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terça-feira, 5 de maio de 2015

O Brasil e o 'perigo amarelo': a crise da imigração japonesa em 1934 - Paulo R. Almeida (1990)


(Review-Article)
O  BRASIL  E  O  "PERIGO  AMARELO"

Paulo Roberto de Almeida 
PhD em Ciências Sociais. Ex-Professor de Sociologia Política na Universidade de Brasília.
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: ano XXXIII, n. 129-130, 1990/1, pp. 137-141)

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Valdemar Carneiro Leão:
A Crise da Imigração Japonesa no Brasil
(1930 - 1934)  Contornos Diplomáticos
Brasília,   Fundação Alexandre de Gusmão,
Instituto de Pesquisa de Relações Interna-
cionais - IPRI - 1990, 360 pp.
Coleção Relações Internacionais nº 10.
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Não há nada que incomode mais a "boa consciência" dos povos do que o desafio da alteridade(diferença) e, nesta, o contato forçado com etnias e culturas diversas.  O racismo, junto com a estupidez, é provavelmente um dos fenômenos mais bem disseminados na história da humanidade, mais entranhado, talvez, no inconsciente coletivo do que a própria religião e muitos hábitos ancestrais.
A primeira metade deste século ficou conhecida pela particular perversidade com que a questão racial foi "encaminhada" em diversos países e sociedades.  Os ideólogos da "pureza" racial e do apartheid nada mais faziam, no entanto, do que colocar em prática diversas premissas "culturais" que se foram elaborando a partir dos descobrimentos, tomando impulso no racionalismo "antropológico" do século XVIII para finalmente desembocar nas teorias "científicas" sobre a supremacia ariana no século XX.  Enquanto o debate permaneceu no terreno propriamente acadêmico, ele não chegou a causar grandes tragédias humanas, embora suas consequências, a nível social, possam ter representado pequenas "tragédias" individuais, como nos demonstrou brilhante estudo do naturalista Stephen Jay Gould a este respeito.  
Mais complexa se tornou a questão quando os preconceitos legitimados "cientificamente" foram transpostos para o terreno da ação pública e derivaram em discriminação pura e simples, quando não em massacres e genocídios organizados.  A esse respeito, nenhuma outra sociedade (felizmente) conseguiu até aqui  igualar a barbárie nazista, em que pese o terrível custo humano e social de outras "experiências" de eliminação de "adversários", como o caso dos armênios sob o jugo turco ou de diversas populações asiáticas sob ocupação japonêsa.  Mas, nenhum outro empreendimento humano conseguiu ser tão cruelmente eficaz quanto a máquina burocrática da "solução final" posta em prática contra judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias, para não falar da escravização forçada de populações eslavas inteiras.
A ideologia racista hitlerista, porém, à diferença do holocausto hélas conhecido tardiamente,  não era particularmente chocante no contexto dos anos 20 e 30, quando a tese da "inferioridade inata" de algumas "raças" parecia estar empiricamente justificada, pelo menos se se considera o contexto colonialista e eurocêntrico em que o debate era conduzido.  Ser racista não era, por assim dizer, a suprema imoralidade, sobretudo numa época de "darwinismo" social triunfante.
A percepção de uma "ameaça iminente", representada por "povos dominantes", era tanto mais realista quanto o "outro" discrepava da aparente uniformidade e homogeneidade da dominação cultural e religiosa "européia": o anti-semitismo, especialmente, tinha ampla aceitação nos mais diversos meios sociais.  Abstraindo-se o itinerário da afirmação da idéia sionista desde finais do século passado, o anti-semitismo constitui um capítulo à parte na história das tragédias humanas, ademais de ser uma ferida ainda aberta no imenso altar da imbecilidade social.
Ao lado dele, e quase que num movimento paralelo à expansão japonesa no Extremo Oriente, teve grande voga naquela época a noção de "perigo amarelo", refletindo a consciência da fragilidade européia em face das "hordas ululantes" de milhões de asiáticos querendo se projetar sobre um cenário internacional até então dominado por um punhado de nações industrializadas.  A ascenção do Japão imperial, com seu expansionismo guerreiro, também muito contribuiu para a difusão da noção de peril jaune.
A angst existêncial sobre o "perigo amarelo" também se refletiu entre nós, no decorrer da década de 30, quando a sociedade brasileira, mobilizada social e ideologicamente pelo grande debate político levado a cabo pela Assembléia Nacional Constituinte de 1933-34, tratou da questão da imigração estrangeira para o Brasil.  Com efeito, o processo de reelaboração constitucional conduzido no quadro da jovem República "liberal" deu um inusitado destaque ao "problema japonês" no Brasil, ao colocar em debate a questão dos limites ou impedimentos à imigração de determinadas etnias ou "raças".
Desde o início dos trabalhos, foram apresentadas emendas tendentes a restringir ou proibir a imigração africana e asiática, e um Deputado chegou mesmo a propor que apenas fosse permitida a imigração de "elementos da raça branca".  O objetivo aqui, mais do que proibir a entrada de africanos - que de toda forma já não viriam mais em bases voluntárias e muito menos como escravos -, era claramente o de impedir a entrada de povos asiáticos, ou seja o elemento japonês, considerado "de mentalidade estranha, de língua diversa, religião diferente e positivamente inassimilável". 
O debate na Constituinte não deixa de ser "instrutivo", quando julgado pelos argumentos avançados.  O principal proponente da proibição, recusando a pecha de racista, afirmava candidamente: "... se já prestamos um tão grande serviço à humanidade na mestiçagem do preto, é o bastante. Não nos peçam outras coisas... (...) A do amarelo, a outrem deve competir". O problema era também colocado em termos de "defesa nacional", de "segurança da pátria", ou mesmo de vida ou morte do Brasil: "Se não se acautelar... o Brasil dentro em pouco será uma possessão japonesa. (…) Aqui será o Império do Sol Poente... (…) O expansionismo japonês, aquilo que Mussolini chamou o “imperialismo dinâmico do Japão”, segue uma ordem invariável: infiltração, esfera de influência, absorção, ou se quiserem, imigração, corealização (sic), japonização (…).  Nós estamos no segundo período - esfera de influência".  Não faltavam também os que viam no "número enorme de psicopatas estrangeiros" nos manicômios nacionais - alguns deles asiáticos, descritos como "esquisóides" -  mais uma prova "irrefutável" da indesejabilidade da imigração indiscriminada para o Brasil.
Mas, antes mesmo da Constituinte, a questão racial já se tinha manifestado nas tribunas da Câmara e na própria sociedade, desde princípios dos anos 20.  Ao apresentar, em 1923, projeto de lei restritivo   sobre a questão,  e que tinha recolhido expressivo apoio na imprensa e na opinião pública  - inclusíve do respeitado sociólogo e cientista político Oliveira Vianna -, um Deputado expunha assim o lado "estético" do problema: "Além das razões de ordem étnica, moral, política e social, e talvez mesmo econômica que nos levam a repelir in limine a entrada do amarelo e do preto, (…) outra porventura existe, a ser considerada, que é o ponto de vista estético: a nossa concepção helênica de beleza jamais se harmonizaria com os tipos provindos de uma semelhante fusão racial".
Esses e muitos outros argumentos "edificantes", se se pode dizer, estão obviamente compilados na magnífica monografia histórica de Valdemar Carneiro Leão, que resenhamos aqui, cujo objetivo principal, contudo, não é  o estudo do "perigo amarelo" - strictu senso - no Brasil do primeiro Governo Vargas. O "perigo amarelo" está, bem entendido, subjacente a esse trabalho de pesquisa, que reconstitui com mão de mestre uma importante questão hoje relativamente descurada em nossa historiografia política: a do contexto internacional da política imigratória nacional. Trata-se, mais propriamente, de uma brilhante análise do comportamento do Itamaraty em face desse debate "interno", na Constituinte, sobre a "questão imigratória japonêsa", que logo ganhou inevitáveis contornos políticos ao precipitar uma crise diplomática nas relações do Brasil com o Império do Japão.
O volume agora publicado pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, da Fundação Alexandre de Gusmão, foi originalmente apresentado como "tese" de conclusão ao Curso de Altos Estudos, do Itamaraty, em que se distinguiu o Autor, diplomata de carreira (atualmente Ministro de nossa Embaixada em Londres) e graduado em Relações Internacionais pelo "Institut d'Etudes Politiques" da Universidade de Paris.  Formalmente, o trabalho se compõe de 180 páginas de denso texto analítico e interpretativo, seguidas de igual volume de anexos informativos, contendo alguns documentos diplomáticos e diversos discursos e intervenções realizadas na Assembléia Nacional Constituinte entre janeiro e maio de 1934.
O texto, em si, é dividido em cinco capítulos, tratando, respectivamente, das origens e desenvolvimento da imigração japonesa no Brasil, do cenário político no início dos anos 30, do quadro geral das relações Brasil-Japão, inclusive no que concerne os trabalhos da Constituinte, os contornos diplomáticos da crise e, finalmente, a análise da ação do Itamaraty, seguidos das conclusões.  A extensa bibliografia utilizada confirma que o Autor apoiou seu relato nas melhores fontes primárias disponíveis, com destaque para os expedientes diplomáticos do Arquivo Histórico do Itamaraty e para os Anais da Assembléia Nacional Constituinte, ademais de fazer apelo a escritos contemporâneos e jornais da época e a número considerável de estudos secundários (inclusive dos principais protagonistas envolvidos no debate imigratório do processo constituinte).
Estruturalmente, os temas mais importantes do estudo estão tratados no subitem sobre os trabalhos da Constituinte do terceiro capítulo, no capítulo sobre os contornos diplomáticos da crise (com destaque para a atuação do Itamaraty) e na parte final, que analisa a ação da Chancelaria brasileira nas diversas etapas do processo de elaboração constitucional, inclusive no que respeita as motivações e forma de atuação do Ministério das Relações Exteriores. O Autor fez extenso uso das comunicações diplomáticas trocadas entre Rio de Janeiro e Tóquio durante a fase aguda da "crise", tanto a nível interno da Chancelaria brasileira, como entre os dois serviços diplomáticos nacionais.
O estardalhaço provocado pelas primeiras emendas apresentadas ("É proibida a imigração africana e só consentida a asiática na proporção de 5% anualmente sobre a totalidade dos imigrantes dessa procedência...";  "Só será permitida a imigração de elementos da raça branca...") foi contornado no plano diplomático, apesar da repercussão e da polêmica na imprensa e de uma atuação nem sempre comedida por parte do Gaimusho, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão.  O veto (discreto, mas eficaz) do Itamaraty a qualquer distinção entre "raças" ou nacionalidades nas emendas restritivas da imigração apresentadas na Assembléia produziu, é bem verdade, efeitos não vislumbrados de início: descobriu-se que, ainda assim, a cota de 2% do contingente já entrado no País atingia mais os candidatos japoneses do que os europeus, com o que ficaram satisfeitos os inimigos do "perigo amarelo".  Para o Itamaraty, a questão de princípio tinha sido resolvida:  preservava-se o ingresso de imigrantes, sem qualquer discriminação, mas restringia-se o número anual em função de uma norma geral de caráter nacionalista.  Restava, é verdade, aplacar os maus humores das autoridades nipônicas, interessadas em preservar um acesso irrestrito em favor de seus nacionais.  O que foi feito nas duas capitais, não sem dificuldades.
Para o Autor, "a forma de atuação do Itamaraty ostentava perfeita coerência entre a vertente interna [iniciativas discretas junto a políticos próximos do Governo] (…) e sua complementação externa [contato permanente com a Chancelaria japonesa], sem a qual poderiam ficar a descoberto suas delicadas manobras de bastidores" (p. 162). 
Releve-se apenas, como a confirmar uma velha mania do Itamaraty, a opção preferencial pelas gestões silenciosas, com a imprensa mantida à distância, e uma aversão declarada pela "diplomacia de praça pública". Como diz o autor: a ação do Itamaraty "foi de tal modo cautelosa e de tal maneira privilegiou os canais informais que aparentemente passou indocumentada.  O corolário dessa discrição observada no plano oficial traduziu-se num comportamento igualmente silencioso perante a imprensa brasileira, à qual o Itamaraty se absteve, ao longo da crise, de fornecer informações sobre o trabalho que realizava" (p. 175).  Tal parece ser o espírito "eterno" da Casa de Rio Branco: uma intensa movimentação diplomática, dispensando as luzes dos meios de comunicação e passando pelos canais os mais discretos possíveis.
Constate-se, em todo caso, que nem sempre a opinião pública mostra-se disposta a acompanhar tal linha de atuação: no caso do debate sobre a imigração japonesa, os agitadores do "perigo amarelo" aparentemente conseguiram colocar a Nação contra o Itamaraty.  Este é provavelmente o preço a pagar por um método de trabalho (contatos internos e démarches externas) absolutamente escrupuloso e respeitador das normas geralmente aceitas entre "cavalheiros".  O certo é que, durante o que ficou caracterizado como a "crise da imigração japonesa", provavelmente mais do que em qualquer outra época de sua já longa história institucional,  o Itamaraty se viu compelido a atuar de forma tão intensa no plano político interno. 
Se a ação do Itamaraty não logrou sucesso total foi devido a duas razões principais: por um lado, o momento nacional era de clara afirmação nacionalista e de discriminação racial (um conceito atual para explicar os "ares da época") ;  por outro, o comportamento internacional do Japão, com sua agressiva política expansionista na região asiática, dificultou sobremaneira o rechaço da norma constitucional restritiva que finalmente se adotou.  Até onde pode, pelo menos, o Itamaraty conseguiu trazer a retórica parlamentar de volta ao terreno das realidades internacionais, setor onde a suscetibilidade das nações conta tanto quanto o poder econômico e político medido em termos objetivos.
O mérito principal do trabalho de Valdemar Carneiro Leão não é, contudo, o de ter mostrado que, quando preciso, o Itamaraty também é capaz de "atirar para dentro",  se ele me permite tal expressão.  Devemos lhe ser gratos, antes de mais nada, pela apreciável corvéia de ter retirado do pó dos arquivos itamaratianos uma história exemplar de "dupla ação" diplomática, no bom sentido: sincronização perfeita entre negociação externa e atuação interna. Seu texto é ainda precioso do ponto de vista metodológico: a monografia aqui resenhada condensa um trabalho original de pesquisa, constituindo-se propriamente num paradigma do gênero "história diplomática", vertente historiográfica pouco cultivada entre nós.  Como tal, ela mereceria uma divulgação mais ampla do que a habitualmente permitida pelos canais (sempre discretos, lembre-se) do Ministério das Relações Exteriores.
Louve-se, em todo caso, a iniciativa do IPRI de divulgar regularmente as melhores teses apresentadas no quadro do Curso de Altos Estudos do Itamaraty.  A Coleção Relações Internacionais já tem dez títulos publicados, mas apenas a metade desse número compõe-se de trabalhos defendidos no CAE, sendo os demais antologias de textos resultantes de seminários de estudos e outros temas de atualidade.
Curiosamente, o trabalho de Valdemar Carneiro Leão é, de todos os textos publicados (e provavelmente das teses apresentadas no CAE), o que mais longe recua no tempo, buscando no passado os fundamentos de nossa atuação diplomática contemporânea. Terminada sua viagem histórica e de "volta para o futuro", Carneiro Leão nos demonstra, de forma oportuna, a permanência das instituições e a constância dos homens: a do Itamaraty, que pouco mudou em seu estilo de atuação, e a dos constituintes, que continuam a ver no estrangeiro uma fonte potencial de ameaça à soberania nacional.
Na verdade, descontada a tão temida, mas inexistente, ameaça de dominação econômica nipônica, o único "perigo amarelo" em que incorremos nos dias de hoje é o de ver os papéis dos arquivos oficiais amarelecerem nas estantes sem que o grande público possa ter acesso a partes substanciais da memória política da Nação.  O resto é conversa de "botequim" (leia-se gabinete) diplomático.

[Montevidéu,  05.09.90]
[Relação de Trabalhos nº 196]
[Trabalhos Publicados nº  060]