Winston Churchill: um estadista que faz falta
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: entrevista áudio para o Instituto Millenium; finalidade: caráter didático]
Tendo recebido, depois de um pedido precedente do Instituto Millenium, no caso da líder britânica Margaret Thatcher, uma nova demanda para entrevista gravada, solicitei um roteiro de questões a serem tratadas. Recebi os interrogantes abaixo, que como sempre, de acordo com minha proverbial prolixidade, respondo amplamente, mas de forma livre, e sem maiores esforços de preparação sistemática. Aos interessados no exercício precedente, indico aqui o meu registro da primeira entrevista:
Desta vez, o personagem britânico escolhido foi ninguém menos que o grande Winston Churchill. Com base unicamente no que conheço de sua vida e sua obra, em livros próprios (Memórias da guerra, História dos povos de língua inglesa), biografias (existe uma excelente, mais recente, de Andrew Roberts), trabalhos de historiografia (recomendo John Lukacs, Five Days in London) e em filmes (muitos, entre eles o Darkest Hour), elaborei as seguintes respostas, sem uma preparação maior.
1) Podemos contextualizar quem foi Winston Churchill e qual foi sua trajetória até que chegasse ao cargo de primeiro ministro do Reino Unido? O que faz com que ele seja lembrado até hoje como um dos maiores líderes que já existiram na história mundial?
Paulo Roberto de Almeida (PRA): Winston Churchill foi, antes e acima de tudo, um defensor do Império britânico, um dos maiores empreendimentos coloniais – direto e indireto – da história mundial, um herdeiro de uma linhagem de aristocratas, políticos e líderes militares da Grã-Bretanha que construíram o mais vasto império jamais visto na história mundial. No momento de sua maior extensão, em 1913, ou seja, às vésperas da Grande Guerra, esse império estava espalhado por todos os continentes e regiões do mundo, com destaque para as unidades integrantes diretos da chamada comunidade britânica de nações: o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia, ademais de Hong Kong e, com menor destaque, a África do Sul. Uma antiga dependência, as treze colônias da América do Norte, evoluiu para se constituir na nação mais avançada do mundo já no final do século XIX, ultrapassando até mesmo a antiga metrópole, em PIB per capita, em poderio industrial e tecnológico, e, em poucos anos mais, como um grande centro financeiro internacional, passando a substituir a libra esterlina, como moeda mundial, a partir da Segunda Guerra Mundial.
Winston Churchill foi um acirrado defensor desse grande império, que compreendia ainda territórios submetidos a uma administração direta ou indireta, nas Américas, em metade da África e sobretudo na Ásia do Sul, com destaque para a Índia, um mosaico de nações, de línguas e religiões, que em seu conjunto exibia uma economia superior à da própria potência colonial no momento da conquista, no século XVIII. Na verdade, a Índia foi conquistada primeiro pela Companhia das Índias Orientais Britânicas, e só em meados do século XIX passou a ser um vice-reino submetido diretamente a um ministério das colônias britânicas. A África do Sul, por sua vez, era uma antiga colônia holandesa, colocada sob a dependência da comunidade britânica depois de uma cruel guerra de conquista por tropas do Reino Unido, em 1900, após episódios militares dos quais Winston Churchill participou diretamente enquanto repórter incorporado às forças de conquista. Ele também se associou a outras aventuras militares no Sudão, no subcontinente indiano e, de forma geral, tinha imenso orgulho da vastidão do império britânico em sua fase de maior extensão.
Ambicioso no plano político, Winston Churchill tornou-se, precocemente, um ministro das colônias, depois Lord do Almirantado – ou seja, ministro da Marinha britânica, a poderosíssima Royal Navy –, quando presidiu à importante conversão dos navios da frota das caldeiras a vapor, alimentadas a carvão, para os motores a diesel, mantendo a preeminência em poder de fogo e de deslocamento, frente ao crescente e agressivo império alemão, que empreendia uma grande competição naval entre o final do século XIX e o inicio do XX.
Sua experiência na Grande Guerra não foi das mais exitosas, sendo culpado, talvez por teimosia, pelo desastre de Galipoli, uma tentativa frustrada de neutralizar o Império Otomano, então aliado dos impérios centrais responsáveis pela guerra, para permitir a saída ao Mediterrâneo da frota da Rússia, uma das nações aliadas. Milhares de soldados pereceram na tentativa e Churchill teve de abandonar o seu cargo. Para compensar, foi ser comandante de batalhão nos campos do norte da França e da Bélgica, o que lhe permitiu recuperar parcialmente a sua reputação. Nunca se sentiu à vontade, seja com os Conservadores, seu partido de origem, seja com os Liberais, pois mantinha concepções próprias sobre as grandes questões politicas e estratégicas que deveriam guiar as ações do Império britânico; por isso oscilou algumas vezes no tocante às suas preferências políticas, sendo hostilizado em ambos os partidos, sem falar no Labour.
Teve uma percepção muito nítida, por exemplo, da ameaça que surgiria contra o Império britânico e toda a civilização ocidental – constituída pelas democracias de mercado – representada pelo novo regime bolchevique que emergiu na Rússia, em meio a uma terrível guerra civil ao final da Grande Guerra. Contra ele apoiou várias intervenções militares opostas ao nascente poder bolchevique, já que via no comunismo o grande contendor do Ocidente no plano das ideias e dos valores fundamentais que devem guiar o sistema econômico capitalista e o regime político liberal. Não logrou vencer esse poder em sua origem, mas não hesitou em aliar-se a ele, quando uma ameaça ainda mais terrível, a do nazi-fascismo passou, por sua vez, a contestar os fundamentos mesmos da sociedade aberta e das democracias de mercado nos momentos mais decisivos de meados do século XX.
Winston Churchill teve uma outra fase infeliz quando assumiu o cargo de Lord of Treasury, ou seja, ministro das finanças, quando intentou fazer o Reino Unido voltar ao antigo padrão monetário vigente no século XIX até a Grande Guerra, ou seja, a libra esterlina baseada no lastro metálico em ouro. Em 1925, contra as recomendações do já famoso economista britânico John Maynard Keynes, ele tentou operar essa volta da libra ao padrão-ouro pré-1913, mas na mesma paridade que aquela que operou de 1816 até às vésperas da Grande Guerra, descurando completamente a grande inflação e os monumentais desequilíbrios econômicos trazidos pelo primeiro grande conflito global do século XX. Foi um desastre completo: Churchill permaneceu isolado por longo tempo depois disso, aproveitando seu tempo para escrever e recuperar um pouco do dinheiro empregado para manter um padrão de vida que ele já não podia suportar.
Os anos 1930 foram de um relativo declínio em sua carreira política, até que o início da guerra deslanchada por Hitler viesse milagrosamente retirá-lo de uma semi-marginalidade, para levá-lo ao mais importante desafio lançado não só à sua carreira política, mas também à própria sobrevivência do império britânico.
2) A vida de Churchill foi marcada pelas grandes guerras. Podemos falar um pouco sobre essa relação e também destacar como a sua conduta ajudou a sustentar um clima político que levantou a nação durante as batalhas?
PRA: Winston Churchill foi, durante toda a sua vida, um estadista dotado de uma visão estratégica fundamentada basicamente no poderio militar, como garantia de manutenção do império britânico e de sobrevivência da Grã-Bretanha e seu sistema econômico e regime político. Anteviu a necessidade de modernizar e equipar a frota da Royal Navy, e agiu em consequência no confronto com o crescimento da armada do Império Alemão. Previu desde cedo a necessidade de uma estreita aliança entre o Império Britânico e os Estados Unidos, num momento em que este dispunha de uma armada razoável, mas quase nenhum exército, ou forças orientadas para atuação em cenários externos. Desde o início pressentiu os instintos expansionistas dos regimes totalitários do entre guerras, assim como o espírito belicoso e militarmente agressivo dos dois fascismos da Europa continental, ainda que tenha demorado um pouco mais para detectar os mesmos perigos advindos do militarismo japonês (que até o final dos anos 1920 era, praticamente, um aliado dos poderes ocidentais).
Combateu acirradamente o ânimo pacifista dos líderes políticos ocidentais, em especial da França e dos seu próprio país, e não hesitou a denunciar como um enorme erro estratégico as inaceitáveis concessões feitas pela Grã-Bretanha e pela França às investidas de Hitler contra a Áustria e a República Tchecoslovaca, em 1938 e 1939. O Anchluss– a anexação da Áustria ao novo Reich alemão – e o esquartejamento de parte da República Tcheca e sua incorporação à soberania nazista confirmaram para Churchill que a guerra era inevitável, recomendando ele que as democracias ocidentais se preparassem imediatamente para o confronto militar. Atacou com justa razão o pacifismo inaceitável de seus líderes, dizendo que eles tinham feito uma opção irracionável pela paz com honra, mas que teriam como resultado a guerra com desonra.
Foi praticamente o único dos líderes políticos da Grã-Bretanha que recomendou a resistência a todo custo contra o imenso poderio hitlerista, quando as forças nazistas invadiram os Países Baixos, a Bélgica e derrotaram a França numa Blitzkrieg, uma guerra relâmpago, quanto os principais membros do gabinete britânico pretendiam entrar em negociações de paz com a Alemanha nazista, a vencedora da primeira fase da guerra europeia. Foi chamado pelo soberano do Reino Unido, George VI, para assumir a chefia do gabinete na hora mais sombria da Grã-Bretanha, quando numerosas forças britânicas se encontravam cercadas por tropas nazistas no bolsão de Dunquerque, no continente, e havia a ameaça real de invasão das ilhas britânicas pelas forças superiores da Alemanha hitlerista. No dia 10 de maio de 1940, se converte no primeiro ministro de um governo de coalizão, banindo a ideia de negociação e de submissão, e proclamando a vontade do povo britânico em prol da resistência a qualquer custo. Ele mobilizou a língua inglesa, que dominava como ninguém, e a enviou às frentes de batalha.
Pode-se dizer que ele não salvou apenas as ilhas britânicas e todo o Império, mas praticamente toda a civilização ocidental de uma bárbara dominação totalitária, que poderia condenar as democracias de mercado a um quase certo desaparecimento no continente europeu e, por extensão, em boa parte dos demais continentes e regiões colocados sob a influência ou dependência dos grandes impérios ocidentais. Churchill, pela sua obstinação, sua ousadia, sua coragem, determinação, pertinácia e grande visão estratégica sobre a condução da guerra, salvou o Ocidente e o mundo de uma descida humilhante aos horrores de um regime criminoso, dirigido por um psicopata. Churchill visou alto, consciente dos imensos sacrifícios que ele demandava ao seu povo, mas tinha absoluta certeza quanto à justeza de suas ideias, de seus princípios, em face da necessidade de salvar a democracia e as liberdades a qualquer custo. Foi um vencedor, e nunca hesitou, a despeito de enormes dificuldades, na defesa das liberdades, sabendo que qualquer preço era aceitável para preservar a soberania da Comunidade britânica.
3) Além de sua liderança, Winston Churchill também foi um grande administrador e deu exemplos sobre como comandar uma nação em tempos difíceis. Podemos citar algumas medidas importantes que ele tomou enquanto era Primeiro-Ministro?
PRA: Churchill tinha plena consciência de que não poderia enfrentar sozinho o terrível poderio da imensa máquina de guerra nazista, potencializada pelos recursos amealhados com a conquista de metade da Europa ocidental. A primeira aliança que buscou já estava em sua previsões desde muitos anos antes: com os Estados Unidos. Para seu alívio, encontrou um parceiro admirável na pessoa do presidente Franklin Delano Roosevelt, mas sem condição de ajudá-lo na fase inicial da guerra europeia, talvez a mais terrível e ameaçadora para a sobrevivência da Grã-Bretanha, uma vez que o líder americano se encontrava constrangido pelo isolacionismo do Congresso, e impedido de conceder ajuda militar direta. A solução encontrada foi a negociação dos famosos empréstimos de aluguel e arrendamento de equipamentos de todo tipo, a serem pagos, ou “devolvidos”, numa fase posterior.
Paralelamente, Churchill negociou com Roosevelt uma “Carta do Atlântico”, em agosto de 1941, base da constituição das Nações Unidas, com fundamentos nas quatro liberdades proclamadas pelo presidente americano em janeiro desse ano: a liberdade de expressão, a religiosa, a da penúria e a do medo. A Carta do Atlântico ia até mais além, ao proclamar um conjunto de princípios e de objetivos que deveriam guiar a ação das nações aliadas contra a ofensiva dos totalitarismos. Logo secundados por uma série de outros países democráticos – vários com governos no exílio, muitos em Londres –, os pontos principais da declaração cobriam as seguintes questões: ausência de ganhos territoriais, autodeterminação dos povos, ausência de barreiras comerciais ao livre intercâmbio, cooperação econômica entre os países em busca de bem-estar social, liberdades pessoais e de trânsito por todos os mares e o desarmamento das potências agressoras ao final do conflito.
Simultaneamente a essa aliança entre as duas principais nações ocidentais de base comum anglo-saxã, a União Soviética – vista como a grande inimiga do Ocidente por Churchill durante boa parte do primeiro pós-guerra – era invadida em junho de 1941 pela Alemanha nazista; desfazia-se, assim, o vergonhoso pacto de mútua conveniência estabelecido em agosto de 1939, que permitiu justamente o deslanchar da guerra pelas forças hitleristas contra a Polônia, país também atacado pela URSS em suas fronteiras orientais. Churchill não hesitou um só instante em vir em socorro imediato da União Soviética contra a invasão nazista, forjando-se então uma aliança entre dois antigos inimigos. No final de 1941, o ataque japonês contra a frota americana estacionada em Pearl Harbor, no Havaí, abriu uma nova frente no conflito até então europeu, que tornou-se, assim, verdadeiramente global, uma vez que a Alemanha também declarou guerra contra os Estados Unidos. Churchill conseguiu completar assim a arquitetura da contraofensiva para responder à ameaça do totalitarismo nazista, ainda que numa primeira fase, até 1943 praticamente, as perspectivas para as nações aliadas, tanto na frente europeia, quanto nos teatros da Ásia Pacífico, fossem as piores possíveis. As frentes de vitória foram sendo conquistadas pouco a pouco, no norte da África, no Mediterrâneo, na Itália, nos espaços marítimos do Pacífico, nas imensas estepes e planícies da Rússia soviética e, finalmente, na frente da Europa ocidental, a partir da Mancha, quando da invasão do Dia D – 4 de junho de 1944 – nas costas da Normandia. A partir daí a vitória estava assegurada, mas um ano ainda se passou antes que as potências militaristas fascistas fossem vencidas com enormes sacrifícios em homens e em material por parte das nações aliadas. O Brasil também participou desse esforço, enviando tropas ao teatro italiano, integradas ao V Exército americano.
4) Também houve avanços na área econômica? Quais?
PRA: Os avanços não foram significativos do ponto de vista exclusivo do Reino Unido, que enfrentou uma gigantesca perda patrimonial e financeira, ao engajar todos os seus recursos humanos e materiais no esforço de guerra, mas eles foram relevantes do ponto de vista da construção de uma maior interdependência entre as democracias de mercado, e tremendamente importantes no plano na formulação e implementação de uma nova ordem econômica multilateral, a partir do final da guerra. Esse processo teve início ainda durante a guerra, com os acordos econômicos efetuados entre os EUA e o Reino Unido, a própria URSS e o Brasil, no momento oportuno. Funcionários britânicos e representantes americanos discutiam, desde 1941, o tipo de ordenamento econômico que deveria prevalecer no pós-guerra, sem o bilateralismo estrito vigente anteriormente, o protecionismo comercial, os regimes discriminatórios em matéria econômico, e a ausência completa de um sistema monetário e cambial, compatível com as novas regras e princípios multilateralistas que começavam a ser desenhados desde essa épocas. Uma primeira aproximação a essa nova arquitetura da ordem econômica internacional do pós-guerra foi discutida e aprovada em Bretton Woods, em junho de 1944, quando se adotam duas novas organizações interestatais, o FMI e o Banco Mundial, para regular as relações monetárias e financeiras entre os países.
Muito do esforço feito nessa conjuntura consistia inclusive no desmantelamento do protecionismo comercial existente no Commonwealth britânico, atingia fortemente os interesses econômicos dos EUA, assim como no desenho de uma arquitetura monetária que não fosse automaticamente redistributiva – em detrimento dos países superavitários, como os EUA, e em favor dos deficitários, como o Reino Unido – ou excessivamente permissivo quanto a desequilíbrios fiscais e estabelecimento de paridades cambiais. Algum esforço se fez para acomodar as peculiaridades das economias socialistas – até Bretton Woods se tratava unicamente da URSS – mas ao final os soviéticos decidiram não aderir ao FMI ou ao Banco Mundial, a despeito de os EUA se oferecerem para ajudar na integralização das cotas de contribuição original. O Brasil aderiu relutantemente aos novos princípios, mesmo sem ter conseguido obter satisfação no tocante a seus interesses prioritários, que eram a estabilização dos preços dos produtos primários de exportação (basicamente o café, nessa altura).
Em todo caso, com as adaptações requeridas após sucessivos choques ocorridos desde o início dos anos 1970 – fim das paridades fixas de câmbio, alta dos preços do petróleo, volatilidade nos mercados de capitais e nas taxas de juros, dívidas excessivas e déficits orçamentários –, o sistema de Bretton Woods prevaleceu amplamente, logrando inclusive a adesão das potências socialistas, antes mesmo do abandono parcial ou completo das deformações antimercado nos anos 90 do século XX. Mas Churchill não esteve associado a nenhum desses processos, a não ser na fase inicial dos arranjos bilaterais entre o Reino Unido e os EUA, e na tentativa de preservação do antigo poderio do Império britânico, que começou a soçobrar no imediato pós-guerra, com a independência da Índia, em 1947.
5) Ele também nos ensinou muito sobre como gerir recursos escassos durante grandes crises?
PRA: Winston Churchill sempre soube administrar muito bem recursos extremamente escassos, que são as qualidades do estadista em face de grandes desafios e de graves crises, que, no caso da Grã-Bretanha, chegaram inclusive a ameaçar a sua sobrevivência enquanto nação independente, enquanto país livre, enquanto domínio das liberdades democráticas. Ela era um patrimônio dos mais altos valores dos direitos humanos e da dignidade de uma pátria livre de todo despotismo, praticamente desde a Magna Carta de 1215. Esses recursos podem ser representados, pela ordem, pelas seguintes qualidades: a capacidade de ter uma visão clara sobre o que é essencial, o que é estratégico no plano das liberdades democráticas e da ordem política liberal que deve presidir à organização do Estado num regime de mercados livres; em segundo lugar, uma coragem inflexível para arrostar qualquer dificuldade, enfrentar qualquer desafio, qualquer ameaça a esse regime de liberdade e dignidade; igualmente uma confiança inabalável na capacidade do povo em suportar todas as durezas de uma grave crise, quando orientado por um líder dotado de visão estratégica e comprometido com a felicidade e o bem-estar de seu povo. A sinceridade na expressão dos problemas a serem enfrentados, o oferecimento de uma via de solução aos problemas existentes, sem qualquer demagogia política ou populismo econômico, a transparência na condução dos negócios do Estado, o respeito absoluto aos valores e princípios democráticos e aos direitos humanos, são recursos escassos na maior parte dos casos e das experiências nacionais ao longo da história.
Esses recursos se encontraram numa feliz conjunção de grande educação política, vivência militar, amplo conhecimento da geopolítica mundial e visão realista das capacidades do seu povo e do seu país na figura excepcional que foi esse homem nascido no auge do Império britânico e que assistiu ao seu lento declínio ao longo do século XX. Winston Churchill foi, sem qualquer dúvida, um indivíduo absolutamente excepcional para o seu próprio povo, mas também para todo o mundo, sendo, muito provavelmente, o maior estadista do século XX e, talvez, uma das mais importantes personalidades da história mundial, de todos os tempos. Se não fosse por sua obstinada resistência à avassaladora máquina de guerra nazista, talvez todo o continente europeu, possivelmente toda a Eurásia, e boa parte de outros continentes, permanecesse subjugado pelo totalitarismo nazifascista durante vários anos, em circunstâncias dificilmente previsíveis de superação da dominação e de pleno restabelecimento das liberdades democráticas. A Europa e o mundo lhe devem muito, e não só na guerra.
Não podemos tampouco esquecer que, uma vez vencido o projeto totalitário da direita, e já não mais como primeiro-ministro, Winston Churchill liderou uma nova resistência contra o totalitarismo de esquerda, representado pela União Soviética, no imediato pós-Segunda Guerra. Suas palavras foram, uma vez mais, impactantes, mobilizando as democracias ocidentais contra uma nova e terrível ameaça totalitária.
Sua famosa frase sobre uma “cortina de ferro”, separando a Europa ocidental da centro-oriental, indo de norte a sul, exerceram um efeito concreto sobre a disposição de grandes líderes ocidentais em unir esforços na construção de estruturas de cooperação e de integração, capazes de fortalecer as então frágeis democracias de mercado. Desde a instituição do Plano Marshall, um generoso programa de ajuda desinteressada aos países europeus destruídos pela guerra, a criação da OECE – depois transformada em OCDE –, passando pela fundação da OTAN, o pacto de segurança coletiva do Atlântico Norte, os primeiros exercícios de integração europeia – Benelux, Acordo de Paris criando a CECA, os acordos de Roma instituindo o mercado comum europeu e uma comunidade atômica –, até a cobertura militar oferecida pelos EUA a europeus e asiáticos, tudo isso garantiu uma estreita cooperação na defesa e no reforço das democracias. Todos esses processos receberam o apoio entusiástico de Winston Churchill, um promotor precoce, desde os anos 1920, de projetos de união e de cooperação entre as nações da Europa ocidental. Quando ele faleceu, em 1965, depois de novas funções governamentais nos anos 1950, pode-se dizer que sua visão de mundo tinha triunfado e seus projetos de solidariedade entre as democracias de mercado estavam amplamente assegurados na Europa ocidental e em outras regiões bafejadas pelo mesmo espírito humanista.
6) Para finalizarmos, na sua opinião, quais são as principais lições de Churchill que podemos adotar aqui no Brasil neste novo momento que se inicia no país a partir de janeiro?
PRA: Difícil traçar lições que possam ser extraídas a partir da rica vida de um grande estadista de uma das mais antigas e estáveis democracias parlamentares do mundo ocidental para aplicar a um país relativamente excêntrico, de democracia ainda precária e insuficientemente desenvolvido como o Brasil. Não só pelas características “ambientais” da velha Inglaterra, mas também pelas qualidades próprias de Winston Churchill – um esplêndido escritor, mestre da língua inglesa, um estudioso e praticante de virtudes militares, membro do parlamento por muitas décadas, ministro em diversas ocasiões, primeiro-ministro na hora mais dramática do seu país na era moderna –, essa figura excepcional pode destacar-se como nenhum outro na história contemporânea, de sua nação e para o mundo. Parece difícil, portanto, estender suas eventuais lições às condições do Brasil atual, na ausência de condições “ambientais” favoráveis – isto é, políticas e socioeconômicas –, assim como na difícil “oferta” de líderes com status de estadistas para enfrentar desafios que não são tão dramáticos quanto o foram, no caso do Reino Unido, os desafios colocados pelos grandes totalitarismos do século XX, a era das grandes ideologias e dos regimes antiliberais da contemporaneidade.
O Brasil enfrenta enormes desafios, certamente não tão extremos quanto aqueles com os quais se confrontou o Reino Unido, mas que provavelmente requerem, de igual forma, estadistas de certo porte, para indicar as soluções requeridas e implementar as medidas necessárias. Vou resumir ao essencial os desafios básicos que o Brasil enfrenta, e que precisam ser encaminhados de maneira adequada, para que o país possa retomar um ritmo sustentado de crescimento, capaz de apoiar um processo de desenvolvimento econômico e social, com mudanças estruturais, produzindo retornos satisfatórios em termos de renda e de bem-estar social. Esses desafios são três, sem uma ordem precisa de prioridades, mas já dando atenção urgente à maior ameaça de curto prazo:
(1)o desequilíbrio fiscal, traduzido num grave déficit orçamentário e num aumento preocupante da dívida doméstica;
(2) a lacuna de investimentos produtivos, tanto em razão da carência de poupança interna, quanto em função da volatilidade de políticas econômicas, macro e setoriais, ou seja, regulatórias, que inibem um fluxo contínuo e crescente de investimentos diretos estrangeiros;
(3)a questão absolutamente dramática da baixa produtividade, problema que só encontra solução no longo prazo, mas cujas soluções precisam ser lançadas desde já, em especial no plano da educação de massa, na formação técnica especializada, no provimento de uma infraestrutura adequada, na boa governança (que assegura custos de transação reduzidos), e num ambiente verdadeiramente favorável aos negócios, o que significa amplas liberdades econômicas em nível geral.
Quais lições Winston Churchill poderia dar a um candidato a estadista que, no Brasil, decidisse empreender essas tarefas, não tanto de salvamento, como foi o seu caso em 1940, mas de recuperação, depois da Grande Destruição lulopetista da economia, acoplada ao maior caso de corrupção política de toda a história brasileira, um esquema gigantesco de assalto aos recursos do Estado e da população que não encontra paralelo em nenhum outro país do hemisfério ocidental, e quiçá do mundo? Vejamos quais lições poderiam ser sugeridas, se não as de Churchill, os seus equivalentes funcionais.
Em primeiro lugar, uma boa experiência de vida – no caso de Churchill na vida militar, mas que pode ser na vida empresarial também –, agregada, de preferência a uma boa experiência governamental. Churchill foi parlamentar por várias décadas, ministro por diversas vezes e duas vezes primeiro ministro, uma delas em condições extremas de desafios externos, no limite supremo da capacidade de resistência, sua pessoalmente, e do país, enquanto comunidade unidade num propósito convergente de defesa e de sobrevivência do próprio Estado. No caso do Brasil, tal grau de perigo não está em absoluto colocado, pois nossos inimigos são essencialmente todos internos, todos eles situados no próprio Estado ou pululando em volta dele, rentistas e oportunistas.
Em todo caso, a primeira condição para a superação dos nossos problemas está em assegurar uma visão clara dos problemas a serem resolvidos, como já expostos: um problema de curto prazo de natureza fiscal, um de médio prazo relativo a investimentos produtivos, um terceiro de longo prazo tocando ao crescimento da produtividade do trabalhador nacional, mas que deve ser imediatamente enfrentado a partir de um diagnóstico correto quanto às suas fontes e causas específicas. Pessoalmente, considero os problemas fiscais e de investimentos de mais fácil resolução, pois medidas técnicas podem oferecer as soluções adequadas, ainda que elas sejam difíceis: redução radical dos gastos públicos, diminuição do peso do Estado na vida econômica, privatização ampla das estatais ainda existentes (de preferência todas elas), reforma tributária no sentido da redução da carga fiscal, limitação do extremo corporativismo existente no coração do próprio Estado e diminuição impiedosa dos inaceitáveis privilégios dos mandarins estatais, a começar pela aristocracia do Judiciário, nosso equivalente do Ancien Régime. Agregaria ainda a eliminação da burocracia e da regulação dispensável, do protecionismo exagerado, com imediata abertura econômica e uma liberalização comercial unilateral, seguida de atração irrestrita e indiscriminada de capitais diretos estrangeiros, em todos os setores abertos à produção de bens e serviços de consumo corrente, para atender à população, e mesmo o Estado, e sobretudo o comércio exterior.
Por outro lado, sou bem mais pessimista quanto à solução do grande problema da produtividade, pois ele depende de uma revolução no sistema educacional, que não vejo como facilmente ou rapidamente implementável, dada a estreiteza mental dos nossos pedagogos e acadêmicos em geral. O Brasil teria de deixar de lado suas imensas deformações nos três níveis de ensino, em especial a baixa produtividade dos mestres e professores, fruto de uma formação deficiente e de um sindicalismo de baixa extração, isonomista e anti-meritocrático, o que torna impossível trabalhar com o material humano existente. O Estado precisa fazer um enorme esforço em direção dos primeiros níveis, ou seja, uma escola pública de boa qualidade para os ciclos fundamental, médio e técnico-profissional, e conceder ampla liberdade às instituições do terceiro ciclo, com atribuição de uma dotação básica para o seu funcionamento, e total autonomia de gestão para resolver seus outros problemas de financiamento em bases de mercado.
Para empreender tudo isso se requer um estadista que consiga explicar de modo claro seus objetivos à população e ao parlamento, colocando a barra de realizações bem alta, para mobilizar a sociedade e o corpo representativo. O objetivo seria, nada mais, nada menos, o de converter o Brasil em país desenvolvido no espaço de uma geração, o que é extremamente desafiador. Para isso, ademais de uma visão clara quanto aos objetivos e metas, a palavra de ordem, única e exclusiva, só pode ser um: trabalho duro. Um esforço incessante, sem esmorecer, mas em comunicação contínua com o povo. Nunca deixar que as dificuldades se interponham ante o objetivo máximo estipulado em cada uma das reformas: as frustrações ocasionais ou temporárias não podem ser motivo para se desviar da rota traçada. Nunca atribuir a outros o insucesso parcial de algum objetivo específico, mas buscar sempre as melhores vias, eventualmente alternativas, para o atingimento dos objetivos fixados. Estas talvez fossem sugestões de Churchill.
Estar satisfeito com o que se faz, ter respeito pelas opiniões diversas, discutir abertamente com auxiliares e adversários, sempre responder aos questionamentos, nunca eludir as questões interpostas com objetivos divergentes, também são atitudes que Churchill provavelmente recomendaria a qualquer homem de bom senso, sem que este seja necessariamente um estadista. Grande abertura de espírito, disposição para sempre estudar, sempre aprender, revisar seus conceitos e opiniões, se informar sempre, questionar, examinar, pedir os custos (não só os nominais, mas também o custo-oportunidade) de cada ação empreendida, estas constituem outras possíveis lições, as quais convém considerar com atenção, churchillianas ou não. Por fim, nunca se pode esquecer o lado moral de cada ação humana, aspecto indissociável das democracias.
Se ouso agregar uma atitude pessoal, eu teria uma única recomendação: ser um contrarianista, não no sentido negativo, mas no sentido do questionamento de todos os problemas e soluções inscritas na agenda de mudanças e de reformas. Eu me guio por uma atitude básica: ceticismo sadio, ou seja, nunca tomo uma proposta pelo seu valor de face; examino o outro lado, vejo os antecedentes e consequências e, uma vez certificado que estou bom caminho, sigo em frente.
Resolução e propósito na ação são duas boas atitudes a observar, e acredito que Churchill concordaria com essa postura. Por fim, caberia preservar uma característica que considero ser o valor máximo num estadista, ou em todo e qualquer trabalhador acadêmico: a honestidade intelectual...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de novembro de 2018