CHRISTIAN CARVALHO CRUZ - O Estado de S.Paulo
Primeiro o Código Florestal, agora os royalties do
petróleo. Se continuar nesse ritmo de dois "Veta, Dilma" por ano, dizem
os engraçadinhos, vai faltar fôlego para a presidente vetar a vitória da
Argentina na Copa de 2014. Desta vez, o imbróglio começou em 6 de
novembro, quando o Congresso aprovou nova proposta de distribuição dos
tais royalties do petróleo, que são valores em dinheiro pagos à União
pelas empresas que exploram o mineral. Esses recursos são repassados a
Estados e municípios seguindo uma tabela de porcentuais que variam de
1,75% para cidades não produtoras a 26% para Estados produtores.
O projeto do Legislativo teoricamente tornaria mais equânime a
divisão em nome de um desenvolvimento regional equilibrado. Mas foi um
fuzuê nos Estados "prejudicados", notadamente o Rio de Janeiro - sua
parcela cairia de 26% para 20%. Resultado: gente inflamada na rua,
faixas, o governador Sergio Cabral dizendo que as finanças fluminenses
entrariam em colapso e botando em xeque seu apoio incondicional ao
governo federal... e mais um "Veta, Dilma" na praça.
Até a Fernanda Montenegro vestiu a camiseta do movimento para pedir
que a presidente deixasse tudo como está. Na sexta-feira, Dilma vetou a
mudança para áreas de petróleo já licitadas, mas manteve as novas regras
para os nacos do pré-sal que vierem a ser explorados. E ainda
confirmou: uma medida provisória será enviada ao Congresso determinando
que a totalidade dos royalties obtidos nos novos campos concedidos daqui
pra frente será destinada à área de educação.
O engenheiro Ildo Sauer, doutorado pelo MIT, professor titular e
atual diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, diz que
paga para ver. "Deveríamos estar discutindo um plano nacional de longo
prazo para investir o dinheiro do petróleo brasileiro na construção de
um país de verdade, e não quanto este ou aquele Estado vai receber de
royalties. Mas nem sequer sabemos o volume de petróleo no pré-sal. O
governo faz questão de não saber..." Sauer foi diretor de Gás e Energia
da Petrobrás entre 2003 e 2007, quando batizava os projetos da sua área
de "Mário Lago", "Luiz Carlos Prestes", "Celso Furtado", "Leonel
Brizola". E explicava o motivo: "Temos partido. Eu e meus companheiros
somos parte de uma história". Aquele período na estatal ele definiu como
"o das maiores esperanças", por causa dos trabalhos que levaram à
descoberta das riquezas do pré-sal, e também "o das maiores
frustrações", por ver o companheiro Lula, com assessoria da então
ministra Dilma Rousseff, ceder a interesses privados na área energética.
Nesta entrevista ao Aliás, Sauer abre a metralhadora, mas usa balas
muito bem fundamentadas para dizer que o tão aclamado modelo norueguês
de gestão de excedente do petróleo não nos serve. E que, se bobear, o
Brasil do pré-sal corre o risco de empacar em sua histórica viscosidade
burocrata, se tornando um México da época do PRI.
Descobrir um mar de petróleo no fundo do oceano traz felicidade a um país?Depende
do modelo adotado para gerir essa riqueza, de como se dará o processo
de apropriação desse recurso natural e do quadro institucional criado
para dar conta dessa nova realidade. Isso pode conduzir o tal país a um
avanço ou a um retrocesso. A Venezuela, por muitos anos, foi a grande
produtora de petróleo mundial. Depois do segundo choque, em 1979, o
petróleo venezuelano gerou grande excedente econômico - que só serviu
para tornar a aristocracia extremamente afluente e participante do jet
set internacional, deixar o país sem uma estrutura produtiva e grande
parte da população em condições subdesenvolvidas. Em outros lugares isso
aconteceu de forma ainda mais grave. O México se valeu do petróleo para
manter a hegemonia política de um agrupamento, o PRI (Partido
Revolucionário Institucional), que teve origem revolucionária e
progressivamente virou a máquina burocrática de um aparato corrupto que
usava a riqueza do petróleo para se sustentar no poder. Os exemplos de
que o acesso a recursos dessa monta levam a uma deterioração são mais
frequentes do que os que levam a uma construção positiva.
E a Noruega, sempre citada como um modelo a ser seguido?
É um paradigma que a gente não pode ignorar, mas deve considerar as
diferenças. A Noruega tem apenas 7 milhões de habitantes e já possuía
certo grau de desenvolvimento, uma sociedade estabilizada, sem as
enormes carências que nós temos, quando descobriu seu petróleo na década
de 1950. É um país muito pequeno e com um volume de petróleo bem menor
do que aquele que estamos debatendo aqui, o do pré-sal brasileiro.
Apesar disso, o petróleo norueguês gerou um excedente econômico, e com
ele foi criado um fundo do qual todo norueguês passa a ter uma cota ao
nascer. Ou seja, ao contrário do brasileiro, que nasce endividado, o
norueguês vem ao mundo no lucro. O apogeu do petróleo na Noruega, porém,
se deu antes da explosão dos preços em 2005. E aí temos um problema:
eles produziram o petróleo quando o barril não passava de US$ 30. Hoje
vale US$ 100. Mas isso não foi um grande problema, porque a Noruega
podia prescindir do petróleo para viver tranquilamente como um país de
IDH elevado. Não é o caso do Brasil. Eu não acho que esse modelo nos
sirva.
Qual nos serviria?No Brasil o fundamental,
primeiro, é saber quanto petróleo existe lá embaixo. Por ignorância, ou
por interesse de, na ausência dessa informação, poder barganhar acordos
com os vários grupos de pressão política e econômica, o governo federal
não quer saber de quanto é esse recurso. Isso é assustador. Em qualquer
lugar do mundo onde se descobre petróleo se conclui o processo
exploratório para quantificar o volume de recursos disponíveis. Se são
50 bilhões de barris mais ou menos confirmados até agora no pré-sal,
temos uma realidade importante. Por 60 anos, do monopólio ao pré
pré-sal, o Brasil descobriu 20 bilhões de barris e produziu 5 bilhões.
Tinha 15 bilhões de barris de reservas. Isso já subiu para pelo menos 50
bilhões. E pode ser mais.
Tecnicamente, o Brasil é capaz de obter essa informação?É
claro que sim. Bastariam cem poços exploratórios, que poderiam se
tornar também poços pioneiros de produção avançada, antes de colocar a
plataforma definitiva, como já está sendo feito em Tupi. Esses cem poços
custariam uns US$ 60 milhões cada um. São US$ 6 bilhões, que diante do
que se está discutindo não é nada. A ideia está na lei: o governo pode
contratar a Petrobrás, que é a melhor empresa do mundo nessa área, para
concluir o processo exploratório que ela começou. Isso iria confirmar se
temos 80 bilhões de barris, 100 bilhões, 200, 300 bilhões ou mais, como
na Arábia Saudita. Veja, a descoberta do pré-sal é fruto de uma luta
política do povo brasileiro iniciada nos anos 1940, quando se gritava
que "o petróleo é nosso" e só havia esperança. Agora que o petróleo está
confirmado como fruto dessa história, a gente se nega a querer saber
qual é o volume.
De posse dessa informação, qual seria o passo seguinte?Elaborar
um plano de produção para, a cada ano, simplesmente retirar do subsolo
marinho o volume de petróleo que gere o excedente necessário para
financiar um plano nacional de desenvolvimento econômico e social,
baseado num orçamento de longo prazo. A menos que haja um cataclismo
político na China, o preço do petróleo vai continuar nesse patamar
elevado de hoje por muitos anos. Então, o melhor modelo pra nós seria
produzir somente o volume necessário para fazer os investimentos
planejados e deixar o restante lá, valorizando. O diabo é que o Brasil
não tem planejamento. Os últimos que planejaram alguma coisa neste país
foram os militares. Mas voltando: nesse plano deveríamos calcular quanto
devemos gastar em educação pública, saúde pública, reforma urbana,
moradia, mobilidade, lazer e cultura, infraestrutura de produção,
reforma agrária, ciência, tecnologia... Fazer todo o possível para nos
colocarmos pari passu com os países avançados. E finalmente promover a
transição energética para as matrizes renováveis. Mas estamos longe
disso. Os governos Lula e Dilma, com os quais muito contribuí, só têm
cumprido papel não estratégico. Preocupam-se em mediar aquilo que já
está na mesa, a fim de atender as pressões dos grupos empresariais e os
interesses político-partidários que lhes garantem apoio no Congresso. E
voltando à questão dos modelos de gestão do excedente do petróleo, tudo
isso e mais os acontecimentos das últimas semanas me levam a acreditar
que o nosso paradigma talvez esteja mais para México do que para
Noruega.
O sr. fala da disputa pelos royalties?É
lamentável essa situação de colocar a discórdia entre os Estados,
qualificando uns como produtores e outros como não produtores. Essa
distinção não existe tecnicamente, juridicamente, nem do ponto de vista
histórico ou ambiental. A falta de liderança e visão estratégica dos
governos estaduais que se autodenominam produtores e do governo federal
são assustadoras. O conceito de royalty é antigo, significava uma
renúncia que o rei fazia de um patrimônio que, uma vez alienado por
qualquer motivo, não estaria mais disponível para seus descendentes. Em
troca, eles receberiam uma compensação. Esse conceito foi alterado para,
mais genuinamente, dizer que quando subtraímos da natureza um recurso
não renovável nós estamos impedindo que as gerações futuras se
beneficiem dele. Então, devemos recompensá-las. No Brasil, quando
tentavam privatizar a Petrobrás nos anos 1990, buscou-se no conceito de
royalties uma espécie de proteção para as regiões que seriam mais
diretamente afetadas por isso, sobretudo o Rio de Janeiro. E aí chegamos
a novembro de 2012 com o governador fluminense declarando, absurda e
irresponsavelmente, que o Estado dele não sobrevive sem os royalties. Em
primeiro lugar, ele jamais poderia contar com os royalties, porque,
quando se produz petróleo a 100 quilômetros da costa, o Estado produtor é
nenhum outro senão o Estado nacional. Ora, a descoberta se deu num
esforço nacional que originou a Petrobrás há quase 60 anos. A
Constituição diz que todos os recursos do subsolo pertencem à nação.
Depois, pleitear royalties por razões ambientais é uma falácia. Qualquer
acidente na plataforma em alto-mar terá consequência ou não segundo as
correntes marinhas e a distância em relação ao litoral. Não afetará
Estado algum necessariamente. E, no mais, os Estados que detêm bases
logísticas de produção de petróleo já são beneficiados pela imensa
atividade econômica que isso traz. Como é que um governo estadual acha
que pode ancorar o futuro da sua população num excedente de petróleo que
potencialmente é imprevisível, tanto pelo volume produzido quanto pelo
preço, que depende da conjuntura geopolítica internacional? Isso é
populismo. Induz a um sentimento de desagregação nacional.
A presidente Dilma Rousseff disse que respeitaria os contratos e acabou mantendo a divisão dos royalties como está.Bom,
ela respeita os contratos quando eles têm destinação privada. Quando
são de ordem pública, ela não tem escrúpulos de rasgá-los. Foi ela que
permitiu e endossou esse modelo inadequado de partilha que prevê a
outorga de contratos a empresas privadas, usando dinheiro do BNDES e a
reconhecida capacitação da Petrobrás, para arrancar quanto antes o
petróleo de debaixo da terra e convertê-lo em moeda. Mas em que moeda,
nessa instabilidade das economias mundiais nas últimas décadas? E fazer o
que com o dinheiro? Deixá-lo lá fora num fundo de US$ 3 trilhões sob o
comando de um conselho gestor operado a partir da base partidária que
tem dado notórias demonstrações de incapacidade de fazer qualquer coisa
em nome do Estado e da nação? Tudo indica que nas próximas décadas o
valor do petróleo debaixo da terra, reservas asseguradas e medidas, vai
se valorizar muito mais do que qualquer investimento, sem os riscos que
eles naturalmente têm. Então vamos fazer o quê? Tirar nosso petróleo
daqui, vendê-lo em dólar para depois comprar da Nigéria? É isso?! Essa é
a questão estratégica que se coloca. Estou assustado com o que vejo. O
debate é pobre por falta de conhecimento, o que torna os dirigentes
nacionais uns ingênuos ou irresponsáveis. E a presidente da República
ainda quer se colocar como mediadora num falso embate fratricida que
fragmenta o País! A liderança dela tem-se revelado ineficaz e fraca. Não
teve espírito de estadista capaz de apontar o futuro, reconhecer o
papel geopolítico e estratégico que o Brasil pode ocupar no mundo e, a
partir daí, construir uma alternativa que una os brasileiros e mude a
nossa realidade. E eu não vejo nela nem traço de preocupação com isso.
O sr. está dizendo que Dilma não entende do setor energético?Estou
dizendo que ela não tem credibilidade para ser a líder de um debate tão
importante quanto esse do pré-sal. Um país cheio de assimetrias sociais
e econômicas deveria mobilizar esses recursos do petróleo para melhorar
as condições gerais da população. Isso é patrimônio e riqueza das
gerações brasileiras futuras. Não é nem desta nossa geração. Nós somos
beneficiários da construção feita por gerações que nos precederam.
Estamos tomando a decisão sobre o que fazer com isso. Causa perplexidade
o nível elementar dos conceitos debatidos por aí. Estamos falando de
quê? Cinco por cento dos royalties convencionais, que podem chegar a
15%? O que deveria estar em debate é o que fazer com todo o excedente.
Simplificando: se o petróleo vale US$ 100 o barril e se gasta US$ 10
para produzi-lo, tirando os US$ 15 dos royalties ainda sobram US$ 75. O
que vamos fazer com esses US$ 75 de cada um dos 100 bilhões de barris
que podemos ter? Em vez de tratar dessa questão crucial, estamos
preocupados com 5% do Rio de Janeiro. Isso me deixa perplexo.
E quanto à segurança nacional? Devemos nos preocupar?O
entusiasmo inicial gerado pelo pré-sal não foi seguido de ações e
planejamento sobre segurança nacional e ambiental. A China disputa cada
palmo de recurso disponível na África, na América e na Ásia em termos de
petróleo e de espaço para produzir alimentos. Os EUA construíram a
conflagração que vemos no Oriente Médio e parece nunca ter solução. As
crises, guerras, definição de limites nacionais ali são derivados da
disputa pelo excedente do petróleo. A invasão do Iraque não foi nada
mais que primatas do Texas tentando alcançar riqueza fácil e rápida.
Ameaças ao Irã, a invasão da Líbia. Tudo isso faz parte do quiproquó
geopolítico em que os americanos estão metidos até o pescoço. O
Atlântico Sul é objeto de patrulha da 4ª Frota americana, recriada e
agora com sede em Miami. Ela certamente não foi recriada por causa do
Paraguai ou da Bolívia, nem dos países da África. Ela foi recriada
talvez porque os EUA não reconheçam a soberania do Brasil sobre a zona
econômica onde estão os maiores e mais importantes recursos do pré-sal.
Há motivo, sim, para termos cautela.