GEOESTRATEGIA DO ATLANTICO SUL:
UMA VISAO DO SUL
Paulo Roberto de
Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro:
vol. XXIX, n. 115-116, 1986/2, pp. 131-138).
Sumário:
Tomando como
ponto de partida analítico o conflito global entre as duas grandes potências, o
pensamento geopolítico norte-atlântico tem tendência a negligenciar as
dimensões propriamente regionais da segurança estratégica no Atlântico Sul e os
aspectos propriamente políticos do equilibrio de forças nessa região. A
superestimação da ameaça soviética no terreno militar e o espantalho de um
estrangulamento econômico do Ocidente constituem os elementos mais
característicos dessa geopolítica from above. Uma visão a partir do Sul
tenderia a enfatizar, de sua parte, a
multipolarização dos conflitos políticos e miltares na região
sul-atlantica e a privilegiar a passagem de um cenário de confrontação geopolítica
a uma estratégia regional de cooperação política e econômica.
Plano do
Trabalho:
1. Geopolítica do
Atlântico Sul: A Visão do Norte
2. Presença
Militar na Região: Ameaça à Leste
3. O
Abastecimento em Matérias Primas: Temor à Oeste
4. Da
Geoestrategia à Cooperação: Uma Visão do Sul
Referência de
base:
Hervé
Couteau-Bégarie:
Géostratégie de
l'Atlantique Sud
(Paris, PUF,
1983)
1. GEOPOLITICA DO
ATLANTICO SUL: A VISAO DO NORTE
A inconsistência
das doutrinas baseadas na retaliação maciça produziu, ao longo dos anos
setenta, um gradual retorno às estratégias convencionais de enfrentamento
localizado e limitado e à reavaliação, nesse contexto, do papel reservado às
forças navais. Crescia, no mesmo momento, o poder naval soviético, que passou a
ser considerado, pela Aliança Atlantica, como a “principal ameaça para a
segurança dos mares”. Um Grupo de Trabalho do Conselho Atlântico dedicou-se
especialmente ao estudo dessa questão, elaborando, no final da década, um
relatoório completo sobre o desafio naval soviético que ainda hoje permanece
uma fonte indispensável de referência. 1
Sintomaticamente,
pouca atenção é dada nesse trabalho ao Atlântico Sul, listado em último lugar
numa série de cinco possíveis “teatros de operações” para enfrentamentos
navais, ao lado do Atlântico Norte, do Mediterrâneo, do Índico e do Pacífico.
Ao criticar essa negligência dos especialistas em poder marítimo, o
estrategista e cientista político francês Hervé Couteau-Bégarie formula a
hipótese, em seu importantíssimo estudo sobre a Géostratégie de l’Atlantique
Sud, de que essa indiferença seja em primeiro lugar devida a fatores
propriamente ideológicos, ou seja, a existência nos dois lados do Atlântico Sul
de países marcados por ditaduras militares ou por um regime racista condenado ao
ostracismo mundial. 2 Sua visão, neste particular, parece muito marcada pela
voga de estudos sobre os regimes militares latino-americanos, pois o processo
de redemocratização no cone sul já apresentava uma certa consistência quando
seu livro foi publicado em meados de 1985, e não cessou de aprofundar-se desde
então, sem que isso pudesse representar qualquer mudança significativa no
status estratégico-militar do Atlântico Sul para os países ribeirinhos ou para
as superpotências navais. 3
O obstáculo
ideológico é assim relativamente incongruente, pelo menos deste lado do
Atlântico Sul, o que nos leva aos fatores propriamente geográficos da
marginalização do Atlântico Sul nos planos estratégicos dos principais poderes
navais. Couteau-Bégarie não deixa de considerar a posição “excêntrica e
finalmente secundária” do Atlântico Sul em relação aos demais espaços
oceânicos, caráter ainda mais reforçado depois da abertura de Suez e do canal
do Panama. 4
Mas, não é apenas
a geografia que condena o Atlântico Sul à sua condição de “quinto teatro de
operações”, mas sobretudo o próprio carater “periférico” da região, em termos
de sua participação nos grandes fluxos do comércio internacional ou sua
importância estratégica para o equilíbrio do poder mundial. O tráfico marítimo
comercial é, nessa região, rarefeito e secundário, sendo importante sobretudo
no sentido sudeste-noroeste entre o Cabo da Boa Esperança e as Ilhas de Cabo
Verde, dispersando-se a partir daí em duas rotas bem frequentadas, uma em
direção ao Mediterrâneo e Europa do Norte, outra em direção à costa leste dos
Estados Unidos. O Atlântico Sul sempre foi, por outro lado, o menos
militarizado de todos os oceanos, permanecendo ainda hoje ao largo dos
conflitos entre as grandes potências navais: foi preciso que entrassem em cena
fatores históricos essencialmente contingentes, derivados de conflitos
militares relativamente imprevisíveis, para que frotas armadas passassem a
frequentar suas duas margens, de um lado com a instalação da Fortress
Falklands, de outro com o estacionamento irregular de navios soviéticos em
Angola. Ainda assim, esses dois conflitos devem ser considerados numa
perspectiva sobretudo regional, extraindo sua dinâmica interna de fatores
propriamente locais, e não no quadro de um suposto enfrentamento global entre
potências marítimas rivais, o que po de ser confirmado pela diminuta presensa
nuclear ostensiva de uma ou outra das duas grandes frotas bélicas da
atualidade.
Desde a
publicação do livro pioneiro de Alfred T. Mahan em 1890, The Influence of Sea
Power upon History, e do estudo do já conhecido pensador alemao Karl Haushofer
em 1924, Die Geopolitik des Pazifischen Ozeans, o pensamento geopolítico busca
integrar os espasos marítimos a sua conhecida equação “Espaço é Poder”. 5 O
estudo já referido de Herve Couteau-Bégarie é – com a notável exceção do livro
editado por Carlos Moneta, Geopolitica y Politica del Poder en Atlantico Sur 6
– o primeiro ensaio de conjunto sobre os problemas geopoliticos e militares,
ou, como ele prefere chamar, sobre a geoestratégia dessa região marítima. O
autor já tinha se notabilizado pela publicação, em 1983, de uma pequena mas
consistente monografia sobre La Puissance Maritime Soviétique, 7 tendo
prometido a continuação por meio de um estudo sobre as potências marítimas do
Índico e do Pacífico, além de um trabalho, em colaboração, sobre as
“geopolíticas latino-americanas”.
Segundo suas
próprias palavras, o objetivo de Géostratégie de l’Atlantique Sud “é o de
estudar o desenvolvimento dos meios militares nessa região do mundo com vistas
a identificar suas implicações para a política das grandes potências. O
Atlântico Sul não é portanto considerado como um sistema fechado, mas como um
elemento de um conjunto planetário. Neste nível de análise, apenas dois países
contam: os Estados Unidos e a União Soviética”. 8 O especialista francês, cujo
excepcional poder de síntese deve ser prontamente reconhecido, partilha, neste
livro, da tendência do pensamento geopolítico tradicional a pensar as
problemáticas regionais sob o ângulo dos enfrentamentos globais, dominados
inquestionavelmente, em nossa época, pela oposição irredutível entre os EUA e a
URSS.
Ora, como
justamente observou Alvaro Vasconcelos em seu artigo no número inaugural de
Estratégia, “se o mundo é cada vez mais acentuadamente bipolar à dimensão da
estratégia global, é tambem, paradoxalmente, cada vez mais multipolar à
dimensão regional”. 9 É essa tendência a considerar os problemas da região
sul-atlantica sob a ótica da “política de poder”, e num contexto essencialmente
bipoIar, que caracteriza o estudo de Couteau-Bégarie. Se a ênfase nas questões
de segurança e de estratégia militar, inclusive naval, constitui a pedra
angular dos estudos geopolíticos, nada diz que essa pretendida “ciência” da
projeção geográfica dos Estados deva ignorar o conceito historico que Wolfram
Eberhard chamou de world time, 10 para congelar as relações de poder entre os
Estados sob um mesmo pattern de comportamento que seria transhistórico e
auto-aplicável.
Esse congelamento
da História – em contradição talvez com uma geopolítica mais “esclarecida” –
está por exemplo presente na seguinte passagem retro-prospectiva de
Géostratégie: “as antigas potências coloniais praticamente desertaram [do
Atlântico Sul] sem que tenha aparecido um verdadeiro ‘grande’ regional: mesmo o
Brasil é apenas um grande potência em perspectiva [en devenir]. Ele reivindica
[sic] uma hegemonia regional, mas ele ainda não a exerce” (p. 15). Além do
“pecado venial” de praticar uma geopolítica historicamente “congelada”, Couteau-Bégarie
parece operar aqui uma transposição da doutrina do “destino manifesto” no
quadro de uma “política de poder” que deveria ser inexoravelmente assumida pelo
Estado brasileiro, em sua atual e futura política externa regional. A
geopolítica não consegue conviver com “vazios de poder”, reais ou supostos: ela
estará sempre à procura de “potências em perspectiva” para preencher seus
próprios “vácuos” teóricos.
Na concepção
geoestratégica dos especialistas norte-atlânticos, haveria um “vácuo de poder”
no Atlântico Sul, cujo preenchimento deveria ser assegurado por um arranjo
multilateral calcado no modelo da OTAN ou por garantias estratégicas assumidas
bilateralmente, no quadro de um “relacionamento especial” unindo a principal
potência ocidental e um “grande regional”. A importância do Atlântico Sul é
definida de maneira unilateral na visão estratégica ocidental, de que e exemplo
a seguinte passagem do livro de Couteau-Bégarie: “o Atlântico Sul voltou a ser
[depois da crise de Suez] uma artéria vital de comunicações; ele é cercado de
países importantes para o Ocidente; enfim, ele poderia adquirir um lugar na
[estratégia de] dissuasão, com o aparecimento de submarinos lança-mísseis em
suas águas” (p. 57; nós sublinhamos). Não parece ocorrer aos propugnadores
dessa visão a possibilidade dos países sul-atlânticos defenderem uma visão
própria de seus interesses nacionais nessa região, garantindo a segurança e a
liberdade de navegação através dos instrumentos do Direito Internacional e não
por meios de pactos militares, que aliás soem constituir a exceção e não a
regra na maior parte dos oceanos.
O pensamento
geoestratégico identifica no Atlântico Sul todos os elementos da tetralogia das
missões atribuidas às grandes frotas navais: domínio dos mares, projeção de
potência, presença naval e dissuasão estratégica, este último apenas em esboço.
“Mesmo se sua importância não alcança a do Oceano Índico ou a do Pacífico, o
Atlântico Sul ocupa um espaço próprio na estratégia marítima. Mas, até uma data
recente, apenas os soviéticos parecem ter se conscientizado plenamente disso”
(p. 71). Coutau-Bégarie partilha aqui da visão norte-americana do problema, que
parece caracterizar-se por um pessimismo exagerado na construção de cenários de
ameaças à segurança marítima e ao aprovisionamento em matérias-primas para
melhor justificar um military building acrescido. Uma consideração adequada de
cada um dos elementos importantes em jogo, de um ponto de vista sul-atlântico,
poderá eventualmente introduzir um pouco mais de equilibrio nessa visão
geoestratégica do Atlântico Sul.
2. PRESENÇA
MILITAR NA REGIAO: AMEAÇA À LESTE
O controle das
principais artérias de comunicação constitui a mais importante e inadiável
tarefa das frotas ocidentais. A presença de navios soviéticos na região
sul-atlântica representa, para Couteau-Bégarie, “uma séria ameaça em caso de
conflito”; ora, como esses navios “sont déjá sur place” (p. l9), é preciso
pensar no pior: “Deve-se esperar ataques simultâneos em diversos pontos. A luta
pelo domínio dos mares vai ocupar toda a situação estratégica no Atlântico Sul.
Esta é a primeira missão das marinhas da OTAN, a mais importante, a mais
constante, em face da ameaça permanente” (p.64). Dada a “insuficiência das
frotas da OTAN”, deve-se pensar nas possibilidades de uma “defesa ocidental”
através da “cooperação com os países ribeirinhos”, cuja missão, na visão
norte-atlântica, deveria ser a de integrar seus próprios planos estratégicos
nos esquemas defensivos concebidos pela primeira potência ocidental.
É preciso, em
primeiro lugar, observar que a presença naval soviética no Atlântico Sul,
embora tenha crescido no período recente, está longe de justificar a
inquietação despertada pelos estrategistas ocidentais. A região é, de todas, a
mais distante dos pontos de apoio da frota soviética e a que apresenta o maior
número de dificuldades logísticas e estratégicas, o que tornaria altamente
custoso qualquer esforço da URSS se decidisse interromper ali as rotas de
suprimento dos países da OTAN. O próprio Comite de Defesa da União da Europa
Ocidetal reconheceu o fato de ser “o Atlântico Sul a área mais improvável para
uma ameaça naval [soviética] à navegação aliada”. 11 Deve-se igualmente lembrar
que, em caso de necessidade, a aliança ocidental conseguiria reunir na região,
num espaço reduzido de tempo, um número razoável de navios e submarinos, com o
correspondente apoio aéreo e logístico. Não se conhece, por fim, qualquer
tentativa soviética no sentido de interromper o fluxo normal das rotas
marítimas ocidentais, no Atlântico Sul ou alhures, e é razoavel supor que uma
tal iniciativa só seja concebível no quadro de uma séria deterioração no padrão
global do relacionamento bipolar.
Hervé
Couteau-Bégarie reconhece que os riscos de um ataque soviético contra as linhas
de comunicação ocidentais nessa região são extremamente reduzidos, “mas, no
caso em que a dissuasão fracassasse, o cenário de ataque ao tráfico ocidental é
um dos que comporta o menor risco de escalada, pois uma batalha no mar não
provoca perdas colaterais” (p. 98). Na verdade, um eventual fracasso da
dissuasão comportaria um cenário muito mais complexo que o imaginado pelo
especialista francês, mas, mesmo admitindo-se a hipótese de uma resposta
marítima soviética, o Atlântico Sul é a região que menos se presta a um ataque
diversionista da frota soviética. De toda forma, a Marinha norte-americana, e
por extensão a aliada, parece dispor de todas as condições para deter, mesmo
preventivamente, qualquer ação soviética nessa ou em outra região, mantendo
acompanhamento permanente da localização de navios e submarinos soviéticos em
diversos oceanos.
3. O
ABASTECIMENTO EM MATÉRIAS-PRIMAS: TEMOR À OESTE
A ameaça suposta
ou real contra as linhas de comunicação marítimas do Ocidente não é tudo porém,
pois “a estratégia [da URSS] comporta um segundo painel, muito mais ambicioso e
cujá eficácia poderia se revelar bem mais temível: a busca do controle das
matérias-primas” (p. 99). A crer no especialista frances, que retoma um dos
temas mais conhecidos na literatura sobre o assunto, “Moscou busca atualmente
incorporar à sua órbita os principais países produtores de matérias-primas” (p.
99).
O temor ocidental
é tanto maior que a história e a geografia já pareciam ter assegurado ao
Atlântico Norte um seguro monopólio sobre os recursos do Sul. “O geopolítico
Haushofer foi sem dúvida o que melhor observou a verticalidade do sistema
internacional. Ele não deixou de sublinhar a continuidade entre a Europa e a
África (a ‘Eurafrica’) e entre as duas partes do continente americano (a
‘PanAmerica’). Isto é ainda mais verdadeiro na atualidade. A zona sul-atlântica
é, antes de mais nada, um fantástico reservatório de matérias-primas” (p. 64;
nós sublinhamos). Mas, o Atlântico Sul não serve apenas ao simples
aprovisionamento em materiais estratégicos para as economias ocidentais: “Os
países do Atlântico Norte não poderiam viver sem sua periferia latino-americana
ou africana” (p. 66). “Os países do hemisfério sul não são apenas produtores de
matérias-primas, eles são também uma área de expansão econômica e cultural sem
a qual o mundo norte-atlântico seria asfixiado. (...) Ora, a conservação da
África e da América Latina passa antes de mais nada pelo controle das águas
adjacentes, e em primeiro lugar, do Atlântico Sul” (p. 67; nós sublinhamos).
Não parece vir à mente dos geoestrategistas norte-atlânticos que os países do
Sul possam pretender controlar eles mesmos seus próprios recursos minerais,
colocando suas matérias-primas a serviço de seu próprio desenvolvimento
nacional, ou que eles não têm exatamente como um de seus objetivos estratégicos
o de servir de “área de expansão” para os países ocidentais. Ao ler
Couteau-Bégarie fica-se na dúvida sobre se o famoso lebensraum representou
apenas e tão somente uma passageira deformação nazista da geopolítica ou se ele
é um componente indispensável de suas formulações ideológicas.
A visão alarmista
ocidental sobre a dependência do Atlântico Norte em relação às matérias-primas
estratégicas provenientes do Sul originou-se da crise política e econômica
criada com o embargo petrolífero de 1973 e ampliou-se com a intervenção
soviética por ocasião da independência angolana em 1975. Acredita-se, por um
lado, que os assim chamados “minerais estratégicos” da África austral
representarão, nos anos 80 e 90, o que o petróleo representou nos anos 70.
Hervé Coutau-Bégarie considera, por outro lado, que a guerra de Angola marca o
tournant decisivo no desenvolvimento da penetração soviética nessa área
africana: “No total, o assunto angolano se apresenta como um deslumbrante
sucesso para a União Soviética” (p. 85). Nenhuma dessas crenças parece
encontrar fundamento na realidade.
O cientista
político Bruce Russett, após rigorosa análise quantitativa, conclui, por
exemplo, que a visão alarmista sobre a dependência mineral do Ocidente, ademais
de ser baseada em fundações conceituais muito primitivas, não encontra
justificativa real nos dados disponíveis sobre o aprovisionamento estratégico
dos principais países desenvolvidos capitalistas. O risco da dependência de fontes
externas para a maior parte das matérias-primas foi simplesmente exagerado,
pelo menos para os Estados Unidos. 12 Outro especialista norte-americano
considera que “a dependência de importações da África austral e o problema do
acesso ininterrupto aos suprimentos minerais não representam ameaças críticas
ou estratégicas imediatas para os Estados Unidos e seus aliados. E a ameasa
principal não vem da União Sovietica”. 13 Para esse autor, uma eventual ameaça
nessa área, traduzindo-se por interrupções caóticas e imprevisíveis na produção
ou fornecimento de minerais estratégicos, poderia ocorrer não em conexão com
uma intervenção soviética, mas devido a problemas internos nos países
produtores: a instabilidade doméstica, e não a ameaça soviética, representa
assim o perigo maior. 14 De toda forma, “os Estados Unidos poderiam perder uma
parte substancial de suas importações de minerais estratégicos sem que isso
significasse qualquer ameaça a sua segurança nacional”. 15 Para o mesmo
analista, a medida mais importante para garantir e aumentar a segurança mineral
do Ocidente está no terreno da política externa e não no da segurança
estratégica: “Os Estados Unidos deveriam usar a diplomacia para tentar prevenir
conflitos inter-estatais nas regiões produtoras de minerais”. 16 Outras medidas
incluiriam a estabilização dos preços, a assistência econômica e ajuda
bilateral aos fornecedores doTerceiro Mundo.
A outra vertente
da “guerra de recursos” seria dada pela “modificação radical” da estratégia
soviética a partir de 1975: apoiando-se na intervenção angolana, a URSS teria
passado a buscar integrar suas novas “aquisições” num novo “Terceiro Mundo”,
seguindo uma política em dois eixos: a) o país protegido deve operar uma
“restruturação idêntica” segundo o modelo socialista; b) o país protegido deve
custar o menos possível e render o maximo possível. 17
Não é contudo o
que parece indicar a política “terceiro-mundista” da URSS nos últimos cinco ou
seis anos, e particularmente desde a morte de Brejnev em novembro de 1982. Como
demonstra Francis Fukuyama, em artigo na Foreign Affairs, passou a época das
generosas ofertas de ajuda econômica e militar aos “países liberados”: o
programa do 27° Congresso do PCUS, encerrado em outubro de 1985, consigna
apenas a “profunda simpatia” com as aspirações dos povos que estão se
libertando do jugo colonial, uma frase tépida para indicar os limites da
assistência soviética a seus clientes do Terceiro Mundo. 18 Os Estados
“orientados para o socialismo” devem, segundo o programa do partido, desenvolver
suas economias “por meio de seus próprios esforços”, sendo-lhes implicitamente
recomendado “aprofundar a cooperação com os países que percorrem a via
capitalista”. 19 A desilusão com os resultados obtidos no Terceiro Mundo e a
consequente proposta de “desengajamento” são expressamente reconhecidos no
recentemente divulgado manifesto da “oposição clandestina” ao PCUS, que
reproduz na verdade o pensamento oficioso sobre a matéria: “A política externa
soviética tem experimentado sérios reveses em países que foram colonias do
Ocidente. Apesar dos vastos recursos investidos na Indonésia, no Egito, na
Argélia e no Iraque, a URSS não obteve nenhum dividendo político ou econômico”.
20
É altamente
improvável, portanto, que Moscou disponha de meios para, ou tenha a intenção
efetiva de, conduzir uma “guerra de recursos” contra o Ocidente com base na
intervenção direta em países da África austral: ao contrário de pensar na
asfixia econômica do Ocidente, a URSS procura desesperadamente intensificar
suas relações econômicas e os vínculos de cooperação com a zona capitalista.
Uma “guerra de recursos”, aliás, não apenas iria contra os próprios interesses
da URSS, como afetaria igualmente interesses substanciais de seus aliados
socialistas e parceiros “não-alinhados”, além de, mais uma vez, só ser
concebível no contexto de um enfrentamento global entre os dois campos.
Contrariamente,
portanto, ao que sugeriu Peter Wiles em sua tese sobre o novo “Terceiro Mundo”
soviético, as tendências indicam que a postura da URSS em relação aos países em
desenvolvimento caminha no sentido de relativizar o impeto da mudança
revolucionária em direção ao “socialismo” e de reconhecer o próprio potencial
transformador da “via capitalista”. As evidências são tanto de carater teórico,
como o demonstra uma recente resenha da literatura soviética a esse respeito,
21 quanto de natureza prática, de que são exemplos diversos discursos e
pronunciamentos oficiais soviéticos do período recente, a começar pelo próprio
Gorbachev. Isto não quer dizer que a URSS deixará de aproveitar as
oportunidades locais que se abram à sua ação no Terceiro Mundo, e na África
austral em particular, mas suas prioridades atuais são bem diferentes de uma
política de “guerra total” contra o Ocidente.
4. DA
GEOESTRATEGIA À COOPERAÇÃO: UMA VISAO DO SUL
A segurança, na
visão geopolítica, tende a ser alcançada não por meios políticos e
diplomáticos, mas através da dissuasão estratégica. O argumento não deixa de
ter sua legitimidade, tanto teórica quanto prática, e parece justificado em
face do conhecido quadro de enfrentamento bipolar à dimensão global. O problema
começa quando, num quadro regional caracterizado por baixo coeficiente de
polarizações dicotômicas e, portanto, com tendências à multipolarização, se
pretende introduzir à força o cenário da dissuasão estratégica. O Atlântico Sul
corre hoje esse risco, menos provavelmente pelo desenvolvimento de uma dinâmica
própria de conflitos inter-estatais do que pela vontade dos ideólogos da
geoestratégia.
Hervé
Couteau-Bégarie reconhece implicitamente a realidade da multipolarização no
Atlântico Sul, quando afirma que “o desenvolvimento das forças navais
latino-americanas não pode ser considerado como uma resposta ao aparecimento de
navios soviéticos na região. Ele decorre mais exatamente de fatores locais que
de modificações no equilibrio planetário de forças” e, dentre esses fatores, o
autor alinha a busca de “prestígio”, a defesa da soberania, o “efeito induzido”
de outras frotas vizinhas ou mesmo “ambições hegemônicas, bastante nítidas na
América Latina, onde se digladiam antagonismos irredutíveis” (pp. 17-18). Mas,
o cenário global, segundo ele, é dominado pelo surgimento dos submarinos
dotados de mísseis estratégicos – “o elemento mais estável dos arsenais” –
acarretando a militarização ampliada dos oceanos. Nesse contexto, o Atlântico
Sul é inevitavelmente elevado “à categoria de zona de patrulha para os
submarinos estratégicos” (p. 68).
Assim, a despeito
da reconhecida multipolarização dos cenários regionais – evidente, entre outros
motivos, pela multiplicação de conflitos locais no Sul – a estratégia da
dissuasão global é transposta para o Atlântico Sul, observando-se mesmo uma
tentativa de reverticalização nos espaços geográficos considerados fundamentais
pela superpotência americana. A visão americana da problemática do Atlântico
Sul, assumida inteiramente por Couteau-Bégarie, caracteriza-se tanto pela
exacerbação do potencial de conflitos globais nessa área, como pelo total
desconhecimento das aspirações e preocupações específicas dos países
ribeirinhos, considerados como meros instrumentos da defesa dos interesses
ocidentais na região. Condizente com essa visão, cogitou-se no passado – e
talvez alguns ainda mantenham a ilusão – não apenas da constituição de uma OTAS
alinhada com sua irmã do Norte, mas também de um delírio geopolítico
popularizado sob o nome de “Aliança de todos os Oceanos”, nova versão da Liga
Ateniense, que pretenderia ser uma transposição da OTAN em escala mundial. 22 O
alinhamento com os EUA, nesse contexto, é considerado como algo natural, ou
mesmo como uma obrigação dos países do hemisfério sul, assim como a garantia de
acesso ocidental às fontes de recursos estratégicos, em primeiro lugar as
matérias-primas minerais. A estabilidade política dos países da região
sul-atlântica é considerada, nessa visão, como meramente funcional para os
objetivos da segurança estratégica do Ocidente, não possuindo valor próprio em
termos de requisito adequado para as metas de desenvolvimento econômico,
bem-estar social e democracia política nos países contemplados.
A segurança
econômica e política dos países ribeirinhos do Atlântico Sul não pode, é certo,
dispensar um nível adequado de segurança militar, mas esta, por sua vez, nunca
será completa se persistirem focos de tensão e de agitação decorrentes não de
uma ameaça externa mas das próprias condições de subdesenvolvimento e atraso
econômico-social. Concretamente: a penetração soviética no Atlântico Sul é
contraria aos interesses de todos os países da região, mas enquanto para as
duas superpotências a zona sul-atlântico é apenas um cenário a mais, e
necessariamente secundário, no quadro da confrontação global, para as nações
ribeirinhas ela é uma area essencial e prioritária para seus próprios objetivos
nacionais de paz e desenvolvimento.
Aos países do
Atlântico Sul interessa a segurança da região não em termos de sua integração à
dissuasão estratégica, mas em termos de mantê-la à margem das tensões externas,
de modo a promover as condições favoráveis ao desenvolvimento da cooperação
horizontal entre os países que a margeiam. Do ponto de vista da segurança,
tanto a Carta da OEA, quanto o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca,
no âmbito da América Latina, contêm disposições relativas à segurança dos
Estados Membros, aplicáveis dentro ou fora da área específica coberta por esse
último Tratado. Não parece, assim, haver necessidade de uma organização de
defesa específica para garantir a segurança do Atlântico Sul, do ponto de vista
da América Latina. Qualquer tentativa nesse sentido, aliás, daria à totalidade
dos Estados participantes a mera função de coadjuvantes menores em face do
grande irmão do Norte, aproximando portanto a organização proposta mais do
modelo do Pacto de Varsóvia do que do da OTAN. Em todo caso, nada há que impeça
a continuidade de empreendimentos bilaterais de cooperação naval – como as
operações Unitas – ou mesmo projetos multilaterais fora do marco de um tratado
específico como ocorreu com a “Ocean Venture 81”. Qualquer esquema de
cooperação entre os países ribeirinhos do Atlântico Sul e os parceiros do Norte
– os EUA ou a OTAN – só poderia concretizar-se adequadamente a partir do
reconhecimento dos interesses específicos dos países da área e considerando
seus ob;etivos nacionais em primeiro lugar; em uma palavra, cabe aos interesses
do Atlântico Norte coordenar-se com os do Atlântico Sul e não o contrário.
A questão
essencial para os países do Atlântico Sul é a do estabelecimento de uma
presença própria, autônoma e independente na região, exatamente para atingir
aos objetivos do desenvolvimento e da cooperação regional. Não pode haver
qualquer incompatibilidade entre esses objetivos e o interesse ocidental na
região e é com base neles, portanto, que se deve buscar as formas de cooperação
mais adequadas entre os países do Norte e os do Sul. Em síntese, as
possibilidades de cooperação devem estar subordinadas, como não poderia deixar
de ser, aos interesses políticos, econômicos e estratégicos próprios e
permenentes dos países do Atlântico Sul. À estratégia geopolítica da dissuasão,
o Atlântico Sul deve opor a estratégia política da cooperação e do
desenvolvimento.
Notas e
Referências Bibliográficas:
1. Paul H. Nitze,
Leonard Sullivan, Jr., and the Atlantic Council Working Group on Securing the
Seas: Securing the Seas: the Soviet Naval Challenge and Western Alliance
Options (Boulder, Co.: Westview Press, 1979).
2. Hervé
Couteau-Bégarie: Géostratégie de l’Atlantique Sud (Paris: Presses
Universitaires de France, 1985); dividido em quatro grandes partes, dedicadas
respectivamente ao “quadro geoestratégico do Atlântico Sul”, à “penetração
soviética” nessa região, à “desintegração da defesa ocidental” e aos esforços
tendentes à integração das defesas navais na área, e, finalmente, aos
“antagonismos geopolíticos na América Latina”, o estudo de Couteau-Bégarie
representa o ensaio mais bem sucedido, até agora, de apresentar a visão
“norte-atlântica” sobre os problemas da segurança estratégica do Atlântico Sul.
Sem deixar de reconhecer os méritos próprios dessa obra é preciso desde logo
apontar seu comprometimento com o pensamento típico da OTAN sobre essa
problemática.
3. Ver a esse
propósito Alain Rouquie: L’Etat Militaire en Amérique Latine (Paris: Seuil,
1982), que parece ser a única fonte de referência de Couteau-Bégarie sobre a
questão militar na América Latina.
4. Cf
Couteau-Bégarie, Géostratégie de l’Atlantique Sud, op. cit., pp. 13-14.
5. Sobre o
trabalho pioneiro de Mahan sobre o poder naval, consultar o excelente artigo de
Joao Carlos G. Caminha: “Mahan: Sua Época e suas Ideias”, Política e Estratégia
(vol IV, n° 1, Jan-Mar 1986, 54-103); para a referência ao livro de Haushofer
ver o artigo de Lewis Tambs: “A Influência da Geopolítica na Formação da
Politica Internacional e da Estratégia das Grandes Potências”, Política e
Estratégia (vol I, n° 1, Out-Dez 1983, 73-104), p. 90.
6. Carlos J.
Moneta y otros: Geopolitica y Politica del Poder en Atlantico Sur (Buenos
Aires: Pleamar, 1983).
7. Hervé
Couteau-Bégarie: La Puissance Maritime Soviétique (Paris: Economica/Institut
Français des Relations Internationales, 1983).
8. Cf
Géostratégie de l’Atlantique Sud, p. 15. Para evitar o apelo frequente às notas
de rodape, as referências ao livro de Couteau-Bégarie, extensivamente citadas
neste artigo, serão a partir de agora colocadas entre parênteses ao final de
cada transcrição.
9. Alvaro
Vasconcelos: “Os Desafios do Sul e a Segurança Regional”, Estratégia, Revista
de Estudos Internacionais (n° 1, Primavera 1986, 147-170), p. 149. A
multipolaridade – política, econômica e militar – é com efeito o traço mais
saliente de nossa época, a despeito mesmo das tentativas de verticalização
operadas por um ou outro dos dois grandes poderes em suas respectivas áreas de
influência.
10. Wolfram
Eberhard: Conquerors and Rulers: Social Forces in Medieval China (Leyden: E.J.
Brill, 1965), vide “Introduction”, transcrita em Reinhard Bendix (ed): State
and Society: a reader in comparative political sociology (Berkeley: University
of California Press, 1973), pp. 16-28.
11. Cf Committee
on Defence Questions and Armaments of the Assembly of the Western European
Union: European Security and the South Atlantic (WEU, 26 October 1981).
12. Bruce
Russett: “Dimensions of Resource Dependence: some elements of rigor in concept
and policy analysis”, International Organization (Vol 38, n° 3, Summer 1984,
481-499).
13. Michael
Shafer: “Mineral Myths”, Foreign Policy (n° 47, Summer 1982, 154-171), p. 155.
14. Idem, p. 161.
15. Idem, p. 165.
16. Idem, p. 168.
17. Ver Peter
Wiles: The New Communist Third World (London: Croom Helm, 1982).
18. Cf Francis
Fukuyama: “Gorbachev and the Third World”, Foreign Affairs (vol 64, n° 4,
Spring 1986, 715-731), p. 715.
19. Idem, pp.
715-6.
20. Ver “The
Secret Dream of a Soviet tomorrow”, The Guardian (August 3, 1986), p. 10. O
manifesto do “Movimento de Renovação Socialista” foi publicado no Brasil pela
Folha de São Paulo (31.08.86).
21. Ver o
excelente artigo-resenha de Elizabeth Kridl Valkenier: “Revolutionary Change in
the Third World: recent soviet assessments”, World Politics (vol 38, n° 3,
April 1986, 415-434).
22. A proposta é
de Ray Cline, o conhecido autor de World Power Assessment; cf “Avaliação do
Poder Mundial”, Política e Estratégia (vol I, n° 1, Out-Dez 1983, 7-19).
[1a: 24-26.09.86]
[2a: 12.01.87]
132. “Geoestratégia
do Atlântico Sul: uma Visão do Sul”, Brasília, 24-26 setembro 1986, 13 pp.
Ampliação do trabalho anterior em forma de artigo, excluída a segunda parte
sobre a política brasileira para a região (Anexo: Esboço de um artigo
intitulado: “Da Geopolítica à Cooperação: o Brasil e o Atlântico Sul”).
Publicado sob o título “Geopolítica do Atlântico Sul” na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro, vol.
XXIX, nºs 115-116, 1986/2, pp. 131-138), sob o título “Geoestratégia do
Atlântico: uma Visão do Sul” em Estratégia
(Lisboa, 3, Primavera 1987, pp. 117-128) e, sob o título “Geoestratégia do
Atlântico Sul: uma Visão do Sul”, em Política
e Estratégia (São Paulo, vol. V, nº 4, outubro-dezembro 1987, pp. 486-495).
Relação de Trabalhos Publicados nºs 031, 036 e 045.
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