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quarta-feira, 16 de abril de 2025

2408. “Prefácio: Economia e Ideologia”, Brasília, 13 julho 2012, 8 p. Apresentação ao livro de André Nunes: Economia e Ideologia (2012)

 


O mesmo professor que me convidou para uma palestra a seus alunos de pós-graduação em Gestão Pública, André Nunes, nesta quarta-feira 16/04/2025, já me havia convidado, 13 anos atrás, quando éramos ambas professores no Uniceub, para apresentar o seu livro, o que fiz, com prazer, e hoje fui reler esse pequeno texto: 

2408. “Prefácio: Economia e Ideologia”, Brasília, 13 julho 2012, 8 p. Apresentação ao livro de André Nunes: Economia e Ideologia: Notas de aula de um curso de introdução à Economia Política (Curitiba: Editora CRV, 2012, p. 11-18; ISBN: 978-85-8042-455-3). Relação de Publicados n. 1706.

Texto divulgado na plataforma Academia.edu, link: 

https://www.academia.edu/128830598/4889_Apresentacao_a_Economia_e_Ideologia_livro_de_Andre_Nunes_2012_


Prefácio a Economia e Ideologia:

Notas de aula de um curso de introdução à Economia Política

 


Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor de Economia Política no Uniceub

[Prefácio ao livro de André Nunes,

Professor de Economia Política no Uniceub]

(Curitiba: Editora CRV, 2012)

 

        Economia envolta em ideologia representa uma combinação persistente: a despeito de mais de dois séculos de evolução teórica e prática, desde a velha Economia Política até a moderna síntese neokeynesiana, essa mistura algo indigesta insiste em contaminar os debates intelectuais e o receituário prescritivo das diversas vertentes contemporâneas das ciências econômicas (apropriadamente, no plural). Aparentemente, estamos condenados a essa mistura pelo futuro previsível.

        Com efeito, a antiga disciplina, definida como um instrumento a ser usado pelos estadistas, tal como a concebeu Adam Smith, já não possui mais – se é que algum dia possuiu – uniformidade conceitual ou unidade de métodos empíricos, tantas são as correntes, ou escolas, que disputam a preferência dos consumidores, isto é, todos nós: estudantes de economia (ou de direito, além de outras disciplinas das humanidades), profissionais de mercado, burocratas públicos, ou simples cidadãos consumidores. Todos nós, consciente ou inconscientemente, possuímos alguma visão de como deveria ser organizada a economia para melhor servir nossos objetivos individuais ou metas sociais. 

        A grande questão, contudo, é que essas preferências estão sempre marcadas por nossa formação educacional, nossa posição no sistema produtivo, nossa inserção no mundo dos intercâmbios (e todos os dias estamos fazendo intercâmbios, desde a compra do pão e leite pelas manhãs, até a escolha de algum canal de TV pela noite). Tudo isso intermediado por moeda: nosso próprio dinheiro, fruto do trabalho, a mesada familiar, a herança dos antecessores, uma simples aposta de loteria. O dinheiro permeia e azeita essas transações, aliás, hoje bem mais em sua forma eletrônica do que em papel ou moedas metálicas.

        Obviamente, todos nós preferiríamos ter uma renda maior do que aquela efetivamente disponível em nossos bolsos ou contas correntes. Isso porque, segundo uma velha “lei” da economia, as necessidades são infinitas, e os meios são limitados. Essa é a lei geral da escassez que preside ao destino da humanidade, e a economia é justamente a arte – alguns a consideram uma ciência – de melhor organizar os nossos recursos escassos para atender ao máximo de nossas necessidades ou desejos de consumo. Este livro, como não poderia deixar de ocorrer num texto de economia, discute e esclarece as melhores formas de fazê-lo, evidenciando, justamente, como as mais poderosas ideologias nasceram, como ela se desenvolveram, e como elas penetram, e quase submergem, as principais escolas de pensamento econômico.

        Três são as principais, com pequenas derivações paralelas de cada uma delas: a economia política clássica, que se tornou neoclássica, com o marginalismo do século XIX, e que depois evoluiu para o chamado mainstream economics, ou seja, a corrente dominante na economia contemporânea; o socialismo, especialmente na sua vertente marxista, que se materializou no mais poderoso desafio à economia de mercado no decorrer de quase quatro quintos do século XX, ao lado das variantes fascistas e dos modelos verticais ou autárquicos de organização produtiva; finalmente, uma derivação da escola neoclássica, o keynesianismo teórico e aplicado, que teve seus momentos de sucesso e fracasso, ao longo da segunda metade do século XX, até ser combinado a alguns elementos mais puramente marginalistas para se apresentar hoje como uma “síntese neokeynesiana”. Poderíamos apontar também a chamada “escola austríaca de economia”, que deriva, em grande medida, dos ensinamentos consolidados na versão liberal da disciplina, herdada da tradição clássica, a de Smith.

        Todas essas vertentes econômicas, ou escolas de pensamento, têm de ser necessariamente divergentes, ou opostas entre si? Não exatamente, já que nossas preferências e inclinações nos levam a escolher, em alguns casos, soluções totalmente privatistas para atender nossas necessidades de consumo, ou a exigir, em outros casos, algum tipo de resposta governamental aos problemas que enfrentamos na vida diária: segurança, transporte, infraestrutura, justiça e tantas outras coisas. Estas são as duas balizas que permeiam quase todas as escolhas econômicas: de um lado, os mercados, como provedores da maior parte dos bens e serviços que consumimos; de outro, o Estado, como garantidor de alguns bens públicos, dos quais nos convertemos em demandantes, em troca dos impostos que pagamos a esse mesmo Estado.

        De certa forma, as ideologias econômicas giram em torno desses dois polos da moderna organização econômica: de um lado, o mercado (ou melhor, os mercados, pois existem vários, para toda e qualquer necessidade, mesmo as mais íntimas e por vezes secretas); de outro, o Estado, ou melhor, o governo, pois o Estado é um ente “abstrato”, feito de leis e instituições, que só se materializa quando representado por indivíduos que assumem seu comando temporariamente (pelo menos nos sistemas democráticos) e por funcionários mais ou menos estáveis que asseguram a continuidade dos serviços públicos. A economia política clássica, o socialismo marxista (e suas variantes) e o keynesianismo representam, grosso modo, formas alternadas, ou distintas, de organização social da produção e da distribuição, que combinam, em graus diversos, “quantidades” variadas de Estado e de mercado: desde o regime mais liberal – o famoso laissez-faire da era clássica, que de fato nunca existiu – ao mais autoritariamente estatizante – o dos regimes coletivistas, de tipo bolchevique ou fascista –, sem esquecer o dirigismo econômico mais moderado do keynesianismo, o mundo conheceu as mais diversas experiências econômicas, algumas mais felizes do que outras.

        Com efeito, se olharmos o mundo contemporâneo – no qual a renda pessoal de um cidadão do Luxemburgo, da Suíça ou de Nova York, pode representar mais de duzentas vezes os magros recursos com que devem sobreviver os habitantes de certas regiões da África – contemplaremos todos os tipos de arranjos econômicos e de sistemas políticos para organizar a produção e a distribuição de bens e serviços.         Invariavelmente, essas formações representam diferentes combinações de mercados livres (ou não) e de instituições estatais (ou até Estados “falidos”), sistemas únicos e originais, em cada caso, mas que podem representar a diferença entre a vida e a morte para os indivíduos que nascem e vivem em cada uma delas. De fato, a disponibilidade de serviços médicos preventivos, ou curativos, delimitam as chances de sobrevivência de crianças nascidas na miserável Somália ou na riquíssima Noruega: as taxas de mortalidade infantil expressam essas chances de maneira altamente eloquente. 

        Essa diferença entre a vida e a morte pode ser explicada por determinismos geográficos, disponibilidade de recursos naturais, educação do povo, qualidade das instituições públicas, mas também pode derivar dos tipos de políticas econômicas que são implementadas num e noutro caso; essas políticas estão sempre ligadas ao papel respectivo dos Estados e dos mercados nos diversos sistemas de organização produtiva que existem nesses países. De maneira geral, o que podemos observar, a partir desses diferentes experimentos de políticas econômicas, ao longo dos últimos dois ou três séculos, é que os países mais abertos ao exercício das liberdades individuais – ou seja, caracterizados pela existência de mercados mais livres – são notoriamente mais ricos do que aqueles que se enredaram em arranjos mais fortemente dominados pelo poder do Estado – tanto é assim que os sistemas totalmente estatizados representaram um rotundo fracasso e terminaram por desaparecer quase por completo da face da terra, restando duas ou três “ilhas” de miséria comunista nas antípodas do planeta. 

        Este livro, elaborado por um economista de formação, e professor por opção, explica como isso se deu e desvenda os mecanismos econômicos pelos quais as sociedades organizadas podem criar mais ou menos riqueza, segundo as soluções econômicas, e as opções de mais Estado ou mais mercados, que escolham (ou a que são levadas por lideranças políticas particularmente bem-sucedidas no exercício do poder). Em cada uma das vertentes econômicas delineadas, ele tenta separar os elementos econômicos efetivos, da ideologia que muitas vezes envolve, e obscurece, as escolhas específicas feitas pelos homens, economistas ou não. Keynes costumava dizer que os estadistas, ou os líderes políticos, estão sempre tomando decisões, conscientemente ou não, com base nas ideias de algum economista falecido. Isso é tanto mais verdade no seu caso, pois é um fato que o destino da maior parte das sociedades modernas foi determinado pelas escolhas que seus dirigentes fizeram em torno de receitas inspiradas ou sugeridas pelo próprio Keynes. 

        Muitos economistas, da escola liberal, rejeitam, obviamente, esse excesso de keynesianismo aplicado, que pode ter conduzido algumas dessas modernas democracias de mercado aos impasses, agruras e crises em que elas se debatem nesta virada da primeira década do novo milênio. Outros, herdeiros intelectuais da tradição marxista, acreditam que as crises recorrentes são o resultado inevitável do modo de produção capitalista, e continuam a depositar sua fé nos sistemas socialistas, ou seja, estatais, de produção e distribuição de bens e riquezas. Isto quer dizer que, 230 anos depois da obra inaugural de Adam Smith – A Riqueza das Nações – ainda não existe consenso possível entre as várias escolas de pensamento econômico? Talvez não!

        Depois de mais de dois séculos desde a obra seminal do filósofo escocês (que é de 1776, o mesmo ano da independência americana), pode-se dizer, com algum grau de ceticismo sadio, que a economia política conseguiu estabelecer alguns consensos conceituais em torno de seus argumentos explicativos e de suas prescrições práticas. A grande questão permanece a mesma que tinha presidido à investigação iniciada por Smith, e que foi continuada mais recentemente por David Landes: por que algumas nações conseguiram ser tão ricas, enquanto outras permanecem numa inacreditável pobreza material?

        Essa pergunta é aparentemente complexa, tantas são as variáveis – naturais, sociais, políticas, culturais – que podem explicar o sucesso de algumas e o fracasso de outras sociedades. Na verdade, algumas respostas tentativas a essa questão são menos complicadas do que aparece à primeira vista, se atentarmos, justamente, para alguns dos consensos que podem ter emergido ao longo desses dois séculos de triunfos econômicos e de tragédias sociais. E quais seriam esses consensos?

        Diferentemente das velhas teorias, que colocavam essas diferenças na conta de fatalidades naturais, de determinismos geográficos, de configurações raciais ou de peculiaridades religiosas ou políticas, ou ainda, contrariamente às teses equivocadas que debitavam a miséria dos desafortunados à exploração dos atualmente mais ricos, a economia política contemporânea sabe que a essência das desigualdades sociais e de riqueza entre as nações deriva, fundamentalmente, dos diferenciais de produtividade humana entre elas. Esses diferenciais de produtividade são explicados, em primeiro lugar, pela disponibilidade (existente, ou criada) de capital humano de boa capacitação técnica e educacional, mas também pela qualidade das instituições públicas, bem como pelo ambiente geral de negócios, já que é nesse ambiente de iniciativas econômicas que se desempenham empresários e trabalhadores, de preferência da forma mais livre possível (aqui, um cenário virtualmente inexistente naquelas sociedades que caíram nos extremos do coletivismo). Obviamente, a geografia, os recursos naturais e as dotações próprias dos povos e comunidades organizadas também desempenham um papel importante nesses diferenciais de produtividade entre as nações, mas os fundamentos mais relevantes das desigualdades modernas são dados, propriamente, por elementos institucionais e políticos (ou, mais exatamente, pelas políticas econômicas). 

        Essas duas condições – as instituições governamentais e a qualidade das políticas públicas – são as que moldam, contribuem, ou obstaculizam, segundo os casos, o atingimento de graus mais elevados de produtividade, que é, finalmente, o fator principal e o responsável último pela criação de riqueza numa dada sociedade (ou seja, o determinante do bem-estar dos indivíduos). Em outros termos: na inexistência prática de obstáculos técnicos ou materiais ao desenvolvimento das nações – já que a imensa maioria das tecnologias dominadas e dos conhecimentos práticos que podem impulsionar o crescimento de uma economia está razoavelmente disseminada e livremente disponível nos sistemas abertos de coleta de dados e de informações úteis para a saúde, a educação e a atividade produtiva – os únicos fatores que podem explicar a preservação da miséria e as imensas decalagens entre ricos e pobres no mundo contemporâneo, são justamente essas diferenças, para melhor ou para pior, entre as instituições e as políticas dos países. 

        Mais concretamente, quais seriam os consensos alcançados pela ciência econômica (se existe apenas uma), tanto pelo lado teórico, quanto pelos aspectos práticos, que poderiam contribuir para um ritmo mais robusto de desenvolvimento humano e social, com transformação produtiva e uma melhor distribuição de renda entre os indivíduos? Eles poderiam ser enunciados sob a forma de cinco conjuntos de elementos macroeconômicos e setoriais que deveriam integrar um “receituário” de progressos humanos e sociais nas nações orientadas claramente pelo objetivo de prover o maior bem-estar possível para os seus cidadãos:

    1) um ritmo de crescimento sustentável e sustentado, a taxas razoáveis (que não precisam ser muito altas, mas preferencialmente constantes), pois sem ele seria impossível ter desenvolvimento; esse  processo depende, por sua vez, de estabilidade macroeconômica nos elementos essenciais do sistema: inflação baixa; contas públicas equilibradas ou apenas moderadamente negativas; poupança e investimentos elevados, em relação ao consumo; câmbio e juros neutros ou realistas (ou seja, mais próximos dos equilíbrios de mercado do que determinados politicamente);

    2) mercados abertos e competitivos, o que significa ausência de barreiras governamentais ao lançamento de novas iniciativas empresariais, combate aos monopólios e carteis (que são muitas vezes criados pelos próprios governos) e estímulos a todos os tipos de mecanismos concorrenciais na oferta de bens e serviços, inclusive pelo próprio governo;

    3) boa governança, que significa instituições públicas funcionais e responsáveis (accountable, na terminologia inglesa), transparentes e isentas do peso nefasto de corporações de interesses particulares ou de lobbies indevidos; sistemas eficientes de solução de disputas (judiciário), de maneira a reduzir os chamados custos de transações entre indivíduos e empresas;

        4) investimentos contínuos no capital humano, o fator possivelmente mais relevante para o atingimento de altos níveis de produtividade e de melhoria no perfil distributivo da renda nacional, o que significa, primariamente, educação de qualidade nos ciclos obrigatórios ou universais, seguida de metas de desempenho no ciclo superior e nos estudos especializados ou pós-graduados; a competição e a cobrança de resultados, num ambiente de pesquisa livre, podem resultar em altos níveis de inovação, que deve ser dirigida ao sistema produtivo, ao mesmo tempo em que se assegura uma oferta razoável de pessoal médio dotado de capacitação técnica;

    5) abertura ao comércio exterior e aos investimentos estrangeiros diretos, reconhecidamente as fontes mais seguras, rápidas e eficientes para a absorção de inovações produtivas e de modernização tecnológica; essa abertura não significa, necessariamente, orientações “liberais” em comércio exterior, e pode conviver com certo grau de protecionismo setorial (mas temporário); ela tem a ver com atitudes inteligentes em termos de aquisição de conhecimentos pela via dos mercados (sempre mais rápidos e mais flexíveis do que os governos) e de interação com padrões produtivos mais avançados, propensos, justamente, à maior inserção internacional dos sistemas produtivos nacionais. Para comprovar os méritos dessa abertura, basta traçar uma lista sumária dos países mais ricos no mundo; se constata, assim, que eles são, via de regra, os mais abertos ao comércio e aos investimentos diretos estrangeiros. 

        Dito o que vai acima, como evidência dos consensos alcançados nas ciências econômicas – embora modestos e nem sempre seguidos pelos líderes políticos –, o que poderia ser argumentado em torno das diferenças e obstáculos ainda existentes, no terreno prático, para que a moderna economia política possa trazer respostas úteis aos desafios e dilemas de desenvolvimento de países como o Brasil? O primeiro ensinamento, que o livro de André Nunes ajuda justamente a elucidar, é que devemos separar, racionalmente, os elementos ideológicos do ferramental econômico que é possível mobilizar para fins de crescimento e de desenvolvimento econômico.

        Sou suspeito para me pronunciar sobre as qualidades (reais) deste pequeno curso de introdução à economia política para leigos – no caso, estudantes de direito e áreas afins – uma vez que somos colegas de disciplina na Faculdade de Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e partilhamos, em grande medida, das mesmas inclinações políticas e de orientações econômicas similares. Mas, com base numa longa experiência de estudos teóricos, e de aprendizados práticos – no Brasil e em muitos outros países aos quais me conduziu meu nomadismo diplomático – sei reconhecer as virtudes didáticas do autor deste pequeno-grande livro de iniciação às grandes questões que compõem o coração da economia política enquanto guia de ação para os estadistas, tal como a concebia Adam Smith e vários de seus seguidores. 

        Tenho certeza de que esta obra cumpre integralmente seu papel de guia do pensamento e de farol para a ação prática de alunos e professores que se dispõem a penetrar em alguns dos meandros da ciência. Façam bom proveito deste livro e tenham tanta satisfação em sua leitura quanto eu tive ao apropriar-me de algumas de suas reflexões e ensinamentos para aperfeiçoar minha própria didática de ensino e de compreensão dos fenômenos econômicos. Meus votos de longa vida no itinerário editorial que ele agora empreende.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, julho de 2012

 


quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Uma lágrima para Clóvis Brigagão, internacionalista falecido recentemente - ABRI, Paulo Roberto de Almeida

 Primeiro a notícia, que me chocou: 

É com profundo pesar que a Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) recebe a notícia do falecimento do internacionalista Clóvis Brigagão (1942-2024). Durante a ditadura civil-militar, Clóvis esteve exilado no México, EUA e Portugal, e foi um dos fundadores do Partido Democrático Trabalhista (PDT), onde militou na área internacional. Foi o primeiro assessor internacional de um estado brasileiro (Governo de Leonel Brizola, Rio de Janeiro, 1983-1987) e exerceu as funções de Secretario-Geral da Associação Internacional de Pesquisas sobre a Paz-IPRA (1987-1989). Intelectual inquieto, foi autor e co-autor de diversos livros nos campos dos Estudos sobre a Paz, Segurança Internacional e Política Externa Brasileira. Criou o Grupo de Análise de Prevenção de Conflitos Internacionais (GAPCon), sediado na Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, a partir do qual formou e influenciou diversas gerações de jovens internacionalistas. A ABRI expressa suas condolências e se solidariza com seus familiares, amigos(as) e ex-alunos(as).

Agora minha interação com ele: 

1311. “Prefácio ao Diretório de Relações Internacionais no Brasil, 1950-2004”, Brasília, 7 ago. 2004, 7 p. Apresentação reflexiva para a publicação preparada por Clóvis Brigagão, listando cursos e instituições de relações internacionais no Brasil. Publicado in Clóvis Brigagão (com a assistência de Pedro Spadale e Fernanda Castanheira), Relações internacionais no Brasil: instituições, programas, cursos e redes (Rio de Janeiro: Gramma, 2004, 80 p.; ISBN: 85-988555-02; p. i-vii).

Relações internacionais no Brasil: instituições, programas, cursos e redes: Prefácio

 

In: Clóvis Brigagão (com a assistência de Pedro Spadale e Fernanda Castanheira):

 Relações internacionais no Brasil: instituições, programas, cursos e redes

(Rio de Janeiro: Gramma, 2004, 80 p.; ISBN: 85-988555-02; p. i-vii).

 

 

Quando, em 1998, tentei relacionar, pela primeira vez no Brasil, os cursos existentes de graduação e de pós-graduação em relações internacionais, os resultados foram de certo modo surpreendentes, mas ainda assim modestos. Uma tabela que preparei para tal efeito – inserida em meu livro O Estudo das relações internacionais do Brasil (1ª edição: 1999) – listava nove cursos de graduação (stricto sensu) e apenas quatro de pós-graduação, entre eles o Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores, que apenas recentemente teve confirmado pela CAPES-MEC seu estatuto de “mestrado”. Havia ainda uma dezena de outros cursos de pós-graduação credenciados, possuindo orientação para as relações internacionais, e duas dezenas de cursos de especialização ou de pós-graduação lato sensu, autorizados pela CAPES, que também se dedicavam a esse campo. Este era o campo acadêmico das relações internacionais no Brasil, sem descurar dos muitos cursos de pós-graduação, nas áreas tradicionais de ciências humanas e sociais, como economia, administração e direito, que também formavam mestres ou doutores com teses e dissertações vinculadas de alguma forma a essa temática. 

Os números não eram, portanto, reveladores de uma comunidade muito extensa. Um eventual congresso voltado para a temática das relações internacionais, congregando pesquisadores e professores nessa área, talvez não fosse suficiente para encher uma sala de aulas “normal”. O campo era mais promissor pelo lado das instituições ou veículos suscetíveis de comportar informações, análises ou debates sobre questões internacionais: desde o surgimento da Revista Marítima Brasileira (1851) e do Boletim do Clube Naval (1888), bem como das escolas de guerra, com A Defesa Nacional (1913), foram sendo multiplicadas instituições e revistas voltadas para o ensino, a pesquisa e a discussão pública desses temas. Ainda assim, as revistas dedicadas stricto sensu ao campo das relações internacionais eram em número restrito – ainda hoje, elas são basicamente três –, sendo bem mais numerosos os veículos culturais ou de ciências sociais que abrigavam, no sentido lato, materiais relacionados com essa problemática. 

Ao tomar conhecimento, em meados de 2004, deste Diretório de Relações Internacionais no Brasil, 1950-2004, cuidadosamente preparado pelo Professor Clóvis Brigagão, com a assistência de Pedro Spadale e de Fernanda Castanheira, não pude deixar de constatar, com satisfação, que o campo tinha definitivamente se consolidado no Brasil, com promessa de uma decantação progressiva e uma especialização natural nos próximos anos. Ele registrou, até junho de 2004, a existência de 53 cursos de graduação ativos, com um número aproximado de 13 mil estudantes. O Sudeste, como seria de se esperar, concentra a maior parte desses cursos (56%), mas o Centro-Oeste surge com força, disputando com o Sul o segundo lugar (10 cursos cada um, ou 19% do total). Brasília constitui, obviamente, o elemento predominante na oferta do Centro-Oeste.

A pós-graduação conheceu uma evolução mais moderada, mas ainda assim promissora, na medida em que são atualmente 25 os cursos existentes, sendo dez no conceito stricto sensu e quinze os lato sensu. O Sudeste concentra mais uma vez a maioria (52%), mas o Centro-Oeste (Brasília) vem consolidando, com 7 cursos (ou 28%), sua presença nesse campo. A distribuição pela natureza da instituição – pública ou privada – é reveladora das mesmas características que afetam, de maneira geral, o terceiro ciclo no Brasil: a graduação é majoritariamente privada (90%), ao passo que a pós-graduação conhece uma maior presença pública (40%), mas ainda assim é dominada pelas instituições privadas (60%). A evolução futura certamente confirmará essas tendências, muito embora as instituições públicas estejam gradualmente buscando aumentar sua oferta em face da grande demanda registrada nos últimos anos, tanto em termos de graduação como, crescentemente, de cursos de especialização. 

O mercado ainda parece funcionar segundo a “lei de Say”, ou seja, a oferta cria a sua própria demanda – daí o maior dinamismo do setor privado –, uma vez que não estão ainda adequadamente consolidados os perfis curriculares dos cursos, os sistemas de avaliação oficial pela CAPES e, sobretudo, a institucionalização profissional nesse campo. Se e quando esse campo lograr constituir uma “massa atômica” suficiente, em termos de produção especializada e de interação entre a formação acadêmica e os requisitos do mercado – o que poderia dar maior visibilidade ao “internacionalista” (reconhecido oficialmente ou não) –, se poderia talvez passar a uma etapa de “superação keynesiana” da lei de Say, isto é, a sustentação da demanda agregada, que por sua vez passa a garantir níveis satisfatórios de oferta de cursos no setor.

Como é conhecido, e esperado, as flutuações do ciclo tenderão a ser produzidas no setor privado e a produção de qualidade tenderá a continuar concentrada no setor público, mas a pós-graduação particular começa a exibir, igualmente, níveis de qualificação acadêmica relativamente satisfatórios. Estrutura e tendências do setor podem ser facilmente resumidas. O “mercado” é suficientemente concorrencial nas grandes capitais, mas frustrantemente cartelizado (ou monopolizado) nas demais regiões e nem sempre a informação quanto à qualidade do ensino – e, portanto, do “produto final” – são provistos com a transparência que os eventuais candidatos a uma formação nessa área desejariam dispor. Como as primeiras turmas estão recém sendo “jogadas” no mercado de trabalho na presente conjuntura, não se pode ainda efetuar uma avaliação adequada da “fiabilidade do material”, bem como de sua adequação aos requisitos do mercado. Algum grau de frustração é inevitável, por parte dos jovens egressos de alguns desses cursos, em relação à sua preparação vis-à-vis o que a demanda existente (e potencial) requer como qualificação profissional. 

Essa demanda está atualmente constituída por três blocos desiguais de possíveis contratantes da mão-de-obra especializada produzida nesse campo: o setor público, o mundo acadêmico, ambos relativamente limitados quanto às possibilidades de absorção do número relativamente elevado de graduandos nas fases finais de formação, e o setor privado, enorme e diversificado, mas ainda inseguro quanto à adequação desses jovens internacionalistas aos seus requisitos pragmáticos. No setor público, o grande atrativo é obviamente a diplomacia – extremamente exigente quanto aos critérios de seleção e bastante limitada quanto às possibilidades de entrada –, mas existem outras áreas nas quais o recrutamente é possível (analistas de comércio exterior ou de informações, por exemplo). Na academia, as possibilidades se situam na própria expansão da oferta no setor, voltando-se para uma orientação docente, portanto, o que tende a esgotar-se, talvez, no médio prazo.

A “osmose” entre a academia e a diplomacia não é tão intensa, no Brasil, quanto ela parece ser em outros países de grande tradição nas relações exteriores conduzidas de modo profissional, mas já parece ter sido rompido o relativo “insulamento” em que vivia o serviço diplomático durante a era militar e seu imediato seguimento. “Especialistas” e “assessores” em relações internacionais – inclusive nas mais altas esferas – já não provêm exclusivamente do campo diplomático, tendo a produção própria, ou “importada”, na área política – Parlamento, partidos, centros de pesquisa ou think tanks – crescido significativamente no período recente. O antigo monopólio de idiomas estrangeiros já não mais distingue o diplomata de seus colegas da burocracia de Estado, na medida em que o inglês básico – o raw English – tornou-se a língua franca dos negócios, dos colóquios e das comunicações internacionais. 

O campo dotado de maior elasticidade é, inquestionavelmente, o setor privado, terreno no qual as exigências vão além do simples “canudo universitário” e passam a incidir sobre a preparação efetiva – sobretudo em línguas – e a experiência prévia acumulada (o que sempre constitui uma barreira à entrada dos mais jovens). Espera-se, em todo caso, que as instituições de ensino, públicas e privadas, atentem para as exigências específicas da demanda do setor privado, o único em condições de absorver a oferta crescente nessa área. Elas devem atentar para os critérios de formação e de gradual especialização, nos últimos anos, desses novos internacionalistas, que devem, sim, saber os fundamentos da teoria realista em relações internacionais, mas também o modo de funcionamento efetivo das organizações internacionais voltadas para o comércio, as finanças e os padrões e normas que regulam as trocas globais de bens e serviços. 

Os fatores impulsionadores do crescimento da oferta em relações internacionais nos últimos anos não são difíceis de serem detectados: a intensificação dos processos de regionalização e de globalização a partir da última década do século XX, a série de crises financeiras dos últimos anos, a expansão dos investimentos diretos estrangeiros nesse mesmo período, a multiplicação de foros negociadores de acesso a mercados, tanto no âmbito do sistema multilateral de comércio (OMC), como em escala regional (Alca, UE-Mercosul, esquemas geograficamente restritos de liberalização comercial) ou ainda bilateral (com uma preocupante multiplicação desses acordos preferenciais, que frustram os partidários das regras universais de acesso).

O Brasil participa de todos esses processos, simultânea ou paralelamente, e parece assim natural que a maior presença desses temas nos meios de comunicação de massa tenha motivado os empresários do setor educacional (mas também os responsáveis das instituições públicas) a aumentar a oferta de cursos na área de relações internacionais (muitas vezes com especializações já dirigidas para o comércio exterior, os negócios internacionais ou para o estudo dos blocos comerciais). O investimento parece estar sendo correspondido pelo mercado potencial, já que a “clientela” desses novos cursos se mostra disposta a testar as possibilidades de ascensão profissional em áreas até aqui restritas do ponto de vista do emprego. Existem, por enquanto, poucas barreiras à entrada (e a situação promete continuar fortemente competitiva no futuro previsível), mas a adequação entre a demanda efetiva de mercado e a capacidade instalada não foi ainda de fato testada, dadas a não segmentação da produção e a pouca diferenciação do “produto”. O essencial parece situar-se na flexibilização do “aparelho produtivo” e na capacidade adaptativa da oferta, o que parece garantido em função do caráter privado da maior parte do setor, o que de certa forma é uma boa condição de competitividade nessa área.

Este utilíssimo Diretório reflete toda essa realidade, pois ademais de apresentar um panorama institucional da área – com todos as coordenadas relativas à “oferta” no setor –, ele ainda informa sobre a orientação de cada um deles: multidisciplinar em mais da metade dos casos, mas já crescentemente diversificado nas demais instituições: forte presença de política internacional, mas também comércio e economia internacionais, inclusive agronegócios. A pós-graduação ou a especialização em relações internacionais ainda tendem a ser genéricas – deixando, portanto, a critério dos alunos e professores a orientação e o perfil a serem dados aos estudos empreendidos nesse nível – mas aqui também se nota o surgimento de cursos voltados para o comércio e as negociações internacionais, numa saudável demonstração de que as instituições estão se ajustando aos requisitos e demandas formuladas pelo “mercado” como um todo.

Com efeito, o “mercado” para o “internacionalista” ainda não está inteiramente consolidado no Brasil, sendo visível o sentimento de indefinição, quando não de angústia, em boa parte dos alunos de muitos desses cursos surgidos nos últimos anos em relação às suas possibilidades de inserção bem-sucedida no mercado de trabalho. Não existe, parece claro, uma fórmula ideal de curso, já que o campo é obviamente vasto, as matérias em que pode incidir a formação do futuro internacionalista são muitas e extensas – indo da história ao direito, da economia à ciência política e muito mais – e os requerimentos dos futuros empregadores podem ser tão complexos e especializados como são, hoje, os negócios internacionais. Por isso, uma boa recomendação a todos os alunos seria esta: não importa o curso, seja basicamente um autodidata perfeito e completo.  

Mas este Diretório não constitui, tão simplesmente, um útil repositório de dados básicos e informações práticas sobre os cursos brasileiros da área: ele é também uma introdução básica sobre o surgimento, o desenvolvimento e a expansão desse setor ainda pouco conhecido, enquanto campo especializado das ciências sociais no Brasil. Com efeito, a introdução de Clóvis Brigagão traça os antecedentes, a evolução ulterior e a situação atual da área, agregando ainda uma informação inédita sobre o surgimento – ainda  antes dos anos 90, mas essencialmente a partir de sua segunda metade – e a lenta consolidação, entre nós, de uma rede institucional de pesquisadores e profissionais de relações internacionais. Uma seção final, por exemplo, relaciona os encontros (Eneri) organizados pela Federação Nacional de Estudantes de Relações Internacionais (Feneri), bem como os três encontros, até aqui realizados, do Enepri, congregando os profissionais e pesquisadores dessa área (as resoluções, ou cartas, elaboradas ao final desses encontros são reproduzidas). Trata-se, portanto, de uma history in the making, da qual o autor é um dos mais distinguidos atores. 

As conclusões do autor são também indicativas das principais características do setor: o crescimento observado até aqui é, em grande medida, “empírico”, podendo ocorrer uma certa retração da oferta e uma requalificação dos cursos, em função da demanda efetiva e da confirmação da diversidade do setor, considerada acertadamente por Clóvis Brigagão como rica e positiva, pois que correspondendo à forma pela qual o Brasil se insere no sistema internacional. O Diretório é certamente preliminar em seu esforço pioneiro e, como tal, suscetível de aperfeiçoamento e de complementação informativa – se possível em sistemas online como os da Feneri e do Relnet –, mas ele já constitui um retrato completo, ainda que inicial, de um processo de consolidação de um campo importante do panorama institucional das ciências sociais no Brasil. Trata-se de um marco relevante para o conhecimento desse campo, a partir do qual a própria rede institucional que ele ajuda a fortalecer vai contribuir para a melhoria das estruturas de formação, para a ampliação dos intercâmbios internos e externos a essa área e, como esperamos todos nós, para a melhor qualificação possível dos estudantes e dos docentes dessa área, reforçando ainda mais a pesquisa e a produção especializada no campo das relações internacionais.

Poucas obras, no panorama editorial “normal”, aspiram ser peremptas ou então deliberadamente passíveis de “correções” periódicas, o que não é certamente o caso deste pequeno grande volume. Meu desejo, portanto, é que este Diretório tenha rápidas e contínuas atualizações, o que constituirá, justamente, a marca de seu sucesso. Finalizo com cumprimentos sinceros ao seu autor principal e aos colaboradores pelo esforço realizado neste primeiro mapeamento do campo relações internacionais do Brasil. Minha recomendação é a de que ele constitua o suporte inicial de um processo de construção de um verdadeiro sistema de informação – quantitativo e qualitativo – sobre esse campo promissor no Brasil, agregando dados sobre os recursos humanos e a produção da área, o que o transformará não apenas em um manual completo de informações, o que de certa forma ele já é, mas em instrumento de referência indispensável a todo profissional de relações internacionais. Longa vida ao Diretório de Relações Internacionais.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 7 de agosto de 2004

(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

Relação de Publicados n. 493.

 

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Venezuela: apogeu e tragédia da aventura chavista (2022) - Prefácio ao livro de Paulo Velasco e Rafael Azevedo - Paulo Roberto de Almeida

 Venezuela: apogeu e tragédia da aventura chavista  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

Prefácio ao livro: 

Venezuela e o Chavismo em perspectiva: análises e depoimentos

Paulo Afonso Velasco Júnior e Pedro Rafael Pérez Rojas Mariano de Azevedo (orgs.) 

 

Com as conhecidas exceções dos sistemas judaico e islâmico, o calendário mais aceito no mundo – inclusive por uma velhíssima civilização, como a da China – é o cristão, que divide o tempo histórico entre uma época anterior ao nascimento de Cristo (AC) e a que se lhe segue imediatamente (DC). Aceitando-se que os dados de respeitáveis órgãos do sistema multilateral (FMI e Cepal) sejam fiáveis, a Venezuela – que era, até os anos 1980, um dos países mais ricos da região – tornou-se agora, depois até do Haiti, o país mais pobre da América Latina. Pode-se, a partir daí, estabelecer um novo calendário para a história do país: como o cristão, ele também pode ser dividido em um AC e um DC, apenas que se trata de um Antes e Depois de Chávez. De fato, como confirmado pelo título deste livro, a Venezuela e o chavismo são praticamente indissociáveis nas primeiras duas décadas do século XXI.

O contraste entre uma e outra situação é realmente notável, extraordinário mesmo, levando-se em conta que essa inacreditável derrocada, da maior renda per capita para uma situação próxima da miséria absoluta, não resultou de nenhuma guerra, nenhuma catástrofe natural, nenhuma invasão estrangeira ou maldição divina; ela foi, em tudo e por tudo, integralmente fabricada pelos próprios dirigentes nacionais, numa acumulação de erros econômicos e de conflitos políticos e sociais criados inteiramente pela desastrosa gestão chavista do país, desde 1999 e continuada após a sua morte, em 2013, por seus sucessores designados. Trata-se, possivelmente, de um caso único na história econômica mundial, uma vez que todos os demais casos de declínio econômico ou político costumam ser processos mais longos de perda de dinamismo de sua base produtiva ou o efeito de regimes políticos especialmente incompetentes, mas cuja ação se prolonga num tempo mais largo. No caso da Venezuela, processou-se uma deterioração da situação econômica e uma degradação de suas instituições políticas em um tempo incrivelmente curto: o principal responsável foi Chávez.

O que simboliza, mais que quaisquer outros aspectos, a derrocada do país mais rico da América Latina é o exílio forçado, por razões políticas ou mais simplesmente econômicas, de quase 1/5 da população do país, com a primeira leva coincidindo com a implantação de um regime autoritário e a segunda como consequência do desastre econômico criado pelo projeto eminentemente chavista de “socialismo do século XXI”. Em parte, essa derrocada pode ser atribuída à influência dos dirigentes castristas sobre Hugo Chávez e associados; mas isso é incrível, uma vez que a ilha caribenha já tinha acumulado ampla experiência própria sobre os desastres do socialismo de tipo soviético, e poderia ter “instruído” melhor seus aliados no país que já foi o mais importante produtor de petróleo na região. Não o fizeram porque eles mesmos estavam extenuados com seu regime inoperante, e precisavam extrair da Venezuela o máximo de recursos financeiros e energéticos; não há dados fiáveis sobre essa extração.

Houve um tempo, na primeira década do século, em que Chávez foi, ao lado de Lula, o mais importante líder político da região, com a diferença de que este soube operar uma economia de mercado visando políticas sociais de caráter redistributivo, sem alterar os mecanismos essenciais do sistema capitalista. Chávez, como Lênin e os cubanos, tentou “domar” o mercado, usando métodos rústicos de estatização. Combinado ao maná do petróleo – cujo barril chegou a 140 dólares naquela época –, sua economia esquizofrênica só produziu uma queda fenomenal da oferta interna e uma corrupção raras vezes vista num continente habituado a conviver com estamentos políticos do tipo predatório. A produção de petróleo reduziu-se cinco vezes desde o início do chavismo: a recuperação do setor vai demandar um enorme aporte de investimentos e de know-how estrangeiro, algo que não está perto de ocorrer em vista da persistência de uma direção gangsterista no comando do Estado. A inflação “bolivariana” já ultrapassou os exemplos mais dramáticos da história monetária mundial, traduzida em diversas “moedas” até se chegar à atual dolarização informal. 

O livro aborda essas diversas facetas do drama chavista na Venezuela, por autores que, inclusive por experiência própria, conhecem a fundo como foi sendo construído o maior desastre humanitário vivido no continente, só comparado, talvez, à emigração síria, mas esta provocada por dez anos de guerra civil e intervenção estrangeira. Chávez, os castristas e seus seguidores construíram uma derrocada única na história da região, uma tragédia ainda hoje sustentada pelas forças de esquerda em países vizinhos: estas parecem não perceber que Chávez é o mais próximo que se conheceu de um êmulo de Mussolini na região. A verdade, porém, é que a história não se repete e, no caso do chavismo, sequer como farsa. Trata-se de uma “aventura” a ser detidamente estudada: este livro é um excelente começo para a tarefa.

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

Brasília, dezembro de 2021

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4029: 30 novembro 2021, 2 p.

Prefácio ao livro de Paulo Afonso Velasco Júnior e Pedro Rafael Pérez Rojas Mariano de Azevedo (orgs.), Venezuela e o Chavismo em perspectiva: análises e depoimentos (Curitiba: Appris, 2022).



Info Amazon.com.br: 


A Venezuela e o Chavismo em Perspectiva: Análises e Depoimentos 

24 março 2022 


O livro Venezuela e o chavismo em perspectiva: análises e depoimentos busca abordar distintos temas da realidade venezuelana a partir da ascensão de Hugo Chávez à presidência do país em 1999. A combinação de textos acadêmicos e depoimentos pessoais enriquece o alcance e o impacto da obra, incorporando tanto argumentos assentados em cuidadosa revisão de literatura e dados empíricos quanto declarações contundentes sobre aspectos cotidianos da crise vivenciada pelo país. Os distintos capítulos revelam visões plurais sobre os impactos e o legado do chavismo para a Venezuela e outros países da região, acolhendo desde perspectivas mais críticas e ideológicas até interpretações menos extremas ou partidarizadas. A complexidade da figura de Hugo Chávez e das estratégias levadas a cabo sob seu governo exige uma abordagem que considere distintos elementos da política, economia, cultura e sociedade do país, contando com a contribuição dos olhares de pessoas diretamente afetadas, mas também com a análise atenta de pesquisadores dedicados ao país e à região. Esta é justamente a grande contribuição do livro, abrir espaço para uma perspectiva mais ampla sobre o que ocorreu na Venezuela ao longo das últimas duas décadas. Os autores oferecem não apenas uma visão sobre o plano doméstico, considerando desafios e iniciativas que caracterizaram a gestão de Chávez e o jogo de forças que se enfrentaram no período, como também lançam luz sobre as nuances de uma política externa que se afirmou como um valioso instrumento para a projeção de poder do país sobre a região e o mundo. Salvador e mártir, de um lado, caudilho e ditador, de outro, são algumas das distintas visões sobre a figura do controvertido e carismático líder venezuelano incorporadas neste livro e associadas a interpretações variadas que, no seu conjunto, ajudam a decifrar um pouco do enigma sobre um país que passou, em menos de 20 anos, por momentos de incerteza, esperança, riqueza, projeção, declínio e, finalmente, caos e crise humanitária. Por seu olhar plural e linguagem dinâmica, esta leitura constitui excelente contribuição para um melhor entendimento sobre as distintas facetas do regime chavista e seu líder.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Prefácio de Rubens Ricupero ao livro de Synesio de Sampaio Goes sobre Alexandre de Gusmão

Publicado em 2019 pelo Vermelho, um órgão de  esquerda:

https://vermelho.org.br/2019/08/03/leia-o-prefacio-de-rubens-ricupero-que-foi-censurado-pelo-itamaraty/

Leia o prefácio de Rubens Ricupero que foi censurado pelo Itamaraty 

O embaixador aposentado Rubens Ricupero, crítico da política externa do governo Bolsonaro, considerou “infantilidade” o veto do chanceler Ernesto Araújo a um livro do Itamaraty por questões pessoais. Ricupero fez o prefácio da biografia de Alexandre de Gusmão, escrita pelo embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, por encomenda da Fundação Alexandre de Gusmão, vinculada ao ministério. Em julho, ao entregar os originais, Goes Filho foi avisado de que o livro só seria publicado sem o prefácio.

Ricupero

Com o título Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil, o livro deveria ser publicado neste segundo semestre. “É um texto dirigido, sobretudo, a interessados em história diplomática. Uma razão a mais para concluir que a atitude de vetar o prefácio é, no fundo, uma infantilidade de efeitos contraproducentes para os que a adotaram”, afirmou Ricupero, que também é historiador e foi embaixador em Washington.

Autor do ensaio sobre Gusmão – que é considerado o “avô” da diplomacia brasileira –, Goes Filho também protestou. “Isso é censura, obscurantismo. Desse jeito, nenhum embaixador de prestígio vai poder publicar”, afirmou ele à Folha de S.Paulo. “É um assunto do século 18, e o autor foi vetado porque critica o ministro – não pelo que escreveu.”

Ao lado de outros veículos e em solidariedade a Goes Filho e Ricupero, o Vermelho divulga abaixo a íntegra do texto censurado pelo Itamaraty.

Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil

PREFÁCIO 

Por Rubens Ricupero


Synesio Sampaio Goes Filho realizou neste livro em relação ao principal autor do Tratado de Madri o que havia feito para a formação das fronteiras do Brasil: tornou acessível ao leitor de hoje a compreensão de uma história que se convertera em algo de remoto e abstruso.

Nem sempre fora assim. Até sessenta ou setenta anos atrás, a história diplomática do Brasil parecia às vezes dominada pela história das fronteiras. Na atmosfera de justa satisfação pela solução definitiva dos problemas territoriais do país levada a cabo pelo barão do Rio Branco, multiplicaram-se os estudos das questões fronteiriças, frequentemente escritos por diplomatas de carreira com vocação de historiadores.

Um dos mais produtivos entre esses autores, o embaixador Álvaro Teixeira Soares, resumiu com felicidade o sentimento que animava tais estudos. A solução sistemática dos problemas fronteiriços iniciada sob a monarquia e concluída por Rio Branco, escreveu Teixeira Soares, merecia ser considerada como uma das maiores obras diplomáticas realizadas por qualquer país em qualquer época. Não havia exagero em descrever desse modo o processo pacífico de negociação ou arbitragem pelo qual se resolveu metodicamente cada um dos problemas de limites com nada menos de onze vizinhos contíguos e heterogêneos (na época do Barão, o Equador ainda invocava direitos de fronteira com o Brasil, em disputa resolvida com o Peru somente muito mais tarde).

Passada a fase em que era moda escrever livros sobre fronteiras, o assunto perdeu grande parte do atrativo. Julgava-se que nada mais havia a dizer a respeito de problema já resolvido. Desconfiava-se de obras assinadas por funcionários diplomáticos, confundidas com a modalidade de publicações destinadas a engrandecer a própria instituição. Livros sobre discussões limítrofes, antes tão populares, tornaram-se difíceis de encontrar e mais difíceis de ler. O estilo envelhecera, os métodos da historiografia passada davam a impressão de obsoletos, a narrativa soava monótona, demasiado descritiva, apologética, pouco crítica, cansativa na enumeração de intermináveis acidentes geográficos.

Foi nesse panorama estagnado que Synesio teve a coragem de escolher para sua tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco em 1982 o tema enganosamente escondido sob o modesto título de Aspectos da ocupação da Amazônia: de Tordesilhas ao Tratado de Cooperação Amazônica . Lembro bem da surpresa positiva que causou a dissertação, pois fazia parte na época da banca examinadora do exame. Fui assim testemunha do surgimento de uma vocação singular de historiador voltado para recuperar a desgastada tradição de estudos fronteiriços.

Estimulado pela recomendação de publicação da banca, o autor ampliou e enriqueceu o trabalho, editado pelo Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais (IPRI), em 1991, sob o título de Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas: Um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. O livro teve o efeito de uma janela que se abria na atmosfera bolorenta da antiquada história das fronteiras, fazendo entrar o ar fresco da renovação modernizadora.

Redigida em linguagem límpida, objetiva, expressiva na sóbria elegância, a narrativa envolve o leitor em viagem sem esforço pela fascinante evolução do território brasileiro na sua fase de expansão, de avanços e recuos na Amazônia, no Extremo Oeste, na região da Bacia do Prata. Demonstra como se revelou constante em toda essa história a articulação do impulso pioneiro de exploradores, homens práticos determinados na busca de compensações materiais, com o trabalho cuidadoso de diplomatas e estadistas que legitimaram em instrumentos jurídicos o que não passava no início de ocupação precária de terras duvidosas.

Um dos méritos originais do livro consistiu em resolutamente colocar de lado a mitologia criada em torno de uma suposta linha que teria sido invariavelmente seguida por todos os governos brasileiros, refletindo uma doutrina inabalável ao longo dos séculos. Segundo tal linha de argumentação, desde os primórdios os políticos e diplomatas do Império teriam sustentado que o Tratado de Santo Ildefonso (1777) havia perdido a validez ao não ser explicitamente revalidado depois da fugaz Guerra das Laranjas (1801) no Tratado de Badajoz. Não existindo, portanto, direito escrito para definir as fronteiras, estas deveriam ser estabelecidas – seria o segundo postulado pretensamente imutável – de acordo com o princípio do uti possidetis , isto é, obedecendo à posse efetiva no terreno. O Tratado de Santo Ildefonso serviria apenas de maneira subsidiária para ajudar a dirimir dúvidas onde não se verificasse a ocorrência de posse ou não houvesse contradição entre o tratado e a posse.

O argumento apresentava alguma utilidade para comprovar a antiguidade e constância das pretensões brasileiras. Não passava, no entanto, de artifício de negociação, sem amparo real na realidade histórica. Synesio Sampaio Goes não se intimidou com a longa sequência de respeitados estadistas e estudiosos que haviam cercado essas afirmações com a proteção de sua autoridade e de seu prestígio. Mostrou com exemplos irrefutáveis que nenhum dos postulados havia sido verdade absoluta adotada em todos os casos. Não faltavam decisões e pareceres do Conselho de Estado advogando em favor da adoção de Santo Ildefonso como orientação para fixar fronteiras. Nem de episódios em que o Conselho ou o governo tinham recusado recorrer ao uti possidetis como critério para traçar limites.

Longe de enfraquecer a tradição brasileira em matéria de negociação de fronteiras, o trabalho de reconstituição da verdade efetuado pela obra conferiu historicidade e verossimilhança às doutrinas defendidas pelo Itamaraty, voltando a situá-las no contexto próprio do tempo em que foram definidas e no das circunstâncias que as modificaram. O desmonte da retórica apologética permitiu que aparecesse a verdade de uma evolução gradual, de tentativas e erros, de afirmação progressiva das teses mais convenientes. A narrativa fiel aos fatos fez emergir do passado uma diplomacia conscienciosa de estudo de mapas, de exploração de velhos arquivos, de construção paciente de doutrinas jurídicas adaptadas à situação de país cujos títulos originais a boa parte de seu futuro território eram pobres ou inexistentes. O resultado final, além de verdadeiro, valorizava em vez de empobrecer os méritos dos diplomatas que construíram a história do mapa do Brasil.

Na origem de toda essa história encontrava-se o alto funcionário da Corte portuguesa a quem se devia, mais que a qualquer outro, a definição do perfil territorial do Brasil, Alexandre de Gusmão. Brasílico, como se dizia na época, nascido obscuramente na humilde, insignificante Vila do Porto de Santos, tratava-se de personagem que atuara de modo discreto nos bastidores do poder. Permanecera quase anônimo por longo tempo, mais de um século, apesar de um ou outro estudioso mais arguto como o barão do Rio Branco ter reconhecido o papel que desempenhara.

Coube a um exilado político no Brasil do regime salazarista, o historiador português Jaime Cortesão, a tarefa de resgatar da penumbra da história a figura de Gusmão, desentranhando do silêncio dos arquivos os documentos que praticamente revelaram ao mundo a história real que se escondia por trás da negociação do Tratado de Madri (1750). Synesio Sampaio Goes, que já produzira o moderno clássico do estudo e da análise da história geral das fronteiras brasileiras, retrocede agora ao ponto de partida de onde tudo começou a fim de examinar como se chegou a pacientemente preparar a maior de todas as vitórias da diplomacia luso-brasileira na consolidação da expansão territorial do Brasil, o Tratado de Madri.

Conforme afirmei lá no início do prefácio, as duas realizações de Synesio, a da história completa, abrangente das fronteiras, e hoje a do Tratado de Madri e de seu autor mais importante, possuem uma característica definidora comum. Ambas reexaminam com olhar crítico o volumoso material existente, desbastam esse acervo daquilo que apresenta relevância menor para o leitor culto de nossos dias, reconstruindo com estilo contemporâneo, metodologia e linguagem atualizadas, narrativas que corriam o risco de não mais serem lidas a não ser por raríssimos especialistas.

Tome-se, por exemplo, o caso da obra magna de Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, publicada nos anos 1950 pelo Instituto Rio Branco em nove alentados volumes com milhares de páginas de reprodução de documentos e mapas. Quem hoje em dia se disporia a ler a obra inteira? Mesmo a edição compacta em dois tomos restritos à vida e realizações de Alexandre de Gusmão, editada em 2016 pela Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, estende-se por mais de oitocentas páginas de letra miúda, recheadas de longas discussões de erudição de interesse relativamente menor para o leitor médio.

Synesio não só torna a história dos limites e a de Alexandre de Gusmão acessíveis e atrativas aos leitores e estudiosos atuais. Ao modernizar e submeter a rigoroso crivo crítico tais narrativas, realiza obra original de mérito indiscutível. Ao discutir as hipóteses mais especulativas a respeito de incidentes da biografia de Gusmão, a autoria pessoal das instruções que orientaram o negociador português do Tratado, concepções intelectuais que teriam inspirado as ações lusitanas, o autor pesa com cuidado os argumentos e chega a conclusões que comandam o consenso pelo realismo, prudência historiográfica e bom senso.

Essas qualidades se destacam, entre outras passagens, nas que relativizam e moderam o entusiasmo raiando ao misticismo de Jaime Cortesão ao tratar de alguns mitos da história colonial como o da célebre “ilha Brasil”, a existência de um território delimitado de um lado pelo oceano Atlântico e no oeste por dois grandes rios que confluiriam para um mítica lagoa no interior das terras sul-americanas. A sobriedade nas avaliações e juízos confere veracidade digna de fé às afirmações amparadas, na falta de documentos conclusivos, por critérios de probabilidade e verossimilhança.

O autor faz bem de chamar ensaio biográfico o estudo da vida e ação de um personagem que viveu na primeira metade dos Setecentos. Faltariam elementos probatórios para tentar reconstruir a respeito da figura de Gusmão aspectos minuciosos da infância, da formação da personalidade na adolescência e juventude, das leituras e experiências definidoras como pretendem às vezes realizar exaustivas biografias de personalidades mais perto de nós. Uma técnica de narrar que funcionou de modo eficaz na construção da obra foi a de alternar o tempo todo a vida de Alexandre de Gusmão e a evolução dos acontecimentos que criariam as oportunidades para suas realizações. Basta passar os olhos pelo índice para perceber a dosagem alternada de matérias de contextualização — o Brasil, Portugal na época — com os capítulos biográficos — começos de vida, diplomata aprendiz, secretário real — voltando à colônia no apogeu do ouro, mas sem fronteiras, a relação do brasílico com sua distante pátria, os problemas do contrabando.

O estudo se revela particularmente útil no exame minucioso do que viria a ser presumivelmente a mais importante negociação territorial da história brasileira, culminando num tratado que de certa forma equivaleria a uma espécie de “escritura de propriedade” do território que forma o Brasil de hoje. Já se disse outras vezes e ressalta bastante deste livro a originalidade múltipla do Tratado de Madri. Num período em que quase todos os tratados de limites se originavam de guerras e refletiam a correlação de forças no campo de batalha, o acordo de 1750 foi exceção, negociado e concluído depois de longos anos de paz entre Portugal e Espanha.

Em contraste com a maioria dos inúmeros acordos limítrofes que o Brasil independente assinaria no futuro, o de Madri se salientou por desenhar a linha completa do mapa do Brasil ao longo de milhares de quilômetros de fronteiras terrestre. Não era o que desejavam os espanhóis, mais uma vez empenhados em somente limitar o ajuste a alguns setores de seu particular interesse, sobretudo na região da permuta da Colônia do Sacramento pelos Sete Povos das Missões do Alto Uruguai. Graças à firme insistência dos negociadores lusos é que se conseguiu definir o que, com ajustes relativamente menores, haveria de ser na prática o perfil territorial do Brasil moderno.

O Tratado de Madri tornou possível outra originalidade da história da formação territorial brasileira: a de que ela se encontrava virtualmente terminada antes da Independência. Em termos gerais, o chamado expansionismo, que foi a rigor muito mais português que brasileiro, alcançava quase seu limite máximo na véspera da Independência. Compare-se com a expansão norte-americana, que tem início a partir da Independência de 1776, para perceber a diferença das implicações que esse fato acarretaria para o relacionamento do país independente — Estados Unidos da América ou Brasil — com seus vizinhos igualmente independentes, México, no exemplo norte-americano, os dez vizinhos brasileiros, com o enorme contraste em termos de herança de ressentimentos históricos.

Vários dos estudiosos do Tratado de Madri fizeram questão de destacar que ele se adiantou a seu tempo na razoabilidade e no equilíbrio das concessões, no seu legado central, que consistiu em reconhecer de direito o que já ocorrera no terreno da prática: a supremacia da expansão luso-brasileira na Amazônia e no centro-oeste da América do Sul em câmbio do prevalecimento dos interesses castelhanos na Região da Bacia do Prata. Talvez se deva, em última instância, a esse espírito avançado em relação à época que o tratado tenha sido tão fugaz na duração formal: pouco mais de dez anos até a anulação pelo Tratado de El Pardo (1761).

Um dos enigmas da história luso-brasileira é entender por que o governo português, principal beneficiário dessa obra-prima de sua diplomacia, se converteu, em poucos anos, num dos mais ativos fatores de sua destruição. Os historiadores, entre eles Jaime Cortesão, alinham, é claro, argumentos e razões, que soam desproporcionalmente fracos para explicar erro tão grave de avaliação. Não é este o lugar para examinar a questão, de que procurei tratar em livro recente. De todo modo, o que conta é que, depois de vicissitudes e revezes sem conta perfeitamente possíveis de evitar, o espírito do Tratado de Madri acabaria por prevalecer. Esta constatação é seguramente a maior demonstração do gênio criador de Alexandre de Gusmão, capaz de sobreviver até à maligna inveja do marquês de Pombal, seu poderoso e overrated rival.

Em vida, Gusmão não alcançou recompensa nem reconhecimento pelo que fizera. Morreu no ostracismo, sem poder, com dificuldades financeiras. A Representação que dirigiu ao rei D. João V em fins de 1749, pouco antes do desaparecimento do monarca, ficou sem resposta. Permaneceria no limbo da história até meados do século XX, quando, graças a Jaime Cortesão, viu finalmente apreciada e valorizada sua contribuição com as seguintes palavras:

“Precursor da geopolítica americana; definidor de novos princípios jurídicos; mestre inexcedível da ciência e da arte diplomática, Alexandre de Gusmão tem direito a figurar na história como um construtor genial da nação brasileira, pela clarividência e firmeza de uma política de unidade geográfica e defesa da soberania, que antecipam, preparam e igualam a do Barão do Rio Branco”.

O primoroso ensaio biográfico que Synesio Sampaio Goes Filho dedica a sua memória reexamina, atualiza e ratifica, ponto por ponto, a justiça e exatidão do julgamento tardio da posteridade.

Rubens Ricupero, São Paulo, 16 de junho de 2019.