O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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sábado, 19 de junho de 2021

Ideologia de genero; o “sovietismo” voluntário das academias ocidentais - The Economist

 Carta de um leitor a propósito de matéria na Economist sobre o “debate” que ocorre em universidades ocidentais em torno dessa coisa chamada de “ideologia de gênero”:

“ I was born and raised in the USSR. Each university had departments of “scientific communism”, “dialectic materialism” and “history of the communist party”. Each student had to take those courses, from a pianist to a mathematician. The key difference is that nobody in the USSR seriously thought that communism was “scientific”. Everybody made fun of it, professors from those departments were the least respected, and actually most of them understood that their teachings were garbage. It was a religion, forcefully imposed by the totalitarian state. In today’s America universities have almost the same departments, but it’s voluntary. So sad.”

Essa coisa já chegou no Brasil. Creio que deve ocupar o lugar da astrologia…

Paulo Roberto de Almeida 

Let’s talk about sex
A backlash against gender ideology is starting in universities

Academics are speaking up against the stifling of debate

The Economist, June 5, 2021

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira: finalmente terminado - Paulo Roberto de Almeida

 Tendo finalizado o livro algumas horas antes que o pior chanceler da história da diplomacia brasileira apresentasse, finalmente, sua carta de demissão, acabo de encaminhar uma nota liminar explicando como ele foi feito, cujo texto transcrevo abaixo, em seguida ao índice: 



Apogeu e demolição da política externa

 itinerários da diplomacia brasileira 

(Curitiba: Editora Appris, 2021)



Diplomatie

Belle carrière (mais hérissée de difficultés, pleine de mystères). Ne convient qu’aux gens nobles. Métier d’une vague signification, mais au-dessus du commun. Un diplomate est toujours fin et pénétrant.


Gustave Flaubert: 

Dictionnaire des Idées Reçues 

(Paris: Éditions Conard, 1913)

  

 

Para o Brasil, esta é a hora do domínio das trevas. O Brasil nos dói, faz sofrer nosso coração de brasileiros. Também em nosso caso, a primeira atitude terá de ser a vergonha das coisas presentes como condição para despertar o espírito da nação. Reformar e purificar as instituições políticas, reaprender a crescer para poder suprimir a miséria e reduzir a desigualdade e a injustiça, integrar os excluídos, humanizar a vida social. Ao longo de todo este livro, tentou-se jamais separar a narrativa da evolução da política externa da História com maiúscula, envolvente e global, política, social, econômica. A diplomacia em geral fez sua parte e até não se saiu mal em comparação a alguns outros setores. Chegou-se, porém, ao ponto extremo em que não mais é possível que um setor possa continuar a construir, se outros elementos mais poderosos, como o sistema político, comprazem-se em demolir. A partir de agora, mais ainda que no passado, a construção do Brasil terá de ser integral, e a contribuição da diplomacia na edificação dependerá da regeneração do todo.

 

Rubens Ricupero:

A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016

(Rio de Janeiro: Versal, 2017, p. 738-9)

 

 

Esta obra é dedicada a Carmen Lícia Palazzo, com quem tenho desenvolvido várias décadas de feliz e profícua atividade intelectual, ela muito maior leitora,

pensadora e escritora do que este modesto escrevinhador.

Ela também traz a marca da felicidade com que fui contemplado ao ver dois filhos ativos e realizados, Pedro Paulo e Maíra, sendo que esta já nos presenteou com três belos netos: Gabriel, Rafael e Yasmin.


 

Índice

 

Nota liminar 

 

Uma história sincera do Itamaraty?

 

1. Relações internacionais do Brasil: uma síntese historiográfica

1.1. A historiografia: uma quase esquecida na história das ideias

1.2. A historiografia brasileira das relações exteriores: principais historiadores

1.3. Varnhagen, o pai da historiografia, o legitimista da corte

1.4. João Ribeiro inaugura a era dos manuais de história do Brasil

1.5. Oliveira Lima: o maior dos historiadores diplomatas

1.6. Pandiá Calógeras: o início da sistematização da história diplomática

1.7. Interregno diversificado: trabalhos da primeira metade do século XX

1.8. Os manuais didáticos de história diplomática: Vianna, Delgado e Rodrigues

1.9. O ideal desenvolvimentista: Amado Cervo e Clodoaldo Bueno

1.10. A diplomacia na construção da nação: Rubens Ricupero

1.11. A historiografia brasileira das relações internacionais: questões pendentes

 

2. As relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica

2.1. Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil

2.2. Etapas das relações internacionais do Brasil

       2.2.1. O Império: a construção da nação e as bases da diplomacia

       2.2.2. A Velha República: os mitos e as deficiências da política externa

       2.2.3. A era Vargas: escolhas estratégicas, a despeito de tudo

       2.2.4. O regime militar: consolidação do corporatismo diplomático

2.3. A redemocratização e as relações exteriores do Brasil

       2.3.1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo

       2.3.2. A restauração constitucional e os erros econômicos

       2.3.3. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento neoliberal

       2.3.4. Estabilização macroeconômica e nova presença internacional

       2.3.5. A primeira era do Nunca Antes: a diplomacia personalista de Lula

       2.3.6. Uma transição pouco convencional: retornando a padrões anteriores

       2.3.7. Uma segunda era do Nunca Antes: a diplomacia bizarra de Bolsonaro

2.4. O que concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória histórica?

2.5. Nota final: reformas internas e inserção na globalização

 

3. Processos decisórios na história da política externa brasileira

3.1. O que define um processo decisório: observações preliminares

3.2. A diplomacia brasileira como instituição

3.3. A estrutura orgânica da diplomacia brasileira

3.4. Os processos decisórios na diplomacia brasileira

3.5. Virtudes e defeitos do processo decisório na diplomacia lulopetista

3.6. A degradação da cadeia de decisão no governo Bolsonaro

3.7. Conclusões: como funciona, como talvez devesse funcionar...

 

4. A política da política externa: as várias diplomacias presidenciais

4.1. Participação dos presidentes em política externa: da omissão ao ativismo

4.2. O início da liderança presidencial em política externa: a era Vargas

4.3. JK e o desenvolvimentismo: a caminho da política externa independente

4.4. O regime militar: tudo pelo “Brasil Grande Potência”

4.5. Redemocratização: crise externa e integração regional

4.6. Os anos FHC: enfim, uma diplomacia presidencial

4.7. Os anos Lula: o ativismo como norma, o personalismo como finalidade

4.8. A tímida diplomacia presidencial de Michel Temer

4.9. A antidiplomacia de Bolsonaro e dos assessores aloprados: afundamento

4.10. Conclusões: caminhos erráticos da diplomacia presidencial brasileira

 

5. O outro lado da glória: o reverso da medalha da diplomacia brasileira

5.1. Tropeços na independência e durante o império

5.2. Os fracassos da primeira diplomacia republicana

5.3. A difícil construção de uma diplomacia autônoma, e consciente de sê-la

5.4. A diplomacia profissional, como base da diplomacia presidencial

5.5. A deformação da política externa sob a diplomacia bolsolavista

 

6. Um exercício de planejamento estratégico para a diplomacia 

Introdução: demolição e reconstrução da diplomacia brasileira

6.1. A política externa e a diplomacia no desenvolvimento nacional

6.1.1. Etapas percorridas em 200 anos de história institucional

6.1.2. Os desafios: uma matriz dos recursos e das debilidades nacionais

6.2. Campos de atuação da diplomacia e da política externa 

6.2.1. Multilateralismo, regionalismo e bilateralismo como instrumentos

6.2.2. A política externa multilateral: interfaces políticas e econômicas

6.2.3. A geografia política e a geoeconomia global das relações exteriores

6.2.4. América do Sul: eixo de um espaço econômico integrado

6.2.5. O multilateralismo econômico: eixo da inserção global do país

6.2.6. Ambientalismo e sustentabilidade: eixos dos padrões produtivos
6.2.7. Direitos humanos e democracia: eixos da proposta ética do país

6.2.8. Blocos e alianças estratégicas na matriz externa

6.2.9. Relações com parceiros bilaterais e regionais

6.2.10. Vantagens comparativas e exploração de novas possibilidades

6.2.11. Integração política externa e políticas de desenvolvimento

6.3. O Itamaraty como força motriz da inserção global do Brasil

6.3.1. Gestão da Casa, com base nas melhores práticas da governança

6.3.2. Responsabilização, abertura e transparência nas funções

6.3.3. Capital humano de alta qualidade: base de uma diplomacia eficaz

6.4. Planejamento estratégico como prática contínua da diplomacia 

 

Bibliografia e referências

Nota sobre o autor

Livros do autor 



Nota Liminar ao livro 

Apogeu e Demolição da Política Externa

  

Paulo Roberto de Almeida 

 

            Este livro encontrava-se basicamente terminado, revisto e preparado para publicação – embora numa versão bem mais volumosa do que a desta edição – pouco tempo após a vitória do candidato democrata Joe Biden, nas eleições presidenciais americanas de novembro de 2020. Nos primeiros dias de dezembro, redigi um primeiro rascunho de Introdução, que figura após esta nota liminar, com exatamente o mesmo título – Uma história sincera do Itamaraty? –, mas com um texto ligeiramente diferente, uma vez que o índice original comportava tanto ensaios de natureza mais conceitual, abordando fases anteriores da política externa brasileira (preservados neste volume), quanto artigos de cunho mais conjuntural, tratando das desventuras da diplomacia profissional sob o chamado bolsolavismo. O conteúdo daquele volume, preparado numa fase que se imaginava de grandes mudanças no contexto hemisférico e nacional, refletia a decisão de oferecer uma análise sintética de um período mais largo da política externa e da diplomacia brasileira (as três décadas precedentes aqui enfeixadas sob o conceito de “Apogeu”), tanto quanto o desejo de compilar notas e comentários de ocasião, elaborados no segundo semestre de 2020, que estavam mais focados nos desenvolvimentos conjunturais do bolsolavismo diplomático (isto é, a “Demolição” da política externa e os ataques à diplomacia profissional).

Depois de concluir o conjunto, naquele início de dezembro, hesitei, contudo, em encaminhar o manuscrito para a editora, pois pretendia que minha “derradeira” obra dedicada ao ciclo bolsolavista pudesse apontar o encerramento efetivo desse nefasto período em nossa história diplomática, ainda que também trazendo, no volume completo, a trajetória da diplomacia brasileira nas três décadas precedentes. A hesitação também se devia à possibilidade, sempre esperada – e até ansiada pela quase totalidade dos diplomatas profissionais –, de mudança na chefia do Itamaraty a partir da vitória de Biden em novembro, e sobretudo depois de sua posse como presidente, em janeiro de 2021, dado o notório comprometimento das chefias anteriores, do Brasil e do Itamaraty, com o candidato à reeleição que acabara de ser derrotado (ainda que continuando a contestar a aferição dos resultados em diversos colégios eleitorais estaduais até o último minuto da certificação pelo Congresso).

O manuscrito ficou, então, dormitando numa das pastas de trabalhos não terminados de meu computador, aguardando o tal desenlace que não vinha: passou dezembro, passou janeiro, entrou fevereiro, e nada. Dada a aparente “solidez” daquele que eu sempre chamei de chanceler acidental, decidi dar por encerrada a espera de uma aparentemente improvável demissão e de proceder, portanto, à publicação do livro. No entanto, inclusive por razões de suas dimensões já algo avantajadas, resolvi dividir o volume – então constante de duas partes, uma primeira, de natureza histórica-conceitual, chamada justamente de História, e a segunda, conjuntural, chamada Atualidade – em duas obras distintas, cada uma dedicada a essas partes. Os interessados em conhecer a estrutura original do livro, podem consultar o seu índice, tal como composto em 26 de março, colocado numa postagem dessa data em meu blog Diplomatizzando.

A de natureza conjuntural foi então consolidada num pequeno volume digital, cujo título, inicialmente colocado sob a égide do “Itamaraty sob ataque”, foi modificado de conformidade a sugestão do colega de carreira, e escritor prolífico, Miguel Gustavo de Paiva Torres, assumindo então esta identidade: O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo2018-2021. Ela hoje se encontra disponível em formato Kindle, distribuído no sistema da Amazon (dotado, portanto, de ASIN, mas também de ISBN). Convido os leitores interessados nas desventuras finais do bolsolavismo no Itamaraty a percorrem o índice e o prefácio dessa obra no meu blog Diplomatizzando. Os livros precedentes do ciclo do bolsolavismo diplomático também podem ser acessados no mesmo quilombo de resistência intelectual.

A introdução ao presente volume finalmente publicado reflete, portanto, o “estado da arte” na madrugada do dia 29 de março de 2021, poucas horas antes demissão do chanceler acidental, que não foi exatamente uma surpresa, mas cuja factibilidade se chocava com o apoio irredutível do presidente, como também ocorria com seu colega do Meio Ambiente, o grande responsável, junto com o preposto do Itamaraty, pela péssima imagem do Brasil no exterior. Desconfiando que a mesma teimosia presidencial o manteria no cargo, contra “ventos e marés”, decidi, pois, remeter o novo manuscrito, já limitado à parte conceitual, à Editora Appris. Ao proceder a esta divisão mais racional, não me pareceu que caberia fazer, por dispensáveis, as poucas mudanças de tempos de verbos ou de atualização de datas nos argumentos e comentários relativos ao período bolsolavista da política externa e da diplomacia brasileira; considero que eles se situam num continuum histórico perfeitamente integrados à análise desenvolvida em torno das três últimas décadas das relações internacionais do Brasil, isto é, o “apogeu”, desde a redemocratização até o ano de 2018, quando, como resultado da vitória do primeiro candidato declaradamente de extrema-direita no Brasil, desembocamos na triste fase de “demolição” de ambas, agora parcialmente corrigida, mas apenas na parte da ferramenta diplomática, com o início de uma nova gestão, profissional, no Itamaraty, a partir de 6 de abril de 2021. 

Este livro é mais uma contribuição didática, como são quase todas as minhas obras anteriores, pensada prioritariamente na perspectiva dos estudantes de relações internacionais, dos candidatos à carreira – embora muitas de minhas análises não coincidam com as da diplomacia oficial –, assim como na dos próprios pesquisadores, eventualmente capturados pelo discurso oficial ou por algumas das outras versões correntes nessa área, tendentes a refletir preferências partidárias ou inclinações ideológicas bastante conhecidas nos embates entre movimentos tidos por progressistas ou acusados de “neoliberais”. Se ouso proclamar pelo menos uma de minhas poucas virtudes na área acadêmica, esta seria o ecletismo intelectual, combinado a uma postura racionalista que chamo de ceticismo sadio, ou seja, a de nunca me conformar com a aceitação daquilo que Bouvard e Pécuchet, no célebre dicionário de Gustave Flaubert, poderiam chamar de idées reçues, ou verdades estabelecidas. As minhas não são, justamente, estabelecidas, mas tentativamente construídas ao cabo de um longo processo de leituras, pesquisas, perquirições em torno das realidades existentes e sua confrontação com teorias e teses oferecidas pelas mais diversas escolas de historiadores, economistas, cientistas políticos e outros trabalhadores acadêmicos. 

A carreira diplomática ofereceu-me a excelente oportunidade, que nunca recusei, de combinar o trabalho prático nas frentes negociadoras multilaterais e na representação bilateral com as lides docentes e de pesquisa em arquivos do passado e em gabinetes de atividade corrente. Sou muito reconhecido ao Itamaraty, por me ter aberto janelas conectadas ao mundo, além de vários outros estímulos à reflexão sobre nações e economias, que estão justamente na origem de muitas de minhas obras, certamente dos ensaios de pesquisa, de muitos artigos de conjuntura e de todos os livros acumulados em meio século de aventuras intelectuais. O trabalho de análise de nosso itinerário de dois séculos de diplomacia profissional ainda não está terminado, e a ele, assim como ao percurso do desenvolvimento nacional, pretendo dedicar os próximos anos de labor individual, talvez até oferecendo a promessa do título do prefácio, uma história sincera do Itamaraty. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 18 de agosto de 2021


 Contracapa, ou quarta capa:



 



Orelha: 




Existe algum risco de golpe militar no Brasil? Não, embora o capitão gostaria que ocorresse - Paulo Roberto de Almeida

 Existe algum risco de golpe de Estado por militares no Brasil? Não, mas o capitão está preparando algum. Não conseguirá...

Paulo Roberto de Almeida

Não veja riscos imediatos de o Brasil resvalar para um governo autocrático, ou seja, uma ditadura aberta, em moldes tradicionais; o próprio regime militar, na sua longa duração de duas décadas, se encarregou de “vacinar” o Brasil contra novas incidências desse tipo. Mas é um fato que os últimos dois anos e meio de um desgoverno medíocre e caótico redundaram numa deterioração sensível de muitas das instituições de Estado, bem como da qualidade das políticas públicas de governo. Não existe nenhuma dúvida que o personagem nefasto que ocupa a cadeira presidencial gostaria de se ver dotado ou investido de poderes que a Constituição lhe veda, ou de exercer algum controle sobre as duas outras instituições de Estado, e suas agências especializadas. Entre estas, também é notório que as FFAA, de modo geral, mas o Exército em particular, se envolveram ou se deixaram envolver numa ação de apoio político (e até logístico, quando não eleitoral) que redundaram nessa deterioração institucional que já é evidente e perigosa. 

Os militares, em geral, e determinados setores em particular, atuaram em total contradição com os requerimentos de uma situação em completo descalabro financeiro, buscando e obtendo vantagens corporativas e pessoais que estão em nítido descompasso com o presente estado econômico do país e das contas públicas. O mais surpreendente é, justamente, a subserviência demonstrada em diversos episódios constrangedores aos olhos da opinião pública, quando não da ética e da moralidade política. Esse rebaixamento de padrões já se manifestou em pesquisas de opinião registrando a nítida diminuição e deterioração da imagem geralmente positiva que as FFAA tinham conquistado três décadas depois do final da ditadura militar, da qual elas saíram bastante chamuscadas em seu prestígio e imagem pública, quando não em sua qualidade técnica a serviço da nação. 

Assim como o presente desgoverno não tem precedentes em toda a história do país, não existem registros comparáveis quanto à imagem pública das FFAA, salvo em momentos de comoção política mais forte: revoltas tenentistas do início do século XX, golpe do Estado Novo e implantação de uma feroz ditadura, novamente golpe militar em 1964, com episódios sombrios que mancharam a honra e a reputação das Forças e de seus integrantes – envolvidos em casos de torturas, assassinatos, desaparecimentos, arbítrio e violência, atos de crueldade e de desumanidade raramente vistos em nossa história – e inclusive colocaram certos setores das FFAA numa situação de rompimento com o Estado de Direito e com preceitos claros de natureza constitucional. 

Mas, todos os episódios anteriores tinham um claro contexto de conflitos no próprio tecido social e no sistema político nacional. Atualmente, temos o primeiro exemplo histórico, e espera-se o único e derradeiro, no qual a própria chefia do governo e do Estado se apresenta como o fator de ruptura na normalidade democrática e da quebra de padrões institucionais, sem a conivência das FFAA, mas tampouco com uma atitude de distanciamento crítico que seria de se esperar de comandantes comprometidos com a manutenção de um ambiente de plena vigência do Estado de Direito: as ameaças atuais parte do chefe de Estado e comandante das FFAA, que invoca abusivamente o apoio de que supostamente dispõe nas corporações de defesa e de segurança do país, inclusive com sérias ameaças de quebra de disciplina e de hierarquia. Por algo menos do que isso, os militares se insurgiram em 1963-64, resultando no golpe militar que dividiu o país por mais de duas décadas. O país volta a estar dividido atualmente, e um pouco da responsabilidade incumbe claramente às FFAA. 

Não vejo, portanto, riscos imediatos de o Brasil resvalar para um governo autocrático, ou seja, uma ditadura aberta, em moldes tradicionais; o próprio regime militar, na sua longa duração de duas décadas, se encarregou de “vacinar” o Brasil contra novas incidências desse tipo. Mas é um fato que os últimos dois anos e meio de um desgoverno medíocre e caótico redundaram numa deterioração sensível de muitas das instituições de Estado, bem como da qualidade das políticas públicas de governo. Não existe nenhuma dúvida que o personagem nefasto que ocupa a cadeira presidencial gostaria de se ver dotado ou investido de poderes que a Constituição lhe veda, ou de exercer algum controle sobre as duas outras instituições de Estado, e suas agências especializadas. Entre estas, também é notório que as FFAA, de modo geral, mas o Exército em particular, se envolveram ou se deixaram envolver numa ação de apoio político (e até logístico, quando não eleitoral) que redundaram nessa deterioração institucional que já é evidente e perigosa. 

Os militares, em geral, e determinados setores em particular, atuaram em total contradição com os requerimentos de uma situação em completo descalabro financeiro, buscando e obtendo vantagens corporativas e pessoais que estão em nítido descompasso com o presente estado econômico do país e das contas públicas. O mais surpreendente é, justamente, a subserviência demonstrada em diversos episódios constrangedores aos olhos da opinião pública, quando não da ética e da moralidade política. Esse rebaixamento de padrões já se manifestou em pesquisas de opinião registrando a nítida diminuição e deterioração da imagem geralmente positiva que as FFAA tinham conquistado três décadas depois do final da ditadura militar, da qual elas saíram bastante chamuscadas em seu prestígio e imagem pública, quando não em sua qualidade técnica a serviço da nação. 

Assim como o presente desgoverno não tem precedentes em toda a história do país, não existem registros comparáveis quanto à imagem pública das FFAA, salvo em momentos de comoção política mais forte: revoltas tenentistas do início do século XX, golpe do Estado Novo e implantação de uma feroz ditadura, novamente golpe militar em 1964, com episódios sombrios que mancharam a honra e a reputação das Forças e de seus integrantes – envolvidos em casos de torturas, assassinatos, desaparecimentos, arbítrio e violência, atos de crueldade e de desumanidade raramente vistos em nossa história – e inclusive colocaram certos setores das FFAA numa situação de rompimento com o Estado de Direito e com preceitos claros de natureza constitucional. 

Mas, todos os episódios anteriores tinham um claro contexto de conflitos no próprio tecido social e no sistema político nacional. Atualmente, temos o primeiro exemplo histórico, e espera-se o único e derradeiro, no qual a própria chefia do governo e do Estado se apresenta como o fator de ruptura na normalidade democrática e da quebra de padrões institucionais, sem a conivência das FFAA, mas tampouco com uma atitude de distanciamento crítico que seria de se esperar de comandantes comprometidos com a manutenção de um ambiente de plena vigência do Estado de Direito: as ameaças atuais parte do chefe de Estado e comandante das FFAA, que invoca abusivamente o apoio de que supostamente dispõe nas corporações de defesa e de segurança do país, inclusive com sérias ameaças de quebra de disciplina e de hierarquia. Por algo menos do que isso, os militares se insurgiram em 1963-64, resultando no golpe militar que dividiu o país por mais de duas décadas. O país volta a estar dividido atualmente, e um pouco da responsabilidade incumbe claramente às FFAA. 


Brasília, 18/06/2021

113 anos da imigração japonesa, os nipo-brasileiros - Milena Castro (G1-DF, O Globo)

 Nos 113 anos da imigração japonesa, nipo-brasileiros que moram no DF falam sobre respeito e amor às raízes


Data é celebrada nesta sexta-feira (18). Conheça Takashi Yamanishi, 27 anos, que aos 10 'descobriu' que era brasileiro: 'Meu mundo caiu', diz. Já servidor público de 70 anos reconta chegada de familiares ao Brasil.

Por Milena Castro*, G1 DF
O Globo, 18/06/2021 06h35  Atualizado há uma hora

O orgulho de ser brasileiro e, ao mesmo tempo, o amor e respeito pelas raízes são parte da formação das identidades de dois nipo-brasileiros – descendentes de japoneses – que moram no Distrito Federal. Apesar da diferença de 43 anos entre eles, em comum, carregam os valores e traços culturais do Japão, mas a nacionalidade e o endereço do Brasil.

Nos primeiros anos da infância, o jovem sansei Takashi Yamanishi – neto de japoneses, hoje, com 27 anos – achava que era japonês e, não, brasileiro. Por causa disso, precisou aprender a criar vínculos com o país latino. Já o servidor público Waldemar Hiroshi Umeda, de 70 anos, cresceu sabendo que era filho de imigrantes e que precisava honrar o nome da família na terra estrangeira.

Takashi e Waldemar fazem parte dos mais de dois milhões de japoneses e descendentes que vivem no Brasil. Esse número é uma estimativa feita pela Embaixada do Japão no país. A representação reconhece no país "a maior comunidade nikkei (nome dado aos descendentes e japoneses que moram no exterior) fora do país asiático".

No aniversário de 113 anos do Dia da Imigração Japonesa, celebrado nesta sexta-feira (18), o G1 conta a história de descobertas na vida desses dois nipo-brasileiros. A data marca a chegada do navio Kasato-Maru que, em 1908, atracou na costa brasileira trazendo a bordo os primeiros imigrantes japoneses para trabalhar nas lavouras do país.

Takashi Yamanishi, 27 anos, é estudante de biologia na Universidade de Brasília (UnB) e faz parte da terceira geração de descendentes japoneses. O pai e a mãe dele – ambos filhos de imigrantes – mantiveram presente, na criação do filho, o idioma, a cultura e a culinária do Japão.

O jovem nasceu no Japão. A família estava no continente asiático para que o pai, brasileiro, concluísse o doutorado. Foi quando a mãe de Takashi engravidou. "Vim para cá [Brasil] quando era bem bebê. Só fui fabricado lá", brinca o jovem.

Como nenhum dos pais tinha a nacionalidade japonesa, o recém-nascido foi registrado como brasileiro. Apesar disso, ele lembra que até os cinco anos falava apenas a língua da terra natal dos avós. A imersão na cultura japonesa era tão grande que Takashi achou que era japonês e não brasileiro.

"Até que o meu mundo caiu quando recebi o RG aos 10 anos."

"Era lógico pensar que era japonês. Eu não falava o português tão bem. Só comia comida japonesa, inclusive arroz e feijão não fazem parte da minha rotina. Em relação à cultura e em termos de disciplina, de como se comportar, era voltada para o lado japonês", explica.

Nipo-brasileiro
Na hora de "reconstruir o mundo", Takashi inseriu a identidade brasileira como parte dessa estrutura. O português ganhou espaço no dia a dia e até mesmo o famoso "jeito amigável" característico de quem mora no Brasil passou a fazer parte da personalidade do jovem.

"Fui entendendo melhor sobre a minha identidade japonesa. Vi que era nipo-brasileiro, ou seja, brasileiro com ascendência japonesa, que é uma das identidades que compõem o que eu sou: um lado japonês e outro brasileiro."

Já adulto, Takashi trabalhou por alguns anos como professor voluntário em cursinhos gratuitos e, graças à experiência, descobriu a vocação para ser educador. Como forma de unir a cultura e o amor pela sala de aula, o jovem passou a ensinar japonês em uma escola de idiomas de Brasília.

Na trajetória, acumula ainda a experiência no cargo de presidente da Associação Brasiliense de Ex-Bolsistas Brasil-Japão (ABRAEX), de 2017 a 2020, e mais duas viagens ao Japão relacionadas ao trabalho no ensino do idioma e da cultura japonesa.

Segundo Takashi, a visita ao país asiático mostrou que, mesmo conhecendo bem as raízes, se "sentia um estrangeiro lá".

"Apesar de falar o idioma e entender a cultura, eu tinha umas questões que era fundamentalmente diferentes, como o modo de me comportar. Somos mais amigáveis aqui no Brasil. Lá, a sociedade é mais rigorosa, não tem tanto contato social, e a gente sente uma barreira cultural quando estamos com eles", disse.

Outro morador do DF que também já visitou o Japão é o servidor público Waldemar Hiroshi Umeda, de 70 anos. Ele conta ao G1 que quando esteve no país asiático, relembrou de todas as histórias que ouviu a respeito da imigração dos pais para o Brasil, em 1932.

Após 58 dias de viagem, um navio vindo do Japão atracou no porto de Santos (SP) trazendo seis membros da família Umeda, em busca de uma vida mais próspera no país da América Latina. Após a chegada, o governo local mandou os imigrantes para uma cidade no interior de São Paulo, onde recomeçaram a vida.

No Brasil, o pai de Waldemar conheceu outra imigrante japonesa com quem se casou e teve sete filhos. A família vivia da agricultura até que o pai do servidor público faliu, por causa de uma seca que atingiu a região. O novo destino dos nikkeis foi Brasília. Eles chegaram na capital federal em 1971.

Segundo Waldemar, a partir daquele momento "cada um dos filhos dos imigrantes seguiu seu destino". Na época, o brasiliense tinha 20 anos, e a decisão dele foi ingressar na UnB e, depois, iniciar a carreira como servidor público.

"Ele [o pai] e minha mãe não retornaram ao Japão. Ambos falavam muito das origens deles, mas sempre lembravam que o Brasil é um país próspero. Ele [meu pai] dizia: 'Filho, você não pode esquecer que é descendente de japonês, mesmo sendo cidadão brasileiro. Trabalhe no Brasil sem esquecer das raízes' ”, relembra.

Nome da família
O servidor público conta que, ainda hoje, lembra dos conselhos do pai, que costumava falar sobre a importância de preservar o nome da família. "Dizia sempre: 'procure honrar o sobrenome Umeda, porque se você fizer qualquer bobagem estará sujando o nome também dos seus antepassados' ".

Considerando os conselhos, em paralelo às obrigações do trabalho, Waldemar conciliava a rotina com a vivência da cultura da japonesa, o que resultou em quase 20 anos como membro da Associação Cultural Esportiva e Recreativa Nipo-Brasileira do Distrito Federal – Nikkey.

Foram tantos anos de dedicação e atividades para promover um intercâmbio entre Brasil e Japão que, em 2019, o morador do DF recebeu a comenda "Ordem do Sol Nascente, Raios de Ouro e de Prata". O título foi dado em reconhecimento pela liderança na comunidade nipo-brasileira em Brasília ao longo dos anos.

"Quando recebi a comenda, eu agradeci muito ao meu pai. Eu senti que ele cumpriu a missão de orientar os filhos", afirma. Para o nikkei do DF, ser nipo-brasileiro é uma mistura entre o "orgulho de ser brasileiro e de ser descendente de japoneses".

https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/06/18/nos-113-anos-da-imigracao-japonesa-nipo-brasileiros-que-moram-no-df-falam-sobre-respeito-e-amor-as-raizes.ghtml

Revolta de pastores e bispos da Igreja Universal na África do Sul contra a IURD; Crivella embaixador? - Gilberto Nascimento (Intercept)

Excelente matéria do Gilberto Nascimento para The Intercept: 


EX-PASTORES E BISPOS ORGANIZAM REVOLTA CONTRA IGREJA UNIVERSAL NA ÁFRICA DO SUL – PARA ONDE BOLSONARO QUER NOMEAR CRIVELLA

Racismo e imposição de vasectomia estão entre as denúncias encaminhadas ao governo sul-africano contra a igreja de Edir Macedo.

Gilberto Nascimento


The Intercept, 17 de Junho de 2021, 16h02

 

O REINO DE EDIR MACEDO começa a ruir. Ao menos na África. Depois de enfrentar um terremoto em Angola – com a perda do controle de sua igreja, pastores brasileiros expulsos, Record TV local suspensa e dirigentes acusados de lavagem de dinheiro e associação criminosa –, o bispo brasileiro, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, se depara agora com problemas semelhantes na África do Sul.

É justamente para lá que o governo Bolsonaro indicou o bispo e ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, para o cargo de embaixador.

Bispos e pastores locais começaram a se rebelar contra a direção brasileira da igreja no início deste ano, e a revolta ganhou corpo nas últimas semanas. Além de organizarem um protesto, dissidentes acusam a ala brasileira de supostos crimes como lavagem de dinheiro, racismo e imposição de vasectomia aos pastores – um roteiro parecido com o de Angola.

“Os atuais pastores e suas esposas estão se revoltando contra o racismo, as injustiças, a lavagem de dinheiro e os privilégios na igreja”, me disse o ex-pastor sul-africano Luthando Jumba, um dos líderes do movimento. Ele tem se posicionado nas redes sociais contra a liderança brasileira da Universal.

As denúncias na África do Sul estão sendo encaminhadas à Comissão para a Promoção e Proteção dos Direitos das Comunidades Culturais, Religiosas e Linguísticas, órgão do governo local. Em fevereiro e março, o órgão recebeu queixas e colheu depoimentos de religiosos e familiares de pastores. Houve relatos de esterilizações forçadas, humilhações, maus-tratos e até supostos rituais satânicos, segundo noticiou a imprensa sul-africana.

Para defender os interesses de religiosos e ex-membros da Universal na África do Sul, os dissidentes se organizaram e criaram a Vision Trust Foundation. “Temos bispos, pastores, esposas de pastores e auxiliares. Os pastores estão falando conosco, mas não podem fazer isso publicamente ainda”, diz Jumba. Essa cautela se deve ao receio de represálias.

Em 16 de junho, quarta-feira, 16, um grupo de pastores e ex-pastores, obreiros e fiéis realizaram uma manifestação em frente à sede da Universal, em Joanesburgo. Os manifestantes pediram autorização oficial ao Departamento de Polícia Metropolitana para o ato, mas, na véspera, o evento acabou sendo proibido. Ainda assim, foi realizado.

Participaram cerca de 100 pessoas, segundo Jumba. O ato não reuniu mais religiosos, de acordo com o ex-pastor, em virtude de o país estar em lockdown parcial por causa da pandemia do coronavírus. Os manifestantes distribuíram um manifesto pedindo liberdade de expressão na igreja, o fim das campanhas de arrecadação, o fim do racismo e a saída do país de bispos racistas, não à vasectomia, fim do controle sobre as redes sociais dos pastores e construção de escolas e clínicas pela igreja.

‘A África acordou’

Jumba contou ter entrado na Universal em 1997 e exercido a função de pastor por 12 anos e meio, chegando a ser o segundo responsável na sede central, em Joanesburgo. Afirmou ter saído da igreja por vontade própria, “por causa do racismo e das injustiças” que teriam sido praticadas, de acordo com ele, por Marcelo Pires, bispo responsável pela Universal na África do Sul e nos países africanos de língua inglesa.

São acusações semelhantes às que a igreja sofreu em Angola. No final de 2019, um grupo de 330 bispos e pastores angolanos da Universal divulgou um manifesto com críticas e acusações ao comando da igreja. Em junho do ano passado, eles assumiram o controle da instituição no país.

A Reforma, como foi chamado o rompimento entre ex-bispos e ex-pastores e Edir Macedo, foi apoiada pelo governo. As denúncias de lavagem de dinheiro passaram a ser investigadas pelas autoridades e, em dezembro do ano passado, o governo angolano reconheceu os dissidentes como os novos líderes da Igreja Universal local.

A África acordou. É o momento de dar um basta.

Na África do Sul, Jumba me disse que “evidências” de lavagem de dinheiro estão sendo colhidas e serão encaminhadas às autoridades para possíveis investigações. “É hora de a África do Sul ser liderada pelos sul-africanos”, afirmou.

É um discurso semelhante ao do ex-pastor angolano Tavares Armando, que tem conclamado os seguidores da igreja em países como Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Madagascar a repetirem a experiência da revolta angolana.

“A África acordou. É o momento de dar um basta. O continente tem de ser respeitado. Os irmãos de língua inglesa da África do Sul já estão aderindo”, comemorou Armando em um vídeo.

“São as mesmas denúncias que os irmãos angolanos fizeram. Será que os irmãos angolanos combinaram? É claro que não há combinação. São acontecimentos em cadeia. Por que os mesmos crimes apontados em Angola – a ponto de Edir Macedo ser punido e expulso de Angola – podem ser verificados e investigados, que vai se ver que são os mesmos, telegraficamente e minuciosamente, cometidos em outros países”, completou.

O bispo angolano Felner Batalha, porta-voz da Reforma, afirma que o movimento de contestação à ala brasileira da igreja, iniciado em Angola, deve se repetir em muitos outros países.

“A Reforma vai ocorrer em todos os países. E é irreversível. Onde existe a Igreja Universal existem os mesmos problemas, como discriminação e a opressão”, ele me disse na semana passada. “Há uma necessidade de se voltar à essência do Evangelho e do Cristianismo, e essa é a finalidade da Reforma. Houve um desvio daquilo que são os princípios basilares do Cristianismo e do próprio Evangelho de Jesus Cristo”.

Crivella para acalmar os ânimos

Felner Batalha afirmou acreditar que a Universal pediu ao presidente Jair Bolsonaro a nomeação do bispo Marcelo Crivella na África do Sul justamente “por recear que a Reforma ecloda no país”.

O objetivo seria evitar um novo racha na Universal e também que novas rupturas na igreja se espalhem por países africanos. A indicação de Crivella ainda não foi oficializada. Caso se efetive, o ex-prefeito do Rio de Janeiro seria uma espécie de embaixador da Universal na África do Sul – e não, de fato, um embaixador do Brasil.

O sobrinho de Edir Macedo, no momento, não pode sequer sair do Brasil. Ele foi preso em dezembro do ano passado acusado por associação criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva. Em fevereiro, sua prisão foi revogada – mas seu passaporte, apreendido. Por isso, foi proibido pelo Supremo Tribunal Federal de deixar o país.

Sua nomeação para o cargo de embaixador dependeria de o STF rever essa decisão e também da aceitação de seu nome pelo governo da África do Sul e de uma aprovação após sabatina no Senado brasileiro.

Diplomatas ouvidos pelo Intercept consideraram a indicação “lamentável e um absurdo”. “Não é por ser judeu, católico, evangélico ou por não ter religião. É que o estado brasileiro é laico e, não me consta que, até hoje, bispo católico tenha sido indicado para ser embaixador”, me disse Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do governo Lula.

Outro diplomata, embaixador e ex-ministro, que preferiu falar reservadamente, disse não ver chances de êxito na nomeação de Marcelo Crivella para a embaixada na África do Sul. O governo sul-africano pode nem aceitar, e o Senado também deve barrar, em sua avaliação.

Com o apoio de Bolsonaro, Crivella e a Universal se esforçam para tentar viabilizar a indicação. Em 8 de junho, o bispo e também cantor gospel – que fala inglês e zulu, língua dos povos originários do sul da África e morou na África do Sul nos anos 1990 –, postou nas redes sociais uma de suas canções, “África”.

No clipe, imagens do continente africano e uma inscrição em zulu, “Ngi Buyela”, que quer dizer: “Estou voltando para casa”.

 

Entrevista sobre o bolsolavismo diplomático, com Paulo Roberto de Almeida - Duda Teixeira (Crusoé)

 Uma entrevista que concedi recentemente ao jornalista Eduardo Teixeira, da revista Crusoé, sobre diferentes aspectos da diplomacia bolsolavista, publicada na edição desta sexta-feira, 18/06/2021.

Aos leitores interessados, vale uma assinatura desta excelente revista (estou renovando a minha).



Quanto a mim, penso desenvolver alguns elementos dessa entrevista para uma matéria sobre aspectos absolutamente inéditos para a política externa e a diplomacia brasileira derivados das esquizofrenias do bolsolavismo na direção das relações internacionais do Brasil

O clipping da ADB capturou a matéria no seu boletim diário:

Mudança à força

Um dos principais críticos da interferência petista e bolsonarista no Itamaraty, o embaixador Paulo Roberto Almeida diz que as correções de rumo na diplomacia brasileira só devem acontecer no atual governo por pressão externa

18.06.21

O diplomata Paulo Roberto Almeida, de 71 anos, é conhecido por sempre dizer o que pensa. Por causa disso, levou diversos puxões de orelha e teve a carreira prejudicada. Na era petista, foi acusado de ser “neoliberal” e foi relegado ao que, entre os diplomatas, é conhecido informalmente como o DEC, departamento de escadas e corredores. Passou treze anos e meio sem ocupar um cargo. Em 2016, no breve governo de Michel Temer, foi reabilitado e assumiu a direção do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, o Ipri, vinculado ao Itamaraty. Três anos depois, já no governo de Jair Bolsonaro, foi exonerado do posto após publicar em seu blog textos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do embaixador Rubens Ricupero e do ex-ministro Ernesto Araújo, discutindo a Venezuela. Os posts irritaram os bolsonaristas, que não gostaram de ver tucanos criticando o atual governo.

Almeida foi então transferido para a Divisão de Arquivos, no segundo subsolo do Itamaraty, onde não há wifi nem sinal de celular. “Enquanto os petistas não me colocaram em lugar algum, os bolsonaristas quiseram me humilhar”, diz o embaixador. Mesmo assim, ele não se intimidou e, desde 2019, publicou cinco livros. O último deles, Apogeu e Demolição da Política Externa, acaba de seguir para a última revisão.

O diplomata avalia que a nomeação de Carlos França para o cargo de chanceler melhorou o clima internamente. Como França consulta os colegas e segue os processos decisórios normais, as chances de erros diminuem. Contudo, Almeida afirma que ainda paira sobre o Itamaraty a influência de Jair Bolsonaro, seus filhos e assessores, o que pode resultar em constrangimentos – um exemplo é a indicação do ex-senador e ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal, para a embaixada na África do Sul. “Isso demonstra, mais uma vez, que o presidente não hesita em tomar atitudes que prejudicam a imagem e os interesses do Brasil quando se trata de defender seus interesses eleitoreiros”, diz. Eis a entrevista.

Que avaliação o sr. faz da gestão de Carlos França, substituto de Ernesto Araújo no cargo de ministro das Relações Exteriores?

A chegada dele foi um alívio. A personalidade de França é o inverso da do Ernesto Araújo, que era rejeitado quase que unanimemente pelos profissionais. França sempre foi um excelente diplomata, com um trabalho impecável. É reconhecido pelo seu jeito afável e pela sua cordialidade sincera. Tem um modo de ser transparente, simples e modesto. Apenas a sua chegada já representou uma melhoria de 200% na gestão dos assuntos internos do Itamaraty. Além disso, ele retomou o processo decisório, o que é muito bom.

Como?

Isso acontece em todo lugar, nas empresas, nas organizações. Os funcionários de cada área, que estão na base, fazem relatórios em suas áreas de especialização. Essas informações sobem pela hierarquia até chegar à cúpula, onde as decisões são tomadas. No Itamaraty, quando se trata de algo muito importante, o assunto vai parar na Presidência da República. No governo militar, que tinha uma estrutura muito rígida, com planejamento e metas, eu era uma dessas pessoas trabalhando na base, em assuntos específicos. Quando o papa João Paulo II foi escolhido, em 1978, eu fiz um longo memorando sobre o que isso significava. O texto foi muito elogiado e possivelmente foi para a Presidência. Sempre tínhamos de produzir esses textos. Quando o balé Bolshoi, da Rússia, vinha para o Brasil, os militares sempre achavam que vinha um monte de espião comunista, e nós precisávamos escrever sobre aquilo. Algumas vezes, os relatórios de três ou quatro páginas voltavam com a rubrica “de acordo”, o que significava que o Itamaraty tinha feito uma exposição para o presidente, que tinha concordado com o conteúdo. Em outros momentos, vinha com a orientação para consultar outros ministérios. Foi assim com o Ernesto Geisel, com o Figueiredo. Foi assim também com o Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique. Uma mudança aconteceu com Lula. Em seu governo, ele pediu para que o Itamaraty mostrasse relatórios mais breves, com no máximo uma página.

E como era com o Ernesto Araújo?

Araújo tomava decisões trancado em seu gabinete, sem consultar diplomatas ou ler qualquer coisa. Despachava de um bunker, auxiliado apenas pelo deputado Eduardo Bolsonaro, pelo Filipe Martins, assessor de assuntos internacionais da Presidência, e pelo Olavo de Carvalho. As notas que o Araújo soltava nada tinham a ver com a tradição do Itamaraty. Nenhum diplomata seria capaz de escrever aqueles absurdos. Os textos não faziam nenhuma referência ao direito internacional e traziam uma linguagem estropiada, com português mal escrito.

O que acontece quando não se respeita esses processos?

O risco maior é tomar decisões que vão contra os interesses nacionais. Uma delas foi o anúncio de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. Isso seria desastroso para o agronegócio brasileiro. Se o governo tivesse deixado a empresa chinesa Huawei de fora do leilão de tecnologia 5G, a China teria imposto retaliações maciças ao Brasil. Os processos decisórios também são importantes na elaboração dos discursos oficiais, como aqueles que são feitos em foros internacionais. O embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, que é sogro do Ernesto Araújo, fez um livro, em três tomos, sobre as posições do Brasil na ONU. Há 70 anos, o Brasil inaugura as sessões da Assembleia Geral, o que foi uma forma de compensar o país por não ter entrado no Conselho de Segurança. Esses discursos mostram como o Brasil tradicionalmente pensa em diversos temas. Está tudo ali. Há uma unidade muito clara. Mas provavelmente não haverá uma quarta edição. O primeiro discurso de Bolsonaro na ONU em setembro de 2019 foi muito estranho, e o segundo foi um pouco menos ruim. Faltou consultar os demais diplomatas.

Na prática, algo já mudou na diplomacia brasileira?

Acho que as mudanças ainda estão por vir. Elas devem chegar principalmente como resultado de pressão externa, que pode vir do agronegócio, do Senado, das empresas, da opinião pública ou de outros países. Não necessariamente virão da vontade do presidente e dos seus assessores. Por enquanto, olhando para algumas votações em Genebra, na área de direitos humanos, ainda não voltamos ao padrão anterior. Permanece aquela visão contra o aborto da Damares Alves (ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos). É uma visão ainda desconfiada de temas que possam levar a direitos da mulher e a direitos reprodutivos. O evento mais recente, ainda não resolvido, é essa indicação absolutamente estranha do bispo Marcelo Crivella, da Igreja Universal do Reino de Deus, para ser o embaixador na África do Sul. Na verdade, o assunto dele é Angola, onde há pendências entre as autoridades locais e sua instituição religiosa. Sabe-se que há muita lavagem de dinheiro com destino à África do Sul. Isso foi revelado porque um dos brasileiros que trabalhavam em Luanda teve um acidente na estrada. A polícia encontrou 60 milhões de dólares no seu automóvel. Então, é comum que carros atravessem a Namíbia levando dinheiro para a África do Sul. Claro, o Crivella gostaria que o governo desse uma cobertura total para os negócios da Universal. Ele não poderia ir para Angola, porque há uma pendência judicial contra ele. Então Bolsonaro fez algo muito estranho, que é designar um bispo que não pode sair do Brasil, que foi preso em dezembro, para ser o embaixador na África do Sul, onde ele poderia atuar. Mas a África do Sul é a base financeira dos negócios de lavagem de dinheiro na África, que envia dinheiro para paraísos fiscais. Seria muito estranho ter um embaixador não do Brasil, mas da Igreja Universal, na África do Sul.

Acredita que a indicação pode ser aprovada pelo Senado?

Acho pouco provável. A Comissão de Relações Exteriores do Senado vai achar muito estranha essa designação. Mesmo assim, seria preciso aguardar a aceitação do país africano. Se acontecer, seria muito complicado para o Brasil. Crivella poderia se envolver nos negócios africanos da Universal, com o potencial de gerar novos escândalos. Isso demonstra, mais uma vez, que o presidente não hesita em tomar atitudes que prejudicam a imagem e os interesses do Brasil quando se trata de defender seus interesses eleitoreiros. A candidatura para a OCDE (o clube dos país mais ricos do mundo), por exemplo, poderia ser prejudicada porque ela exige cooperação nas operações contra lavagem de dinheiro e contra a corrupção.

Ainda soa estranho um político ser indicado para um cargo em embaixada?

A diplomacia petista estreou com a indicação de pessoas de fora da carreira diplomática. Lembro do caso do Tilden Santiago. Ele era formado em jornalismo e filosofia, e foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Santiago tentou uma candidatura ao Senado por Minas Gerais em 2002, mas perdeu a eleição. Lula o mandou para a embaixada em Cuba, porque ele era admirador do Fidel Castro. Foi um dos poucos não diplomatas a serem enviados para embaixadas no exterior. Celso Amorim, depois, estabeleceu que todos os chefes de embaixadas deveriam ser diplomatas de carreira.

O clima sombrio que havia dentro do Itamaraty melhorou?

Em parte. Depois de se desentender com os senadores, principalmente com a Katia Abreu, Ernesto Araújo foi forçado a se demitir no dia 29 de março. No dia seguinte, o boletim do Itamaraty publicou a lotação dele na Subsecretaria Geral de Administração. Essa é a secretaria que cuida do que podemos chamar de “cozinha” do Itamaraty, da administração da casa. Ele estava tentando colocar seu chefe de gabinete como o subsecretário geral de administração. Pensei na época que o objetivo era construir um Ministério de Relações Exteriores do B. Eles seriam responsáveis por uma diplomacia paralela, com todo apoio do presidente, filhos e assessores. Mas o Ernesto Araújo não conseguiu o que pretendia e tirou uma licença de três meses.

Se o PT voltar em 2022, o sr. não teme ser novamente afastado?

Acho que vou me aposentar no final de 2022, talvez antes. Mas posso dizer que fui prejudicado tanto na era petista como na bolsonarista. Há uma grande diferença entre elas: os bolsonaristas são vingativos e mesquinhos. O PT me deixou fora do Itamaraty por treze anos e meio. Fui vetado e enviado para o departamento de escadas e corredores. Fiquei no limbo. Por dez anos, fiquei sem nenhum cargo na Secretaria de Estado. O Celso Amorim, ex-chanceler, tinha horror a mim, porque eu publicava e dizia o que pensava. Ele vetou uma promoção minha. Os petistas diziam que eu era ‘neoliberal’. Em 2014, eu publiquei o livro Nunca Antes na Diplomacia, com uma crítica pesada ao petismo. Com o bolsonarismo foi distinto. Em 2019, quando eu publiquei no meu blog um artigo do Fernando Henrique Cardoso, um do Rubens Ricupero e outro do Ernesto Araújo, eles me demitiram das funções que exercia. Mas, enquanto os petistas não me colocaram em lugar algum, os bolsonaristas quiseram me humilhar. Eles me mandaram para a Divisão de Arquivos. Então eu fiquei lá na biblioteca, sem função. Em 2019, eu publiquei um pequeno livro intitulado Miséria da Diplomacia: a Destruição da Inteligência no Itamaraty. Decidiram me retaliar. Sem que eu soubesse, eles foram computando minhas faltas. Em muitas delas, eu estava em bancas acadêmicas em São Paulo, em Curitiba, dando palestras. Uma vez, eu estava com o próprio Ernesto Araújo, no Ministério da Defesa, e eles me deram falta. Eu justifiquei e não aceitaram. Mais recentemente, passaram a me cobrar por horas não trabalhadas. Já tive um prejuízo de mais de 40 mil reais com eles. Só não conseguiram me demitir por justa causa porque veio a pandemia.

O Itamaraty, afinal, falhou na compra de vacinas?

Não, o Itamaraty, como instituição, não falhou na aquisição de vacinas pela simples razão que nunca lhe foi dada essa atribuição. O problema foi a oposição do presidente a uma ação vigorosa nessa frente. Araújo apenas se submeteu a isso. O governo falhou por inteiro em todas as fases, etapas e configurações de um enfrentamento sério da pandemia. O quadro de miséria moral existente nesse setor está na origem da tragédia acumulada em número de mortos e outras vítimas da Covid-19, por uma indiferença perversa. Tanto o Itamaraty não falhou que o novo chanceler proclamou, em seu conciso e objetivo discurso de posse, que sua primeira preocupação será com uma diplomacia da vacina, colocando os postos a serviço dessa meta.

Isso pode fazer diferença no combate à pandemia no Brasil?

Ainda estamos numa situação diferente da dos demais países, onde o combate à pandemia recebe o inteiro apoio dos chefes de governo ou de estado. Isso não é uma realidade no Brasil. Bolsonaro segue com a mesma indiferença perversa. Na verdade, em temas de interesse global – meio ambiente, desenvolvimento, cooperação regional, comércio internacional, direitos humanos, novas fronteiras dos direitos coletivos –, o Itamaraty sempre exerceu um protagonismo digno de nota, sendo conhecido pelos seus esforços de mediar interesses de países avançados e em desenvolvimento, num esforço notável em foros multilaterais. Não fosse este governo, o Brasil teria provavelmente liderado uma iniciativa de coordenação global contra a pandemia, unindo cooperação bilateral, regional, multilateral, em todos os foros e instâncias abertas ao engenho e à arte de nossa diplomacia.

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