou seus últimos anos a recolher  a correspondência esparsa  do Mestre do Cosme Velho - trabalho modesto e inestimável., ..Em suma, o que me apraz sublinhar 11 é o exemplo: junto com sua  poderosa  lucidez e clarividência,, Rouanet  não abdicava da honestidade intelectual  e, em consequência, da modéstia. .Deu provas disso,  por exemplo, em  polêmica com o também saudoso José Guilherme Merquior. Respeito pelo outro era também  o que o extraordinário diplomata  inspirava  no enriquecedor contato pessoal, marcado ademais pela afabilidade, de que há tantos  testemunhos. Fará muita falta, neste país cada vez mais indigente..  

Jom Tob Azulay: 
Caro João Almino,
Você fez uma bela e justíssima síntese da personalidade, da carreira e da obra do Rouanet. Naquele período de fins da década de 90 em que as grandes questões contemporâneas se agravaram, seus artigos no JB iluminavam com clareza e precisão temas como universalismo e cultura nacional. Tenho acredito guardados até hoje muitos de seus artigos nos quais me amparava quando me faltavam palavras. Sua tradução do A Origem do Drama Barroco Alemão de Walter Benjamim permanecerá como das mais primorosas em língua portuguesa. Poucos seguiram como ele a máxima de que a clareza é a gentileza do filósofo. Deixou uma sutil mas perene contribuição para a cultura brasileira.
Obrigado pelo seu comentário.
Um abraço,
Jom Tob

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João Almino agradeceu: 

Agradeço todas as respostas a meu post, os comentários e informações que enriqueceram o depoimento sobre o Embaixador Sergio Paulo Rouanet. Creio que neste grupo é relevante lembrar um lado menos conhecido de sua biografia: sua contribuição para a política externa e internacional do Brasil e para as causas dos países em desenvolvimento desde os tempos da I UNCTAD, como destacou Jorio.

Sobre o pensamento, publiquei ontem um artigo na Folha. Terei a oportunidade de falar da memória afetiva amanhã, na “sessão da saudade” da ABL, ao ter sido escolhida pela família para ser o orador oficial. 

Destacarei as muitas qualidades pessoais e profissionais de Sergio Rouanet que foram mencionadas aqui.

sábado, 28 de maio de 2022

Prefácio de Gelson Fonseca Jr., ao livro de J.A. Lindgren Alves: É Preciso Salvar os Direitos Humanos

 UM APELO NECESSÁRIO  

Gelson Fonseca Júnior

Prefácio ao livro de José Augusto Lindgren Alves:

É Preciso Salvar os Direitos Humanos

(São Paulo: Perspectiva, 2018)

 


 Para esta coletânea de artigos, José Augusto Lindgren Alves escolheu, com boas razões, um título que traz um apelo e tem sentido de urgência: É preciso salvar os direitos humanos. O apelo merece atenção porque feito por um dos mais notáveis especialistas brasileiros em direitos humanos, conhecido por sua ampla e respeitada produção. As reflexões de Lindgren começam a ser articuladas em 1989, quando apresenta a tese, As Nações Unidas e os Direitos Humanos, ao Curso de Altos Estudos, do Instituto Rio Branco. Em seguida, em 1994, publica seu primeiro livro, Os Direitos Humanos como Tema Global (Perspectiva, 1994) e, daí em diante, não interrompe mais a sua contribuição intelectual e diplomática à causa dos direitos humanos. No seu currículo, são sete livros e inúmeros artigos em revistas acadêmicas e jornais. Anoto que seus primeiros textos estão voltados para a diplomacia dos direitos humanos e todos se tornam referência necessária para quem estuda o tema, especialmente o Relações Internacionais e Temas Sociais: a Década das Conferências (IPRI-FUNAG, 2001). 

Gradualmente, o seu horizonte temático se alargou. As questões de direitos humanos naturalmente o estimularam a analisar os fatores sociológicos que condicionavam a sua promoção e aplicação. Também não faltou, em seus escritos, a preocupação filosófica, centrada no exame do sentido da universalidade da projeção dos DHs. Impressiona a maneira como Lindgren introduz a reflexão de clássicos, como Weber, Marx e Hannah Arendt, e de pensadores modernos, como Bobbio, Zizek, Lyotard, Alain Badiou, Derrida, Amartya Sem, Bernard-Henry Levy e, entre os brasileiros, Abdias Nascimento, Flavia Piovesan, Celso Lafer e Paulo Sergio Pinheiro. Assim, seus argumentos ganham em profundidade e estão em permanente diálogo com o melhor pensamento sobre os rumos da civilização na modernidade e na pós-modernidade. Na obra de Lindgren, ressalta ainda o fato de que suas ideias são, como se dizia, engajadas, ligadas frequentemente no debate nacional e internacional sobre as questões difíceis do campo. 

A carreira de Lindgren acompanha e estimula as suas reflexões. Ele chefiou a área de direitos humanos no Itamaraty em 95 e 96, participou das Conferências Globais das Nações Unidas, dos anos 90, a começar pela Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, e, graças a seu conhecimento e reputação, foi eleito, a título pessoal, em 2002, como perito, para o Comitê para a Erradicação da Discriminação Racial (CERD), da Nações Unidas. Reeleito sucessivamente, está até hoje no Comitê. 

Nos artigos aqui compilados, todas as virtudes do pensador e do diplomata, do estudioso e do militante, aparecem e se combinam para propor uma reflexão madura, consistente, oportuna, e que deve ser lida, com proveito, por todos que querem um país (e uma ordem internacional) orientado por valores que sustentem a dignidade das pessoas e dos grupos sociais. Não tenho dúvidas de que o livro alargará o conhecimento de leigos e especialistas sobre o estado atual do debate sobre as questões de direitos humanos. E, ainda, vale a leitura pela elegância da apresentação dos argumentos, sempre claros, precisos, redigidos de tal forma que torna fácil mesmo a compreensão de temas complexos. 

A coletânea, organizada a partir de textos escritos entre 1996 e 2016, chama atenção, inicialmente, pela a abrangência da temática, unificada pela preocupação com o esmorecimento do prestígio da causa dos direitos humanos e suas consequências. O ponto de partida são os sinais múltiplos, crescentes, de que a luta pela defesa e promoção dos direitos humanas, que marca os anos 90, começa a sofrer distorções, encontra dificuldades para avançar. Aliás, como para provar que o problema é agudo e urgente, em fins de dezembro de 2017, o Princípe Zeid Raád Hussein, comissário de direitos humanos da ONU, anunciava que desistia de um segundo mandado na função com palavras contundentes, “After reflection, I have decided not to seek a second four year term. To do so, in the current geopolitical context, might involve bending a knee in supplication; muting a statement of advocacy; lessening the independence and integrity of my voice – which is your voice”.

No abrangente diagnóstico que Lindgren faz do problema do esmorecimento da causa dos DHs, a evolução recente do contexto político internacional e o comportamento das potências é um deles. Mas, sem hierarquizá-los, há outros fatores que, acredita o autor, se tornaram estruturais, como o da transferência da luta universal para causas particulares pela via do multiculturalismo e a própria dinâmica da burocracia internacional de DH que se multiplica em detrimento da eficácia. É impressionante o arsenal de argumentos, apoiado sempre por ilustrações valiosas, que Lindgren coleciona para demonstrar a sua tese. Parece que nada, na história recente da promoção dos direitos humanos, escapa a seu escrutínio. Lida com o tema da xenofobia na Europa, das torturas em Guantánamo, da evolução complicada da situação na Bósnia, de posições de Bento XVC, da ocidentalidade dos direitos humanos e muito mais. Resume a história da trajetória do sistema de direitos humanos, discute a diferença que tem em relação ao direito humanitário e mostra em que condições (paz e guerra) podem e devem ser aplicados. Também é valiosa a análise de dentro dos mecanismos multilaterais, especialmente da CERD. Neste tema, aliás, creio que a sua contribuição é única e reveladora. 

Uma das forças do texto é o de que não foge à polêmica. É corajoso, como tem sido corajosa a sua participação no CERD, muitas vezes isolado, ao enfrentar temas espinhosos como o dos excessos do politicamente correto. As afirmações de Lindgren são frequentemente contundentes, em retórica forte, sem meias palavras. Ao refletir com indignação racional ao que vê, combina sentimentos fortes e argumentos fortes. O descaminho da luta pelos direitos humanos, em sua concepção mais valiosa, como a que está fixada na Conferência de Viena de 1993 não é uma perda menor para uma ordem internacional carente de padrões éticos e, sobretudo, para homens e mulheres ainda discriminados, ainda longe de gozar direitos dos mais elementares direitos. 

Para situar as origens da preocupação de Lindgren, é necessário lembrar o que a causa dos direitos humanos realizou ou ajudou a realizar. A aceitação da universalidade dos direitos humanos e sua articulação multilateral em Viena têm reflexos notáveis para a luta social pela dignidade humana, nos últimos anos. Lindgren lembra que os direitos da mulher foram reconhecidos como integrantes dos direitos humanos universais; os homossexuais no Ocidente puderam começar a assumir-se; a escravidão passou a ser encarada como aberração equiparável aos crimes contra humanidade; a expressão afrodescendentes se firmou nos foros internacionais para abranger categorias distintas de negro e mestiços. No âmbito do direito brasileiro, os crimes contra a honra perderam legitimidade; aboliram-se conceitos como o de filhos bastardos e adulterinos; o próprio adultério deixou de ser crime; os homossexuais ganharam direitos civis iguais aos dos homens e mulheres; iniciaram-se as ações afirmativas para compensar desigualdades históricas. Cada uma dessas conquistas tem uma história própria, singular. Porém, a inspiração universalista dos direitos humanos, ao criar uma moldura ideológica consistente em defesa da dignidade individual, está presente em todas. 

É evidente que o trabalho de levar adiante as propostas e determinações da Declaração Universal dos Direitos Humanos, renovadas pela Conferência de Viena, e por tantos outros documentos internacionais, está longe de ser completada. Nos anos 90, no imediato pós-Guerra Fria, a percepção dominante era de que a conquista da universalidade dos DHs estava garantida e se tornava parte obrigatória do repertório de legitimidade internacional, constituindo referência política que com a vocação da permanência. As lutas não seriam por princípios ou teses, mas para realizá-los, para fazer com que modelassem a realidades; o que se pretendia eram mudanças de normas jurídicas, de comportamentos, de atitudes individuais e coletivas. Vale citar Lindgren que esclarece com acuidade o que significam: 

Com sua natureza cogente e valor referencial abrangente, os direitos humanos não são e não podem representar objetivos em si. Constituem, sim, instrumentos internacionais de conformação normativa, insuficientes, mas úteis, à disposição, em primeiro lugar, da cidadania para a obtenção do avanço social com justiça. 

 

O projeto não era, portanto, de curto prazo, mas incorporava e organizava aspirações da humanidade que vinham do Iluminismo. É verdade que, desde sempre, reconhecia-se que alguns dos obstáculos eram evidentes, como a manipulação política da causa, o alcance das exceções culturais, mas não seriam intransponíveis. Ou melhor, estavam lançados no caminho, atrasariam aqui e ali a aplicação do projeto maior, mas não mitigavam a força e a legitimidade dos objetivos. 

As esperanças de uma trajetória de afirmação crescente do espírito de Viena encontraram, porém, ao longo dos anos 90, novos obstáculos, tema central de Lindgren nesta coletânea, especialmente dos que foram criados como são fruto indesejado do sucesso “ideológico” da causa dos direitos humanos. Os obstáculos “antigos” não desapareceram e as restrições de direitos dos governos impostas por governos arbitrários, seculares ou teocráticos, as dificuldades de acesso de largos contingentes a bens que garantam dignidade mínima, continuam e precisam ser combatidas como têm sido. Há, porém, problemas novos, como a discriminação e a estigmatização de grupos sociais, o tratamento de emigrantes, e as formas inconcebíveis de tratamento de prisioneiros de guerra.[1] Como Lindgren aponta com razão, “Por mais que os Estados, democráticos ou não, precisem agir contra o crime e o terror para a proteção imprescindível à convivência e ao próprio usufruto dos direitos, as ações de prevenção e repressão têm regras mínimas”..., pois, caso contrário, “constituem uma desumanização do humano, sejam os alvos inocentes ou culpados... correspondem... à denegação daquilo que Hannah Arendt chamou `direito de ter direitos´.” Mais grave ainda, é a rapidez com que o mundo assimilou a tortura de muçulmanos suspeitos de terrorismo, assim como a reação superficial dos Estados responsáveis diante do clamor inicial contra ela”. Um sintoma do enfraquecimento da luta pelos direitos humanos é que praticamente desaparece da plataforma das lideranças políticas, mesmo em países ocidentais desenvolvidos (e os textos são anteriores à eleição de Trump para o Governo dos EUA).

Há dois outros fatores para os quais Lindgren chama atenção e que seriam o eixo central de sua reflexão: o multiculturalismo essencialista que permeia o discurso dos direitos humanos e as distorções que sofrem as instituições que foram criadas para a defesa dos direitos humanos. Nos dois casos, e daí a necessidade de debatê-los, há uma espécie de distorção de objetivos da luta original, ou por intepretações equivocadas dos preceitos originais (mas que tiveram significativo apelo social e político) ou por crescimento desordenado da burocracia multilateral que lida com os instrumentos que aplicam as normas e resoluções dos pactos e resoluções multilaterais. Os dois movimentos, por razões diferentes, levam a que se enfraqueça o que Lindgren considera o fundamental da causa dos direitos humanos, o sentido universal e a defesa do indivíduo. E, teriam paradoxalmente resultado do êxito de Viena, que aborda em um dos mais interessantes capítulos da coletânea. 

O primeiro tema, o essencialismo multiculturalista, é especialmente complexo e boa parte dos artigos, direta ou indiretamente, o aborda. O universal tem limites, aceitos pela própria Declaração de Viena (art. 5), e, como é difícil imaginar, para as exceções culturais, uma solução conceitual unívoca, o ajuste de seus termos se transfere para situações concretas. O significado de universal é fácil de conceber e está alicerçado por uma longa tradição da filosofia ocidental, fundada na concepção da igualdade fundamental dos seres humanos. O problema é o particular exatamente porque cada “particular” tem limites singulares, mais ou menos impermeáveis à incorporação das condicionantes que o universal sugere ou impõe. Lindgren aceita a ideia da diversidade como enriquecedora do convívio social e compreende a necessidade de que se estabeleçam políticas publicas para grupos vulneráveis. Mas, o que o preocupa é a “confusão que ora se faz entre os direitos culturais da Declaração Universal e os hoje alardeados ´direitos das culturas´ e direitos das minorias´”. Por várias razões e a primeira é doutrinária: tais direitos, consagrados em vários documentos, podem e devem ser defendidos, porém não seriam, em sua acepção mais rigorosa, direitos humanos pois lhes faltaria a condição universal. 

Outro problema é que a capa conceitual dos direitos das minorias abriga realidades muito diferentes e que rejeitam tratamento uniforme. A proteção dos costumes de uma tribo yanomami tem pouco que ver com o debate sobre o casamento arranjado entre os roma. “É um contrassenso equiparar os direitos humanos de pessoas discriminadas e perseguidas pela cor… ou dos indígenas e quilombolas que sempre viveram fora da sociedade principal, com o direito à diferença de culturas discriminadas ou não que, por vontade própria ou ideologia assumida, rejeitam esforços de integração na sociedade onde vivem”. Se se deixasse a cada grupo autodefinir os limites de sua particularidade e consequentemente a medida de aceitação das normas da sociedade em vivem e convivem, a fragmentação e o conflito dentro daquela sociedade poderia se exacerbar. Porém, não parece o melhor caminho impedir que, em alguma medida, os grupos definam o que lhes é essencial para preservar como grupo. Como se chega com razoabilidade ao limite do particular? A medida da defesa do particular tende assim a se converter em um processo político em torno de valores. Para Lindgren, a solução será sempre a de um universalista convicto, como ele mesmo se intitula. É o padrão de legitimidade dos DHs que oferece a melhor defesa para que os discriminados se protejam da discriminação e a melhor referência para circunscrever o que é particular. Como ele adverte, o particular sem limite pode gerar um tipo de fundamentalismo do politicamente correto, falsamente progressista, pode justificar a contrario sensu as tendências fascistas, ultranacionalistas que vêm ganhando terreno mesmo nas democracias ocidentais. O risco maior, porém, é político, como mostra em um capítulo notável, “O culturalismo como separatismo”, de que vale citar a conclusão: “O discurso culturalista não cria de per si reações perigosas, mas ao estimular diferenças, em vez de conciliá-las com algum sincretismo equânime, certamente fornece insumos que alimentam o racismo e a segregação”. 

Outro fator estrutural que minaria os ideais de Viena está ligado às opções de políticas econômicas e sociais que começam nos anos 90, com a hegemonia do neoliberalismo. Nas palavras de Lindgren, vivia-se um paradoxo, pois o apogeu do discurso humanista coincidia com a destruição de suas condições de realização.[2] Viena programara iniciativas que exigiam mais do Estado enquanto o sistema econômico exigia o Estado mínimo. A questão persiste e as crises financeiras em países como a Grécia e Portugal tiveram, como resultado, um encurtamento de vantagens e benefícios sociais (da assistência médica às pensões) que não seriam recuperados no curto prazo. É evidente que, nos países desenvolvidos, a rede de proteção social, mesmo prejudicada, ainda atende e responde a seus objetivos básicos. O problema é mais dramático nos países em desenvolvimento, mesmo no Brasil, em que a rede dos serviços sociais ainda está longe da eficácia e problemas como o envelhecimento da população alimenta problemas fiscais similares ao das economias maduras. O fato é que as realidades variam e muito. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma das consequências da dominância do mercado (na sua forma recente) foi o aumento da concentração de renda e, mais grave, as tentativas de atenuá-las, como o Obama CARE BAMACARE, estão sendo questionadas: do outro lado do espectro político, na China, é evidente a melhoria da situação econômica de parte significativa da população, mas o progresso é limitado no campo dos direitos políticos. A natureza diferente dos problemas não diminui e, sim, reforça a necessidade de aceitar a inspiração universal dos direitos humanos. Se as soluções, em cada caso, serão diferentes, umas a exigir transformações estruturais, outras, mudanças conjunturais, umas, reformas institucionais, outras, ajustes de política, a necessidade de garantir e elevar a dignidade humana é a mesma em qualquer quadrante do planeta. Se não existe um receituário claro e único, é indispensável retomar a inspiração dos DHs, reintroduzi-la plenamente nos processos políticos. 

Um dos problemas decorrentes da concentração dos direitos humanos na luta identitária, ainda na visão de Lindgren, é o esmaecimento da compreensão das raízes estruturais de problemas que levam discriminação. A proliferação das lutas localizadas, ainda que tenham sobradas razões, convalida uma visão fragmentária da sociedade. As ligações estruturais entre classes desaparecem e luta social se dispersa. De novo, o problema é complexo e, ao estudá-lo, Lindgren oferece uma das chaves para compreender a sociedade contemporânea. Sem esquecer as distinções nacionais e regionais, no plano global, a desigualdade entre níveis de desenvolvimento ainda é avassaladora e não tem diminuído uniformemente. A diferença entre os países desenvolvidos e os estados “falidos” não precisa ser sublinhada para mostrar a diversidade do mundo. Aceitas as diferenças, o fato é que a própria natureza do mundo do trabalho que serviu, desde a Revolução Industrial, para definir identidades deixa, por razões muitas, de fazê-lo.[3] Com a globalização, mudam a economia e a sociedade. Muda também a natureza do trabalho e esmaecem os instrumentos tradicionais de protesto e revolta, mas não o quadro de desigualdade, de pobreza, de vulnerabilidades humanas. Creio que é este o contexto em que se dá a explosão das lutas identitárias que, na visão do autor, por justas e necessárias que sejam, seriam sempre limitadas e circunscritas, com o risco de que sejam usadas para que se esqueçam os problemas sociais maiores. Como o Lindgren afirma, “a tendência ora predominante do sistema é de privilegiar minorias em detrimento das atenções para o conjunto. Pouca atenção é dada internacionalmente aos direitos das camadas gigantescas de pobres sem etnia ou outro elemento diferencial que os destaque. Para o liberalismo hegemônico, os simplesmente pobres são marginalizados porque fora do mercado, responsabilizados pela própria pobreza num círculo vicioso que só pode levar ao crime”. 

Outro resultado paradoxal do êxito de Viena foi a multiplicação dos foros e instrumentos de promoção dos DHs. Aqui, a análise que Lindgren faz é especialmente valiosa (até porque raramente os membros de instituições multilaterais são tão claros e abertos nas críticas que fazem às mazelas do sistema). O diagnóstico é de novo contundente. Para proteger a situação de grupos ou categorias de pessoas, o sistema de promoção e proteção dos direitos humanos, ampliou o número de relatores temáticos (hoje mais de 30), multiplicou normas e instrumentos que, se revelam objetivos nobres e mesmo necessários, “torna o conjunto complexo, frouxo, sem hierarquia, com elementos claramente conflitivos”. Entre as consequências, a primeira é tornar difícil, mesmo para o especialista, acompanhar a profusão de recomendações que emana dos órgãos, recomendações que, muito frequentemente, caem no vazio porque os Estados simplesmente não têm condições de cumpri-las. Aliás, neste capítulo, são valiosas as observações de Lindgren sobre as demandas de estatísticas que incluam os grupos étnicos que, em muitos casos, são absolutamente irrealistas (como no caso de Luxemburgo) e, em outros, especialmente em países africanos (e mesmo europeus), conducentes a situações conflitivos mais do que positivas para o quadro de convivência social. O velho vício do irrealismo, tão frequente nas decisões multilaterais, frequenta, com vigor, o sistema de direitos humanos. 

A partir da sólida matriz conceitual que Lindgren construiu para o seu argumento, creio que um dos interesses na leitura da coletânea é o mosaico que o autor cria, tornando possível olhar, de vários ângulos, a questão central e, a cada passo, entender o seu alcance, suas nuances e, sobretudo, o porquê de seu apelo para salvar os direitos humanos. 

Na parte final do livro, Lindgren examina sua participação na CERD, além de levantar vários temas que chegaram à agenda da opinião pública. 

Assim, o relato da sessão comemorativa dos Cinquenta Anos da Convenção sobre Eliminação da Discriminação Racial é a oportunidade para discutir temas como a islamofobia, as opções históricas para o movimento dos afrodescendentes nos Estados Unidos, o alcance do conceito de minorias, o racismo como fenômeno planetário, a questão do politicamente correto e os exageros que pode induzir.[4] Ao longo do capítulo, questões como a polêmica sobre o uso da burca ou a atitude dos que afirmam que os DHs servem para proteger criminosos, são abordados com franqueza e com sólidos argumentos. O capítulo sobre a Americanização Global é um resumo perfeito de tendências que ele tem observado com a preferência pelos particulares, induzido pelo multilateralismo, com consequências negativas para o sentido universal que deve comandar a promoção dos direitos humanos. 

Na narrativa sobre a sua participação no CERD, Lindgren discute o “essencialismo multicultural”, mostrando as distorções que o conceito de etnia introduz, levando a que, em certas circunstâncias, o Comitê tenda a “dar mais atenção às etnias como comunidades a serem mantidas intactas do que as manifestações de racismo contra elas”. Para ele, além do fato de que o multicultural cai mais na competência da UNESCO do que propriamente na de um órgão de direitos humanos, “algumas das práticas recomendadas para situações específicas aparecem como regras uniformes, aplicadas a todos os casos como se a realidade devesse sempre amoldar-se a um parâmetro nunca definido na Convenção.” É valioso o seu depoimento sobre a tentativa de debater o alcance do “multiculturalismo” na Comitê para esclarecer o que se pretendia, ou defender a integração das minorias na sociedade onde se inseriam, mantendo o essencial de suas culturas, mas observando as regras abrangentes, ou mantê-las separadas com suas culturas intocáveis. Lindgren defende a primeira opção que se identifica com as propostas de Martin Luther King e Mandela, mas não consegue que o órgão adote uma posição clara sobre o tema. Mostra em seguida como certas recomendações gerais, como o levantamento de estatísticas que desagreguem as etnias podem simplesmente não ter sentido e, mais grave, em certas circunstâncias, levar a exacerbação de conflitos e não ajudarem a conciliação nacional, especialmente em países africanos. O argumento ganha força pela análise criteriosa de decisões do CERD, de maneiras como examina e decide sobre situações de países.[5] É especialmente valiosa a análise que faz da sessão de 2012, mostrando como evolui o debate em torno dos relatórios do Quênia, do Reino Unido, do Canadá, de Portugal, do Vietnã, do México, dos países muçulmanos e dos Estados Unidos. Entramos na intimidade do Comitê, de suas tendências e impasses, sempre apresentados com franqueza e objetividade. Temos, assim, na coletânea, um documento precioso para quem for estudar processos de decisão em organismos internacionais. 

Vale ainda, e muito, a leitura dos capítulos em que Lindgren discute o terrorismo, a crise dos refugiados (aqui, de maneira premonitória porque o artigo é de….), uma fala polêmica de Bento XVI, uma fotografia que ficou conhecida como o da Pietá Muçulmana, a caricatura de imagens sagradas… enfim, nada de relevante e polêmico na questão dos direitos humanos escapa ao exame sensível de Lindgren. 

O fato de que o tema dos direitos humanos tenha perdido prestígio pode levar a uma atitude um tanto pessimista, mas não menos engajada e, no fundo, esperançosa que a luta volte aos melhores trilhos. A cada capítulo, sempre aparecem ideias e sugestões sobre correções possíveis. Seu trabalho no CERD, muitas vezes solitário, a frequência com que traz ao debate público os problemas da promoção dos direitos humanos, são credenciais importantes para uma luta complexa, difícil, com revezes, mas uma luta necessária e urgente. Uma das perguntas que fica é quem salvará, como se retomará a luta, com que forças Lindgren conta em seu esforço e pregação. Penso que uma das diferenças entre os anos 90 e hoje é que os atores que levaram adiante a causa ou se enfraquecem ou a abandonaram. É difícil, como ele mostra, reconstituir a coalizão de ONGs, movimentos sociais e, especialmente, governos das potências ocidentais na mesma direção. A questão dos direitos humanos é, ao fim e ao cabo, parte de processos políticos. Por mais que a ordem seja influenciada por movimentos sociais, não seja mais exclusivamente entre soberanos, o fato de que, no universo internacional, as hegemonias dependem de poder. Como mobilizá-lo? Falando de direitos humanos, Lindgren fala dos processos ideológicos no mundo contemporâneo, de novas padrões de disputa de poder, de rumos civilizacionais, que opõem fundamentalistas e modernizadores, entre dogmáticos e secularistas, entre teocratas e humanistas conflitos inter e intra-religiosos que se acavalam a rivalidades políticas intertribais e interétnicas. Valores e poder andam sempre juntos. E nem sempre é fácil casar os melhores valores com os que comandam as forças hegemônicas. Porém, há modos de contornar o problema quando se manifesta a dissintonia. Creio que uma das consequências permanentes de Viena é que o sentido universal da defesa dos direitos humanos vale em si mesmo. Vale como padrão de legitimidade, mesmo contra forças hegemônicas. Pode ser descumprido, pode ser distorcido, mas a referência de legitimidade persiste. É preciso afirmá-lo com força e bons argumentos. Por várias razões, tão bem descritas e analisadas por Lindgren, a aspiração universalista não foi quebrada, mas está certamente fragilizada. A causa ficou esmaecida, confusa talvez, e, nem assim, se enfraqueceu. Não há melhor apelo para reconstituir o movimento que o apelo de livros como o de J. A. Lindgren Alves.

 



[1] Em suas palavras: “Seguramente ninguém que defendesse os direitos humanos poderia aceitar, em qualquer circunstância, as torturas e tratamentos degradantes infligidos aos prisioneiros em quartéis e prisões americanas em Guantánamo, Al Ghraib, Baghram e outras. Não obstante, nenhuma resolução condenatória, nenhuma reprovação formal pelo sistema de proteção aos direitos humanos foi formalmente subscrita”.

[2] Lindgren é contundente na crítica ao liberalismo, Em lugar da democracia política, o que se veio a implantar com a globalização econômica foi o ´liberalismo´ da eficiência selvagem, sem contrapesos ou pruridos de preocupação social… Longe das liberdades e direitos fundamentais esperados, a liberdade que se afirmava no planeta era uma liberdade econômica não emancipatória”.

[3] Basta lembrar que, nos países latino-americanos, especialmente no Brasil, as greves já não estão ligadas ao trabalho industrial, mas a categorias de serviço, especialmente de funcionários públicos.

[4] Há alguns relatos de episódios que viveu no CERD que são a ilustração evidente de como se distorce o politicamente correto. Um deles é a crítica à representação do Papai Noel na Holanda que é acompanhado de um menino “negro”, o que foi visto como racista. Porém, esclareceu-se que o menino não era negro, mas estava negro, pois como o ajudante do Papai Noel, encarregado de distribuir os brinquedos, descia pelas chaminés e, claro, se sujava com a fuligem.

[5] Um dos exemplos que lembra é o de Luxemburgo que, com população de 500 mil habitantes e é constituída por 43% de estrangeiros de mais 170 nacionalidades. Por eximir-se de apresentar a estatística desagregada, o CERD é censurado e instado a fazê-lo. Demandas similares foram feitas a países africanos que, evidentemente, tem problemas peculiares e as distinções étnicas alimentadas pelas potências coloniais e que, caso se fomentassem sistemas especiais de proteção a minorias, teria certamente consequências negativas para as bases de unidade nacional. Os exemplos que dá sobre as recomendações a Ruanda são eloquentes da aplicação de uma perspectiva racialista. Também exemplares a análise que faz da atitude do Comitê em relação aos Estados Unidos e ao Iraque e o ISIS.