RELAÇÕES EXTERIORES E CONSTITUIÇÃO
PAULO ROBERTO DE
ALMEIDA
Mestre em
Economia Internacional
e Doutor em
Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas
Professor de
Sociologia Política na Universidade
de Brasília e no
Instituto Rio Branco.
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro,
ano XXIX, nº 115-116, 1986/2, pp. 83-90),
SUMÁRIO:
Assistiu-se nos Estados Unidos, nas duas últimas
décadas a uma reafirmação do papel do Congresso nos temas de política externa e
de relações internacionais, processo em parte motivado pela crise política
provocada pela Guerra do Vietnã e pela perda de legitimidade do Executivo em
conseqüência do escândalo de Watergate.
No Brasil, após a experiência de amplo controle
legislativo durante o Império, ocorreu um progressivo esvaziamento das funções
de fiscalização e de elaboração de diretrizes políticas para as relações
exteriores do País. A diminuição acentuada da participação do Legislativo na
formulação e no controle da política externa foi ainda mais agravada pelo
reforço do Executivo em fases de dominação autoritária.
O período atual, marcado tanto pela crise do setor
externo da economia, em suas dimensões financeiras, como pelo reordenamento
constitucional do País, tende a favorecer a recuperação do papel do Legislativo
no processo decisório em política externa, notadamente através de um controle
mais estrito da processualística constitucional dos atos internacionais. A
recuperação da competência congressual nesse terreno não se esgota porém no
âmbito constitucional, mas deve igualmente implicar na preparação adequada dos
parlamentares e na crescente especialização do staff congressual.
RELAÇÕES EXTERIORES E CONSTITUIÇÃO
"O
controle das relações exteriores nas democracias modernas cria uma nova e
urgente necessidade de [desenvolver a] educação popular nos assuntos
internacionais". (1) Assim começava o artigo de Elihu Root no número
inaugural da revista Foreign Affairs, no outono de 1922. A tese de Elihu Root, então o mais eminente
estadista norte‑americano, era simples: já que, numa democracia, o povo é
responsável pelo controle e pela condução da política externa [control and
conduct of the foreign policy] ele deveria ser instruído na matéria [should
learn the business]. O ex-Secretário de Defesa de McKinley e ex‑Secretário de
Estado de Theodore Roosevelt escrevia ainda sob a influência da "open
diplomacy" inaugurada por Woodrow Wilson.
Mas, o próprio Wilson, que tinha começado sua vida pública advogando um
maior controle parlamentar sobre os assuntos do Estado -- seu livro Congressional Government é de 1885 (2)
-- deixou o cargo presidencial em 1921 amplamente frustrado pela recusa do
Senado em ratificar o Tratado de Versalhes, que trazia em seu bojo o acalentado
projeto da Liga das Nações. (3)
Os
Estados Unidos ingressavam então numa era isolacionista que só seria rompida
pelo ataque a Pearl Harbor, que alterou também radicalmente o relacionamento
entre o Executivo e o Legislativo norte‑americanos em matéria de política
externa pelas três décadas seguintes. (4) A imperial Presidency em termos de
relações internacionais só seria revertida com o terrível choque provocado pela
Guerra do Vietnã, que introduz um novo padrão na postura internacional do
Congresso norte‑americano. (5) Seja como for, a recomendação do velho Elihu
Root parece ter deitado fundas raízes no sistema constitucional norte‑americano,
abrindo caminho para que o público em geral e os representantes políticos em
especial passassem a know better e a se interessar mais de perto pela complexa
problemática das relações internacionais. Já na própria época de Root, um
diplomata norte‑americano publicava um instrutivo livro sobre a necessidade de
maior "transparência" na formulação e na execução da política
externa, ressaltando a participação congressual nesse processo. (6) A criação
do Council on Foreign Relations representa, de certo modo, um passo no sentido da popular diplomacy
advogada por Root, ainda que esta não tenha se tornado tão open quanto o
pretendido por Wilson. Ainda assim, depois de várias décadas de predominância
do Executivo na elaboração e na implementação da política externa norte‑americana
-- em parte explicável por um inteiro período de crises contínuas: depressão,
conflito mundial, guerra fria -- o Congresso voltou a reafirmar-se
gradativamente no campo das relações exteriores, inclusive ao ponto de
paralisar a iniciativa presidencial em determinadas ações externas.
No
Brasil, a evolução histórica parece ter adotado o caminho inverso, ou seja, a
de uma crescente diminuição do papel do Parlamento e dos grupos de interesses
na condução da política externa do País. Como demonstrou o Professor Amado
Cervo em seu admirável trabalho de pesquisa histórica, durante o Império coube
ao Parlamento um papel preponderante nas orientações e iniciativas tomadas pela
diplomacia brasileira, não apenas do ponto de vista de sua influência política,
mas igualmente no sentido do redirecionamento de determinadas linhas da
política externa imperial. (7) A República, ao contrário, agiu no sentido do
distanciamento cada vez maior do corpo representativo das decisões executivas
em matéria de relações exteriores do Brasil. É verdade que tal tendência não
resulta apenas da vontade política dos mandatários de plantão, mas deriva do
próprio processo de modernização social e política da nação, que acarreta,
paralelamente, a marcha irresistível da burocratização das instituições
governamentais.
No
campo da política externa, a profissionalização dos quadros diplomáticos e a
abertura da carreira aos méritos podem ter funcionado não apenas como poderosas
alavancas de democratização social, mas também como fatores inibidores da
"osmose" que a instituição parlamentar sempre manteve com a
instituição diplomática nas sociedades elitistas. Até as primeiras décadas
deste século, praticamente todas as Chancelarias dos grandes Países ocidentais
eram dominadas por personalidades oriundas das chamadas ruling classes, que também enviavam representantes ao Parlamento. O
poder das classes tradicionais -- especialmente das famílias cuja riqueza era
ligada a propriedade fundiária -‑ sobre o funcionamento das Chancelarias das
principais nações européias era tão completo que o historiador "revisionista"
Arno Mayer prefere apontar os fatores de atraso, ligados à persistência do
"feudalismo", e não os supostos fatores de progresso, derivados da
nova civilização capitalista e burguesa, como os verdadeiros responsáveis pelo
desencadeamento da primeira Grande Guerra, que devastou o continente e arruinou
definitivamente a hegemonia européia sobre os negócios do mundo. (8)
Durante
o período imperial, a diplomacia brasileira pode não ter sido nem muito open,
nem suficientemente popular, segundo os requisitos apontados por Root, mas
parece ter contado com um grau razoável de controle parlamentar para tornar-se
representativa dos interesses da Nação como um todo. "A forma que o
controle legislativo do Executivo toma numa nação depende prioritariamente do
quadro constitucional, mas evolui a partir dele, com o desenvolvimento
histórico e as tradições do Legislativo e do sistema político". (9) Como
demonstrou o historiador Amado Cervo, o papel exercido pelo Parlamento
brasileiro sobre a política externa, durante o Império, incidiu em três
direções:
"O
Parlamento desempenha, primeiramente, uma função de controle direto das
relações externas, através da lei, seu instrumento próprio de ação. (...) Em
segundo lugar, compete ao Parlamento vigiar e fiscalizar precisamente o desempenho
dos agentes das relações exteriores, buscando, em princípio, julgar sua
adequação ou não com o interesse nacional em jogo ou, pelo menos, com aqueles
de determinados segmentos da sociedade. A função do Parlamento, sob este
aspecto, independe da elaboração da lei, porque se define através da crítica,
do posicionamento e das atitudes tomadas diante dos fatos, podendo induzir
mudanças no desempenho dos referidos agentes. Quando o debate amadurece, sob a
influência da reflexão, da experiência e do estudo, atinge-se o terceiro nível
da atuação parlamentar: a geração de idéias, de teorias e doutrinas, ou seja, o
nível de elaboração do pensamento político, que se consubstancia em diretrizes
de política externa. (...) O Parlamento brasileiro exerceu as três funções
acima descritas, durante o século da monarquia." (10)
Mais
do que o regime político republicano, a centralização de poderes operada pelo
aparelho executivo do Estado e a já citada profissionalização e crescente
especialização da carreira diplomática progressivamente alijaram o corpo
representativo do processo decisório em política externa. O impacto das
relações exteriores do País na atividade político-partidária e nos debates
correntes no Parlamento também tornou‑se substantivamente menos importante à
medida em que gerações de políticos treinados apenas em temas domésticos foram
substituindo os velhos próceres educados
na Europa e dotados de educação cosmopolita. Como bem disse Gilberto Amado a
propósito da escolha dos representantes "populares" na primeira
República, "as eleições eram falsas, mas a representação era
verdadeira", querendo significar com isso a relevância assumida pela
participação no Parlamento de homens dotados de inegáveis qualidades pessoais e
intelectuais, mas desprovidos, sem o recurso à "fraude eleitoral", de
condições políticas para a obtenção "normal" de um mandato eletivo.
Finalmente, as experiências autoritárias inauguradas respectivamente pelo golpe
do "Estado Novo" de novembro de 1937 e pelo movimento civil‑militar
de março-abril de 1964 contribuíram, em larga medida, para o afastamento do
corpo representativo do processo decisório em política externa, confirmando
talvez o padrão "usual" do relacionamento Executivo‑Legislativo no
contexto latino‑americano em matéria de relações exteriores.
Com
efeito, como indica o Professor José Francisco Rezek, "c'est une realité
assez connue que les parlements en Amérique Latine n'ont pas de compétences
autonomes ou dynamiques en ce qui concerne la conduite des relations
internationales: leurs compétences impliquent comme substance le contrôle des
actes du Pouvoir Exécutif, et ne sont exercées que d'une façon accessoire, en
présupposant toujours l'initiative ou l'action préalable des
Gouvernements". (11) A autonomia e o dinamismo do Parlamento em matéria de
política externa dependem prioritariamente, como se disse, do quadro
constitucional existente, mas a existência de mecanismos informais de controle
e de supervisão pode igualmente complementar as determinações constitucionais
nesse campo. No Brasil, como se sabe, os partidos políticos de um modo geral e
o Legislativo em especial sempre se caracterizaram por reduzido coeficiente de
abertura internacional, o que fez com que o pêndulo da política externa
pendesse sempre para o lado do Presidente e da burocracia especializada.
A
política externa sempre foi uma área de preocupação relativamente secundária na
reflexão teórica e na prática corrente da maior parte dos partidos políticos
republicanos. (12) A experiência institucional brasileira nessa matéria
confirma que, tanto no regime pluripartidário de 1946 como no período
bipartidista inaugurado em 1966, os partidos políticos mantiveram‑se ou foram
mantidos à margem do processo decisório na área da política externa. Por outro
lado, sem que tivessem sido alterados substancialmente, os dispositivos
constitucionais regulando a participação congressual no controle das relações internacionais
do País, observou-se, durante o regime de 1964, uma notável redução do papel do
Parlamento enquanto arena política de debates e de formulação de opiniões sobre
o curso adotado pelas relações exteriores do Brasil. Ao contrário, apesar da
Emenda Constitucional no 1, de 1969, ter realizado acréscimo da expressão
"atos internacionais" ao Art. 44,I, do texto constitucional vigente,
que regula a competência exclusiva do Congresso Nacional para resolver
definitivamente sobre os tratados e convenções internacionais celebrados pelo
Presidente da República, persistiu a prática, pelo Executivo, dos acordos em
forma simplificada, e excluídos, desse fato, da necessária apreciação
legislativa. (13)
A
transição, a partir de 1979, de um sistema bipartidário imperfeito -- isto é,
deformado pela imposição de um partido artificialmente dominante, impedindo a
alternância no poder -- para um regime de pluralismo moderado, significou, na
vida político‑partidária do País, uma maior latitude institucional para a
discussão dos temas de política externa no âmbito do Congresso. O encerramento
do chamado "ciclo militar" no processo político nacional representou,
ao mesmo tempo, a volta, ao cenário político brasileiro, do velho estilo de
negociações interpartidárias nas diversas esferas da estrutura de poder, o que
pode vir igualmente a repercutir sobre a comunidade da política externa
A
persistência provisória de um multipartismo exagerado pode obscurecer os
contornos exatos do novo sistema partidário em formação, mas confirma,
indiretamente, esse fato novo do cenário político: a organização política da
sociedade passa necessariamente pelos partidos políticos. O atual período de
transição político-partidária deverá arrastar-se bem além do processo de
reordenamento constitucional do País, recentemente inaugurado, suprimindo e
fazendo desabrochar Partidos durante pelo menos mais dois escrutínios gerais depois
das eleições a Constituinte de 15.11.86.
Qualquer que seja o cenário que emergirá dos atuais alinhamentos
ideológicos e regionais em torno das formações existentes ou potenciais, o
sistema político brasileiro tornou a apresentar‑se sob sua feição pluralista, e
a competição política se dará essencialmente nos terrenos partidário e
eleitoral. Assim, ainda que a estrutura do processo decisório em matéria de
políticas públicas tenda a preservar as fronteiras atuais entre atores
executivos -- Presidência, Gabinete ministerial, burocracias especializadas --
e não‑executivos -- Congresso, Partidos, comunidade empresarial, sindicatos,
Igreja, Imprensa, etc. -- os grupos politicamente organizados, e em primeiro
lugar os partidos políticos, ganham em relevância e capacidade de intervenção
em direção do Estado. (14)
É
nesse contexto que deve ser examinada a questão da política externa e das
relações exteriores do Brasil em face do reordenamento constitucional do País.
Deve‑se notar, antes de mais nada, que a persistência de séria crise no setor
externo, econômico e financeiro, do País, não deixará de incidir diretamente
nos debates políticos que serão travados no âmbito do Congresso Constituinte,
prevendo‑se mesmo uma atenção inusitada aos temas ligados às relações internacionais
do Brasil e a forma de sua inserção no sistema econômico mundial. Em nenhum
outro processo constituinte brasileiro -- salvo talvez no de 1823, mas
frustrado, como se sabe, pela intervenção autoritária de D. Pedro I -- o setor
externo esteve tão presente: as opções de política econômica e de postura
internacional do Brasil com que se defrontarão os constituintes de 1987
afiguram-se cruciais.
O
Congresso Constituinte de 1987, a diferença das Assembléias Constituintes de
1891 e de 1934, mas de forma semelhante à experiência de 1946, trabalhará sem
um anteprojeto oficial, a despeito mesmo da existência de um "Anteprojeto
Constitucional" elaborado, a pedido do Executivo, pela Comissão Provisória
de Estudos Constitucionais. (15) É muito
provável, porém, que dada sua abrangência temática e suas inovações em matéria
de organização dos poderes, o texto elaborado pela chamada "Comissão
Afonso Arinos" venha a servir de "caderno de consultas" aos
constituintes individuais, quando não de fonte oficiosa de referências aos
diversos grupos de trabalhos que não deixarão de constituir‑se no Congresso
Constituinte. Nessa condição, os dispositivos relativos às relações
internacionais do Brasil inscritos nesse Anteprojeto Constitucional são
suscetíveis de virem a integrar a nova Carta Magna do País, merecendo, como
tal, uma reflexão específica.
Uma
primeira questão que se coloca é a do sistema de Governo, que dependerá
evidentemente da corrente política predominante no Congresso Constituinte --
presidencialista ou parlamentarista -- mas que o Anteprojeto Constitucional
pretende que seja híbrido, combinando dispositivos de ambos os sistemas, numa
caracterização que ficou conhecida como "dualismo de
complementaridade". Admitindo-se que esse "parlamentarismo
presidencialista" venha a ser adotado sob uma forma mais ou menos
mitigada, a principal conseqüência para o sistema político será a de aumentar a
competência congressual em todos os níveis da atividade política institucional,
introduzindo portanto a corresponsabilidade no processo decisório. A estrutura
do processo decisório (decision-making process) ao nível do sistema de Governo
ficaria nesse caso dividida entre quatro instâncias de poder: o Presidente, o
Conselho de Ministros, o Conselho de Estado e o Congresso Nacional, cada qual
com suas respectivas competências e atribuições constitucionais, mas
coexistindo certa partilha de responsabilidades ao nível do processo de
elaboração legislativa. A necessidade de aprovação do Gabinete ministerial pela
Câmara dos Deputados e a introdução da moção de "censura", de
competência exclusiva do Congresso Nacional -- sendo a moção de
"confiança" de iniciativa do próprio Presidente do Conselho de
Ministros -- confirmam o papel relevante do corpo legislativo no processo de
decisão política.
O
regime de co‑responsabilidade previsto no Anteprojeto Constitucional não
deixará de afetar as competências respectivas do Presidente da República e do
Congresso Nacional em matéria de relações exteriores, como se verá a seguir.
Cabe, no entanto, mencionar a inovação introduzida pela Comissão fazendo
figurar na abertura do Anteprojeto um capítulo que procura fundamentar os
princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro. Ao lado da forma
democrática do Estado, o artigo inaugural enfatiza a preocupação social
("promoção da pessoa") e a vocação pacifista do País
("convivência pacífica com todos os povos"). A contribuição original
da Comissão, vinculada aos mesmos objetivos, consistiu em alinhar em dois
artigos desse capítulo as diretrizes básicas das relações internacionais: estas
se fundamentam, principalmente, na defesa dos direitos humanos, no respeito ao
princípio da autodeterminação dos povos e numa vigorosa opção pacifista. O
repúdio a todo tipo de violência e reforçado pela explícita condenação da
tortura e do terrorismo.
No que
se refere mais especificamente a processualística constitucional dos atos
internacionais, o Anteprojeto manteve tal qual a redação dada pela Emenda
Constitucional n. 1, relativa à competência (que deixa de ser "privativa")
do Presidente da República para "firmar tratados. convenções e atos
internacionais, ad referendum do Congresso Nacional", mas ampliou a
competência (que permanece "exclusiva") do Congresso Nacional para
"resolver definitivamente sobre os tratados, convenções e atos internacionais, inclusive os
executivos, ou qualquer de suas alterações". Evidencia‑se, assim, a preocupação em sanar o
sério problema de ordem constitucional e política que se criou com
interpretações divergentes sobre a abrangência precisa do controle legislativo
dos atos internacionais, tolhendo-se ao Executivo a possibilidade de subtrair
os acordos "de forma simplificada" à apreciação do Legislativo.
Mais
importante, porém, introduziu-se no mesmo Artigo a competência exclusiva do
Congresso para "autorizar e aprovar empréstimos, operações, acordos e
obrigações externas, de qualquer natureza, contraídas ou garantidas pela
União,... pelas entidades de sua administração indireta ou sociedades sob seu
controle, os quais só vigorarão a partir da data do decreto legislativo de sua
aprovação". Pretende-se, com isso, corrigir a prática adotada pelo
Executivo consistindo em dispensar a referenda dos contratos de empréstimos
externos pelo Congresso Nacional, matéria amplamente suscitada por ocasião dos
acordos firmados com o Fundo Monetário Internacional em 1983. Independentemente
da abrangência que se venha a dar aos dispositivos da próxima carta
constitucional relativos a esse tipo de operação financeira, mais do que um
debate constitucional, está-se, aqui, em face de uma clara questão política, um clássico conflito de competência
entre dois poderes do sistema político. Em ambos os preceitos inovadores
introduzidos pela Comissão Constitucional fica evidente a vontade de atribuir-se
ao Congresso um papel preponderante no controle das relações internacionais,
políticas e econômicas, do Brasil. Se acrescentarmos outro dispositivo
original, que estipula que "os Ministros de Estado respondem perante o
Congresso Nacional pelos atos praticados na gestão de sua pasta",
completa-se o que se pode caracterizar como um "cerco congressual" a
independência política do Executivo, o que não deixará de incidir igualmente na
condução da política externa.
Com
efeito, a questão central que se coloca do ponto de vista das relações
internacionais do País é a de que o Congresso passa a integrar a estrutura
mesma do processo decisório, ampliando consideravelmente seu poder de controle
sobre o fluxo corrente das atividades de política externa, em seu sentido mais
amplo. Independentemente dos dispositivos constitucional que venham a ser
adotados, uma larga fração dos controles que se pretende impor ao Executivo
dependerá, contudo, da própria capacidade do Congresso em acompanhar
adequadamente o desempenho da comunidade de política externa, através de suas
comissões especializadas e por meio de um staff devidamente preparado.
O novo
padrão de relacionamento entre os poderes no campo da política externa
ultrapassa assim o âmbito meramente legal-constitucional para projetar-se no
campo sociopolítico. Como afirmou um especialista norte-americano na matéria,
"co-determination in foreign policy has its advantages, but few would deny
that it complicates the making of foreign policy". (16) Deve-se, de todo
modo, partir da premissa de que o Congresso Nacional, em qualquer hipótese,
afirmará seu papel na política externa do Brasil e que o sistema político
deverá adaptar-se a essa nova realidade. "The critical question,
then," prossegue o mesmo autor, "is not wether the executive should
be stronger or the congressional role be reduced, or vice‑versa, but how each
can be strengthned to carry out their respectives roIes and to best meet the
challenges facing... foreign policy". (17)
O
"requisito para o sucesso de uma diplomacia popular", nos termos do
velho Elihu Root, passa, necessariamente, no Brasil, pelo reforço do papel do
Congresso no processo decisório externo. A postura já era endossada desde 1983
por um parlamentar tão clarividente como o Senador Marco Maciel:
"Entendo
que a presença contínua e proba do Congresso Nacional no processo das
tratativas internacionais se impõe cada vez mais e decorre do exercício de suas
funções de acompanhamento, de fiscalização e de controle da ação governamental,
em face da posição de que agora desfruta o Brasil no cenário mundial. Essa
presença e essa participação resultam, ademais, do fato de ser o Congresso, na
moderna sociedade democrática que estamos construindo, o Poder representativo
por excelência. Ele é, por tudo isso, o fórum de todos os interesses da Pátria,
o cenáculo de estudos e informações sobre todos os problemas nacionais. (...) A
diplomacia deve ser constantemente ampliada na base da legitimidade, que se
traduz, evidentemente, em maior autoridade da ação externa. É essencial, pois,
a função do legislativo -- legitimador por excelência." (18)
[08.12.86]
OBRAS CITADAS:
ABSHIRE,
David M. e NURNBERGER, Ralph D. (eds): The Growing Power of Congress
(Washington, D.C.: The Center for Strategic and International Studies, 1981)
ALMEIDA,
Paulo Roberto de: "Partidos Políticos e Política Externa", Revista de
Informação Legislativa (ano 23, no 91, Julho-Setembro de 1986, pp. 173‑216)
ANTEPROJETO
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de 1986, Seção I.
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Hamilton Fish (ed): The Foreign Affairs Reader (New York: Council on Foreign
Relations, 1947)
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(Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981)
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Thomas M. e WEISBAND, Edward: Foreign Policy by Congress (New York: Oxford
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Brookings Institution, 1973)
MAYER,
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Croom Helm, 1981)
MEDEIROS,
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(Porto Alegre: L&PM‑Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, 1983)
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POOLE,
C. Dewitt: The Conduct of Foreign Relations under Modern Democratic Conditions
(New Haven: Yale University Press, 1924)
PURVIS,
Hoyt e BAKER, Steven J.(eds): Legislating Foreign Policy (Boulder, Co.:
Westview Press, 1984)
REZEK,
José Francisco: La Conduite des Relations Internationales dans le Droit
Constitutionnel Latinoaméricain (Thèse pour le Doctorat de l'Université de
Paris, 1970)
WHALEN,
Charles P.: The House and Foreign Policy -- the Irony of Congressional Reform
(Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1982)
Notas:
1 Elihu Root: "A Requisite for the
Success of Popular Diplomacy" in Hamilton Fish ARMSTRONG (ed): The Foreign
Affairs Reader (New York: Council on Foreign Relations, 1947), 1-9, cf. p. 1.
Sessenta e cinco anos depois, o conselho de Elihu Root ainda parece adequado.
2 Ver o artigo de David M. Abshire,
"Foreign Policy Makers: President vs. Congress" in David M. ABSHIRE e
Ralph D. NURNBERGER (eds): The Growing Power of Congress (Washington: The
Center for Strategic and International Studies, 1981), 21-114, cf. p. 23.
3 Cf. Charles P. WHALEM, Jr.: The House and
Foreign Policy ‑ the Irony of Congressional Reform (Chapel Hill: The University
of North Carolina Press, 1982), p. 11.
4 Idem, p. 12.
5 Na verdade, foi o Congresso quem terminou
com a Guerra do Vietnã, notadamente através da instituição do veto legislativo
a determinadas iniciativas presidenciais em matéria de política externa; por trás
desse desenvolvimento há o crescimento do staff congressual, um verdadeiro
exército de experts que contesta e desafia as posições assumidas pela Casa
Branca e pelo Departamento de Estado. Ver Thomas M. FRANCK e Edward WEISBAND:
Foreign Policy by Congress (New York: Oxford University Press, 1979).
6 Ver C. Dewitt POOLE: Ihe Conduct of
Foreign Relations under Modern Democratic Conditions (New Haven: Yale
University Press, 1924).
7 Arnado Luiz CERVO: O Parlamento
Brasileiro e as Relações Exteriores, 18261889 (Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1981). O processo decisório, em política externa, resultava, como
demonstrou o Prof. Cervo, da interação de quatro poderes: o imperador, o
gabinete (incluindo a diplomacia), o Conselho de Estado e o Parlamento.
8 Ver Arno J. MAYER: The Persistence of the
Old Regime: Europe to the Creat War (London: Croom Helm, 1981 ).
9 Cf. Joseph HARRIS: Congressional Control
of Admininistration (Washington, D.C.: The Brookings Institution. 1973), p.
280.
10 Cf CERVO: O Parlamento Brasileiro e as
Relações Exteriores, op. cit s.p., vide "Introdução".
11 Cf. José Francisco REZEK: La Conduite des
Relations Internationales dans le Droit Constitutionnel latinoaméricain (Thèse
pour le Doctorat de L'Université de Paris, 1970), p. 59.
12 Ver, a propósito, Paulo Roberto de ALMEIDA:
"Partidos Políticos e Política Externa", Revista de Informação
legislativa (23:91:Jul‑Set 1986:173-216).
13 A referência obrigatória sobre a questão e a
Tese de Mestrado do internacionalista Antonio Paulo Cachapul de MEDEIROS: O
Poder Legislativo e os Tratados Internacionais (Porto Alegre:
L&PM-Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, 1983), cf. pp. 172‑175. Ver também, do mesmo autor, "O Controle
legislativo dos Atos Internacionais", Revista de Informação Legislativo
(22:85: Jan-Mar 1985:205-232).
14 Cf. ALMEIDA: "Partidos Políticos e
Política Externa", op. cit., pp. 211‑2.
15 ANTEPROJETO CONSTITUCIONAL (Elaborado pela
Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, instituída pelo
Decreto 91.450, de 18.07.85), Diário Oficial, Suplemento Especial ao
no 185, 26 de Setembro de 1986, Seção I.
16 Cf. Hoyt PURVIS: "Legislative‑Executive
Interaction" in Hoyt PURVIS e Steven J. BAKER (eds): Legislating Foreign
Policy (Boulder, Co.: Westview Press, 1984), pp. 1-12, p. 12.
17 Idem, loc. cit.
18 Diário do Congresso Nacional (Seção II), 12 de
maio de 1983, pp. 1650‑1, citado em MEDEIROS: O Poder Legislativo e os Tratados
Internacionais, op. cit., p. 192.
Ficha do trabalho:
138. “Relações Exteriores e Constituição”, Brasília, 8
dezembro 1986, 11 pp. Artigo sobre a recuperação legislativa da fiscalização e
controle da política externa do Executivo, nos EUA e no Brasil. Publicado na
Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro, ano XXIX, nº
115-116, 1986/2, pp. 83-90), na Revista de Informação Legislativa (Brasília,
ano 24, nº 94, abril-junho 1987, pp. 109-120) e na revista Política e
Estratégia (São Paulo, vol. V, nº 2, abril-junho 1987, pp. 256-263). Relação de
Trabalhos Publicados n. 029, 037 e 039.
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