(Review-Article)
O BRASIL
E O "PERIGO
AMARELO"
Paulo Roberto
de Almeida
PhD em Ciências
Sociais. Ex-Professor de Sociologia Política na Universidade de Brasília.
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio
de Janeiro: ano XXXIII, n. 129-130, 1990/1, pp. 137-141)
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Valdemar Carneiro Leão:
A Crise da Imigração Japonesa no Brasil
(1930 - 1934)
Contornos Diplomáticos
Brasília,
Fundação Alexandre de Gusmão,
Instituto de Pesquisa de Relações Interna-
cionais - IPRI - 1990, 360 pp.
Coleção Relações Internacionais nº 10.
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Não há nada que incomode mais a "boa
consciência" dos povos do que o desafio da alteridade(diferença) e, nesta,
o contato forçado com etnias e culturas diversas. O racismo, junto com a estupidez, é
provavelmente um dos fenômenos mais bem disseminados na história da humanidade,
mais entranhado, talvez, no inconsciente coletivo do que a própria religião e
muitos hábitos ancestrais.
A primeira metade deste século ficou conhecida
pela particular perversidade com que a questão racial foi
"encaminhada" em diversos países e sociedades. Os ideólogos da "pureza" racial e
do apartheid nada mais faziam, no entanto, do que colocar em prática diversas
premissas "culturais" que se foram elaborando a partir dos
descobrimentos, tomando impulso no racionalismo "antropológico" do
século XVIII para finalmente desembocar nas teorias "científicas"
sobre a supremacia ariana no século XX.
Enquanto o debate permaneceu no terreno propriamente acadêmico, ele não
chegou a causar grandes tragédias humanas, embora suas consequências, a nível
social, possam ter representado pequenas "tragédias" individuais,
como nos demonstrou brilhante estudo do naturalista Stephen Jay Gould a este
respeito.
Mais complexa se tornou a questão quando os
preconceitos legitimados "cientificamente" foram transpostos para o
terreno da ação pública e derivaram em discriminação pura e simples, quando não
em massacres e genocídios organizados. A
esse respeito, nenhuma outra sociedade (felizmente) conseguiu até aqui igualar a barbárie nazista, em que pese o
terrível custo humano e social de outras "experiências" de eliminação
de "adversários", como o caso dos armênios sob o jugo turco ou de
diversas populações asiáticas sob ocupação japonêsa. Mas, nenhum outro empreendimento humano
conseguiu ser tão cruelmente eficaz quanto a máquina burocrática da
"solução final" posta em prática contra judeus, ciganos, homossexuais
e outras minorias, para não falar da escravização forçada de populações eslavas
inteiras.
A ideologia racista hitlerista, porém, à
diferença do holocausto hélas conhecido tardiamente, não era particularmente chocante no contexto
dos anos 20 e 30, quando a tese da "inferioridade inata" de algumas
"raças" parecia estar empiricamente justificada, pelo menos se se
considera o contexto colonialista e eurocêntrico em que o debate era
conduzido. Ser racista não era, por
assim dizer, a suprema imoralidade, sobretudo numa época de
"darwinismo" social triunfante.
A percepção de uma "ameaça iminente",
representada por "povos dominantes", era tanto mais realista quanto o
"outro" discrepava da aparente uniformidade e homogeneidade da
dominação cultural e religiosa "européia": o anti-semitismo,
especialmente, tinha ampla aceitação nos mais diversos meios sociais. Abstraindo-se o itinerário da afirmação da
idéia sionista desde finais do século passado, o anti-semitismo constitui um
capítulo à parte na história das tragédias humanas, ademais de ser uma ferida
ainda aberta no imenso altar da imbecilidade social.
Ao lado dele, e quase que num movimento paralelo
à expansão japonesa no Extremo Oriente, teve grande voga naquela época a noção
de "perigo amarelo", refletindo a consciência da fragilidade européia
em face das "hordas ululantes" de milhões de asiáticos querendo se
projetar sobre um cenário internacional até então dominado por um punhado de
nações industrializadas. A ascenção do
Japão imperial, com seu expansionismo guerreiro, também muito contribuiu para a
difusão da noção de peril jaune.
A angst existêncial sobre o "perigo
amarelo" também se refletiu entre nós, no decorrer da década de 30, quando
a sociedade brasileira, mobilizada social e ideologicamente pelo grande debate
político levado a cabo pela Assembléia Nacional Constituinte de 1933-34, tratou
da questão da imigração estrangeira para o Brasil. Com efeito, o processo de reelaboração
constitucional conduzido no quadro da jovem República "liberal" deu
um inusitado destaque ao "problema japonês" no Brasil, ao colocar em
debate a questão dos limites ou impedimentos à imigração de determinadas etnias
ou "raças".
Desde o início dos trabalhos, foram apresentadas
emendas tendentes a restringir ou proibir a imigração africana e asiática, e um
Deputado chegou mesmo a propor que apenas fosse permitida a imigração de
"elementos da raça branca". O
objetivo aqui, mais do que proibir a entrada de africanos - que de toda forma
já não viriam mais em bases voluntárias e muito menos como escravos -, era
claramente o de impedir a entrada de povos asiáticos, ou seja o elemento
japonês, considerado "de mentalidade estranha, de língua diversa, religião
diferente e positivamente inassimilável".
O debate na Constituinte não deixa de ser
"instrutivo", quando julgado pelos argumentos avançados. O principal proponente da proibição,
recusando a pecha de racista, afirmava candidamente: "... se já prestamos
um tão grande serviço à humanidade na mestiçagem do preto, é o bastante. Não
nos peçam outras coisas... (...) A do amarelo, a outrem deve competir". O
problema era também colocado em termos de "defesa nacional", de
"segurança da pátria", ou mesmo de vida ou morte do Brasil: "Se
não se acautelar... o Brasil dentro em pouco será uma possessão japonesa. (…)
Aqui será o Império do Sol Poente... (…) O expansionismo japonês, aquilo que
Mussolini chamou o “imperialismo dinâmico do Japão”, segue uma ordem
invariável: infiltração, esfera de influência, absorção, ou se quiserem,
imigração, corealização (sic), japonização (…).
Nós estamos no segundo período - esfera de influência". Não faltavam também os que viam no
"número enorme de psicopatas estrangeiros" nos manicômios nacionais -
alguns deles asiáticos, descritos como "esquisóides" - mais uma prova "irrefutável" da
indesejabilidade da imigração indiscriminada para o Brasil.
Mas, antes mesmo da Constituinte, a questão
racial já se tinha manifestado nas tribunas da Câmara e na própria sociedade,
desde princípios dos anos 20. Ao
apresentar, em 1923, projeto de lei restritivo
sobre a questão, e que tinha
recolhido expressivo apoio na imprensa e na opinião pública - inclusíve do respeitado sociólogo e
cientista político Oliveira Vianna -, um Deputado expunha assim o lado
"estético" do problema: "Além das razões de ordem étnica, moral,
política e social, e talvez mesmo econômica que nos levam a repelir in limine a
entrada do amarelo e do preto, (…) outra porventura existe, a ser considerada,
que é o ponto de vista estético: a nossa concepção helênica de beleza jamais se
harmonizaria com os tipos provindos de uma semelhante fusão racial".
Esses e muitos outros argumentos
"edificantes", se se pode dizer, estão obviamente compilados na
magnífica monografia histórica de Valdemar Carneiro Leão, que resenhamos aqui,
cujo objetivo principal, contudo, não é
o estudo do "perigo amarelo" - strictu senso - no Brasil do
primeiro Governo Vargas. O "perigo amarelo" está, bem entendido,
subjacente a esse trabalho de pesquisa, que reconstitui com mão de mestre uma
importante questão hoje relativamente descurada em nossa historiografia
política: a do contexto internacional da política imigratória nacional.
Trata-se, mais propriamente, de uma brilhante análise do comportamento do
Itamaraty em face desse debate "interno", na Constituinte, sobre a
"questão imigratória japonêsa", que logo ganhou inevitáveis contornos
políticos ao precipitar uma crise diplomática nas relações do Brasil com o
Império do Japão.
O volume agora publicado pelo Instituto de
Pesquisa de Relações Internacionais, da Fundação Alexandre de Gusmão, foi originalmente
apresentado como "tese" de conclusão ao Curso de Altos Estudos, do
Itamaraty, em que se distinguiu o Autor, diplomata de carreira (atualmente
Ministro de nossa Embaixada em Londres) e graduado em Relações Internacionais
pelo "Institut d'Etudes Politiques" da Universidade de Paris. Formalmente, o trabalho se compõe de 180
páginas de denso texto analítico e interpretativo, seguidas de igual volume de
anexos informativos, contendo alguns documentos diplomáticos e diversos
discursos e intervenções realizadas na Assembléia Nacional Constituinte entre
janeiro e maio de 1934.
O texto, em si, é dividido em cinco capítulos,
tratando, respectivamente, das origens e desenvolvimento da imigração japonesa
no Brasil, do cenário político no início dos anos 30, do quadro geral das
relações Brasil-Japão, inclusive no que concerne os trabalhos da Constituinte,
os contornos diplomáticos da crise e, finalmente, a análise da ação do
Itamaraty, seguidos das conclusões. A
extensa bibliografia utilizada confirma que o Autor apoiou seu relato nas
melhores fontes primárias disponíveis, com destaque para os expedientes
diplomáticos do Arquivo Histórico do Itamaraty e para os Anais da Assembléia
Nacional Constituinte, ademais de fazer apelo a escritos contemporâneos e jornais
da época e a número considerável de estudos secundários (inclusive dos
principais protagonistas envolvidos no debate imigratório do processo
constituinte).
Estruturalmente, os temas mais importantes do
estudo estão tratados no subitem sobre os trabalhos da Constituinte do terceiro
capítulo, no capítulo sobre os contornos diplomáticos da crise (com destaque
para a atuação do Itamaraty) e na parte final, que analisa a ação da
Chancelaria brasileira nas diversas etapas do processo de elaboração constitucional,
inclusive no que respeita as motivações e forma de atuação do Ministério das
Relações Exteriores. O Autor fez extenso uso das comunicações diplomáticas
trocadas entre Rio de Janeiro e Tóquio durante a fase aguda da
"crise", tanto a nível interno da Chancelaria brasileira, como entre
os dois serviços diplomáticos nacionais.
O estardalhaço provocado pelas primeiras emendas
apresentadas ("É proibida a imigração africana e só consentida a asiática
na proporção de 5% anualmente sobre a totalidade dos imigrantes dessa
procedência..."; "Só será
permitida a imigração de elementos da raça branca...") foi contornado no
plano diplomático, apesar da repercussão e da polêmica na imprensa e de uma
atuação nem sempre comedida por parte do Gaimusho, o Ministério dos Negócios
Estrangeiros do Japão. O veto (discreto,
mas eficaz) do Itamaraty a qualquer distinção entre "raças" ou
nacionalidades nas emendas restritivas da imigração apresentadas na Assembléia
produziu, é bem verdade, efeitos não vislumbrados de início: descobriu-se que,
ainda assim, a cota de 2% do contingente já entrado no País atingia mais os
candidatos japoneses do que os europeus, com o que ficaram satisfeitos os
inimigos do "perigo amarelo".
Para o Itamaraty, a questão de princípio tinha sido resolvida: preservava-se o ingresso de imigrantes, sem
qualquer discriminação, mas restringia-se o número anual em função de uma norma
geral de caráter nacionalista. Restava,
é verdade, aplacar os maus humores das autoridades nipônicas, interessadas em
preservar um acesso irrestrito em favor de seus nacionais. O que foi feito nas duas capitais, não sem
dificuldades.
Para o Autor, "a forma de atuação do
Itamaraty ostentava perfeita coerência entre a vertente interna [iniciativas
discretas junto a políticos próximos do Governo] (…) e sua complementação
externa [contato permanente com a Chancelaria japonesa], sem a qual poderiam
ficar a descoberto suas delicadas manobras de bastidores" (p. 162).
Releve-se apenas, como a confirmar uma velha
mania do Itamaraty, a opção preferencial pelas gestões silenciosas, com a
imprensa mantida à distância, e uma aversão declarada pela "diplomacia de
praça pública". Como diz o autor: a ação do Itamaraty "foi de tal
modo cautelosa e de tal maneira privilegiou os canais informais que
aparentemente passou indocumentada. O
corolário dessa discrição observada no plano oficial traduziu-se num
comportamento igualmente silencioso perante a imprensa brasileira, à qual o
Itamaraty se absteve, ao longo da crise, de fornecer informações sobre o
trabalho que realizava" (p. 175).
Tal parece ser o espírito "eterno" da Casa de Rio Branco: uma
intensa movimentação diplomática, dispensando as luzes dos meios de comunicação
e passando pelos canais os mais discretos possíveis.
Constate-se, em todo caso, que nem sempre a
opinião pública mostra-se disposta a acompanhar tal linha de atuação: no caso
do debate sobre a imigração japonesa, os agitadores do "perigo
amarelo" aparentemente conseguiram colocar a Nação contra o Itamaraty. Este é provavelmente o preço a pagar por um
método de trabalho (contatos internos e démarches externas) absolutamente
escrupuloso e respeitador das normas geralmente aceitas entre
"cavalheiros". O certo é que,
durante o que ficou caracterizado como a "crise da imigração japonesa",
provavelmente mais do que em qualquer outra época de sua já longa história
institucional, o Itamaraty se viu
compelido a atuar de forma tão intensa no plano político interno.
Se a ação do Itamaraty não logrou sucesso total
foi devido a duas razões principais: por um lado, o momento nacional era de
clara afirmação nacionalista e de discriminação racial (um conceito atual para
explicar os "ares da época") ;
por outro, o comportamento internacional do Japão, com sua agressiva
política expansionista na região asiática, dificultou sobremaneira o rechaço da
norma constitucional restritiva que finalmente se adotou. Até onde pode, pelo menos, o Itamaraty
conseguiu trazer a retórica parlamentar de volta ao terreno das realidades
internacionais, setor onde a suscetibilidade das nações conta tanto quanto o
poder econômico e político medido em termos objetivos.
O mérito principal do trabalho de Valdemar
Carneiro Leão não é, contudo, o de ter mostrado que, quando preciso, o
Itamaraty também é capaz de "atirar para dentro", se ele me permite tal expressão. Devemos lhe ser gratos, antes de mais nada,
pela apreciável corvéia de ter retirado do pó dos arquivos itamaratianos uma
história exemplar de "dupla ação" diplomática, no bom sentido:
sincronização perfeita entre negociação externa e atuação interna. Seu texto é
ainda precioso do ponto de vista metodológico: a monografia aqui resenhada
condensa um trabalho original de pesquisa, constituindo-se propriamente num
paradigma do gênero "história diplomática", vertente historiográfica
pouco cultivada entre nós. Como tal, ela
mereceria uma divulgação mais ampla do que a habitualmente permitida pelos
canais (sempre discretos, lembre-se) do Ministério das Relações Exteriores.
Louve-se, em todo caso, a iniciativa do IPRI de
divulgar regularmente as melhores teses apresentadas no quadro do Curso de
Altos Estudos do Itamaraty. A Coleção
Relações Internacionais já tem dez títulos publicados, mas apenas a metade
desse número compõe-se de trabalhos defendidos no CAE, sendo os demais
antologias de textos resultantes de seminários de estudos e outros temas de
atualidade.
Curiosamente, o trabalho de Valdemar Carneiro
Leão é, de todos os textos publicados (e provavelmente das teses apresentadas
no CAE), o que mais longe recua no tempo, buscando no passado os fundamentos de
nossa atuação diplomática contemporânea. Terminada sua viagem histórica e de
"volta para o futuro", Carneiro Leão nos demonstra, de forma
oportuna, a permanência das instituições e a constância dos homens: a do Itamaraty,
que pouco mudou em seu estilo de atuação, e a dos constituintes, que continuam
a ver no estrangeiro uma fonte potencial de ameaça à soberania nacional.
Na verdade, descontada a tão temida, mas
inexistente, ameaça de dominação econômica nipônica, o único "perigo
amarelo" em que incorremos nos dias de hoje é o de ver os papéis dos
arquivos oficiais amarelecerem nas estantes sem que o grande público possa ter
acesso a partes substanciais da memória política da Nação. O resto é conversa de "botequim"
(leia-se gabinete) diplomático.
[Montevidéu,
05.09.90]
[Relação de Trabalhos nº 196]
[Trabalhos Publicados nº 060]
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