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sábado, 28 de maio de 2022

Prefácio de Gelson Fonseca Jr., ao livro de J.A. Lindgren Alves: É Preciso Salvar os Direitos Humanos

 UM APELO NECESSÁRIO  

Gelson Fonseca Júnior

Prefácio ao livro de José Augusto Lindgren Alves:

É Preciso Salvar os Direitos Humanos

(São Paulo: Perspectiva, 2018)

 


 Para esta coletânea de artigos, José Augusto Lindgren Alves escolheu, com boas razões, um título que traz um apelo e tem sentido de urgência: É preciso salvar os direitos humanos. O apelo merece atenção porque feito por um dos mais notáveis especialistas brasileiros em direitos humanos, conhecido por sua ampla e respeitada produção. As reflexões de Lindgren começam a ser articuladas em 1989, quando apresenta a tese, As Nações Unidas e os Direitos Humanos, ao Curso de Altos Estudos, do Instituto Rio Branco. Em seguida, em 1994, publica seu primeiro livro, Os Direitos Humanos como Tema Global (Perspectiva, 1994) e, daí em diante, não interrompe mais a sua contribuição intelectual e diplomática à causa dos direitos humanos. No seu currículo, são sete livros e inúmeros artigos em revistas acadêmicas e jornais. Anoto que seus primeiros textos estão voltados para a diplomacia dos direitos humanos e todos se tornam referência necessária para quem estuda o tema, especialmente o Relações Internacionais e Temas Sociais: a Década das Conferências (IPRI-FUNAG, 2001). 

Gradualmente, o seu horizonte temático se alargou. As questões de direitos humanos naturalmente o estimularam a analisar os fatores sociológicos que condicionavam a sua promoção e aplicação. Também não faltou, em seus escritos, a preocupação filosófica, centrada no exame do sentido da universalidade da projeção dos DHs. Impressiona a maneira como Lindgren introduz a reflexão de clássicos, como Weber, Marx e Hannah Arendt, e de pensadores modernos, como Bobbio, Zizek, Lyotard, Alain Badiou, Derrida, Amartya Sem, Bernard-Henry Levy e, entre os brasileiros, Abdias Nascimento, Flavia Piovesan, Celso Lafer e Paulo Sergio Pinheiro. Assim, seus argumentos ganham em profundidade e estão em permanente diálogo com o melhor pensamento sobre os rumos da civilização na modernidade e na pós-modernidade. Na obra de Lindgren, ressalta ainda o fato de que suas ideias são, como se dizia, engajadas, ligadas frequentemente no debate nacional e internacional sobre as questões difíceis do campo. 

A carreira de Lindgren acompanha e estimula as suas reflexões. Ele chefiou a área de direitos humanos no Itamaraty em 95 e 96, participou das Conferências Globais das Nações Unidas, dos anos 90, a começar pela Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, e, graças a seu conhecimento e reputação, foi eleito, a título pessoal, em 2002, como perito, para o Comitê para a Erradicação da Discriminação Racial (CERD), da Nações Unidas. Reeleito sucessivamente, está até hoje no Comitê. 

Nos artigos aqui compilados, todas as virtudes do pensador e do diplomata, do estudioso e do militante, aparecem e se combinam para propor uma reflexão madura, consistente, oportuna, e que deve ser lida, com proveito, por todos que querem um país (e uma ordem internacional) orientado por valores que sustentem a dignidade das pessoas e dos grupos sociais. Não tenho dúvidas de que o livro alargará o conhecimento de leigos e especialistas sobre o estado atual do debate sobre as questões de direitos humanos. E, ainda, vale a leitura pela elegância da apresentação dos argumentos, sempre claros, precisos, redigidos de tal forma que torna fácil mesmo a compreensão de temas complexos. 

A coletânea, organizada a partir de textos escritos entre 1996 e 2016, chama atenção, inicialmente, pela a abrangência da temática, unificada pela preocupação com o esmorecimento do prestígio da causa dos direitos humanos e suas consequências. O ponto de partida são os sinais múltiplos, crescentes, de que a luta pela defesa e promoção dos direitos humanas, que marca os anos 90, começa a sofrer distorções, encontra dificuldades para avançar. Aliás, como para provar que o problema é agudo e urgente, em fins de dezembro de 2017, o Princípe Zeid Raád Hussein, comissário de direitos humanos da ONU, anunciava que desistia de um segundo mandado na função com palavras contundentes, “After reflection, I have decided not to seek a second four year term. To do so, in the current geopolitical context, might involve bending a knee in supplication; muting a statement of advocacy; lessening the independence and integrity of my voice – which is your voice”.

No abrangente diagnóstico que Lindgren faz do problema do esmorecimento da causa dos DHs, a evolução recente do contexto político internacional e o comportamento das potências é um deles. Mas, sem hierarquizá-los, há outros fatores que, acredita o autor, se tornaram estruturais, como o da transferência da luta universal para causas particulares pela via do multiculturalismo e a própria dinâmica da burocracia internacional de DH que se multiplica em detrimento da eficácia. É impressionante o arsenal de argumentos, apoiado sempre por ilustrações valiosas, que Lindgren coleciona para demonstrar a sua tese. Parece que nada, na história recente da promoção dos direitos humanos, escapa a seu escrutínio. Lida com o tema da xenofobia na Europa, das torturas em Guantánamo, da evolução complicada da situação na Bósnia, de posições de Bento XVC, da ocidentalidade dos direitos humanos e muito mais. Resume a história da trajetória do sistema de direitos humanos, discute a diferença que tem em relação ao direito humanitário e mostra em que condições (paz e guerra) podem e devem ser aplicados. Também é valiosa a análise de dentro dos mecanismos multilaterais, especialmente da CERD. Neste tema, aliás, creio que a sua contribuição é única e reveladora. 

Uma das forças do texto é o de que não foge à polêmica. É corajoso, como tem sido corajosa a sua participação no CERD, muitas vezes isolado, ao enfrentar temas espinhosos como o dos excessos do politicamente correto. As afirmações de Lindgren são frequentemente contundentes, em retórica forte, sem meias palavras. Ao refletir com indignação racional ao que vê, combina sentimentos fortes e argumentos fortes. O descaminho da luta pelos direitos humanos, em sua concepção mais valiosa, como a que está fixada na Conferência de Viena de 1993 não é uma perda menor para uma ordem internacional carente de padrões éticos e, sobretudo, para homens e mulheres ainda discriminados, ainda longe de gozar direitos dos mais elementares direitos. 

Para situar as origens da preocupação de Lindgren, é necessário lembrar o que a causa dos direitos humanos realizou ou ajudou a realizar. A aceitação da universalidade dos direitos humanos e sua articulação multilateral em Viena têm reflexos notáveis para a luta social pela dignidade humana, nos últimos anos. Lindgren lembra que os direitos da mulher foram reconhecidos como integrantes dos direitos humanos universais; os homossexuais no Ocidente puderam começar a assumir-se; a escravidão passou a ser encarada como aberração equiparável aos crimes contra humanidade; a expressão afrodescendentes se firmou nos foros internacionais para abranger categorias distintas de negro e mestiços. No âmbito do direito brasileiro, os crimes contra a honra perderam legitimidade; aboliram-se conceitos como o de filhos bastardos e adulterinos; o próprio adultério deixou de ser crime; os homossexuais ganharam direitos civis iguais aos dos homens e mulheres; iniciaram-se as ações afirmativas para compensar desigualdades históricas. Cada uma dessas conquistas tem uma história própria, singular. Porém, a inspiração universalista dos direitos humanos, ao criar uma moldura ideológica consistente em defesa da dignidade individual, está presente em todas. 

É evidente que o trabalho de levar adiante as propostas e determinações da Declaração Universal dos Direitos Humanos, renovadas pela Conferência de Viena, e por tantos outros documentos internacionais, está longe de ser completada. Nos anos 90, no imediato pós-Guerra Fria, a percepção dominante era de que a conquista da universalidade dos DHs estava garantida e se tornava parte obrigatória do repertório de legitimidade internacional, constituindo referência política que com a vocação da permanência. As lutas não seriam por princípios ou teses, mas para realizá-los, para fazer com que modelassem a realidades; o que se pretendia eram mudanças de normas jurídicas, de comportamentos, de atitudes individuais e coletivas. Vale citar Lindgren que esclarece com acuidade o que significam: 

Com sua natureza cogente e valor referencial abrangente, os direitos humanos não são e não podem representar objetivos em si. Constituem, sim, instrumentos internacionais de conformação normativa, insuficientes, mas úteis, à disposição, em primeiro lugar, da cidadania para a obtenção do avanço social com justiça. 

 

O projeto não era, portanto, de curto prazo, mas incorporava e organizava aspirações da humanidade que vinham do Iluminismo. É verdade que, desde sempre, reconhecia-se que alguns dos obstáculos eram evidentes, como a manipulação política da causa, o alcance das exceções culturais, mas não seriam intransponíveis. Ou melhor, estavam lançados no caminho, atrasariam aqui e ali a aplicação do projeto maior, mas não mitigavam a força e a legitimidade dos objetivos. 

As esperanças de uma trajetória de afirmação crescente do espírito de Viena encontraram, porém, ao longo dos anos 90, novos obstáculos, tema central de Lindgren nesta coletânea, especialmente dos que foram criados como são fruto indesejado do sucesso “ideológico” da causa dos direitos humanos. Os obstáculos “antigos” não desapareceram e as restrições de direitos dos governos impostas por governos arbitrários, seculares ou teocráticos, as dificuldades de acesso de largos contingentes a bens que garantam dignidade mínima, continuam e precisam ser combatidas como têm sido. Há, porém, problemas novos, como a discriminação e a estigmatização de grupos sociais, o tratamento de emigrantes, e as formas inconcebíveis de tratamento de prisioneiros de guerra.[1] Como Lindgren aponta com razão, “Por mais que os Estados, democráticos ou não, precisem agir contra o crime e o terror para a proteção imprescindível à convivência e ao próprio usufruto dos direitos, as ações de prevenção e repressão têm regras mínimas”..., pois, caso contrário, “constituem uma desumanização do humano, sejam os alvos inocentes ou culpados... correspondem... à denegação daquilo que Hannah Arendt chamou `direito de ter direitos´.” Mais grave ainda, é a rapidez com que o mundo assimilou a tortura de muçulmanos suspeitos de terrorismo, assim como a reação superficial dos Estados responsáveis diante do clamor inicial contra ela”. Um sintoma do enfraquecimento da luta pelos direitos humanos é que praticamente desaparece da plataforma das lideranças políticas, mesmo em países ocidentais desenvolvidos (e os textos são anteriores à eleição de Trump para o Governo dos EUA).

Há dois outros fatores para os quais Lindgren chama atenção e que seriam o eixo central de sua reflexão: o multiculturalismo essencialista que permeia o discurso dos direitos humanos e as distorções que sofrem as instituições que foram criadas para a defesa dos direitos humanos. Nos dois casos, e daí a necessidade de debatê-los, há uma espécie de distorção de objetivos da luta original, ou por intepretações equivocadas dos preceitos originais (mas que tiveram significativo apelo social e político) ou por crescimento desordenado da burocracia multilateral que lida com os instrumentos que aplicam as normas e resoluções dos pactos e resoluções multilaterais. Os dois movimentos, por razões diferentes, levam a que se enfraqueça o que Lindgren considera o fundamental da causa dos direitos humanos, o sentido universal e a defesa do indivíduo. E, teriam paradoxalmente resultado do êxito de Viena, que aborda em um dos mais interessantes capítulos da coletânea. 

O primeiro tema, o essencialismo multiculturalista, é especialmente complexo e boa parte dos artigos, direta ou indiretamente, o aborda. O universal tem limites, aceitos pela própria Declaração de Viena (art. 5), e, como é difícil imaginar, para as exceções culturais, uma solução conceitual unívoca, o ajuste de seus termos se transfere para situações concretas. O significado de universal é fácil de conceber e está alicerçado por uma longa tradição da filosofia ocidental, fundada na concepção da igualdade fundamental dos seres humanos. O problema é o particular exatamente porque cada “particular” tem limites singulares, mais ou menos impermeáveis à incorporação das condicionantes que o universal sugere ou impõe. Lindgren aceita a ideia da diversidade como enriquecedora do convívio social e compreende a necessidade de que se estabeleçam políticas publicas para grupos vulneráveis. Mas, o que o preocupa é a “confusão que ora se faz entre os direitos culturais da Declaração Universal e os hoje alardeados ´direitos das culturas´ e direitos das minorias´”. Por várias razões e a primeira é doutrinária: tais direitos, consagrados em vários documentos, podem e devem ser defendidos, porém não seriam, em sua acepção mais rigorosa, direitos humanos pois lhes faltaria a condição universal. 

Outro problema é que a capa conceitual dos direitos das minorias abriga realidades muito diferentes e que rejeitam tratamento uniforme. A proteção dos costumes de uma tribo yanomami tem pouco que ver com o debate sobre o casamento arranjado entre os roma. “É um contrassenso equiparar os direitos humanos de pessoas discriminadas e perseguidas pela cor… ou dos indígenas e quilombolas que sempre viveram fora da sociedade principal, com o direito à diferença de culturas discriminadas ou não que, por vontade própria ou ideologia assumida, rejeitam esforços de integração na sociedade onde vivem”. Se se deixasse a cada grupo autodefinir os limites de sua particularidade e consequentemente a medida de aceitação das normas da sociedade em vivem e convivem, a fragmentação e o conflito dentro daquela sociedade poderia se exacerbar. Porém, não parece o melhor caminho impedir que, em alguma medida, os grupos definam o que lhes é essencial para preservar como grupo. Como se chega com razoabilidade ao limite do particular? A medida da defesa do particular tende assim a se converter em um processo político em torno de valores. Para Lindgren, a solução será sempre a de um universalista convicto, como ele mesmo se intitula. É o padrão de legitimidade dos DHs que oferece a melhor defesa para que os discriminados se protejam da discriminação e a melhor referência para circunscrever o que é particular. Como ele adverte, o particular sem limite pode gerar um tipo de fundamentalismo do politicamente correto, falsamente progressista, pode justificar a contrario sensu as tendências fascistas, ultranacionalistas que vêm ganhando terreno mesmo nas democracias ocidentais. O risco maior, porém, é político, como mostra em um capítulo notável, “O culturalismo como separatismo”, de que vale citar a conclusão: “O discurso culturalista não cria de per si reações perigosas, mas ao estimular diferenças, em vez de conciliá-las com algum sincretismo equânime, certamente fornece insumos que alimentam o racismo e a segregação”. 

Outro fator estrutural que minaria os ideais de Viena está ligado às opções de políticas econômicas e sociais que começam nos anos 90, com a hegemonia do neoliberalismo. Nas palavras de Lindgren, vivia-se um paradoxo, pois o apogeu do discurso humanista coincidia com a destruição de suas condições de realização.[2] Viena programara iniciativas que exigiam mais do Estado enquanto o sistema econômico exigia o Estado mínimo. A questão persiste e as crises financeiras em países como a Grécia e Portugal tiveram, como resultado, um encurtamento de vantagens e benefícios sociais (da assistência médica às pensões) que não seriam recuperados no curto prazo. É evidente que, nos países desenvolvidos, a rede de proteção social, mesmo prejudicada, ainda atende e responde a seus objetivos básicos. O problema é mais dramático nos países em desenvolvimento, mesmo no Brasil, em que a rede dos serviços sociais ainda está longe da eficácia e problemas como o envelhecimento da população alimenta problemas fiscais similares ao das economias maduras. O fato é que as realidades variam e muito. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma das consequências da dominância do mercado (na sua forma recente) foi o aumento da concentração de renda e, mais grave, as tentativas de atenuá-las, como o Obama CARE BAMACARE, estão sendo questionadas: do outro lado do espectro político, na China, é evidente a melhoria da situação econômica de parte significativa da população, mas o progresso é limitado no campo dos direitos políticos. A natureza diferente dos problemas não diminui e, sim, reforça a necessidade de aceitar a inspiração universal dos direitos humanos. Se as soluções, em cada caso, serão diferentes, umas a exigir transformações estruturais, outras, mudanças conjunturais, umas, reformas institucionais, outras, ajustes de política, a necessidade de garantir e elevar a dignidade humana é a mesma em qualquer quadrante do planeta. Se não existe um receituário claro e único, é indispensável retomar a inspiração dos DHs, reintroduzi-la plenamente nos processos políticos. 

Um dos problemas decorrentes da concentração dos direitos humanos na luta identitária, ainda na visão de Lindgren, é o esmaecimento da compreensão das raízes estruturais de problemas que levam discriminação. A proliferação das lutas localizadas, ainda que tenham sobradas razões, convalida uma visão fragmentária da sociedade. As ligações estruturais entre classes desaparecem e luta social se dispersa. De novo, o problema é complexo e, ao estudá-lo, Lindgren oferece uma das chaves para compreender a sociedade contemporânea. Sem esquecer as distinções nacionais e regionais, no plano global, a desigualdade entre níveis de desenvolvimento ainda é avassaladora e não tem diminuído uniformemente. A diferença entre os países desenvolvidos e os estados “falidos” não precisa ser sublinhada para mostrar a diversidade do mundo. Aceitas as diferenças, o fato é que a própria natureza do mundo do trabalho que serviu, desde a Revolução Industrial, para definir identidades deixa, por razões muitas, de fazê-lo.[3] Com a globalização, mudam a economia e a sociedade. Muda também a natureza do trabalho e esmaecem os instrumentos tradicionais de protesto e revolta, mas não o quadro de desigualdade, de pobreza, de vulnerabilidades humanas. Creio que é este o contexto em que se dá a explosão das lutas identitárias que, na visão do autor, por justas e necessárias que sejam, seriam sempre limitadas e circunscritas, com o risco de que sejam usadas para que se esqueçam os problemas sociais maiores. Como o Lindgren afirma, “a tendência ora predominante do sistema é de privilegiar minorias em detrimento das atenções para o conjunto. Pouca atenção é dada internacionalmente aos direitos das camadas gigantescas de pobres sem etnia ou outro elemento diferencial que os destaque. Para o liberalismo hegemônico, os simplesmente pobres são marginalizados porque fora do mercado, responsabilizados pela própria pobreza num círculo vicioso que só pode levar ao crime”. 

Outro resultado paradoxal do êxito de Viena foi a multiplicação dos foros e instrumentos de promoção dos DHs. Aqui, a análise que Lindgren faz é especialmente valiosa (até porque raramente os membros de instituições multilaterais são tão claros e abertos nas críticas que fazem às mazelas do sistema). O diagnóstico é de novo contundente. Para proteger a situação de grupos ou categorias de pessoas, o sistema de promoção e proteção dos direitos humanos, ampliou o número de relatores temáticos (hoje mais de 30), multiplicou normas e instrumentos que, se revelam objetivos nobres e mesmo necessários, “torna o conjunto complexo, frouxo, sem hierarquia, com elementos claramente conflitivos”. Entre as consequências, a primeira é tornar difícil, mesmo para o especialista, acompanhar a profusão de recomendações que emana dos órgãos, recomendações que, muito frequentemente, caem no vazio porque os Estados simplesmente não têm condições de cumpri-las. Aliás, neste capítulo, são valiosas as observações de Lindgren sobre as demandas de estatísticas que incluam os grupos étnicos que, em muitos casos, são absolutamente irrealistas (como no caso de Luxemburgo) e, em outros, especialmente em países africanos (e mesmo europeus), conducentes a situações conflitivos mais do que positivas para o quadro de convivência social. O velho vício do irrealismo, tão frequente nas decisões multilaterais, frequenta, com vigor, o sistema de direitos humanos. 

A partir da sólida matriz conceitual que Lindgren construiu para o seu argumento, creio que um dos interesses na leitura da coletânea é o mosaico que o autor cria, tornando possível olhar, de vários ângulos, a questão central e, a cada passo, entender o seu alcance, suas nuances e, sobretudo, o porquê de seu apelo para salvar os direitos humanos. 

Na parte final do livro, Lindgren examina sua participação na CERD, além de levantar vários temas que chegaram à agenda da opinião pública. 

Assim, o relato da sessão comemorativa dos Cinquenta Anos da Convenção sobre Eliminação da Discriminação Racial é a oportunidade para discutir temas como a islamofobia, as opções históricas para o movimento dos afrodescendentes nos Estados Unidos, o alcance do conceito de minorias, o racismo como fenômeno planetário, a questão do politicamente correto e os exageros que pode induzir.[4] Ao longo do capítulo, questões como a polêmica sobre o uso da burca ou a atitude dos que afirmam que os DHs servem para proteger criminosos, são abordados com franqueza e com sólidos argumentos. O capítulo sobre a Americanização Global é um resumo perfeito de tendências que ele tem observado com a preferência pelos particulares, induzido pelo multilateralismo, com consequências negativas para o sentido universal que deve comandar a promoção dos direitos humanos. 

Na narrativa sobre a sua participação no CERD, Lindgren discute o “essencialismo multicultural”, mostrando as distorções que o conceito de etnia introduz, levando a que, em certas circunstâncias, o Comitê tenda a “dar mais atenção às etnias como comunidades a serem mantidas intactas do que as manifestações de racismo contra elas”. Para ele, além do fato de que o multicultural cai mais na competência da UNESCO do que propriamente na de um órgão de direitos humanos, “algumas das práticas recomendadas para situações específicas aparecem como regras uniformes, aplicadas a todos os casos como se a realidade devesse sempre amoldar-se a um parâmetro nunca definido na Convenção.” É valioso o seu depoimento sobre a tentativa de debater o alcance do “multiculturalismo” na Comitê para esclarecer o que se pretendia, ou defender a integração das minorias na sociedade onde se inseriam, mantendo o essencial de suas culturas, mas observando as regras abrangentes, ou mantê-las separadas com suas culturas intocáveis. Lindgren defende a primeira opção que se identifica com as propostas de Martin Luther King e Mandela, mas não consegue que o órgão adote uma posição clara sobre o tema. Mostra em seguida como certas recomendações gerais, como o levantamento de estatísticas que desagreguem as etnias podem simplesmente não ter sentido e, mais grave, em certas circunstâncias, levar a exacerbação de conflitos e não ajudarem a conciliação nacional, especialmente em países africanos. O argumento ganha força pela análise criteriosa de decisões do CERD, de maneiras como examina e decide sobre situações de países.[5] É especialmente valiosa a análise que faz da sessão de 2012, mostrando como evolui o debate em torno dos relatórios do Quênia, do Reino Unido, do Canadá, de Portugal, do Vietnã, do México, dos países muçulmanos e dos Estados Unidos. Entramos na intimidade do Comitê, de suas tendências e impasses, sempre apresentados com franqueza e objetividade. Temos, assim, na coletânea, um documento precioso para quem for estudar processos de decisão em organismos internacionais. 

Vale ainda, e muito, a leitura dos capítulos em que Lindgren discute o terrorismo, a crise dos refugiados (aqui, de maneira premonitória porque o artigo é de….), uma fala polêmica de Bento XVI, uma fotografia que ficou conhecida como o da Pietá Muçulmana, a caricatura de imagens sagradas… enfim, nada de relevante e polêmico na questão dos direitos humanos escapa ao exame sensível de Lindgren. 

O fato de que o tema dos direitos humanos tenha perdido prestígio pode levar a uma atitude um tanto pessimista, mas não menos engajada e, no fundo, esperançosa que a luta volte aos melhores trilhos. A cada capítulo, sempre aparecem ideias e sugestões sobre correções possíveis. Seu trabalho no CERD, muitas vezes solitário, a frequência com que traz ao debate público os problemas da promoção dos direitos humanos, são credenciais importantes para uma luta complexa, difícil, com revezes, mas uma luta necessária e urgente. Uma das perguntas que fica é quem salvará, como se retomará a luta, com que forças Lindgren conta em seu esforço e pregação. Penso que uma das diferenças entre os anos 90 e hoje é que os atores que levaram adiante a causa ou se enfraquecem ou a abandonaram. É difícil, como ele mostra, reconstituir a coalizão de ONGs, movimentos sociais e, especialmente, governos das potências ocidentais na mesma direção. A questão dos direitos humanos é, ao fim e ao cabo, parte de processos políticos. Por mais que a ordem seja influenciada por movimentos sociais, não seja mais exclusivamente entre soberanos, o fato de que, no universo internacional, as hegemonias dependem de poder. Como mobilizá-lo? Falando de direitos humanos, Lindgren fala dos processos ideológicos no mundo contemporâneo, de novas padrões de disputa de poder, de rumos civilizacionais, que opõem fundamentalistas e modernizadores, entre dogmáticos e secularistas, entre teocratas e humanistas conflitos inter e intra-religiosos que se acavalam a rivalidades políticas intertribais e interétnicas. Valores e poder andam sempre juntos. E nem sempre é fácil casar os melhores valores com os que comandam as forças hegemônicas. Porém, há modos de contornar o problema quando se manifesta a dissintonia. Creio que uma das consequências permanentes de Viena é que o sentido universal da defesa dos direitos humanos vale em si mesmo. Vale como padrão de legitimidade, mesmo contra forças hegemônicas. Pode ser descumprido, pode ser distorcido, mas a referência de legitimidade persiste. É preciso afirmá-lo com força e bons argumentos. Por várias razões, tão bem descritas e analisadas por Lindgren, a aspiração universalista não foi quebrada, mas está certamente fragilizada. A causa ficou esmaecida, confusa talvez, e, nem assim, se enfraqueceu. Não há melhor apelo para reconstituir o movimento que o apelo de livros como o de J. A. Lindgren Alves.

 



[1] Em suas palavras: “Seguramente ninguém que defendesse os direitos humanos poderia aceitar, em qualquer circunstância, as torturas e tratamentos degradantes infligidos aos prisioneiros em quartéis e prisões americanas em Guantánamo, Al Ghraib, Baghram e outras. Não obstante, nenhuma resolução condenatória, nenhuma reprovação formal pelo sistema de proteção aos direitos humanos foi formalmente subscrita”.

[2] Lindgren é contundente na crítica ao liberalismo, Em lugar da democracia política, o que se veio a implantar com a globalização econômica foi o ´liberalismo´ da eficiência selvagem, sem contrapesos ou pruridos de preocupação social… Longe das liberdades e direitos fundamentais esperados, a liberdade que se afirmava no planeta era uma liberdade econômica não emancipatória”.

[3] Basta lembrar que, nos países latino-americanos, especialmente no Brasil, as greves já não estão ligadas ao trabalho industrial, mas a categorias de serviço, especialmente de funcionários públicos.

[4] Há alguns relatos de episódios que viveu no CERD que são a ilustração evidente de como se distorce o politicamente correto. Um deles é a crítica à representação do Papai Noel na Holanda que é acompanhado de um menino “negro”, o que foi visto como racista. Porém, esclareceu-se que o menino não era negro, mas estava negro, pois como o ajudante do Papai Noel, encarregado de distribuir os brinquedos, descia pelas chaminés e, claro, se sujava com a fuligem.

[5] Um dos exemplos que lembra é o de Luxemburgo que, com população de 500 mil habitantes e é constituída por 43% de estrangeiros de mais 170 nacionalidades. Por eximir-se de apresentar a estatística desagregada, o CERD é censurado e instado a fazê-lo. Demandas similares foram feitas a países africanos que, evidentemente, tem problemas peculiares e as distinções étnicas alimentadas pelas potências coloniais e que, caso se fomentassem sistemas especiais de proteção a minorias, teria certamente consequências negativas para as bases de unidade nacional. Os exemplos que dá sobre as recomendações a Ruanda são eloquentes da aplicação de uma perspectiva racialista. Também exemplares a análise que faz da atitude do Comitê em relação aos Estados Unidos e ao Iraque e o ISIS.