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quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Uma lágrima para Clóvis Brigagão, internacionalista falecido recentemente - ABRI, Paulo Roberto de Almeida

 Primeiro a notícia, que me chocou: 

É com profundo pesar que a Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) recebe a notícia do falecimento do internacionalista Clóvis Brigagão (1942-2024). Durante a ditadura civil-militar, Clóvis esteve exilado no México, EUA e Portugal, e foi um dos fundadores do Partido Democrático Trabalhista (PDT), onde militou na área internacional. Foi o primeiro assessor internacional de um estado brasileiro (Governo de Leonel Brizola, Rio de Janeiro, 1983-1987) e exerceu as funções de Secretario-Geral da Associação Internacional de Pesquisas sobre a Paz-IPRA (1987-1989). Intelectual inquieto, foi autor e co-autor de diversos livros nos campos dos Estudos sobre a Paz, Segurança Internacional e Política Externa Brasileira. Criou o Grupo de Análise de Prevenção de Conflitos Internacionais (GAPCon), sediado na Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, a partir do qual formou e influenciou diversas gerações de jovens internacionalistas. A ABRI expressa suas condolências e se solidariza com seus familiares, amigos(as) e ex-alunos(as).

Agora minha interação com ele: 

1311. “Prefácio ao Diretório de Relações Internacionais no Brasil, 1950-2004”, Brasília, 7 ago. 2004, 7 p. Apresentação reflexiva para a publicação preparada por Clóvis Brigagão, listando cursos e instituições de relações internacionais no Brasil. Publicado in Clóvis Brigagão (com a assistência de Pedro Spadale e Fernanda Castanheira), Relações internacionais no Brasil: instituições, programas, cursos e redes (Rio de Janeiro: Gramma, 2004, 80 p.; ISBN: 85-988555-02; p. i-vii).

Relações internacionais no Brasil: instituições, programas, cursos e redes: Prefácio

 

In: Clóvis Brigagão (com a assistência de Pedro Spadale e Fernanda Castanheira):

 Relações internacionais no Brasil: instituições, programas, cursos e redes

(Rio de Janeiro: Gramma, 2004, 80 p.; ISBN: 85-988555-02; p. i-vii).

 

 

Quando, em 1998, tentei relacionar, pela primeira vez no Brasil, os cursos existentes de graduação e de pós-graduação em relações internacionais, os resultados foram de certo modo surpreendentes, mas ainda assim modestos. Uma tabela que preparei para tal efeito – inserida em meu livro O Estudo das relações internacionais do Brasil (1ª edição: 1999) – listava nove cursos de graduação (stricto sensu) e apenas quatro de pós-graduação, entre eles o Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores, que apenas recentemente teve confirmado pela CAPES-MEC seu estatuto de “mestrado”. Havia ainda uma dezena de outros cursos de pós-graduação credenciados, possuindo orientação para as relações internacionais, e duas dezenas de cursos de especialização ou de pós-graduação lato sensu, autorizados pela CAPES, que também se dedicavam a esse campo. Este era o campo acadêmico das relações internacionais no Brasil, sem descurar dos muitos cursos de pós-graduação, nas áreas tradicionais de ciências humanas e sociais, como economia, administração e direito, que também formavam mestres ou doutores com teses e dissertações vinculadas de alguma forma a essa temática. 

Os números não eram, portanto, reveladores de uma comunidade muito extensa. Um eventual congresso voltado para a temática das relações internacionais, congregando pesquisadores e professores nessa área, talvez não fosse suficiente para encher uma sala de aulas “normal”. O campo era mais promissor pelo lado das instituições ou veículos suscetíveis de comportar informações, análises ou debates sobre questões internacionais: desde o surgimento da Revista Marítima Brasileira (1851) e do Boletim do Clube Naval (1888), bem como das escolas de guerra, com A Defesa Nacional (1913), foram sendo multiplicadas instituições e revistas voltadas para o ensino, a pesquisa e a discussão pública desses temas. Ainda assim, as revistas dedicadas stricto sensu ao campo das relações internacionais eram em número restrito – ainda hoje, elas são basicamente três –, sendo bem mais numerosos os veículos culturais ou de ciências sociais que abrigavam, no sentido lato, materiais relacionados com essa problemática. 

Ao tomar conhecimento, em meados de 2004, deste Diretório de Relações Internacionais no Brasil, 1950-2004, cuidadosamente preparado pelo Professor Clóvis Brigagão, com a assistência de Pedro Spadale e de Fernanda Castanheira, não pude deixar de constatar, com satisfação, que o campo tinha definitivamente se consolidado no Brasil, com promessa de uma decantação progressiva e uma especialização natural nos próximos anos. Ele registrou, até junho de 2004, a existência de 53 cursos de graduação ativos, com um número aproximado de 13 mil estudantes. O Sudeste, como seria de se esperar, concentra a maior parte desses cursos (56%), mas o Centro-Oeste surge com força, disputando com o Sul o segundo lugar (10 cursos cada um, ou 19% do total). Brasília constitui, obviamente, o elemento predominante na oferta do Centro-Oeste.

A pós-graduação conheceu uma evolução mais moderada, mas ainda assim promissora, na medida em que são atualmente 25 os cursos existentes, sendo dez no conceito stricto sensu e quinze os lato sensu. O Sudeste concentra mais uma vez a maioria (52%), mas o Centro-Oeste (Brasília) vem consolidando, com 7 cursos (ou 28%), sua presença nesse campo. A distribuição pela natureza da instituição – pública ou privada – é reveladora das mesmas características que afetam, de maneira geral, o terceiro ciclo no Brasil: a graduação é majoritariamente privada (90%), ao passo que a pós-graduação conhece uma maior presença pública (40%), mas ainda assim é dominada pelas instituições privadas (60%). A evolução futura certamente confirmará essas tendências, muito embora as instituições públicas estejam gradualmente buscando aumentar sua oferta em face da grande demanda registrada nos últimos anos, tanto em termos de graduação como, crescentemente, de cursos de especialização. 

O mercado ainda parece funcionar segundo a “lei de Say”, ou seja, a oferta cria a sua própria demanda – daí o maior dinamismo do setor privado –, uma vez que não estão ainda adequadamente consolidados os perfis curriculares dos cursos, os sistemas de avaliação oficial pela CAPES e, sobretudo, a institucionalização profissional nesse campo. Se e quando esse campo lograr constituir uma “massa atômica” suficiente, em termos de produção especializada e de interação entre a formação acadêmica e os requisitos do mercado – o que poderia dar maior visibilidade ao “internacionalista” (reconhecido oficialmente ou não) –, se poderia talvez passar a uma etapa de “superação keynesiana” da lei de Say, isto é, a sustentação da demanda agregada, que por sua vez passa a garantir níveis satisfatórios de oferta de cursos no setor.

Como é conhecido, e esperado, as flutuações do ciclo tenderão a ser produzidas no setor privado e a produção de qualidade tenderá a continuar concentrada no setor público, mas a pós-graduação particular começa a exibir, igualmente, níveis de qualificação acadêmica relativamente satisfatórios. Estrutura e tendências do setor podem ser facilmente resumidas. O “mercado” é suficientemente concorrencial nas grandes capitais, mas frustrantemente cartelizado (ou monopolizado) nas demais regiões e nem sempre a informação quanto à qualidade do ensino – e, portanto, do “produto final” – são provistos com a transparência que os eventuais candidatos a uma formação nessa área desejariam dispor. Como as primeiras turmas estão recém sendo “jogadas” no mercado de trabalho na presente conjuntura, não se pode ainda efetuar uma avaliação adequada da “fiabilidade do material”, bem como de sua adequação aos requisitos do mercado. Algum grau de frustração é inevitável, por parte dos jovens egressos de alguns desses cursos, em relação à sua preparação vis-à-vis o que a demanda existente (e potencial) requer como qualificação profissional. 

Essa demanda está atualmente constituída por três blocos desiguais de possíveis contratantes da mão-de-obra especializada produzida nesse campo: o setor público, o mundo acadêmico, ambos relativamente limitados quanto às possibilidades de absorção do número relativamente elevado de graduandos nas fases finais de formação, e o setor privado, enorme e diversificado, mas ainda inseguro quanto à adequação desses jovens internacionalistas aos seus requisitos pragmáticos. No setor público, o grande atrativo é obviamente a diplomacia – extremamente exigente quanto aos critérios de seleção e bastante limitada quanto às possibilidades de entrada –, mas existem outras áreas nas quais o recrutamente é possível (analistas de comércio exterior ou de informações, por exemplo). Na academia, as possibilidades se situam na própria expansão da oferta no setor, voltando-se para uma orientação docente, portanto, o que tende a esgotar-se, talvez, no médio prazo.

A “osmose” entre a academia e a diplomacia não é tão intensa, no Brasil, quanto ela parece ser em outros países de grande tradição nas relações exteriores conduzidas de modo profissional, mas já parece ter sido rompido o relativo “insulamento” em que vivia o serviço diplomático durante a era militar e seu imediato seguimento. “Especialistas” e “assessores” em relações internacionais – inclusive nas mais altas esferas – já não provêm exclusivamente do campo diplomático, tendo a produção própria, ou “importada”, na área política – Parlamento, partidos, centros de pesquisa ou think tanks – crescido significativamente no período recente. O antigo monopólio de idiomas estrangeiros já não mais distingue o diplomata de seus colegas da burocracia de Estado, na medida em que o inglês básico – o raw English – tornou-se a língua franca dos negócios, dos colóquios e das comunicações internacionais. 

O campo dotado de maior elasticidade é, inquestionavelmente, o setor privado, terreno no qual as exigências vão além do simples “canudo universitário” e passam a incidir sobre a preparação efetiva – sobretudo em línguas – e a experiência prévia acumulada (o que sempre constitui uma barreira à entrada dos mais jovens). Espera-se, em todo caso, que as instituições de ensino, públicas e privadas, atentem para as exigências específicas da demanda do setor privado, o único em condições de absorver a oferta crescente nessa área. Elas devem atentar para os critérios de formação e de gradual especialização, nos últimos anos, desses novos internacionalistas, que devem, sim, saber os fundamentos da teoria realista em relações internacionais, mas também o modo de funcionamento efetivo das organizações internacionais voltadas para o comércio, as finanças e os padrões e normas que regulam as trocas globais de bens e serviços. 

Os fatores impulsionadores do crescimento da oferta em relações internacionais nos últimos anos não são difíceis de serem detectados: a intensificação dos processos de regionalização e de globalização a partir da última década do século XX, a série de crises financeiras dos últimos anos, a expansão dos investimentos diretos estrangeiros nesse mesmo período, a multiplicação de foros negociadores de acesso a mercados, tanto no âmbito do sistema multilateral de comércio (OMC), como em escala regional (Alca, UE-Mercosul, esquemas geograficamente restritos de liberalização comercial) ou ainda bilateral (com uma preocupante multiplicação desses acordos preferenciais, que frustram os partidários das regras universais de acesso).

O Brasil participa de todos esses processos, simultânea ou paralelamente, e parece assim natural que a maior presença desses temas nos meios de comunicação de massa tenha motivado os empresários do setor educacional (mas também os responsáveis das instituições públicas) a aumentar a oferta de cursos na área de relações internacionais (muitas vezes com especializações já dirigidas para o comércio exterior, os negócios internacionais ou para o estudo dos blocos comerciais). O investimento parece estar sendo correspondido pelo mercado potencial, já que a “clientela” desses novos cursos se mostra disposta a testar as possibilidades de ascensão profissional em áreas até aqui restritas do ponto de vista do emprego. Existem, por enquanto, poucas barreiras à entrada (e a situação promete continuar fortemente competitiva no futuro previsível), mas a adequação entre a demanda efetiva de mercado e a capacidade instalada não foi ainda de fato testada, dadas a não segmentação da produção e a pouca diferenciação do “produto”. O essencial parece situar-se na flexibilização do “aparelho produtivo” e na capacidade adaptativa da oferta, o que parece garantido em função do caráter privado da maior parte do setor, o que de certa forma é uma boa condição de competitividade nessa área.

Este utilíssimo Diretório reflete toda essa realidade, pois ademais de apresentar um panorama institucional da área – com todos as coordenadas relativas à “oferta” no setor –, ele ainda informa sobre a orientação de cada um deles: multidisciplinar em mais da metade dos casos, mas já crescentemente diversificado nas demais instituições: forte presença de política internacional, mas também comércio e economia internacionais, inclusive agronegócios. A pós-graduação ou a especialização em relações internacionais ainda tendem a ser genéricas – deixando, portanto, a critério dos alunos e professores a orientação e o perfil a serem dados aos estudos empreendidos nesse nível – mas aqui também se nota o surgimento de cursos voltados para o comércio e as negociações internacionais, numa saudável demonstração de que as instituições estão se ajustando aos requisitos e demandas formuladas pelo “mercado” como um todo.

Com efeito, o “mercado” para o “internacionalista” ainda não está inteiramente consolidado no Brasil, sendo visível o sentimento de indefinição, quando não de angústia, em boa parte dos alunos de muitos desses cursos surgidos nos últimos anos em relação às suas possibilidades de inserção bem-sucedida no mercado de trabalho. Não existe, parece claro, uma fórmula ideal de curso, já que o campo é obviamente vasto, as matérias em que pode incidir a formação do futuro internacionalista são muitas e extensas – indo da história ao direito, da economia à ciência política e muito mais – e os requerimentos dos futuros empregadores podem ser tão complexos e especializados como são, hoje, os negócios internacionais. Por isso, uma boa recomendação a todos os alunos seria esta: não importa o curso, seja basicamente um autodidata perfeito e completo.  

Mas este Diretório não constitui, tão simplesmente, um útil repositório de dados básicos e informações práticas sobre os cursos brasileiros da área: ele é também uma introdução básica sobre o surgimento, o desenvolvimento e a expansão desse setor ainda pouco conhecido, enquanto campo especializado das ciências sociais no Brasil. Com efeito, a introdução de Clóvis Brigagão traça os antecedentes, a evolução ulterior e a situação atual da área, agregando ainda uma informação inédita sobre o surgimento – ainda  antes dos anos 90, mas essencialmente a partir de sua segunda metade – e a lenta consolidação, entre nós, de uma rede institucional de pesquisadores e profissionais de relações internacionais. Uma seção final, por exemplo, relaciona os encontros (Eneri) organizados pela Federação Nacional de Estudantes de Relações Internacionais (Feneri), bem como os três encontros, até aqui realizados, do Enepri, congregando os profissionais e pesquisadores dessa área (as resoluções, ou cartas, elaboradas ao final desses encontros são reproduzidas). Trata-se, portanto, de uma history in the making, da qual o autor é um dos mais distinguidos atores. 

As conclusões do autor são também indicativas das principais características do setor: o crescimento observado até aqui é, em grande medida, “empírico”, podendo ocorrer uma certa retração da oferta e uma requalificação dos cursos, em função da demanda efetiva e da confirmação da diversidade do setor, considerada acertadamente por Clóvis Brigagão como rica e positiva, pois que correspondendo à forma pela qual o Brasil se insere no sistema internacional. O Diretório é certamente preliminar em seu esforço pioneiro e, como tal, suscetível de aperfeiçoamento e de complementação informativa – se possível em sistemas online como os da Feneri e do Relnet –, mas ele já constitui um retrato completo, ainda que inicial, de um processo de consolidação de um campo importante do panorama institucional das ciências sociais no Brasil. Trata-se de um marco relevante para o conhecimento desse campo, a partir do qual a própria rede institucional que ele ajuda a fortalecer vai contribuir para a melhoria das estruturas de formação, para a ampliação dos intercâmbios internos e externos a essa área e, como esperamos todos nós, para a melhor qualificação possível dos estudantes e dos docentes dessa área, reforçando ainda mais a pesquisa e a produção especializada no campo das relações internacionais.

Poucas obras, no panorama editorial “normal”, aspiram ser peremptas ou então deliberadamente passíveis de “correções” periódicas, o que não é certamente o caso deste pequeno grande volume. Meu desejo, portanto, é que este Diretório tenha rápidas e contínuas atualizações, o que constituirá, justamente, a marca de seu sucesso. Finalizo com cumprimentos sinceros ao seu autor principal e aos colaboradores pelo esforço realizado neste primeiro mapeamento do campo relações internacionais do Brasil. Minha recomendação é a de que ele constitua o suporte inicial de um processo de construção de um verdadeiro sistema de informação – quantitativo e qualitativo – sobre esse campo promissor no Brasil, agregando dados sobre os recursos humanos e a produção da área, o que o transformará não apenas em um manual completo de informações, o que de certa forma ele já é, mas em instrumento de referência indispensável a todo profissional de relações internacionais. Longa vida ao Diretório de Relações Internacionais.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 7 de agosto de 2004

(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

Relação de Publicados n. 493.

 

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Venezuela: apogeu e tragédia da aventura chavista (2022) - Prefácio ao livro de Paulo Velasco e Rafael Azevedo - Paulo Roberto de Almeida

 Venezuela: apogeu e tragédia da aventura chavista  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

Prefácio ao livro: 

Venezuela e o Chavismo em perspectiva: análises e depoimentos

Paulo Afonso Velasco Júnior e Pedro Rafael Pérez Rojas Mariano de Azevedo (orgs.) 

 

Com as conhecidas exceções dos sistemas judaico e islâmico, o calendário mais aceito no mundo – inclusive por uma velhíssima civilização, como a da China – é o cristão, que divide o tempo histórico entre uma época anterior ao nascimento de Cristo (AC) e a que se lhe segue imediatamente (DC). Aceitando-se que os dados de respeitáveis órgãos do sistema multilateral (FMI e Cepal) sejam fiáveis, a Venezuela – que era, até os anos 1980, um dos países mais ricos da região – tornou-se agora, depois até do Haiti, o país mais pobre da América Latina. Pode-se, a partir daí, estabelecer um novo calendário para a história do país: como o cristão, ele também pode ser dividido em um AC e um DC, apenas que se trata de um Antes e Depois de Chávez. De fato, como confirmado pelo título deste livro, a Venezuela e o chavismo são praticamente indissociáveis nas primeiras duas décadas do século XXI.

O contraste entre uma e outra situação é realmente notável, extraordinário mesmo, levando-se em conta que essa inacreditável derrocada, da maior renda per capita para uma situação próxima da miséria absoluta, não resultou de nenhuma guerra, nenhuma catástrofe natural, nenhuma invasão estrangeira ou maldição divina; ela foi, em tudo e por tudo, integralmente fabricada pelos próprios dirigentes nacionais, numa acumulação de erros econômicos e de conflitos políticos e sociais criados inteiramente pela desastrosa gestão chavista do país, desde 1999 e continuada após a sua morte, em 2013, por seus sucessores designados. Trata-se, possivelmente, de um caso único na história econômica mundial, uma vez que todos os demais casos de declínio econômico ou político costumam ser processos mais longos de perda de dinamismo de sua base produtiva ou o efeito de regimes políticos especialmente incompetentes, mas cuja ação se prolonga num tempo mais largo. No caso da Venezuela, processou-se uma deterioração da situação econômica e uma degradação de suas instituições políticas em um tempo incrivelmente curto: o principal responsável foi Chávez.

O que simboliza, mais que quaisquer outros aspectos, a derrocada do país mais rico da América Latina é o exílio forçado, por razões políticas ou mais simplesmente econômicas, de quase 1/5 da população do país, com a primeira leva coincidindo com a implantação de um regime autoritário e a segunda como consequência do desastre econômico criado pelo projeto eminentemente chavista de “socialismo do século XXI”. Em parte, essa derrocada pode ser atribuída à influência dos dirigentes castristas sobre Hugo Chávez e associados; mas isso é incrível, uma vez que a ilha caribenha já tinha acumulado ampla experiência própria sobre os desastres do socialismo de tipo soviético, e poderia ter “instruído” melhor seus aliados no país que já foi o mais importante produtor de petróleo na região. Não o fizeram porque eles mesmos estavam extenuados com seu regime inoperante, e precisavam extrair da Venezuela o máximo de recursos financeiros e energéticos; não há dados fiáveis sobre essa extração.

Houve um tempo, na primeira década do século, em que Chávez foi, ao lado de Lula, o mais importante líder político da região, com a diferença de que este soube operar uma economia de mercado visando políticas sociais de caráter redistributivo, sem alterar os mecanismos essenciais do sistema capitalista. Chávez, como Lênin e os cubanos, tentou “domar” o mercado, usando métodos rústicos de estatização. Combinado ao maná do petróleo – cujo barril chegou a 140 dólares naquela época –, sua economia esquizofrênica só produziu uma queda fenomenal da oferta interna e uma corrupção raras vezes vista num continente habituado a conviver com estamentos políticos do tipo predatório. A produção de petróleo reduziu-se cinco vezes desde o início do chavismo: a recuperação do setor vai demandar um enorme aporte de investimentos e de know-how estrangeiro, algo que não está perto de ocorrer em vista da persistência de uma direção gangsterista no comando do Estado. A inflação “bolivariana” já ultrapassou os exemplos mais dramáticos da história monetária mundial, traduzida em diversas “moedas” até se chegar à atual dolarização informal. 

O livro aborda essas diversas facetas do drama chavista na Venezuela, por autores que, inclusive por experiência própria, conhecem a fundo como foi sendo construído o maior desastre humanitário vivido no continente, só comparado, talvez, à emigração síria, mas esta provocada por dez anos de guerra civil e intervenção estrangeira. Chávez, os castristas e seus seguidores construíram uma derrocada única na história da região, uma tragédia ainda hoje sustentada pelas forças de esquerda em países vizinhos: estas parecem não perceber que Chávez é o mais próximo que se conheceu de um êmulo de Mussolini na região. A verdade, porém, é que a história não se repete e, no caso do chavismo, sequer como farsa. Trata-se de uma “aventura” a ser detidamente estudada: este livro é um excelente começo para a tarefa.

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

Brasília, dezembro de 2021

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4029: 30 novembro 2021, 2 p.

Prefácio ao livro de Paulo Afonso Velasco Júnior e Pedro Rafael Pérez Rojas Mariano de Azevedo (orgs.), Venezuela e o Chavismo em perspectiva: análises e depoimentos (Curitiba: Appris, 2022).



Info Amazon.com.br: 


A Venezuela e o Chavismo em Perspectiva: Análises e Depoimentos 

24 março 2022 


O livro Venezuela e o chavismo em perspectiva: análises e depoimentos busca abordar distintos temas da realidade venezuelana a partir da ascensão de Hugo Chávez à presidência do país em 1999. A combinação de textos acadêmicos e depoimentos pessoais enriquece o alcance e o impacto da obra, incorporando tanto argumentos assentados em cuidadosa revisão de literatura e dados empíricos quanto declarações contundentes sobre aspectos cotidianos da crise vivenciada pelo país. Os distintos capítulos revelam visões plurais sobre os impactos e o legado do chavismo para a Venezuela e outros países da região, acolhendo desde perspectivas mais críticas e ideológicas até interpretações menos extremas ou partidarizadas. A complexidade da figura de Hugo Chávez e das estratégias levadas a cabo sob seu governo exige uma abordagem que considere distintos elementos da política, economia, cultura e sociedade do país, contando com a contribuição dos olhares de pessoas diretamente afetadas, mas também com a análise atenta de pesquisadores dedicados ao país e à região. Esta é justamente a grande contribuição do livro, abrir espaço para uma perspectiva mais ampla sobre o que ocorreu na Venezuela ao longo das últimas duas décadas. Os autores oferecem não apenas uma visão sobre o plano doméstico, considerando desafios e iniciativas que caracterizaram a gestão de Chávez e o jogo de forças que se enfrentaram no período, como também lançam luz sobre as nuances de uma política externa que se afirmou como um valioso instrumento para a projeção de poder do país sobre a região e o mundo. Salvador e mártir, de um lado, caudilho e ditador, de outro, são algumas das distintas visões sobre a figura do controvertido e carismático líder venezuelano incorporadas neste livro e associadas a interpretações variadas que, no seu conjunto, ajudam a decifrar um pouco do enigma sobre um país que passou, em menos de 20 anos, por momentos de incerteza, esperança, riqueza, projeção, declínio e, finalmente, caos e crise humanitária. Por seu olhar plural e linguagem dinâmica, esta leitura constitui excelente contribuição para um melhor entendimento sobre as distintas facetas do regime chavista e seu líder.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Prefácio de Rubens Ricupero ao livro de Synesio de Sampaio Goes sobre Alexandre de Gusmão

Publicado em 2019 pelo Vermelho, um órgão de  esquerda:

https://vermelho.org.br/2019/08/03/leia-o-prefacio-de-rubens-ricupero-que-foi-censurado-pelo-itamaraty/

Leia o prefácio de Rubens Ricupero que foi censurado pelo Itamaraty 

O embaixador aposentado Rubens Ricupero, crítico da política externa do governo Bolsonaro, considerou “infantilidade” o veto do chanceler Ernesto Araújo a um livro do Itamaraty por questões pessoais. Ricupero fez o prefácio da biografia de Alexandre de Gusmão, escrita pelo embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, por encomenda da Fundação Alexandre de Gusmão, vinculada ao ministério. Em julho, ao entregar os originais, Goes Filho foi avisado de que o livro só seria publicado sem o prefácio.

Ricupero

Com o título Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil, o livro deveria ser publicado neste segundo semestre. “É um texto dirigido, sobretudo, a interessados em história diplomática. Uma razão a mais para concluir que a atitude de vetar o prefácio é, no fundo, uma infantilidade de efeitos contraproducentes para os que a adotaram”, afirmou Ricupero, que também é historiador e foi embaixador em Washington.

Autor do ensaio sobre Gusmão – que é considerado o “avô” da diplomacia brasileira –, Goes Filho também protestou. “Isso é censura, obscurantismo. Desse jeito, nenhum embaixador de prestígio vai poder publicar”, afirmou ele à Folha de S.Paulo. “É um assunto do século 18, e o autor foi vetado porque critica o ministro – não pelo que escreveu.”

Ao lado de outros veículos e em solidariedade a Goes Filho e Ricupero, o Vermelho divulga abaixo a íntegra do texto censurado pelo Itamaraty.

Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil

PREFÁCIO 

Por Rubens Ricupero


Synesio Sampaio Goes Filho realizou neste livro em relação ao principal autor do Tratado de Madri o que havia feito para a formação das fronteiras do Brasil: tornou acessível ao leitor de hoje a compreensão de uma história que se convertera em algo de remoto e abstruso.

Nem sempre fora assim. Até sessenta ou setenta anos atrás, a história diplomática do Brasil parecia às vezes dominada pela história das fronteiras. Na atmosfera de justa satisfação pela solução definitiva dos problemas territoriais do país levada a cabo pelo barão do Rio Branco, multiplicaram-se os estudos das questões fronteiriças, frequentemente escritos por diplomatas de carreira com vocação de historiadores.

Um dos mais produtivos entre esses autores, o embaixador Álvaro Teixeira Soares, resumiu com felicidade o sentimento que animava tais estudos. A solução sistemática dos problemas fronteiriços iniciada sob a monarquia e concluída por Rio Branco, escreveu Teixeira Soares, merecia ser considerada como uma das maiores obras diplomáticas realizadas por qualquer país em qualquer época. Não havia exagero em descrever desse modo o processo pacífico de negociação ou arbitragem pelo qual se resolveu metodicamente cada um dos problemas de limites com nada menos de onze vizinhos contíguos e heterogêneos (na época do Barão, o Equador ainda invocava direitos de fronteira com o Brasil, em disputa resolvida com o Peru somente muito mais tarde).

Passada a fase em que era moda escrever livros sobre fronteiras, o assunto perdeu grande parte do atrativo. Julgava-se que nada mais havia a dizer a respeito de problema já resolvido. Desconfiava-se de obras assinadas por funcionários diplomáticos, confundidas com a modalidade de publicações destinadas a engrandecer a própria instituição. Livros sobre discussões limítrofes, antes tão populares, tornaram-se difíceis de encontrar e mais difíceis de ler. O estilo envelhecera, os métodos da historiografia passada davam a impressão de obsoletos, a narrativa soava monótona, demasiado descritiva, apologética, pouco crítica, cansativa na enumeração de intermináveis acidentes geográficos.

Foi nesse panorama estagnado que Synesio teve a coragem de escolher para sua tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco em 1982 o tema enganosamente escondido sob o modesto título de Aspectos da ocupação da Amazônia: de Tordesilhas ao Tratado de Cooperação Amazônica . Lembro bem da surpresa positiva que causou a dissertação, pois fazia parte na época da banca examinadora do exame. Fui assim testemunha do surgimento de uma vocação singular de historiador voltado para recuperar a desgastada tradição de estudos fronteiriços.

Estimulado pela recomendação de publicação da banca, o autor ampliou e enriqueceu o trabalho, editado pelo Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais (IPRI), em 1991, sob o título de Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas: Um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. O livro teve o efeito de uma janela que se abria na atmosfera bolorenta da antiquada história das fronteiras, fazendo entrar o ar fresco da renovação modernizadora.

Redigida em linguagem límpida, objetiva, expressiva na sóbria elegância, a narrativa envolve o leitor em viagem sem esforço pela fascinante evolução do território brasileiro na sua fase de expansão, de avanços e recuos na Amazônia, no Extremo Oeste, na região da Bacia do Prata. Demonstra como se revelou constante em toda essa história a articulação do impulso pioneiro de exploradores, homens práticos determinados na busca de compensações materiais, com o trabalho cuidadoso de diplomatas e estadistas que legitimaram em instrumentos jurídicos o que não passava no início de ocupação precária de terras duvidosas.

Um dos méritos originais do livro consistiu em resolutamente colocar de lado a mitologia criada em torno de uma suposta linha que teria sido invariavelmente seguida por todos os governos brasileiros, refletindo uma doutrina inabalável ao longo dos séculos. Segundo tal linha de argumentação, desde os primórdios os políticos e diplomatas do Império teriam sustentado que o Tratado de Santo Ildefonso (1777) havia perdido a validez ao não ser explicitamente revalidado depois da fugaz Guerra das Laranjas (1801) no Tratado de Badajoz. Não existindo, portanto, direito escrito para definir as fronteiras, estas deveriam ser estabelecidas – seria o segundo postulado pretensamente imutável – de acordo com o princípio do uti possidetis , isto é, obedecendo à posse efetiva no terreno. O Tratado de Santo Ildefonso serviria apenas de maneira subsidiária para ajudar a dirimir dúvidas onde não se verificasse a ocorrência de posse ou não houvesse contradição entre o tratado e a posse.

O argumento apresentava alguma utilidade para comprovar a antiguidade e constância das pretensões brasileiras. Não passava, no entanto, de artifício de negociação, sem amparo real na realidade histórica. Synesio Sampaio Goes não se intimidou com a longa sequência de respeitados estadistas e estudiosos que haviam cercado essas afirmações com a proteção de sua autoridade e de seu prestígio. Mostrou com exemplos irrefutáveis que nenhum dos postulados havia sido verdade absoluta adotada em todos os casos. Não faltavam decisões e pareceres do Conselho de Estado advogando em favor da adoção de Santo Ildefonso como orientação para fixar fronteiras. Nem de episódios em que o Conselho ou o governo tinham recusado recorrer ao uti possidetis como critério para traçar limites.

Longe de enfraquecer a tradição brasileira em matéria de negociação de fronteiras, o trabalho de reconstituição da verdade efetuado pela obra conferiu historicidade e verossimilhança às doutrinas defendidas pelo Itamaraty, voltando a situá-las no contexto próprio do tempo em que foram definidas e no das circunstâncias que as modificaram. O desmonte da retórica apologética permitiu que aparecesse a verdade de uma evolução gradual, de tentativas e erros, de afirmação progressiva das teses mais convenientes. A narrativa fiel aos fatos fez emergir do passado uma diplomacia conscienciosa de estudo de mapas, de exploração de velhos arquivos, de construção paciente de doutrinas jurídicas adaptadas à situação de país cujos títulos originais a boa parte de seu futuro território eram pobres ou inexistentes. O resultado final, além de verdadeiro, valorizava em vez de empobrecer os méritos dos diplomatas que construíram a história do mapa do Brasil.

Na origem de toda essa história encontrava-se o alto funcionário da Corte portuguesa a quem se devia, mais que a qualquer outro, a definição do perfil territorial do Brasil, Alexandre de Gusmão. Brasílico, como se dizia na época, nascido obscuramente na humilde, insignificante Vila do Porto de Santos, tratava-se de personagem que atuara de modo discreto nos bastidores do poder. Permanecera quase anônimo por longo tempo, mais de um século, apesar de um ou outro estudioso mais arguto como o barão do Rio Branco ter reconhecido o papel que desempenhara.

Coube a um exilado político no Brasil do regime salazarista, o historiador português Jaime Cortesão, a tarefa de resgatar da penumbra da história a figura de Gusmão, desentranhando do silêncio dos arquivos os documentos que praticamente revelaram ao mundo a história real que se escondia por trás da negociação do Tratado de Madri (1750). Synesio Sampaio Goes, que já produzira o moderno clássico do estudo e da análise da história geral das fronteiras brasileiras, retrocede agora ao ponto de partida de onde tudo começou a fim de examinar como se chegou a pacientemente preparar a maior de todas as vitórias da diplomacia luso-brasileira na consolidação da expansão territorial do Brasil, o Tratado de Madri.

Conforme afirmei lá no início do prefácio, as duas realizações de Synesio, a da história completa, abrangente das fronteiras, e hoje a do Tratado de Madri e de seu autor mais importante, possuem uma característica definidora comum. Ambas reexaminam com olhar crítico o volumoso material existente, desbastam esse acervo daquilo que apresenta relevância menor para o leitor culto de nossos dias, reconstruindo com estilo contemporâneo, metodologia e linguagem atualizadas, narrativas que corriam o risco de não mais serem lidas a não ser por raríssimos especialistas.

Tome-se, por exemplo, o caso da obra magna de Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, publicada nos anos 1950 pelo Instituto Rio Branco em nove alentados volumes com milhares de páginas de reprodução de documentos e mapas. Quem hoje em dia se disporia a ler a obra inteira? Mesmo a edição compacta em dois tomos restritos à vida e realizações de Alexandre de Gusmão, editada em 2016 pela Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, estende-se por mais de oitocentas páginas de letra miúda, recheadas de longas discussões de erudição de interesse relativamente menor para o leitor médio.

Synesio não só torna a história dos limites e a de Alexandre de Gusmão acessíveis e atrativas aos leitores e estudiosos atuais. Ao modernizar e submeter a rigoroso crivo crítico tais narrativas, realiza obra original de mérito indiscutível. Ao discutir as hipóteses mais especulativas a respeito de incidentes da biografia de Gusmão, a autoria pessoal das instruções que orientaram o negociador português do Tratado, concepções intelectuais que teriam inspirado as ações lusitanas, o autor pesa com cuidado os argumentos e chega a conclusões que comandam o consenso pelo realismo, prudência historiográfica e bom senso.

Essas qualidades se destacam, entre outras passagens, nas que relativizam e moderam o entusiasmo raiando ao misticismo de Jaime Cortesão ao tratar de alguns mitos da história colonial como o da célebre “ilha Brasil”, a existência de um território delimitado de um lado pelo oceano Atlântico e no oeste por dois grandes rios que confluiriam para um mítica lagoa no interior das terras sul-americanas. A sobriedade nas avaliações e juízos confere veracidade digna de fé às afirmações amparadas, na falta de documentos conclusivos, por critérios de probabilidade e verossimilhança.

O autor faz bem de chamar ensaio biográfico o estudo da vida e ação de um personagem que viveu na primeira metade dos Setecentos. Faltariam elementos probatórios para tentar reconstruir a respeito da figura de Gusmão aspectos minuciosos da infância, da formação da personalidade na adolescência e juventude, das leituras e experiências definidoras como pretendem às vezes realizar exaustivas biografias de personalidades mais perto de nós. Uma técnica de narrar que funcionou de modo eficaz na construção da obra foi a de alternar o tempo todo a vida de Alexandre de Gusmão e a evolução dos acontecimentos que criariam as oportunidades para suas realizações. Basta passar os olhos pelo índice para perceber a dosagem alternada de matérias de contextualização — o Brasil, Portugal na época — com os capítulos biográficos — começos de vida, diplomata aprendiz, secretário real — voltando à colônia no apogeu do ouro, mas sem fronteiras, a relação do brasílico com sua distante pátria, os problemas do contrabando.

O estudo se revela particularmente útil no exame minucioso do que viria a ser presumivelmente a mais importante negociação territorial da história brasileira, culminando num tratado que de certa forma equivaleria a uma espécie de “escritura de propriedade” do território que forma o Brasil de hoje. Já se disse outras vezes e ressalta bastante deste livro a originalidade múltipla do Tratado de Madri. Num período em que quase todos os tratados de limites se originavam de guerras e refletiam a correlação de forças no campo de batalha, o acordo de 1750 foi exceção, negociado e concluído depois de longos anos de paz entre Portugal e Espanha.

Em contraste com a maioria dos inúmeros acordos limítrofes que o Brasil independente assinaria no futuro, o de Madri se salientou por desenhar a linha completa do mapa do Brasil ao longo de milhares de quilômetros de fronteiras terrestre. Não era o que desejavam os espanhóis, mais uma vez empenhados em somente limitar o ajuste a alguns setores de seu particular interesse, sobretudo na região da permuta da Colônia do Sacramento pelos Sete Povos das Missões do Alto Uruguai. Graças à firme insistência dos negociadores lusos é que se conseguiu definir o que, com ajustes relativamente menores, haveria de ser na prática o perfil territorial do Brasil moderno.

O Tratado de Madri tornou possível outra originalidade da história da formação territorial brasileira: a de que ela se encontrava virtualmente terminada antes da Independência. Em termos gerais, o chamado expansionismo, que foi a rigor muito mais português que brasileiro, alcançava quase seu limite máximo na véspera da Independência. Compare-se com a expansão norte-americana, que tem início a partir da Independência de 1776, para perceber a diferença das implicações que esse fato acarretaria para o relacionamento do país independente — Estados Unidos da América ou Brasil — com seus vizinhos igualmente independentes, México, no exemplo norte-americano, os dez vizinhos brasileiros, com o enorme contraste em termos de herança de ressentimentos históricos.

Vários dos estudiosos do Tratado de Madri fizeram questão de destacar que ele se adiantou a seu tempo na razoabilidade e no equilíbrio das concessões, no seu legado central, que consistiu em reconhecer de direito o que já ocorrera no terreno da prática: a supremacia da expansão luso-brasileira na Amazônia e no centro-oeste da América do Sul em câmbio do prevalecimento dos interesses castelhanos na Região da Bacia do Prata. Talvez se deva, em última instância, a esse espírito avançado em relação à época que o tratado tenha sido tão fugaz na duração formal: pouco mais de dez anos até a anulação pelo Tratado de El Pardo (1761).

Um dos enigmas da história luso-brasileira é entender por que o governo português, principal beneficiário dessa obra-prima de sua diplomacia, se converteu, em poucos anos, num dos mais ativos fatores de sua destruição. Os historiadores, entre eles Jaime Cortesão, alinham, é claro, argumentos e razões, que soam desproporcionalmente fracos para explicar erro tão grave de avaliação. Não é este o lugar para examinar a questão, de que procurei tratar em livro recente. De todo modo, o que conta é que, depois de vicissitudes e revezes sem conta perfeitamente possíveis de evitar, o espírito do Tratado de Madri acabaria por prevalecer. Esta constatação é seguramente a maior demonstração do gênio criador de Alexandre de Gusmão, capaz de sobreviver até à maligna inveja do marquês de Pombal, seu poderoso e overrated rival.

Em vida, Gusmão não alcançou recompensa nem reconhecimento pelo que fizera. Morreu no ostracismo, sem poder, com dificuldades financeiras. A Representação que dirigiu ao rei D. João V em fins de 1749, pouco antes do desaparecimento do monarca, ficou sem resposta. Permaneceria no limbo da história até meados do século XX, quando, graças a Jaime Cortesão, viu finalmente apreciada e valorizada sua contribuição com as seguintes palavras:

“Precursor da geopolítica americana; definidor de novos princípios jurídicos; mestre inexcedível da ciência e da arte diplomática, Alexandre de Gusmão tem direito a figurar na história como um construtor genial da nação brasileira, pela clarividência e firmeza de uma política de unidade geográfica e defesa da soberania, que antecipam, preparam e igualam a do Barão do Rio Branco”.

O primoroso ensaio biográfico que Synesio Sampaio Goes Filho dedica a sua memória reexamina, atualiza e ratifica, ponto por ponto, a justiça e exatidão do julgamento tardio da posteridade.

Rubens Ricupero, São Paulo, 16 de junho de 2019.

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Um livro em preparação: Gilberto Freyre sobre o longo século XIX, de André Heráclio do Rego - Prefácio de Paulo Roberto de Almeida

Acabo de colocar um ponto final no meu prefácio a este livro de meu colega e amigo, historiador pernambucano André Heráclio do Rego, do qual transcrevo apenas os primeiros parágrafos. O restante virá quando o livro for publicado...

Paulo Roberto de Almeida

ENTRE O IMPÉRIO E A REPÚBLICA

O SÉCULO XIX NA OBRA DE GILBERTO FREYRE

André Heráclio do Rêgo

            (Edição de Autor)


ÍNDICE

 Prefácio: Gilberto Freyre, um intelectual na longa duração, 5

       Paulo Roberto de Almeida                                                                                

Introdução, 11

Capítulo 1 – O Movimento da Independência, 33

Capítulo 2 – O processo revolucionário,  51

Capítulo 3 – As singularidades da Monarquia,  83

Capítulo 4 - Monarquia e República: continuidade e ruptura,  97

Capítulo 5 – O Império e a unidade nacional,  117

Capítulo 6 – O Oriente no Novo Mundo. Os três primeiros séculos da formação brasileira, 129

Capítulo 7 – Oriente X Ocidente: a Monarquia e a reeuropeização do Brasil no século XIX, 139

Considerações e sugestões,  149

Obras de Gilberto Freyre utilizadas,  163

Referências bibliográficas, 167 


Prefácio

Gilberto Freyre, um intelectual na longa duração

 

O presente livro de André Heráclio do Rêgo constitui um notável esforço de síntese interpretativa sobre um dos autores mais fecundos do pensamento social brasileiro. Junto com Manoel de Oliveira Lima e Manoel Bomfim, Gilberto Freyre foi um dos primeiros historiadores sociais do Brasil. Na verdade, ele foi bem mais do que isso: antropólogo de formação, tendo estudado com Franz Boas, na Universidade de Columbia (NY), ele veio a empreender um levantamento da cultura material e humana do Brasil colonial e imperial, compreendendo não apenas a sua análise da Casa Grande e [da] Senzala, o título de sua primeira grande obra (1933), como também tratou amplamente da miscigenação geral do povo brasileiro a partir de suas fontes étnicas, dos aportes estrangeiros à cultura material e espiritual, assim como da lenta emergência, a partir da sociedade patriarcal, de formações urbanas ao longo da costa atlântica e no interior próximo, tal como refletida em Sobrados e Mucambos (1936) e no seu outro clássico, Ordem e Progresso (1959). O extenso subtítulo dessa terceira grande obra, em 2 volumes, revela, aliás, a extensão de seu trabalho analítico: “Processo de desintegração da sociedade patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre: aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre; e da Monarquia para a República”. 

Gilberto Freyre antecipou, de certa forma, a famosa escola francesa dos Annales, com sua forte ênfase no cotidiano das famílias, nos costumes do povinho miúdo, na alimentação e nas técnicas do trabalho humano. Mais de um acadêmico francês em estágio universitário no Brasil dos anos 1930 e 40, na recém fundada Universidade de São Paulo por exemplo, se declarou pronto a reconhecer certa dívida interpretativa em relação ao “mestre de Apipucos”, sua residência e escritório de trabalho no Recife senhorial. Os métodos e os grandes temas da nova historiografia francesa, em pleno florescimento nos anos seguintes à Segunda Guerra, já estavam presentes na obra de Freyre desde duas décadas antes, como facilmente constatável.

(...)

Segue por 3 páginas...


segunda-feira, 19 de junho de 2023

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira: prefácio ao livro de Paulo Roberto de Almeida

 Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo  

Prefácio ao livro de Paulo Roberto de Almeida:

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira

Brasília: Diplomatizzando, 2022, 189 p.; ISBN: 978-65-00-46587-7

Disponível na Amazon.com

  

Agrupamentos econômicos ou políticos geralmente partem de algum projeto intrínseco à lógica instrumental de seus proponentes originais e tendem a seguir os objetivos precípuos de seus principais países membros. Eles geralmente são constituídos a partir de alguma ruptura de continuidade na ordem normal das coisas, ou seja, no plano diplomático, no seguimento de um evento ou processo transformador das relações de força. Por exemplo, a Grande Guerra de 1914-18, o mais devastador dos conflitos globais até então conhecidos, produziu a Liga das Nações, uma tentativa de conjurar enfrentamentos bélicos daquela magnitude nos anos à frente: o proponente original, contudo, a ela não aderiu, e a primeira entidade multilateral dedicada à manutenção da paz entre os Estados membros se debateu nos projetos militaristas expansionistas dos fascismos do entre guerras, até soçobrar por completo nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Para Winston Churchill, os dois conflitos globais foram uma espécie de repetição daquilo que a Europa havia conhecido no século XVII, uma “segunda Guerra de Trinta Anos”. 

A tentativa seguinte começou com um exercício de conformação da ordem econômica do pós-guerra, realizado na reunião de Bretton Woods, em junho de 1944: ela partiu da constatação de que era preciso reconstruir as bases da interdependência econômica destruídas pela crise de 1929 e pela depressão da década seguinte, congregando quase todos os países que estavam então unidos pela ideia das “nações aliadas”, a maior parte em luta contra as potências do eixo nazifascista. A proposta foi relativamente bem-sucedida e resultou na criação do FMI e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, ainda que a União Soviética, presente ao encontro, tenha preferido não se juntar às demais economias de mercado que puseram em funcionamento as duas instituições a partir de 1946. 

Imediatamente após a conferência de San Francisco e a abertura dos trabalhos da ONU, seu Comitê Econômico e Social (Ecosoc) aprovou a constituição de comissões econômicas regionais, encarregadas de mapear e informar a nova organização multilateral sobre a situação econômica em cada grande região do planeta, sendo que a mais famosa delas, a Cepal, sob a direção de Raúl Prebisch, não se contentou em apenas coletar dados econômicos sobre os países latino-americanos e do Caribe; com sede em Santiago do Chile, ela logo virou uma verdadeira escola de pensamento econômico, com cursos e programas de estudo sobre os problemas estruturais do continente.

Da mesma forma, a primeira organização de coordenação econômica europeia, a Oece, predecessora, em 1948, da Ocde (1960), foi constituída para administrar o funcionamento do Plano Marshall, e deveria, em princípio, estender-se igualmente aos países da Europa central e oriental ainda ocupados pelo Exército Vermelho. O Secretário de Estado americano proponente da ideia, o próprio George Marshall, respirou aliviado quando Stalin vetou a participação de sua esfera de influência no esquema, pois que não haveria, provavelmente, recursos a serem distribuídos entre todos eles; o programa, coordenado a partir de Paris, ficou então restrito à Europa ocidental.

Nos anos 1950 e no início da década seguinte, os países em desenvolvimento, em grande medida impulsionados pelo Brasil e demais latino-americanos, constataram que os arranjos econômicos feitos no âmbito de Bretton Woods e das reuniões preparatórias em Genebra à conferência da ONU sobre comércio e emprego de Havana, das quais resultaram, preliminarmente, o Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas Aduaneiras (Gatt, 1947), não tinham resolvido o problema básico das diferenças estruturais entre as economias avançadas e as “subdesenvolvidas”, como então eram chamados os países pobres, logo em seguida batizados conjuntamente de “Terceiro Mundo”. Levantou-se, então, um imenso clamor em torno dessa distinção julgada indesejável entre o Norte e o Sul do planeta, do qual resultou a convocação, pelo Ecosoc, da primeira conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento (Unctad, 1964), da qual resultou não só a criação do G77, o grupo dos países em desenvolvimento, mas um secretariado em Genebra, que passou a organizar reuniões quadrienais, das quais alguns dos resultados foram acordos sobre produtos de base e a criação de um Sistema Geral de Preferências, abolindo, na prática, o princípio da reciprocidade inscrito nos primeiros acordos comerciais, uma das cláusulas básicas do sistema do Gatt.

Quando, no seguimento da denúncia americana da primeira versão de Bretton Woods, feita pelo presidente Nixon em agosto de 1971, se instalou um “não-sistema financeiro mundial”, as principais economias de mercado avançadas estabeleceram um esquema informal de consultas entre elas para tentar conter a volatilidade dos mercados cambiais, o que deu origem ao G5 e, mais adiante, ao G7. Esse agrupamento perdura até hoje, com uma fase de G8 – não exatamente econômica, mas bem mais política –, com a inclusão da Rússia pós-soviética no esquema, situação que perdurou até a invasão da península da Crimeia, amputando-a da Ucrânia, em 2014. 

Paralelamente às reuniões anuais do G7, foi criada uma entidade privada, o Fórum Econômico Mundial, com encontros em Davos, na Suíça, com esse mesmo objetivo primário, de oferecer um espaço de discussões sobre a economia global, mais reunindo líderes de países e empreendedores privados; daquelas tertúlias nos Alpes suíços resultaram algumas boas iniciativas depois incorporadas às agendas de trabalho das principais organizações do multilateralismo econômico, primeiro o Gatt, depois a OMC, mas também as entidades de Bretton Woods, assim como as de várias agências especializadas da ONU; delas também participavam muitas ONGs de todo o mundo, a passo que, num sentido manifestamente oposto aos objetivos de Davos, começou a reunir-se, por breve tempo, o Fórum Social Mundial, um convescote anual das tribos confusas de antiglobalizadores – ou altermundialistas, como proferiam os franceses –, já com clara orientação anticapitalista.

De forma algo similar, no contexto das crises financeiras das economias emergentes, no final dos anos 1990, foi criado, no âmbito do FMI, um Fórum de Estabilidade Global, que, impulsionado por nova crise financeira, desta vez dos países avançados, em 2008, resultou na institucionalização do G20, reunindo as maiores economias do planeta. As reuniões anuais do G20 ingressaram numa repetitiva rotina de trabalho dos dirigentes desses países (incluindo a União Europeia e organizações pertinentes), relativamente satisfatórias no plano das proposições, mas que eram bem menos exitosas no terreno das realizações concretas, dada a diversidade natural de orientações de política econômica (e de postura política) entre seus membros, o que parece natural, uma vez que o G20 carece da unidade de propósitos que caracteriza, por exemplo, a Ocde. Alguns grupos informais, para meio ambiente, por exemplo, ou para outros temas globais, foram sendo instituídos, ao sabor das urgências de cada momento, sem exibir, contudo, o formalismo institucional de grupos estruturados em torno de um tema específico, com objetivos bem determinados. Estes são, grosso modo, os exemplos mais conspícuos – descurando a multiplicidade e a diversidade dos acordos e arranjos regionais ou plurilaterais que congregam interesses setoriais ou regionais, geralmente sob a forma de arranjos de liberalização do comércio ou organizações de escopo político, ou militar, como a Otan, no caso –, de agrupamentos surgidos a partir de um entendimento comum sobre objetivos compartilhados, que podem, ou não, evoluir para formatos institucionais, ou mais refinados, de agregação de valores e dotados de metas claramente definidas. 

Este não parece ser o caso do Bric-Brics, entidade híbrida, no universo dos agrupamentos conhecidos, sem um formato preciso quanto à sua institucionalidade e desprovido de metas objetivamente fixadas de acordo a um entendimento comum sobre seus objetivos básicos, ou seja, os elementos capazes de definir esse agrupamento em sua essência fundamental. Ele parece ter sido mais formado em oposição ao suposto “hegemonismo” do G7 do que em torno de propostas próprias sobre a ordem econômica e política mundial, com base em uma agenda de trabalho formalizada. Mas atenção, e aqui reside uma diferença relevante com respeito a todas as entidades mencionadas acima, ele não resultou de uma necessidade detectada internamente aos integrantes de seu primeiro formato, o Bric, mas se constitui a partir de uma sugestão totalmente alheia ao trabalho diplomático, ou de coordenação econômica entre países postulando objetivos comuns, com uma “inspiração” externa e estranha ao grupo, apenas para “aproveitar” a aproximação feita por um funcionário de uma entidade dedicada a finanças e investimentos, o economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs. Por essa razão precisa, sempre o considerei um personagem anômalo, no universo de nossas tradições diplomáticas, mas basicamente em função de uma composição heterogênea, sem um foco preciso no leque dos interesses nacionais do Brasil no plano externo.

 

 

Este livro foi composto a partir de uma seleção de uma dezena, tão somente, de trabalhos, dentre uma lista de mais de duas dúzias de ensaios e artigos que escrevi explicitamente sobre o Brics – à exclusão, portanto, de diversos outros textos que pudessem igualmente abordar secundariamente esse grupo de países reunidos por uma ambição diplomática –, a partir de uma simples proposta econômica, e que se manteve navegando, entre ventos e marés, desde meados da primeira década do século, e que segue existindo mais como ideia do que como realidade. Os primeiros trabalhos nessa categoria foram escritos antes mesmo da constituição formal do grupo e se estenderam por mais de uma década, sobretudo durante a vigência do lulopetismo diplomático. A despeito de algo defasados no tempo, o que se reflete em alguns dados conjunturais, eles revelam uma preocupação fundamental do autor com a coerência da diplomacia brasileira – nem sempre respeitada em todos os governos – e com uma noção muito bem refletida sobre os chamados interesses nacionais – nem sempre bem interpretados por todos os governos –, o que fiz invariavelmente desde minha formação superior, nos campos da sociologia histórica e da economia política. A partir do momento em que passei a exercer-me na carreira de diplomata, nunca deixei de aplicar minhas leituras, minhas pesquisas, as experiências adquiridas em prolongadas estadas no exterior, em todos os regimes políticos e sistemas econômicos imagináveis, com exceção talvez de uma pura tirania ao velho estilo do despotismo oriental, ou o stalinismo do seu período mais sombrio. Percorri muitos países, ao longo de uma vida de estudos e de missões diplomáticas, sempre recolhendo impressões sobre suas formas de organização política e suas modalidades de organização econômica, o que me permitiu escrever centenas de artigos, duas dúzias de livros e incontáveis notas em cadernos, que se transformavam em trabalhos uma vez definido um objeto preciso de análise.

O Bric-Brics foi um desses animais estranhos na paisagem diplomática, ao qual apliquei o meu bisturi analítico, de forma bastante crítica como se poderá constatar pela leitura dos trabalhos selecionados e aqui compilados, o que obviamente se situava contrariamente à postura do Brasil em política externa nos anos do lulopetismo diplomático. Nunca fui de aderir a modismos de ocasião, nem me intimidei com os olhares estranhos que me eram dirigidos cada vez que eu me pronunciava com o meu olhar crítico sobre esse novo animal na paisagem de nossas relações exteriores. Sempre considerei que a atividade diplomática não pode ser dominada por esses princípios que só podem vigorar nas casernas, ou melhor, em situações de combate: a hierarquia e a disciplina. Acredito que um soldado não pode interromper as operações no terreno para ir discutir os fundamentos da paz kantiana com o seu comandante de pelotão, mas um diplomata tem, sim, o dever, de questionar, e de argumentar, sobre cada “novidade” que se apresenta na agenda das relações exteriores do Brasil. 

Como nunca me dobrei ao argumento da autoridade, sempre busquei invocar a autoridade do argumento ao discutir a rationale desse animal bizarro no cenário de nossas atividades, o que não foi bem recebido pelo grupo no poder. Não obstante estar privado de cargos na Secretaria de Estado, durante mais de uma década, continuei analisando criticamente as principais opções de nossas relações exteriores, aliás em todos os governos, desde a era militar até o arremedo de autoritarismo castrense a partir de 2019, o que se refletiu, precisamente, em todos os livros que publiquei desde 1993 (sendo os dois primeiros sobre o Mercosul) e em dezenas de artigos de corte acadêmico redigidos desde o período da ditadura militar. O último artigo desta coletânea, não tem a ver diretamente com a questão do Brics, mas se refere precisamente a essa postura de “minoria” contra certas posições dominantes, que nunca hesitei em proclamar, com base num estudo aprofundado de nossas relações internacionais. 

Esta compilação de artigos e ensaios tem por objetivo, assim, demonstrar na prática como se pode fazer diplomacia – ou, no caso, história diplomática – sem necessariamente rezar a missa pelo credo oficial. Ela demonstra, pelo menos para mim, que o dever do diplomata não é o de se curvar disciplinadamente às inovações que vêm de cima, mas o de questionar, com base num exame detido de cada questão, sua adequação a uma certa concepção do interesse nacional. A radiografia que aqui se faz do Brics tem por objetivo apresentar os dados da questão, examinar o interesse da ideia para o interesse nacional – com o objetivo do desenvolvimento econômico e social sempre em pauta – e de questionar o que deve ser questionado a partir de certos equívocos de posicionamento externo que podem discrepar daquele objetivo. Manterei minha opção de oferecer relatórios de minoria cada vez que a ocasião se apresentar. No momento, a intenção foi a de coletar trabalhos resultando uma década e meia de reflexões sobre o que eu chamei de “grande ilusão” de uma diplomacia paralela, que ainda exerce influência sobre nossas opções externas. 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6 de maio de 2022

 

Índice

 

Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo    9

1. O papel dos Brics na economia mundial        15

O Bric e os Brics         15

A Rússia, um “animal menos igual que os outros”  16

A China e a Índia         17

E o Brasil nesse processo?     20

 

2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos    24

Esse obscuro objeto de curiosidade    24

O Brasil, como fica no retrato?      25

Russia e China: do comunismo a um capitalismo especial    26

O fascínio é justificado?      29

O que os Brics podem oferecer ao mundo?    31

 

3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil   33

Introdução: a caminho da Briclândia  33

Radiografia dos Brics     34

Ficha corrida dos personagens     35

De onde vieram, para onde vão?      37

New kids in the block       40

Políticas domésticas    43

Políticas econômicas externas    45

Impacto dos Brics na economia mundial        47

Impacto da economia mundial sobre os Brics      48

Consequências geoestratégicas     50

O Brasil e os Brics   53

Alguma conclusão preventiva?    57

 

4. A democracia nos Brics    59

A democracia é um critério universal?      59

Como se situam os Brics do ponto de vista do critério democrático?   60

Alguma chance de o critério democrático ser adotado no âmbito dos Brics?   62

 

5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics    63

Sobre um funeral anunciado    63

Qualificando o debate       64

O que define o G7, e deveria definir também o Brics e o G20      64

Quais as funções do G7, que deveriam, também, ser cumpridas pelo G20?   67

 

6. O Bric e a substituição de hegemonias     70

Introdução: por que o Bric e apenas o Bric?     70

Bric: uma nova categoria conceitual ou apenas um acrônimo apelativo?      71

O Bric na ordem global: um papel relevante, ou apenas uma instância formal?   73

O Bric e a economia política da nova ordem mundial: contrastes e confrontos    81

Grandezas e misérias da substituição hegemônica: lições da História  86

Conclusão: um acrônimo talvez invertido     95

 

7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009      98

Existe um papel para os Brics na crise econômica?     98

Os Brics podem sustentar uma recuperação financeira europeia?    100

A ascensão dos Brics tornaria o mundo mais multipolar e democrático?   103

 

8. O futuro econômico do Brics e dos Brics     106

Das distinções necessárias     106

O Brics representa uma proposta alternativa à ordem mundial do G7?   108

O que teriam os Brics a oferecer de melhor para uma nova ordem mundial?   109

O futuro econômico do Brics (se existe um...)       111

Existe algum legado a ser deixado pelo Brics?       114

 

9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição     116

O Brasil e os principais componentes de sua geoeconomia elementar                   116

Potencial e limitações da economia brasileira no contexto internacional              122

A emergência econômica e a presença política internacional do Brasil                 127

A política externa brasileira e sua atuação no âmbito do Brics    131

O que busca o Brasil nos Brics? O que deveria, talvez, buscar?   136

 

10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil   143

Uma sigla inventada por um economista de finanças     143

Um novo animal no cenário diplomático mundial      144

Existe um papel para o Brics na atual configuração de poder?    151

Vínculos e efeitos futuros: um exercício especulativo      156

 

11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria   164

Introdução: o que é um relatório de minoria?  164

O que é estratégico numa parceria?       165

Quando o estratégico vira simplesmente tático  167

Parcerias são sempre assimétricas, estrategicamente desiguais  168

A experiência brasileira de parcerias: formuladas ex-ante       171

A proliferação e o abuso de uma relação não assumida      177

 

Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia   181

Indicações bibliográficas    187

Nota sobre o autor     189

 

 

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