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terça-feira, 5 de maio de 2015

Geoestrategia do Atlantico Sul - resenha de Herve Couteau-Begarie - Paulo Roberto de Almeida (1986)


GEOESTRATEGIA DO ATLANTICO SUL:
UMA VISAO DO SUL

Paulo Roberto de Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: vol. XXIX, n. 115-116, 1986/2, pp. 131-138).

Sumário:

Tomando como ponto de partida analítico o conflito global entre as duas grandes potências, o pensamento geopolítico norte-atlântico tem tendência a negligenciar as dimensões propriamente regionais da segurança estratégica no Atlântico Sul e os aspectos propriamente políticos do equilibrio de forças nessa região. A superestimação da ameaça soviética no terreno militar e o espantalho de um estrangulamento econômico do Ocidente constituem os elementos mais característicos dessa geopolítica from above. Uma visão a partir do Sul tenderia a enfatizar, de sua parte, a  multipolarização dos conflitos políticos e miltares na região sul-atlantica e a privilegiar a passagem de um cenário de confrontação geopolítica a uma estratégia regional de cooperação política e econômica.

Plano do Trabalho:
1. Geopolítica do Atlântico Sul: A Visão do Norte
2. Presença Militar na Região: Ameaça à Leste
3. O Abastecimento em Matérias Primas: Temor à Oeste
4. Da Geoestrategia à Cooperação: Uma Visão do Sul

Referência de base:
Hervé Couteau-Bégarie:
Géostratégie de l'Atlantique Sud
(Paris, PUF, 1983)

1. GEOPOLITICA DO ATLANTICO SUL: A VISAO DO NORTE
A inconsistência das doutrinas baseadas na retaliação maciça produziu, ao longo dos anos setenta, um gradual retorno às estratégias convencionais de enfrentamento localizado e limitado e à reavaliação, nesse contexto, do papel reservado às forças navais. Crescia, no mesmo momento, o poder naval soviético, que passou a ser considerado, pela Aliança Atlantica, como a “principal ameaça para a segurança dos mares”. Um Grupo de Trabalho do Conselho Atlântico dedicou-se especialmente ao estudo dessa questão, elaborando, no final da década, um relatoório completo sobre o desafio naval soviético que ainda hoje permanece uma fonte indispensável de referência. 1
Sintomaticamente, pouca atenção é dada nesse trabalho ao Atlântico Sul, listado em último lugar numa série de cinco possíveis “teatros de operações” para enfrentamentos navais, ao lado do Atlântico Norte, do Mediterrâneo, do Índico e do Pacífico. Ao criticar essa negligência dos especialistas em poder marítimo, o estrategista e cientista político francês Hervé Couteau-Bégarie formula a hipótese, em seu importantíssimo estudo sobre a Géostratégie de l’Atlantique Sud, de que essa indiferença seja em primeiro lugar devida a fatores propriamente ideológicos, ou seja, a existência nos dois lados do Atlântico Sul de países marcados por ditaduras militares ou por um regime racista condenado ao ostracismo mundial. 2 Sua visão, neste particular, parece muito marcada pela voga de estudos sobre os regimes militares latino-americanos, pois o processo de redemocratização no cone sul já apresentava uma certa consistência quando seu livro foi publicado em meados de 1985, e não cessou de aprofundar-se desde então, sem que isso pudesse representar qualquer mudança significativa no status estratégico-militar do Atlântico Sul para os países ribeirinhos ou para as superpotências navais. 3
O obstáculo ideológico é assim relativamente incongruente, pelo menos deste lado do Atlântico Sul, o que nos leva aos fatores propriamente geográficos da marginalização do Atlântico Sul nos planos estratégicos dos principais poderes navais. Couteau-Bégarie não deixa de considerar a posição “excêntrica e finalmente secundária” do Atlântico Sul em relação aos demais espaços oceânicos, caráter ainda mais reforçado depois da abertura de Suez e do canal do Panama. 4
Mas, não é apenas a geografia que condena o Atlântico Sul à sua condição de “quinto teatro de operações”, mas sobretudo o próprio carater “periférico” da região, em termos de sua participação nos grandes fluxos do comércio internacional ou sua importância estratégica para o equilíbrio do poder mundial. O tráfico marítimo comercial é, nessa região, rarefeito e secundário, sendo importante sobretudo no sentido sudeste-noroeste entre o Cabo da Boa Esperança e as Ilhas de Cabo Verde, dispersando-se a partir daí em duas rotas bem frequentadas, uma em direção ao Mediterrâneo e Europa do Norte, outra em direção à costa leste dos Estados Unidos. O Atlântico Sul sempre foi, por outro lado, o menos militarizado de todos os oceanos, permanecendo ainda hoje ao largo dos conflitos entre as grandes potências navais: foi preciso que entrassem em cena fatores históricos essencialmente contingentes, derivados de conflitos militares relativamente imprevisíveis, para que frotas armadas passassem a frequentar suas duas margens, de um lado com a instalação da Fortress Falklands, de outro com o estacionamento irregular de navios soviéticos em Angola. Ainda assim, esses dois conflitos devem ser considerados numa perspectiva sobretudo regional, extraindo sua dinâmica interna de fatores propriamente locais, e não no quadro de um suposto enfrentamento global entre potências marítimas rivais, o que po de ser confirmado pela diminuta presensa nuclear ostensiva de uma ou outra das duas grandes frotas bélicas da atualidade.

Desde a publicação do livro pioneiro de Alfred T. Mahan em 1890, The Influence of Sea Power upon History, e do estudo do já conhecido pensador alemao Karl Haushofer em 1924, Die Geopolitik des Pazifischen Ozeans, o pensamento geopolítico busca integrar os espasos marítimos a sua conhecida equação “Espaço é Poder”. 5 O estudo já referido de Herve Couteau-Bégarie é – com a notável exceção do livro editado por Carlos Moneta, Geopolitica y Politica del Poder en Atlantico Sur 6 – o primeiro ensaio de conjunto sobre os problemas geopoliticos e militares, ou, como ele prefere chamar, sobre a geoestratégia dessa região marítima. O autor já tinha se notabilizado pela publicação, em 1983, de uma pequena mas consistente monografia sobre La Puissance Maritime Soviétique, 7 tendo prometido a continuação por meio de um estudo sobre as potências marítimas do Índico e do Pacífico, além de um trabalho, em colaboração, sobre as “geopolíticas latino-americanas”.
Segundo suas próprias palavras, o objetivo de Géostratégie de l’Atlantique Sud “é o de estudar o desenvolvimento dos meios militares nessa região do mundo com vistas a identificar suas implicações para a política das grandes potências. O Atlântico Sul não é portanto considerado como um sistema fechado, mas como um elemento de um conjunto planetário. Neste nível de análise, apenas dois países contam: os Estados Unidos e a União Soviética”. 8 O especialista francês, cujo excepcional poder de síntese deve ser prontamente reconhecido, partilha, neste livro, da tendência do pensamento geopolítico tradicional a pensar as problemáticas regionais sob o ângulo dos enfrentamentos globais, dominados inquestionavelmente, em nossa época, pela oposição irredutível entre os EUA e a URSS.
Ora, como justamente observou Alvaro Vasconcelos em seu artigo no número inaugural de Estratégia, “se o mundo é cada vez mais acentuadamente bipolar à dimensão da estratégia global, é tambem, paradoxalmente, cada vez mais multipolar à dimensão regional”. 9 É essa tendência a considerar os problemas da região sul-atlantica sob a ótica da “política de poder”, e num contexto essencialmente bipoIar, que caracteriza o estudo de Couteau-Bégarie. Se a ênfase nas questões de segurança e de estratégia militar, inclusive naval, constitui a pedra angular dos estudos geopolíticos, nada diz que essa pretendida “ciência” da projeção geográfica dos Estados deva ignorar o conceito historico que Wolfram Eberhard chamou de world time, 10 para congelar as relações de poder entre os Estados sob um mesmo pattern de comportamento que seria transhistórico e auto-aplicável.
Esse congelamento da História – em contradição talvez com uma geopolítica mais “esclarecida” – está por exemplo presente na seguinte passagem retro-prospectiva de Géostratégie: “as antigas potências coloniais praticamente desertaram [do Atlântico Sul] sem que tenha aparecido um verdadeiro ‘grande’ regional: mesmo o Brasil é apenas um grande potência em perspectiva [en devenir]. Ele reivindica [sic] uma hegemonia regional, mas ele ainda não a exerce” (p. 15). Além do “pecado venial” de praticar uma geopolítica historicamente “congelada”, Couteau-Bégarie parece operar aqui uma transposição da doutrina do “destino manifesto” no quadro de uma “política de poder” que deveria ser inexoravelmente assumida pelo Estado brasileiro, em sua atual e futura política externa regional. A geopolítica não consegue conviver com “vazios de poder”, reais ou supostos: ela estará sempre à procura de “potências em perspectiva” para preencher seus próprios “vácuos” teóricos.
Na concepção geoestratégica dos especialistas norte-atlânticos, haveria um “vácuo de poder” no Atlântico Sul, cujo preenchimento deveria ser assegurado por um arranjo multilateral calcado no modelo da OTAN ou por garantias estratégicas assumidas bilateralmente, no quadro de um “relacionamento especial” unindo a principal potência ocidental e um “grande regional”. A importância do Atlântico Sul é definida de maneira unilateral na visão estratégica ocidental, de que e exemplo a seguinte passagem do livro de Couteau-Bégarie: “o Atlântico Sul voltou a ser [depois da crise de Suez] uma artéria vital de comunicações; ele é cercado de países importantes para o Ocidente; enfim, ele poderia adquirir um lugar na [estratégia de] dissuasão, com o aparecimento de submarinos lança-mísseis em suas águas” (p. 57; nós sublinhamos). Não parece ocorrer aos propugnadores dessa visão a possibilidade dos países sul-atlânticos defenderem uma visão própria de seus interesses nacionais nessa região, garantindo a segurança e a liberdade de navegação através dos instrumentos do Direito Internacional e não por meios de pactos militares, que aliás soem constituir a exceção e não a regra na maior parte dos oceanos.
O pensamento geoestratégico identifica no Atlântico Sul todos os elementos da tetralogia das missões atribuidas às grandes frotas navais: domínio dos mares, projeção de potência, presença naval e dissuasão estratégica, este último apenas em esboço. “Mesmo se sua importância não alcança a do Oceano Índico ou a do Pacífico, o Atlântico Sul ocupa um espaço próprio na estratégia marítima. Mas, até uma data recente, apenas os soviéticos parecem ter se conscientizado plenamente disso” (p. 71). Coutau-Bégarie partilha aqui da visão norte-americana do problema, que parece caracterizar-se por um pessimismo exagerado na construção de cenários de ameaças à segurança marítima e ao aprovisionamento em matérias-primas para melhor justificar um military building acrescido. Uma consideração adequada de cada um dos elementos importantes em jogo, de um ponto de vista sul-atlântico, poderá eventualmente introduzir um pouco mais de equilibrio nessa visão geoestratégica do Atlântico Sul.

2. PRESENÇA MILITAR NA REGIAO: AMEAÇA À LESTE
O controle das principais artérias de comunicação constitui a mais importante e inadiável tarefa das frotas ocidentais. A presença de navios soviéticos na região sul-atlântica representa, para Couteau-Bégarie, “uma séria ameaça em caso de conflito”; ora, como esses navios “sont déjá sur place” (p. l9), é preciso pensar no pior: “Deve-se esperar ataques simultâneos em diversos pontos. A luta pelo domínio dos mares vai ocupar toda a situação estratégica no Atlântico Sul. Esta é a primeira missão das marinhas da OTAN, a mais importante, a mais constante, em face da ameaça permanente” (p.64). Dada a “insuficiência das frotas da OTAN”, deve-se pensar nas possibilidades de uma “defesa ocidental” através da “cooperação com os países ribeirinhos”, cuja missão, na visão norte-atlântica, deveria ser a de integrar seus próprios planos estratégicos nos esquemas defensivos concebidos pela primeira potência ocidental.
É preciso, em primeiro lugar, observar que a presença naval soviética no Atlântico Sul, embora tenha crescido no período recente, está longe de justificar a inquietação despertada pelos estrategistas ocidentais. A região é, de todas, a mais distante dos pontos de apoio da frota soviética e a que apresenta o maior número de dificuldades logísticas e estratégicas, o que tornaria altamente custoso qualquer esforço da URSS se decidisse interromper ali as rotas de suprimento dos países da OTAN. O próprio Comite de Defesa da União da Europa Ocidetal reconheceu o fato de ser “o Atlântico Sul a área mais improvável para uma ameaça naval [soviética] à navegação aliada”. 11 Deve-se igualmente lembrar que, em caso de necessidade, a aliança ocidental conseguiria reunir na região, num espaço reduzido de tempo, um número razoável de navios e submarinos, com o correspondente apoio aéreo e logístico. Não se conhece, por fim, qualquer tentativa soviética no sentido de interromper o fluxo normal das rotas marítimas ocidentais, no Atlântico Sul ou alhures, e é razoavel supor que uma tal iniciativa só seja concebível no quadro de uma séria deterioração no padrão global do relacionamento bipolar.
Hervé Couteau-Bégarie reconhece que os riscos de um ataque soviético contra as linhas de comunicação ocidentais nessa região são extremamente reduzidos, “mas, no caso em que a dissuasão fracassasse, o cenário de ataque ao tráfico ocidental é um dos que comporta o menor risco de escalada, pois uma batalha no mar não provoca perdas colaterais” (p. 98). Na verdade, um eventual fracasso da dissuasão comportaria um cenário muito mais complexo que o imaginado pelo especialista francês, mas, mesmo admitindo-se a hipótese de uma resposta marítima soviética, o Atlântico Sul é a região que menos se presta a um ataque diversionista da frota soviética. De toda forma, a Marinha norte-americana, e por extensão a aliada, parece dispor de todas as condições para deter, mesmo preventivamente, qualquer ação soviética nessa ou em outra região, mantendo acompanhamento permanente da localização de navios e submarinos soviéticos em diversos oceanos.

3. O ABASTECIMENTO EM MATÉRIAS-PRIMAS: TEMOR À OESTE
A ameaça suposta ou real contra as linhas de comunicação marítimas do Ocidente não é tudo porém, pois “a estratégia [da URSS] comporta um segundo painel, muito mais ambicioso e cujá eficácia poderia se revelar bem mais temível: a busca do controle das matérias-primas” (p. 99). A crer no especialista frances, que retoma um dos temas mais conhecidos na literatura sobre o assunto, “Moscou busca atualmente incorporar à sua órbita os principais países produtores de matérias-primas” (p. 99).
O temor ocidental é tanto maior que a história e a geografia já pareciam ter assegurado ao Atlântico Norte um seguro monopólio sobre os recursos do Sul. “O geopolítico Haushofer foi sem dúvida o que melhor observou a verticalidade do sistema internacional. Ele não deixou de sublinhar a continuidade entre a Europa e a África (a ‘Eurafrica’) e entre as duas partes do continente americano (a ‘PanAmerica’). Isto é ainda mais verdadeiro na atualidade. A zona sul-atlântica é, antes de mais nada, um fantástico reservatório de matérias-primas” (p. 64; nós sublinhamos). Mas, o Atlântico Sul não serve apenas ao simples aprovisionamento em materiais estratégicos para as economias ocidentais: “Os países do Atlântico Norte não poderiam viver sem sua periferia latino-americana ou africana” (p. 66). “Os países do hemisfério sul não são apenas produtores de matérias-primas, eles são também uma área de expansão econômica e cultural sem a qual o mundo norte-atlântico seria asfixiado. (...) Ora, a conservação da África e da América Latina passa antes de mais nada pelo controle das águas adjacentes, e em primeiro lugar, do Atlântico Sul” (p. 67; nós sublinhamos). Não parece vir à mente dos geoestrategistas norte-atlânticos que os países do Sul possam pretender controlar eles mesmos seus próprios recursos minerais, colocando suas matérias-primas a serviço de seu próprio desenvolvimento nacional, ou que eles não têm exatamente como um de seus objetivos estratégicos o de servir de “área de expansão” para os países ocidentais. Ao ler Couteau-Bégarie fica-se na dúvida sobre se o famoso lebensraum representou apenas e tão somente uma passageira deformação nazista da geopolítica ou se ele é um componente indispensável de suas formulações ideológicas.
A visão alarmista ocidental sobre a dependência do Atlântico Norte em relação às matérias-primas estratégicas provenientes do Sul originou-se da crise política e econômica criada com o embargo petrolífero de 1973 e ampliou-se com a intervenção soviética por ocasião da independência angolana em 1975. Acredita-se, por um lado, que os assim chamados “minerais estratégicos” da África austral representarão, nos anos 80 e 90, o que o petróleo representou nos anos 70. Hervé Coutau-Bégarie considera, por outro lado, que a guerra de Angola marca o tournant decisivo no desenvolvimento da penetração soviética nessa área africana: “No total, o assunto angolano se apresenta como um deslumbrante sucesso para a União Soviética” (p. 85). Nenhuma dessas crenças parece encontrar fundamento na realidade.
O cientista político Bruce Russett, após rigorosa análise quantitativa, conclui, por exemplo, que a visão alarmista sobre a dependência mineral do Ocidente, ademais de ser baseada em fundações conceituais muito primitivas, não encontra justificativa real nos dados disponíveis sobre o aprovisionamento estratégico dos principais países desenvolvidos capitalistas. O risco da dependência de fontes externas para a maior parte das matérias-primas foi simplesmente exagerado, pelo menos para os Estados Unidos. 12 Outro especialista norte-americano considera que “a dependência de importações da África austral e o problema do acesso ininterrupto aos suprimentos minerais não representam ameaças críticas ou estratégicas imediatas para os Estados Unidos e seus aliados. E a ameasa principal não vem da União Sovietica”. 13 Para esse autor, uma eventual ameaça nessa área, traduzindo-se por interrupções caóticas e imprevisíveis na produção ou fornecimento de minerais estratégicos, poderia ocorrer não em conexão com uma intervenção soviética, mas devido a problemas internos nos países produtores: a instabilidade doméstica, e não a ameaça soviética, representa assim o perigo maior. 14 De toda forma, “os Estados Unidos poderiam perder uma parte substancial de suas importações de minerais estratégicos sem que isso significasse qualquer ameaça a sua segurança nacional”. 15 Para o mesmo analista, a medida mais importante para garantir e aumentar a segurança mineral do Ocidente está no terreno da política externa e não no da segurança estratégica: “Os Estados Unidos deveriam usar a diplomacia para tentar prevenir conflitos inter-estatais nas regiões produtoras de minerais”. 16 Outras medidas incluiriam a estabilização dos preços, a assistência econômica e ajuda bilateral aos fornecedores doTerceiro Mundo.
A outra vertente da “guerra de recursos” seria dada pela “modificação radical” da estratégia soviética a partir de 1975: apoiando-se na intervenção angolana, a URSS teria passado a buscar integrar suas novas “aquisições” num novo “Terceiro Mundo”, seguindo uma política em dois eixos: a) o país protegido deve operar uma “restruturação idêntica” segundo o modelo socialista; b) o país protegido deve custar o menos possível e render o maximo possível. 17
Não é contudo o que parece indicar a política “terceiro-mundista” da URSS nos últimos cinco ou seis anos, e particularmente desde a morte de Brejnev em novembro de 1982. Como demonstra Francis Fukuyama, em artigo na Foreign Affairs, passou a época das generosas ofertas de ajuda econômica e militar aos “países liberados”: o programa do 27° Congresso do PCUS, encerrado em outubro de 1985, consigna apenas a “profunda simpatia” com as aspirações dos povos que estão se libertando do jugo colonial, uma frase tépida para indicar os limites da assistência soviética a seus clientes do Terceiro Mundo. 18 Os Estados “orientados para o socialismo” devem, segundo o programa do partido, desenvolver suas economias “por meio de seus próprios esforços”, sendo-lhes implicitamente recomendado “aprofundar a cooperação com os países que percorrem a via capitalista”. 19 A desilusão com os resultados obtidos no Terceiro Mundo e a consequente proposta de “desengajamento” são expressamente reconhecidos no recentemente divulgado manifesto da “oposição clandestina” ao PCUS, que reproduz na verdade o pensamento oficioso sobre a matéria: “A política externa soviética tem experimentado sérios reveses em países que foram colonias do Ocidente. Apesar dos vastos recursos investidos na Indonésia, no Egito, na Argélia e no Iraque, a URSS não obteve nenhum dividendo político ou econômico”. 20
É altamente improvável, portanto, que Moscou disponha de meios para, ou tenha a intenção efetiva de, conduzir uma “guerra de recursos” contra o Ocidente com base na intervenção direta em países da África austral: ao contrário de pensar na asfixia econômica do Ocidente, a URSS procura desesperadamente intensificar suas relações econômicas e os vínculos de cooperação com a zona capitalista. Uma “guerra de recursos”, aliás, não apenas iria contra os próprios interesses da URSS, como afetaria igualmente interesses substanciais de seus aliados socialistas e parceiros “não-alinhados”, além de, mais uma vez, só ser concebível no contexto de um enfrentamento global entre os dois campos.
Contrariamente, portanto, ao que sugeriu Peter Wiles em sua tese sobre o novo “Terceiro Mundo” soviético, as tendências indicam que a postura da URSS em relação aos países em desenvolvimento caminha no sentido de relativizar o impeto da mudança revolucionária em direção ao “socialismo” e de reconhecer o próprio potencial transformador da “via capitalista”. As evidências são tanto de carater teórico, como o demonstra uma recente resenha da literatura soviética a esse respeito, 21 quanto de natureza prática, de que são exemplos diversos discursos e pronunciamentos oficiais soviéticos do período recente, a começar pelo próprio Gorbachev. Isto não quer dizer que a URSS deixará de aproveitar as oportunidades locais que se abram à sua ação no Terceiro Mundo, e na África austral em particular, mas suas prioridades atuais são bem diferentes de uma política de “guerra total” contra o Ocidente.

4. DA GEOESTRATEGIA À COOPERAÇÃO: UMA VISAO DO SUL
A segurança, na visão geopolítica, tende a ser alcançada não por meios políticos e diplomáticos, mas através da dissuasão estratégica. O argumento não deixa de ter sua legitimidade, tanto teórica quanto prática, e parece justificado em face do conhecido quadro de enfrentamento bipolar à dimensão global. O problema começa quando, num quadro regional caracterizado por baixo coeficiente de polarizações dicotômicas e, portanto, com tendências à multipolarização, se pretende introduzir à força o cenário da dissuasão estratégica. O Atlântico Sul corre hoje esse risco, menos provavelmente pelo desenvolvimento de uma dinâmica própria de conflitos inter-estatais do que pela vontade dos ideólogos da geoestratégia.
Hervé Couteau-Bégarie reconhece implicitamente a realidade da multipolarização no Atlântico Sul, quando afirma que “o desenvolvimento das forças navais latino-americanas não pode ser considerado como uma resposta ao aparecimento de navios soviéticos na região. Ele decorre mais exatamente de fatores locais que de modificações no equilibrio planetário de forças” e, dentre esses fatores, o autor alinha a busca de “prestígio”, a defesa da soberania, o “efeito induzido” de outras frotas vizinhas ou mesmo “ambições hegemônicas, bastante nítidas na América Latina, onde se digladiam antagonismos irredutíveis” (pp. 17-18). Mas, o cenário global, segundo ele, é dominado pelo surgimento dos submarinos dotados de mísseis estratégicos – “o elemento mais estável dos arsenais” – acarretando a militarização ampliada dos oceanos. Nesse contexto, o Atlântico Sul é inevitavelmente elevado “à categoria de zona de patrulha para os submarinos estratégicos” (p. 68).
Assim, a despeito da reconhecida multipolarização dos cenários regionais – evidente, entre outros motivos, pela multiplicação de conflitos locais no Sul – a estratégia da dissuasão global é transposta para o Atlântico Sul, observando-se mesmo uma tentativa de reverticalização nos espaços geográficos considerados fundamentais pela superpotência americana. A visão americana da problemática do Atlântico Sul, assumida inteiramente por Couteau-Bégarie, caracteriza-se tanto pela exacerbação do potencial de conflitos globais nessa área, como pelo total desconhecimento das aspirações e preocupações específicas dos países ribeirinhos, considerados como meros instrumentos da defesa dos interesses ocidentais na região. Condizente com essa visão, cogitou-se no passado – e talvez alguns ainda mantenham a ilusão – não apenas da constituição de uma OTAS alinhada com sua irmã do Norte, mas também de um delírio geopolítico popularizado sob o nome de “Aliança de todos os Oceanos”, nova versão da Liga Ateniense, que pretenderia ser uma transposição da OTAN em escala mundial. 22 O alinhamento com os EUA, nesse contexto, é considerado como algo natural, ou mesmo como uma obrigação dos países do hemisfério sul, assim como a garantia de acesso ocidental às fontes de recursos estratégicos, em primeiro lugar as matérias-primas minerais. A estabilidade política dos países da região sul-atlântica é considerada, nessa visão, como meramente funcional para os objetivos da segurança estratégica do Ocidente, não possuindo valor próprio em termos de requisito adequado para as metas de desenvolvimento econômico, bem-estar social e democracia política nos países contemplados.
A segurança econômica e política dos países ribeirinhos do Atlântico Sul não pode, é certo, dispensar um nível adequado de segurança militar, mas esta, por sua vez, nunca será completa se persistirem focos de tensão e de agitação decorrentes não de uma ameaça externa mas das próprias condições de subdesenvolvimento e atraso econômico-social. Concretamente: a penetração soviética no Atlântico Sul é contraria aos interesses de todos os países da região, mas enquanto para as duas superpotências a zona sul-atlântico é apenas um cenário a mais, e necessariamente secundário, no quadro da confrontação global, para as nações ribeirinhas ela é uma area essencial e prioritária para seus próprios objetivos nacionais de paz e desenvolvimento.
Aos países do Atlântico Sul interessa a segurança da região não em termos de sua integração à dissuasão estratégica, mas em termos de mantê-la à margem das tensões externas, de modo a promover as condições favoráveis ao desenvolvimento da cooperação horizontal entre os países que a margeiam. Do ponto de vista da segurança, tanto a Carta da OEA, quanto o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, no âmbito da América Latina, contêm disposições relativas à segurança dos Estados Membros, aplicáveis dentro ou fora da área específica coberta por esse último Tratado. Não parece, assim, haver necessidade de uma organização de defesa específica para garantir a segurança do Atlântico Sul, do ponto de vista da América Latina. Qualquer tentativa nesse sentido, aliás, daria à totalidade dos Estados participantes a mera função de coadjuvantes menores em face do grande irmão do Norte, aproximando portanto a organização proposta mais do modelo do Pacto de Varsóvia do que do da OTAN. Em todo caso, nada há que impeça a continuidade de empreendimentos bilaterais de cooperação naval – como as operações Unitas – ou mesmo projetos multilaterais fora do marco de um tratado específico como ocorreu com a “Ocean Venture 81”. Qualquer esquema de cooperação entre os países ribeirinhos do Atlântico Sul e os parceiros do Norte – os EUA ou a OTAN – só poderia concretizar-se adequadamente a partir do reconhecimento dos interesses específicos dos países da área e considerando seus ob;etivos nacionais em primeiro lugar; em uma palavra, cabe aos interesses do Atlântico Norte coordenar-se com os do Atlântico Sul e não o contrário.
A questão essencial para os países do Atlântico Sul é a do estabelecimento de uma presença própria, autônoma e independente na região, exatamente para atingir aos objetivos do desenvolvimento e da cooperação regional. Não pode haver qualquer incompatibilidade entre esses objetivos e o interesse ocidental na região e é com base neles, portanto, que se deve buscar as formas de cooperação mais adequadas entre os países do Norte e os do Sul. Em síntese, as possibilidades de cooperação devem estar subordinadas, como não poderia deixar de ser, aos interesses políticos, econômicos e estratégicos próprios e permenentes dos países do Atlântico Sul. À estratégia geopolítica da dissuasão, o Atlântico Sul deve opor a estratégia política da cooperação e do desenvolvimento.

Notas e Referências Bibliográficas:

1. Paul H. Nitze, Leonard Sullivan, Jr., and the Atlantic Council Working Group on Securing the Seas: Securing the Seas: the Soviet Naval Challenge and Western Alliance Options (Boulder, Co.: Westview Press, 1979).
2. Hervé Couteau-Bégarie: Géostratégie de l’Atlantique Sud (Paris: Presses Universitaires de France, 1985); dividido em quatro grandes partes, dedicadas respectivamente ao “quadro geoestratégico do Atlântico Sul”, à “penetração soviética” nessa região, à “desintegração da defesa ocidental” e aos esforços tendentes à integração das defesas navais na área, e, finalmente, aos “antagonismos geopolíticos na América Latina”, o estudo de Couteau-Bégarie representa o ensaio mais bem sucedido, até agora, de apresentar a visão “norte-atlântica” sobre os problemas da segurança estratégica do Atlântico Sul. Sem deixar de reconhecer os méritos próprios dessa obra é preciso desde logo apontar seu comprometimento com o pensamento típico da OTAN sobre essa problemática.
3. Ver a esse propósito Alain Rouquie: L’Etat Militaire en Amérique Latine (Paris: Seuil, 1982), que parece ser a única fonte de referência de Couteau-Bégarie sobre a questão militar na América Latina.
4. Cf Couteau-Bégarie, Géostratégie de l’Atlantique Sud, op. cit., pp. 13-14.
5. Sobre o trabalho pioneiro de Mahan sobre o poder naval, consultar o excelente artigo de Joao Carlos G. Caminha: “Mahan: Sua Época e suas Ideias”, Política e Estratégia (vol IV, n° 1, Jan-Mar 1986, 54-103); para a referência ao livro de Haushofer ver o artigo de Lewis Tambs: “A Influência da Geopolítica na Formação da Politica Internacional e da Estratégia das Grandes Potências”, Política e Estratégia (vol I, n° 1, Out-Dez 1983, 73-104), p. 90.
6. Carlos J. Moneta y otros: Geopolitica y Politica del Poder en Atlantico Sur (Buenos Aires: Pleamar, 1983).
7. Hervé Couteau-Bégarie: La Puissance Maritime Soviétique (Paris: Economica/Institut Français des Relations Internationales, 1983).
8. Cf Géostratégie de l’Atlantique Sud, p. 15. Para evitar o apelo frequente às notas de rodape, as referências ao livro de Couteau-Bégarie, extensivamente citadas neste artigo, serão a partir de agora colocadas entre parênteses ao final de cada transcrição.
9. Alvaro Vasconcelos: “Os Desafios do Sul e a Segurança Regional”, Estratégia, Revista de Estudos Internacionais (n° 1, Primavera 1986, 147-170), p. 149. A multipolaridade – política, econômica e militar – é com efeito o traço mais saliente de nossa época, a despeito mesmo das tentativas de verticalização operadas por um ou outro dos dois grandes poderes em suas respectivas áreas de influência.
10. Wolfram Eberhard: Conquerors and Rulers: Social Forces in Medieval China (Leyden: E.J. Brill, 1965), vide “Introduction”, transcrita em Reinhard Bendix (ed): State and Society: a reader in comparative political sociology (Berkeley: University of California Press, 1973), pp. 16-28.
11. Cf Committee on Defence Questions and Armaments of the Assembly of the Western European Union: European Security and the South Atlantic (WEU, 26 October 1981).
12. Bruce Russett: “Dimensions of Resource Dependence: some elements of rigor in concept and policy analysis”, International Organization (Vol 38, n° 3, Summer 1984, 481-499).
13. Michael Shafer: “Mineral Myths”, Foreign Policy (n° 47, Summer 1982, 154-171), p. 155.
14. Idem, p. 161.
15. Idem, p. 165.
16. Idem, p. 168.
17. Ver Peter Wiles: The New Communist Third World (London: Croom Helm, 1982).
18. Cf Francis Fukuyama: “Gorbachev and the Third World”, Foreign Affairs (vol 64, n° 4, Spring 1986, 715-731), p. 715.
19. Idem, pp. 715-6.
20. Ver “The Secret Dream of a Soviet tomorrow”, The Guardian (August 3, 1986), p. 10. O manifesto do “Movimento de Renovação Socialista” foi publicado no Brasil pela Folha de São Paulo (31.08.86).
21. Ver o excelente artigo-resenha de Elizabeth Kridl Valkenier: “Revolutionary Change in the Third World: recent soviet assessments”, World Politics (vol 38, n° 3, April 1986, 415-434).
22. A proposta é de Ray Cline, o conhecido autor de World Power Assessment; cf “Avaliação do Poder Mundial”, Política e Estratégia (vol I, n° 1, Out-Dez 1983, 7-19).

[1a: 24-26.09.86]
[2a: 12.01.87]


132. “Geoestratégia do Atlântico Sul: uma Visão do Sul”, Brasília, 24-26 setembro 1986, 13 pp. Ampliação do trabalho anterior em forma de artigo, excluída a segunda parte sobre a política brasileira para a região (Anexo: Esboço de um artigo intitulado: “Da Geopolítica à Cooperação: o Brasil e o Atlântico Sul”). Publicado sob o título “Geopolítica do Atlântico Sul” na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro, vol. XXIX, nºs 115-116, 1986/2, pp. 131-138), sob o título “Geoestratégia do Atlântico: uma Visão do Sul” em Estratégia (Lisboa, 3, Primavera 1987, pp. 117-128) e, sob o título “Geoestratégia do Atlântico Sul: uma Visão do Sul”, em Política e Estratégia (São Paulo, vol. V, nº 4, outubro-dezembro 1987, pp. 486-495). Relação de Trabalhos Publicados nºs 031, 036 e 045.

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