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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos - Resenha Paulo R Almeida

Addendum ex-ante (et, ça existe!):



Acabo de ver, numa livraria em Paris, um livro que acaba de ser publicado, um testemunho unico, excepcional, de um guarda (forçado) do Gulag: 

Ivan Tchistiakov:
Journal d'un Gardien du Goulag (1935-1936)
(Paris: Dénoel, 2012)
Traduit du Russe, préfacé et annoté par Luba Jurgenson; Introduction d'Irina Scherbakova

Pouca coisa se sabe de seu redator, apenas que era uma pessoa educada (engenheiro ou técnico superior, formado pouco depois da revolução de 1917), que por algum motivo qualquer (talvez porque não fosse proletário) foi mobilizado compulsoriamente para servir no corpo de guardas do Gulag, um vasto empreendimento que no momento da máxima extensão da repressão stalinista dos anos 1930 (possivelmente até 1939-41, pois depois a mobilização para a guerra desviou tropas) chegou a ter 355 mil pessoas, encarregadas apenas do controle do que deve ter sido uma "massa escrava" de mais de um milhão de prisioneiros do Gulag.
O relato desse mobilizado (que morreu na frente de batalha, logo em 1941, e seu diario foi miraculosamente preservado por gente da família, cujos descendentes o entregaram ao Memorial do Comunismo, exemplar único do gênero), é impressionante pela crueza das descrições, pelo aspecto pungente dos relatos, uma vida dura a começar pelos próprios guardas...
Paulo Roberto de Almeida 

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Que vergonha: uma micro-resenha de um livro de 700 páginas sobre o mais monstruoso dos holocaustos, e o maior dos crimes em volume de sacrificados:


9. “Gulag: anatomia da tragédia”, Brasília, 12 dezembro 2004, 3 p. Resenha de Anne Applebaum: Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, 744 p.). Publicada em formato resumido na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, ano 2, nº 6, janeiro de 2005, p. 78; link: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1761:catid=28&Itemid=23).  Relação de Trabalhos nº 1364. Relação de Publicados nº 534.

Aqui a versão ultra-resumida da revista: 


Gulag: anatomia da tragédiaImprimirE-mail
Paulo Roberto de Almeida
O terror moderno, intimidação para fins políticos, não está ligado apenas ao fundamentalismo de base islâmica. Nasceu na Revolução Francesa, e Robespierre defendeu-o: "O terror nada mais é do que justiça imediata, severa, inflexível..." Desde os primeiros dias da revolução de 1917, Lenin ordenou à Cheka, a polícia política, que fuzilasse opositores declarados do novo regime e proprietários em geral. "Estamos exterminando a burguesia. Esta é a essência do Terror Vermelho" (citado por Paul Johnson em Tempos Modernos). Stalin aplicou as recomendações, incorporando como "clientes" da máquina de terror seus colegas de partido.
A historiadora americana, editorialista do Washington Post e colaboradora do Wall Street Journal, realizou uma pesquisa monumental. O Gulag chegou a ser responsável pela produção de um terço do ouro, muito do carvão, da madeira e de outras matérias-primas na União Soviética. O sistema reuniu 476 campos. O número de prisioneiros passou de cerca de 200 mil no início dos anos 1930 para 2,5 milhões no momento da morte de Stalin. No total, 2,7 milhões de cidadãos podem ter morrido no sistema do Gulag.

Aqui a minha versão também resumida, mas um pouco maior: 

Gulag: anatomia da tragédia

Resenha de:
Anne Applebaum:
Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos
(Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, 744 p.; tradução de Mário Vilela e Ibraíma Dafonte; ISBN: 8500015403)

            O terror moderno, isto é, o recurso à intimidação aberta e indiscriminada para alcançar fins especificamente políticos, não está ligado apenas aos exemplos cruéis do fundamentalismo de base islâmica. Ele nasceu na Revolução francesa e seu mais conhecido "teórico", Robespierre, o defendeu sem hesitação: "O atributo do governo popular na revolução é ao mesmo tempo virtude e terror, virtude sem a qual o terror é fatal, terror sem o qual a virtude é impotente. O terror nada mais é do que justiça imediata, severa, inflexível...".
            Lenin, o inventor do terror moderno, apreciava Robespierre e sua "justiça expedita": desde os primeiros dias da revolução de 1917 ele ordenou à Cheka, a polícia política imediatamente criada para esmagar a ameaça "contra-revolucionária", que fuzilasse sem hesitação não só os opositores declarados do novo regime, mas também representantes da classe proprietária em geral, capitalistas, grandes comerciantes e latifundiários, religiosos, enfim, os potenciais "inimigos de classe".
            "A Cheka não é uma comissão de investigação nem um tribunal. É um órgão de luta atuando na frente de batalha de uma guerra civil. Não julga o inimigo: abate-o... Nós não estamos lutando contra indivíduos. Estamos exterminando a burguesia como uma classe. A nossa primeira pergunta é: a que classe o indivíduo pertence, quais são suas origens, criação, educação ou profissão? Estas perguntas definem o destino do acusado. Esta é a essência do Terror Vermelho" (citado por Paul Johnson em Tempos Modernos).
            Stalin se encarregou de aplicar sistematicamente as recomendações de Lenin, e o fez de uma forma completa, terminando por incorporar como "clientes" da máquina de terror administrada por ele os seus próprios colegas de partido. A amplitude do Gulag, ampliado e desenvolvido no seu mais alto grau por Stalin, justifica que apliquemos a ele a categoria de genocídio, noção que costuma estar associada apenas aos terríveis experimentos raciais nazistas, antes e durante a Segunda Guerra Mundial.
            O livro de Anne Applebaum não é, apenas, como seu subtítulo indica, "uma história" dos campos soviéticos, mas a mais completa e sinistra história de um fenômeno único na história da humanidade: uma instituição oficial (ainda que em muitos aspectos "clandestina"), montada e sustentada pelo poder central do Estado, para administrar pelo terror, por um tempo indefinido, uma população inteira de um dos países mais importantes do planeta. A historiadora americana, editorialista do Washington Post e colaboradora do Wall Street Journal, realizou uma pesquisa monumental, indo muito além dos primeiros levantamentos de Alexander Solzenitsyn em torno dos depoimentos dos sobreviventes do nefando sistema de escravização em massa criado pelo totalitarismo soviético.
            Organizado em três partes, o livro documenta amplamente o que até aqui tinha sido divulgado de maneira dispersa em trabalhos de pesquisa histórica que não tinham ainda tido acesso aos principais arquivos soviéticos liberados no período recente. A primeira parte, "As origens do Gulag, 1917-1939", faz a reconstituição histórica dessa instituição singular, que unia a mais transparente crueldade no trato dos prisioneiros ao burocratismo metódico de uma moderna administração voltada para a exploração sistemática do trabalho escravo. Sim, não devemos esquecer que, independentemente de suas funções "didáticas", de intimidação direta e aberta contra a própria população da União Soviética, o Gulag teve um importante papel econômico na história do socialismo naquele país, chegando a representar, a produção de um terço do seu ouro, muito do carvão e da madeira e grandes quantidades de outras matérias-primas. Os prisioneiros passaram a trabalhar em todo e qualquer tipo de indústria, vivendo num país dentro de um outro país.
            A segunda parte, "Vida e trabalho nos campos", mostra também como o sistema do Gulag, que chegou a reunir 476 campos no mais diferentes cantos da URSS, constituía um Estado dentro do Estado, regulando os mais diferentes aspectos de um universo concentracionário que não teve precedentes, teve poucos imitadores efetivos (a despeito da terrível eficácia mortífera dos campos de concentração nazistas) e um número ainda mais reduzido de seguidores (sendo os mais efetivos os sistemas "correcionais" da Coréia do Norte e de Cuba, já que o exemplo do Camboja foi o de uma simples máquina de matar, como de certo modo tinha sido o caso dos experimentos nazistas).
            A terceira parte, "Ascensão e queda do complexo industrial dos campos, 1940-1986", segue o sistema no seu ápice, durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, até o seu desmantelamento gradual após a morte de Stalin (1953) e a disseminação do fenômeno dos "dissidentes": ele foi sendo erodido progressivamente em seu papel político (ainda que não o econômico), mas só teve seu final decretado depois do próprio fim do socialismo.
            Um apêndice tenta quantificar a extensão do terror: de acordo com os próprios dados do sistema (estatísticas da NKVD, sucessora da Cheka e antecessora do KGB), o número de prisioneiros passou de cerca de 200 mil no início dos anos 1930 para 2,5 milhões no momento da morte de Stalin. O "turnover", obviamente, foi muito maior: muitos prisioneiros morreram, alguns escaparam (poucos), vários eram incorporados ao Exército Vermelho ou à própria administração dos campos (cruel ironia). As "taxas de desaparecimentos" refletiram também as terríveis condições de vida na URSS: passou-se de 4,8% de mortos em 1932 para 15,3% no ano seguinte, o que indica o impacto da epidemia de fome induzida pela coletivização stalinista da agricultura, que matou 6 ou 7 milhões de cidadãos "livres" igualmente. A "taxa" de mortos sobe para seu máximo de 25% em 1942, para declinar para menos de 1% nos anos 1950, quando o sistema "industrial" já tinha sido instalado em sua plenitude. No total, 2,7 milhões de cidadãos soviéticos podem ter morrido no sistema do Gulag, o que de todo modo representa apenas uma pequena parte dos desaparecidos durante  todo o regime stalinista e uma parte ainda menor dos sacrificados pelo sistema soviético. Os autores franceses do Livre Noir du Communisme, por exemplo, estimam em 20 milhões as vítimas do regime soviético, o que pode ser uma indicação plausível (outros colocam entre 12 e 15 milhões de mortos). Vários historiadores se aproximam da cifra de 28 milhões de cidadãos soviéticos para o número total de “clientes” de todo o sistema concentracionário soviético em sua história de “terror vermelho”.
            O Gulag foi a face mais visível da tragédia soviética, mas certamente não a única ou exclusiva. Este livro conta a história desse terrível legado do socialismo do século XX: esperemos que a história não se repita, sequer como farsa.
           
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de dezembro de 2004

Economia Brasileira Contemporânea (1945-2004) - resenha Paulo R Almeida


8. “Intérpretes e protagonistas da história econômica brasileira”, Brasília, 13 dezembro 2004, 3 p. Resenha de Fabio Giambiagi, André Villela, Lavínia Barros de Castro e Jennifer Hermann (orgs.), Economia Brasileira Contemporânea (1945-2004) (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, 432 pág.; ISBN 85-352-1415-1). Publicado na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, ano 2, nº 6, janeiro de 2005, p. 77; link: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1760:catid=28&Itemid=23).  Relação de Trabalhos nº 1365. Relação de Publicados nº 536.

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Paulo Roberto de Almeida
Poucos são os livros que, no momento de sua publicação, podem ostentar, de imediato, a classificação de "clássico" ou mesmo de "indispensável". No terreno da teoria econômica, e particularmente no das políticas econômicas, livros costumam ser tão efêmeros quanto as políticas e as circunstâncias históricas que os viram nascer. No que se refere à história e às políticas econômicas da era republicana no Brasil, um exemplo de clássico é a coletânea organizada por Marcelo de Paiva Abreu para sintetizar os primeiros cem anos de experimentos levados a cabo pelos mais distintos regimes políticos: A Ordem do Progresso.

Economia Brasileira Contemporânea é, igualmente, um livro que já nasce clássico, não apenas porque complementa e amplia a discussão iniciada com aquela coletânea publicada em 1989, mas porque descreve e analisa, com rara maestria, o itinerário econômico do Brasil contemporâneo e seus principais problemas: a luta pela estabilidade, o desafio do crescimento sustentado e do desenvolvimento, a restrição externa e a dependência financeira, os problemas da pobreza, da desigualdade distributiva e da baixa qualificação educacional da população brasileira. Isso se deve ao fato de que não apenas os organizadores possuem competência acadêmica, experiência prática e faro político, mas também souberam cercar-se dos melhores nomes. Registre-se que realizaram a proeza, tanto intelectual quanto prática, de reunir dois inimigos da história econômica recente, Antonio Delfim Netto e Gustavo Franco.

O texto de Delfim analisa a evolução da economia brasileira entre 1947 e 2003, com ênfase no processo de desenvolvimento e sua principal restrição: as crises de balanço de pagamentos. Gustavo Franco segue o itinerário da luta contra a inflação e chega ao Plano Real, do qual foi um dos principais formuladores e administradores, até sair no episódio da passagem para o regime de flutuação cambial, em janeiro de 1999. Outros autores comparecem com temas relevantes, como a restrição de poupança (Edward Amadeo e Fernando Montero), as causas do crescimento econômico (Regis Bonelli), seu financiamento (Rogério Studart), a desigualdade distributiva (Lauro Ramos e Rosane Mendonça) e a terrível escassez de educação (Sergio Guimarães Ferreira e Fernando Veloso).

Esses são os eixos temáticos dessa obra verdadeiramente indispensável, mas eles constituem apenas a segunda parte do livro, pois a primeira está dedicada a oferecer, sob responsabilidade dos próprios organizadores (com a colaboração de Sérgio Besserman Vianna), uma visão panorâmica e abrangente de todo o desenvolvimento da economia e da política econômica brasileira entre 1945 e a atualidade. O grande mérito desse livro sobre outras coletâneas, situa-se na combinação do material histórico, de enfoque propriamente cronológico, com a discussão pormenorizada oferecida nos capítulos temáticos.

A obra não se dirige em primeiro lugar aos economistas profissionais, mas fundamentalmente aos estudantes universitários. Também deve interessar ao cidadão comum que busca entender não só as raízes da presente situação - um notável desempenho industrial, um pujante agronegócio, ao lado das mazelas sociais conhecidas e de persistentes desequilíbrios macroeconômicos, seja no plano fiscal e da dívida interna, seja ainda na vilipendiada "dependência financeira externa" - como as causas de nosso frustrante fracasso em alcançar os países de maior desenvolvimento relativo.

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Agora a versão completa: 

Intérpretes e protagonistas da história econômica brasileira

Resenha de:
Fabio Giambiagi, André Villela, Lavínia Barros de Castro e Jennifer Hermann (orgs.),
Economia Brasileira Contemporânea (1945-2004)
(Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, 432 pág.; ISBN 85-352-1415-1).

            Poucos são os livros que, no momento de sua publicação, podem aspirar  ostentar, de imediato, a classificação de “clássico” ou mesmo de “indispensável”. No terreno da teoria econômica, e particularmente no das políticas econômicas, livros costumam ser tão efêmeros quanto as  políticas e as circunstâncias históricas que os viram nascer, se estiolar em face dos dados teimosos da realidade e caminhar para um lento e inexorável declínio enquanto explicação possível em um dado momento histórico. Trata-se de um pequeno número, assim, os livros que sobrevivem ao embate da realidade e do tempo. No que se refere à história econômica e às políticas econômicas da era republicana no Brasil, um exemplo de clássico é a coletânea organizada por Marcelo de Paiva Abreu para sintetizar os primeiros cem anos de experimentos econômicos levados a cabo pelos mais distintos regimes políticos: A Ordem do Progresso.
            Esta obra coletiva é, igualmente e desde já, um livro que já nasce clássico, não apenas porque ele complementa e amplia a discussão iniciada com aquela coletânea publicada em 1989, mas também porque ele descreve e analisa, com rara maestria, o itinerário econômico do Brasil contemporâneo e seus principais problemas: a luta pela estabilidade macroeconômica, o desafio do crescimento sustentado e do desenvolvimento, a restrição externa e a dependência financeira, os problemas da pobreza e da desigualdade distributiva e da baixa qualificação educacional da população do Brasil. Isso se deve ao fato de que não apenas os organizadores possuem competência acadêmica, experiência prática e grande faro político, mas também porque eles souberam se cercar dos melhores nomes do terreno. Registre-se, desde já, que eles realizaram a proeza, tanto intelectual quanto prática, de reunir no mesmo empreendimento dois protagonistas inimigos da história econômica recente, Antonio Delfim Netto e Gustavo Franco.
            O texto de Delfim, por exemplo, analisa a evolução da economia brasileira entre 1947 e 2003, com ênfase no processo de desenvolvimento e sua principal restrição: as crises de balanço de pagamentos. Já Gustavo Franco, que nunca deixou de criticar o primeiro (por ter produzido crescimento com o terrível legado do inflacionismo estatal), segue o itinerário de luta contra a inflação até o Plano Real, do qual ele foi um dos principais formuladores e administradores, até sair no episódio da passagem para o regime de flutuação cambial, em janeiro de 1999. Outros autores comparecem com temas relevantes, como a restrição de poupança (Edward Amadeo e Fernando Montero), as causas do crescimento econômico (Regis Bonelli), seu financiamento (Rogério Studart), a desigualdade distributiva (Lauro Ramos e Rosane Mendonça) e, last but no the least, a terrível escassez de educação (Sergio Guimarães Ferreira e Fernando Veloso).
            Estes são os eixos temáticos desta obra verdadeiramente indispensável, mas eles constituem apenas a segunda parte do livro, pois a primeira se dedica, numa trajetória propriamente linear, a oferecer, sob responsabilidade dos próprios organizadores (com a colaboração de Sérgio Besserman Vianna), uma visão panorâmica e abrangente de todo o desenvolvimento da economia e da política econômica brasileira entre 1945 e a atualidade. Como bem ressaltam os organizadores, as ênfases das políticas econômicas vão mudando em função dos cenários (interno e externo) cambiantes e dos principais problemas em cada época: crescimento e superação dos gargalos estruturais, políticas de ajuste externo e de combate à inflação, planos de desenvolvimento e de estabilização e, igualmente importante, a própria mudança de enfoque no pensamento dominante: do desenvolvimentismo estatizante e protecionista à abertura da economia e à privatização.
            O grande mérito deste livro, sobre outras coletâneas existentes, situa-se, assim, na combinação do material histórico, de enfoque propriamente cronológico, com a discussão pormenorizada oferecida nos capítulos temáticos. Três temas, aponta o apresentador (Wilson Suzigan), ficaram de fora da coletânea: a industrialização, o desenvolvimento científico e tecnológico e o desenvolvimento regional, mas isso não chega a comprometer um volume equilibrado e abrangente, já que esses problemas perpassam, mais de uma vez, os capítulos históricos ou os temáticos. Os próprios organizadores reconhecem que a questão das finanças públicas também ficou ausente da segunda parte, mas ela já tinha sido objeto de uma obra básica, de caráter teórico e centrada no caso brasileiro, sob a responsabilidade de um dos autores (Fabio Giambiagi, com Ana Cláudia Além). Os capítulos contêm poucos gráficos e tabelas, mas um utilíssimo apêndice estatístico uniformiza a informação quantitativa para o conjunto dos trabalhos individuais, que passam assim a dispor de um referencial comum de indicadores macroeconômicos.
            A obra, cabe ressaltar, não se dirige em primeiro lugar aos economistas profissionais, mas fundamentalmente aos milhares de estudantes das dezenas de cursos universitários, de graduação ou de pós, que têm de, em algum momento, confrontar-se com os problemas reais do desenvolvimento econômico brasileiro. Ela também deve interessar ao cidadão comum, que busca entender não só as raizes da presente situação – um notável desempenho industrial, um pujante agronegócio, ao lado das mazelas sociais conhecidas e de persistentes desequilíbrios macroeconômicos, seja no plano fiscal e da dívida interna, seja ainda na vilipendiada “dependência financeira externa” –, como as causas de nosso frustrante fracasso em alcançar os países de maior desenvolvimento relativo (de fato a distância em relação a eles voltou a aumentar como resultado do baixo crescimento das duas últimas décadas).
            A obra tampouco pretende oferecer, em algum exercício de síntese, uma interpretação única do processo brasileiro de desenvolvimento, tanto porque os autores mantêm independência de pensamento e efoques analíticos distintos: ainda agora, Delfim Netto e Gustavo Franco, para voltar aos mais conhecidos autores, ostentam interpretações divergentes para o que o segundo chama de desenvolvimentismo inflacionista, ao passo que o primeiro  encontra mais pecados nos desequilíbrios externos do que no tratamento heterodoxo da inflação. 
            Trata-se, em todo caso, da mais importante contribuição bibliográfica surgida no mercado editorial dos livros didáticos de alta qualidade nos últimos anos, mas não só isso: o livro também apresenta utilidade para o tomador de decisões, assim como para os destinatários dessas decisões, que somos todos nós. Ele está, em consequência, destinado a permanecer como uma referência indispensável nessas categorias pelos próximos anos.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 13 de dezembro de 2004




Economia Brasileira, historia (Antonio Dias Leite) - resenha Paulo R Almeida

Na continuidade, um livro de um "executor", até mais do que professor, da economia brasileira nos anos do regime militar:


7. “Economia brasileira: um manual teórico-prático”, Brasília, 27 outubro 2004, 3 p. Resenha de Antonio Dias Leite: A Economia Brasileira: de onde viemos e onde estamos (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004). Publicada na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, ano 1, nº 4, novembro 2004, p. 77; link: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1755:catid=28&Itemid=23). Relação de Trabalhos nº 1347. Relação de Publicados nº 527.

Economia brasileira: um manual teórico-práticoImprimirE-mail
por Paulo Roberto de Almeida
livro010
O mercado de livros para-didáticos parece ser dominado, no Brasil, por economistas (e outros especialistas) teóricos, que vivem apenas na academia e em função dos livros, sem contato com o mundo real da produção, do comércio, da administração pública e da economia internacional. Esse não é o caso deste livro. Antonio Dias Leite escreve um grande livro, preenchendo os requisitos do text-book acadêmico, conjugados às melhores qualidades do ensaismo econômico. O autor, que foi o responsável pela primeira estimativa de renda nacional do Brasil, em 1951, e que acumulou vários cargos públicos - inclusive o de ministro de Minas e Energia em dois governos -, possui credenciais acadêmicas impecáveis, além de vasta bibliografia. Ele realizou um tour de force admirável com esta obra, que mereceria converter-se em referência obrigatória nos cursos de economia das faculdades brasileiras de ciências humanas e de estudos sociais aplicados.

O livro tem quatro partes. A primeira, "De onde viemos, onde estamos", é brevíssima, situando o Brasil no contexto mundial, além de introduzir o leitor aos conceitos básicos da disciplina. A segunda, "Economia essencial", responde à vocação acadêmica do livro, com descrições do processo produtivo, dos fatores de produção e do substrato físico da economia, ademais das interações entre micro e macroeconomia. Na terceira parte, "Economia Abrangente", são abordados o papel do Estado e as relações econômicas internacionais. O capítulo 20 condensa uma rica informação histórica sobre nossa vulnerabilidade externa, acoplada a uma exposição serena e equilibrada sobre as razões e a natureza da dependência financeira.

Na quarta parte "O Brasil chega ao século XXI", mas começa com o retrospecto a partir de 1947, com ênfase no problema inflacionário e nas disparidades entre ritmos de crescimento. O autor assume aqui o papel de "fonte primária", uma vez que foi ator ou espectador de cada um dos episódios pós-Segunda Guerra. É a testemunha ocular transmitindo o que sabe, o que viu ou o que praticou nessas cinco décadas de sucessos e frustrações.

O mais importante para alunos e professores é que não se trata de uma análise "economicista", pois Dias Leite sabe tratar, com concisão e objetividade, de problemas como as reformas institucionais e a crise política, a revisão constitucional de 1995 e a capacidade do país de definir sua estratégia de desenvolvimento. Uma figura é eloqüente nessa parte, a que mede o PIB per capita do Brasil em relação ao dos Estados Unidos: saímos de um patamar de 10% em 1947, atingimos um pico de quase 22% em 1979, e a partir daí estamos numa tendência declinante, com cerca de 13% nos anos recentes. O autor, combatente da causa do desenvolvimento, confessa sua decepção, mas reconhece que o Brasil ainda tem condições de ocupar uma posição relevante no cenário internacional.

O quadro social, objeto do capítulo 22, está focado na pobreza e nas desigualdades, reconhecendo Dias Leite nosso erro básico em não dar a devida atenção ao ensino fundamental. No que se refere às políticas sociais, ele também reconhece, já no governo Lula, uma "desorganização administrativa decorrente da criação de um lote de ministérios voltados para a mesma questão social, subdividida em pedacinhos" (p. 209). Lamenta o abandono da idéia de estratégia nacional, que atribui ao governo FHC e pensa no futuro, abordando as políticas econômicas e as dificuldades do processo de desenvolvimento: constrangimentos externos, problemas internos, a conciliação entre políticas "verticais" e "horizontais", o papel do Estado e as atribuições do Banco Central (e sua política de stop and go, frustrante do ponto de vista dos investimentos). Dias Leite quer "fazer com que as coisas aconteçam", o que não é tarefa para principiantes. Mas os que desejarem um mapa do caminho percorrido até aqui, e uma agenda realista dos problemas que precisam ser resolvidos pelo Brasil têm um excelente manual para o esforço de mobilização das energias nacionais. Teoria e prática nunca estiveram tão bem casadas quanto neste grande livro de menos de 250 páginas.

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)

Agora a versão completa desta resenha:


Economia brasileira: um manual teórico-prático

Antonio Dias Leite:
A Economia Brasileira: de onde viemos e onde estamos
(Rio de Janeiro: Elsevier, 2004)

            O mercado de livros ditos “para-didáticos”, tanto para o ensino médio como para o terceiro ciclo, não parece conhecer recessão nem tendências baixistas. Ao contrário, ele tem taxas “chinesas” de crescimento e parece funcionar em moto contínuo (ainda mais quando movido a dinheiro do MEC), o que configura um verdadeiro Santo Graal para os economistas práticos. Mas, paradoxalmente, ele parece ser dominado, pelo menos no Brasil, por economistas (e outros especialistas) teóricos, que vivem apenas na academia e em função dos livros, sem contato, no mais das vezes, com o mundo real da produção, do comércio, da administração pública e da economia internacional.
            Este não é, certamente, o caso deste livro, um exemplo excepcionalmente bem sucedido (e eu costumo ser comedido nos elogios “livrescos”) de combinação bem estruturada, como raramente se viu no Brasil, entre o saber teórico da economia enquanto disciplina e o conhecimento prático das políticas econômicas. Antonio Dias Leite tinha, aliás, todas as condições para escrever um grande livro de economia brasileira, preenchendo os requisitos do text-book acadêmico, conjugados às melhores qualidades do ensaismo econômico de alta voltagem (isto é, refinado intelectualmente). Seu autor, que foi o responsável pela primeira estimativa de renda nacional do Brasil, em 1951, e que depois acumulou vários cargos públicos – inclusive o de ministro de Minas e Energia em dois governos sucessivos ‑, possui credenciais acadêmicas impecáveis, além de vasta bibliografia especializada (desde sua tese de livre docente, sobre a renda nacional, de 1948). Ele realizou um tour de force verdadeiramente admirável com esta obra, que mereceria converter-se em referência obrigatória nos cursos de economia brasileira das faculdades brasileiras de ciências humanas e de estudos sociais aplicados. A seu favor, registre-se a profissão original de engenheiro, e não de economista, o que parece constituir o background comum de vários grandes economistas teóricos e práticos do Brasil, entre eles os ex-ministros Mário Henrique Simonsen e Pedro Malan.
            O livro está dividido em quatro partes. A primeira, “De onde viemos, onde estamos”, é brevíssima, e permite apenas situar o Brasil no contexto histórico da economia mundial, além de introduzir o leitor aos conceitos básicos da disciplina. A segunda, “Economia essencial” é a que corresponde, no melhor sentido do termo, à vocação acadêmica do livro, com descrições do processo produtivo, dos fatores de produção e o substrato físico da economia (contendo, por exemplo, mapas dos solos e da plataforma continental), ademais das interações entre micro e macroeconomia. Na terceira parte, “Economia Abrangente”, são abordados o papel do Estado e as relações econômicas internacionais. Cada grande área da economia vem ilustrada com dados atualíssimos da economia brasileira: o capítulo 20, por exemplo, sobre as finanças internacionais, realiza a proeza de condensar, em apenas sete páginas, uma riquíssima informação histórica sobre nossa tradicional vulnerabilidade externa acoplada a uma exposição serena e equilibrada sobre as razões e a natureza dessa dependência financeira.
Na quarta parte, “O Brasil chega ao século XXI”, mas o capítulo inicial faz um retrospecto do desenvolvimento a partir de 1947, com ênfase – et pour cause – no problema inflacionário e nas disparidades entre ritmos de crescimento econômico. O autor assume, aqui, praticamente o papel de “fonte primária”, uma vez que ele foi ator ou espectador engajado de cada um dos episódios de nossa errática trajetória de crescimento no pós-Segunda Guerra. É a testemunha ocular transmitindo o que sabe, o que viu ou o que praticou nessas cinco décadas de sucessos e frustrações.
O mais importante, talvez, para alunos e professores de economia brasileira, é que não se trata de uma análise “economicista”, pois Dias Leite sabe tratar, com concisão e objetividade, de problemas como as reformas institucionais e a crise política, a revisão constitucional de 1995 – que retirou o Estado “varguista” do comando da economia nacional – assim como a capacidade do país de definir sua própria estratégia de desenvolvimento, objeto de todo um importante capítulo. Uma figura é bastante eloqüente nessa parte, aquela que mede o PIB per capita do Brasil em relação ao dos Estados Unidos: saímos de um patamar de 10% em 1947, atingimos um pico de quase 22% em 1979, e a partir daí estamos numa tendência declinante, com cerca de 13% nos anos recentes. O autor, velho combatente da causa do desenvolvimento nacional, confessa sua decepção, mas reconhece que o Brasil ainda tem condições de ocupar uma posição relevante no cenário internacional.
            O quadro social, objeto do capítulo 22, está focado obviamente na pobreza e nas desigualdades distributivas, reconhecendo Dias Leite nosso erro básico em não dar a devida atenção ao ensino fundamental. No que se refere às políticas sociais, ele também reconhece, já no governo Lula, “uma segunda desorganização administrativa (a primeira sendo a de Collor) decorrente da criação de um lote de ministérios voltados para a mesma questão social, subdividida em pedacinhos” (p. 209). Ele lamenta, no capítulo 24, o abandono da idéia de estratégia nacional, que ele atribui, expressamente, ao governo Fernando Henrique Cardoso. Depois de tratar dos aspectos éticos na economia, Dias Leite pensa no futuro, abordando as políticas econômicas e as dificuldades intrínsecas ao próprio processo de desenvolvimento: constrangimentos externos, problemas internos, a conciliação entre políticas “verticais” e “horizontais”, o papel do Estado e as atribuições do Banco Central (e sua política de stop and go, frustrante do ponto de vista dos investimentos). Dias Leite quer “fazer com que as coisas aconteçam”, o que provavelmente não é tarefa para principiantes. Mas, os que desejarem um mapa do caminho percorrido até aqui e uma agenda realista dos problemas que precisam ser resolvidos pelo Brasil terão neste livro um excelente manual de bordo para o esforço de mobilização das energias nacionais. Teoria e prática nunca estiveram tão bem casadas quanto neste grande livro de menos de 250 páginas.

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org