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sexta-feira, 10 de julho de 2020

Plano Real: 26 anos; minha resenha de um dos bons livros, de Guilherme Fiuza - Paulo Roberto de Almeida

Em 2006, assim que saiu este excelente livro do jornalista Guilherme Fiuza, fiz uma resenha e organizei um lançamento em Brasília com a presença do autor. Uma de minhas primeira frases, na resenha abaixo, era esta: 

"Da maneira como está construído e redigido, o livro daria um bom filme, se planos de estabilização fornecessem roteiros interessantes para a sétima arte."

Por incrível que pareça, o Plano Real deu filme, muitos anos depois, e tive a chance de assistir, o que recomendo, se ainda estiver disponível nas bases de dados cinematográficas, pois é bem feito. Mas, claro, algumas concessões à dramatização são inevitáveis, e todo o filme traz muito ineditismo de um dos principais personagens do Real, Gustavo Franco. Mas vale a pena assistir.

1698. “O Bunker Voador: a aventura eletrizante do Plano Real”, Brasília, 10 dezembro 2006, 4 p. Resenha de Guilherme Fiuza: 3.000 dias no bunker: um plano na cabeça e um país na mão (Rio de Janeiro: Record, 2006, 331 p.; ISBN: 85-01-07342-3). Publicado no blog Book Reviews em 11.12.2006 (http://praresenhas.blogspot.com/2006/12/88-resenha-3000-dias-no-bunker-de.html). Republicado, com uma inserção publicitária sobre o debate de lançamento em Brasília (em 13/12/06, na Livraria Leitura, do Pátio Brasil Shopping), no blog NoMínimo (12/12/2006). Republicado no blog Diplomatizzando (25/05/2017; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/05/real-o-livro-de-guilherme-fiuza-antes.html).


Paulo Roberto de Almeida 


Guilherme Fiuza:
3.000 dias no bunker: um plano na cabeça e um país na mão
Rio de Janeiro: Record, 2006, 331 p.; ISBN: 85-01-07342-3

Como o antigo refrigerante Grapette ou o atual achocolatado Nescau, este livro tem sabor de aventura. Uma aventura que se prolonga no tempo e que ainda não acabou. Marcos Sá Corrêa, na orelha, resume a trajetória do Plano Real: “Começa num governo desmiolado e sem rumo, o do presidente Itamar Franco. E não acabou ainda em outro governo desmiolado e sem rumo, o do presidente Lula”. O mesmo jornalista também registra que se trata de um livro de repórter, com nenhuma fórmula e muita intriga: “Tem pouco mercado e muito ringue de luta livre. Nenhuma tabela e rasteira de ponta a ponta”. Da maneira como está construído e redigido, o livro daria um bom filme, se planos de estabilização fornecessem roteiros interessantes para a sétima arte.
De fato, a reportagem de Guilherme Fiuza se aproxima mais de um roman à clefs do que de uma história linear do Plano Real, ao estilo, por exemplo, da Real História do Real, de Maria Clara do Prado. O jovem jornalista carioca do NoMínimo retraça, em estilo cinematográfico, as diferentes etapas da concepção, implementação e defesa da nova moeda, sem fazer, em nenhum momento, história monetária. São incursões propriamente teatrais aos episódios mais relevantes de um processo que transcendeu, na verdade, a simples introdução de um novo meio circulante no Brasil, para expor, de maneira viva, toda a trajetória macroeconômica do Brasil nas últimas décadas. Trata-se de uma inside story, que se insere numa great history, cujo cenário principal é dado pelo próprio substantivo que fornece o título ao livro: um bunker.
O conceito militar de bunker é, obviamente, o de uma posição ou posto defensivo, não necessariamente fortificado, mas isolado ou protegido dos ataques inimigos pela sua estrutura de aço e concreto, geralmente escondido ou subterrâneo. Meu adjetivo “voador” se deve a que a capa do livro é a de uma planície desolada com o perfil de Brasília ao fundo e um avião solitário num imenso céu em tonalidade ocre. O bunker a que se refere Fiuza foi de fato voador, ou móvel, e é aplicado à pequena equipe de valorosos combatentes da estabilidade macroeconômica que tomou forma a partir da assunção de FHC como ministro da Fazenda, em maio de 1993. “Como era uma metáfora”, explica o autor, “o bunker podia ser em qualquer lugar. E durante um bom tempo a equipe de Fernando Henrique trabalhou de forma totalmente subterrânea...” (p. 44).
O grupo se decompôs ao longo do tempo, mas seu legado, inegavelmente positivo, está conosco ainda hoje, sob a forma de uma economia menos esquizofrênica do que aquela que conhecemos ao longo das últimas décadas do século passado. Os economistas Pedro Malan, Gustavo Franco, Winston Fritsch, Edmar Bacha, André Lara Resende e Persio Arida, mais o administrador Clovis Carvalho foram os integrantes mais intimamente ligados ao poder político do novo ministro da Fazenda. Eles conceberam, implementaram e defenderam o novo plano de estabilização contra os ataques de vários exércitos inimigos, geralmente políticos fisiológicos, economistas românticos, sindicalistas corporativistas (mas isso é uma redundância) e industriais protecionistas. 
Existem vários outros personagens, evidentemente, que interagiram a diversos títulos e em diferentes momentos com o bunker, dentre os quais poderiam ser citados: Sérgio Besserman Vianna, o “comunista” do BNDES convertido às virtudes de uma economia competitiva; Marcelo de Paiva Abreu, que entrou e saiu do governo Collor logo no primeiro dia, ao descobrir que o seu chefe de gabinete, já designado, era um homem de PC Farias; David Zylbersztajn, outro antigo comunista que aprendeu que o socialismo não funcionava e montou o esquema paulista das privatizações e o modelo federal das agências reguladoras; Murilo “Mãos de Tesoura” Portugal, o homem que fechou o caixa do Tesouro ao apetite voraz de gastadores contumazes; José Serra, que chegou, viu, mas não se convenceu, sobretudo pelo lado cambial; além de vários outros, economistas de passagem ou funcionários da burocracia permanente do Estado.
Ator central nessa trama, além de Pedro Malan – o mais longo ministro econômico da história do Brasil, com exceção de Souza Costa, que serviu à ditadura Vargas –, foi o jovem economista da PUC Gustavo Franco, sucessivamente Secretário Adjunto de Política Econômica, diretor de Assuntos Internacionais e presidente do BC. Estrategista econômico, articulador das principais medidas que estiveram na base do lançamento da URV, operador prático – e defensor corajoso – da nova moeda, Gustavo Franco representou, por assim dizer, a verdadeira alma do Plano Real, o que está refletido em seus muitos livros de ensaios e crônicas, desde O Plano Real e Outros Ensaios (1995), até o mais recente Crônicas da Convergência (2006), passando por O Desafio Brasileiro: ensaios sobre desenvolvimento, globalização e moeda (1999), além de várias outras contribuições a livros coletivos ou artigos em periódicos de grande tiragem. 
Ademais de um gosto incomum pela história, para um economista, Gustavo Franco tem um dom também incomum para a polêmica e o debate de idéias, este, infelizmente, muito pouco cultivado no Brasil, reduzindo-se, na maior parte das vezes, a uma troca ácida de acusações entre os contendores. Conhece-se, aliás, no Brasil, a ofensiva invulgar deslanchada pelos economistas ditos desenvolvimentistas contra os fundamentos do plano de estabilização, que foi por eles equiparado a nada menos do que uma operação de rendição ideológica e de submissão prática aos ditames de Washington, aos cânones de neoliberalismo e a não se sabe qual, exatamente, das regras do chamado Consenso de Washington, tão desprezado quanto desconhecido nessas hostes. Fiuza reproduz parte da crítica de uma conhecida professora da USP, marxista, a um artigo de Gustavo Franco sobre as virtudes da abertura comercial para o crescimento econômico: ela parte do “capital mundializado” para condenar o “absoluto domínio do credo liberal”, entre outras bobagens. Franco, em resposta, perguntou apenas por que a professora estava tão zangada: ela “fala da ‘atual etapa do sistema capitalista’ com um verdadeiro nojo, como se estivesse segurando um rato nas mãos” (p. 214). Em outros artigos, ele não deixava de fustigar os “parnasianos” da Unicamp, com sua prosa rebuscada, plena de fetichismos e de financeirização.
Mas, esse é o lado prosaico, digamos assim, do combate diário pela sobrevivência da nova moeda, atacada à direita e à esquerda com igual desenvoltura e inacreditável insensibilidade em relação aos cofres públicos. Havia outros aspectos, preocupantes, da sabotagem, consubstanciada, justamente, na gastança generalizada das estatais e das agências públicas de modo geral. Fiuza relata o caso ocorrido com David Zylbersztajn, levado à direção da Eletropaulo: encontrou um fabuloso contrato com uma empresa de vigilância no qual cada hora de trabalho de um vigilante representava o inacreditável valor de 28 dólares. “O responsável explicou-lhe que, infelizmente, não existiam no mercado seguranças confiáveis por um valor inferior àquele. Zylbersztajn não prolongou a conversa: ‘— Não tem mais barato? Ok, então rescinde todos os contratos. Acabou a segurança. Por esse preço, prefiro o ladrão’” (p. 170). 
O essencial da reportagem de Fiuza está voltado aos ataques especulativos ao real, no bojo das crises financeiras internacionais. Esses ataques tinham pouco a ver, no entanto, com alienígenas de Wall Street, como gosta de acreditar a esquerda, e sim com os espertos capitalistas nacionais, sempre prontos a arbitrar as pequenas diferenças de cotação no valor da moeda, como resultado das suas próprias operações concertadas. Gustavo Franco, atento ao jogo pesado desses brokers, comandou pessoalmente, das mesas de câmbio do BC, operações defensivas e ofensivas, dobrando o mercado com lances ousados e algumas táticas inesperadas. O real sobreviveu a esses ataques especulativos “clássicos”, mas não foi capaz de resistir a uma operação mais singela, consistindo na suspensão do pagamento, em janeiro de 1999, da dívida estadual de Minas Gerais, determinada pelo então governador, e ex-presidente, Itamar Franco: no espaço de poucos dias as reservas se tinham volatilizado, resultando na saída de Gustavo Franco da direção do BC e na própria mudança do regime cambial. Vários lances dramáticos desses dias estão perfeitamente reconstituídos no livro de Fiuza, numa espécie de crônica dos eventos correntes em tempo real. 
Ainda segundo a orelha, 3.000 dias no bunker foi escrito em três meses, quase sempre de madrugada, às vezes virando a noite. Acredito: eu também passei uma madrugada inteira lendo este livro, sem o largar um minuto, com a boca seca e os olhos piscando, impossível largar. A história é muito importante: ela fala do nosso país, como ele foi reconstruído em sua dignidade monetária, que há muito tinha deixado de existir. E não se trata de história documental, insossa, em economês ou juridiquês: é uma história real do real, feita por homens em carne e osso, idéias e sentimentos, conquistas e frustrações. Uma história que estava esperando ser contada.
Poucos sabem, por exemplo, que a inspiração para a URV foi retirada por Gustavo Franco da experiência do rentenmark, a moeda indexada com a qual o “mago das finanças” Hjalmar Schacht salvou a Alemanha da hiperinflação nos anos 1920. Fiuza conseguiu traduzir muito bem os sentimentos do enfant terrible do BC na concepção, montagem e defesa da nova moeda brasileira. Sua obra, o real, ainda está de pé. Seus inimigos de outrora devem a ele o atual sucesso eleitoral. Uma simples palavra de agradecimento, por essa obra de estadista, não seria descabida. Este livro dá todas as razões para esse beau geste...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 dezembro 2006
1698. “O Bunker Voador: a aventura eletrizante do Plano Real”, Brasília, 10 dezembro 2006, 4 p. Resenha de Guilherme Fiuza: 3.000 dias no bunker: um plano na cabeça e um país na mão (Rio de Janeiro: Record, 2006, 331 p.; ISBN: 85-01-07342-3). Publicado no blog Book Reviews em 11.12.2006 (http://praresenhas.blogspot.com/2006/12/88-resenha-3000-dias-no-bunker-de.html). Republicado, com uma inserção publicitária sobre o debate de lançamento em Brasília (em 13.12.06, na Livraria Leitura, do Pátio Brasil Shopping), no blog NoMínimo (12.12.2006). Republicado no blog Diplomatizzando(25/05/2017; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/05/real-o-livro-de-guilherme-fiuza-antes.html). 

domingo, 17 de fevereiro de 2019

As novas rotas da seda: livros sobre a Asia - The Economist

Como a nova Rota da Seda torna a Eurásia o novo centro do mundo

Três livros argumentam que o equilíbrio da geopolítica muda com os investimentos da China para integrar o continente.


Redação, The Economist
16 Fevereiro 2019 

Indagado como decidiu escrever O Senhor dos Anéis, J.R.R. Tolkien respondeu: “Eu sabiamente comecei com um mapa e inseri nele a história”. Portanto, diz Bruno Maçães, quando se imagina novas realidades é natural começar desta maneira. Hoje um mapa revisado do mundo deve ter um foco radicalmente diferente dos anteriores – porque um vasto e integrado subcontinente eurasiano vem provando ser a característica marcante de uma ordem global emergente.

Rota da Seda
O presidente da China Xi Jinping Foto: Feng Li/Reuters
Antes, quando Oriente era Oriente e Ocidente era Ocidente, o fosso entre os dois não era somente geográfico, mas também moral e histórico. “Ásia” foi um termo inventado pelos europeus para enfatizar sua própria especificidade; para os imperialistas da era Kipling, as sociedades asiáticas eram atrasadas, despóticas e imutáveis. A Europa, pelo contrário, havia registrado avanços decisivos ao adotar um enfoque científico para as questões humanas – o que justificou seu domínio sobre outros continentes. À condescendência a resposta foi a concorrência. Desde a Restauração Meiji do Japão, em 1868, a modernização da Ásia por muito tempo se tornou uma cópia do Ocidente, ou por admiração pelos europeus ou por repulsa a eles, ou ambas as coisas. As transformações econômicas desde a 2.ª Guerra Mundial foram moldadas em parte pelas necessidades dos mercados ocidentais. 
Mas hoje a modernização que a Europa levou no início para a Ásia vem seguindo o caminho contrário. O continente eurasiano hoje está em ebulição com novas conexões, graças aos cabos de fibra ótica, gasodutos, estradas, pontes e zonas de manufatura ligando Oriente e Ocidente. Há dois anos, um trem de carga iniciava viagem em Yiwu, no leste da China, e chegava a um terminal ferroviário a leste de Londres. A façanha foi amplamente simbólica. Ninguém mais duvida que Ásia e Europa estão no mesmo voo.
Esse processo é o pontapé inicial de três novos livros muito estimulantes, que deixam claro que o mapa da política mundial como foi traçado há sete décadas não é mais adequado. Do centro do antigo mapa, como descreve Maçães, o poder dos Estados Unidos irradiava para a Europa e os extremos orientais da Eurásia, agindo como “uma espécie de desenvolvimento futuro contra os perigos emanando do seu núcleo mais profundo”, ou seja, os desafios comunistas representados por Moscou e Pequim. 
Hoje a integração cada vez mais profunda do supercontinente eurasiano que emergiu da Guerra Fria, com todas as deslumbrantes cidades que brotaram nos desertos, os portos que vêm sendo construídos ao longo das costas indo-pacíficas, não deveria surpreender os estudantes do capitalismo e do desenvolvimento. Mas muitos especialistas ocidentais em previsões erraram ao imaginarem que esse mundo seria feito à imagem do Ocidente; que ele adotaria não só as teses econômicas ocidentais, mas também os valores políticos liberais, com seu suposto apelo e legitimidade universal. Basta olhar para a extensão de terra da China e da Rússia para ver a insanidade dessa suposição. Outras potências iliberais, particularmente a Turquia e o Irã, vêm usando as glórias históricas do passado para evocar um futuro renovado, projetando poder ao longo de novas rotas da seda.
A integração econômica não está dissolvendo tais diferenças em termos de valores, mas reforçando. E não está claro que América e Europa conseguirão fazer muita coisa a respeito. Difundir os ideais democráticos não é uma prioridade fundamental para os Estados Unidos; o país deseja cada vez mais exercer poder à distância. A Europa Ocidental está se voltando para si mesma – profunda ironia – em resposta às crises que eclodem na Eurásia e chegam até ela, como as ondas de imigrantes e a intromissão da Rússia nas regiões de fronteira da Europa e sua política interna.
Maçães, cientista político português e antigo ministro do Exterior, esboçou alguns dos seus argumentos no livro The Dawn of Eurasia (O Despertar da Eurásia), publicado no ano passado. Em Belt and Road (Cinturão e Rota) ele examina principalmente o papel da China na remodelação do mundo. Até agora o projeto que é a marca do país no campo da política externa, é a iniciativa conhecida como “Um Cinturão, Uma Rota”. Abrangendo diversos países e US$ 1 trilhão em investimentos prometidos em infraestrutura, o objetivo é criar uma nova economia global com a China no centro. Apesar das negativas, esse projeto é também uma peça importante de engenharia geopolítica. Reflete o desejo da China de moldar seu ambiente externo em vez de simplesmente se adaptar a ele. Algumas pessoas se antecipam que esta será a maneira de a China substituir uma ordem internacional liderada pelos Estados Unidos pela sua própria. 
Comece com o mapa e a história o acompanha, como fazia Tolkien. Mas não há nenhum plano ou trama, diz Maçães. O presidente Xi Jinping e seus acólitos não são adeptos do determinismo marxista. Lenin é o melhor modelo quando aproveitam a chance fugaz de mudar o curso da história.
Com diz Peter Frankopan, historiador de Oxford, em The New Silk Roads (As Novas Rotas da Seda), quando Mike Pompeo, secretário americano de Estado, anunciou em julho um projeto dos EUA em oposição à Iniciativa “Um Cinturão, Uma Rota”, a soma prometida foi de US$ 113 milhões em novos programas – pouco mais do que a renda combinada de Ivanka Trump e Jared Kuchner. Do mesmo modo que Belt and Road acrescenta ao trabalho anterior de Maçães, The New Silk Roads também atualiza o magnífico livro de Frankopan, The Silk Roads (As Rotas da Seda), de 2015, que mudou a opinião de muitos leitores quanto a onde se situa o centro de gravidade histórico do mundo.
A China vem reprocessando uma velha doutrina. Segundo o antigo conceito do tianxia, ou “tudo sob o céu”, a China estava no centro do poder e da civilização. Preceitos morais governavam as relações entre Estados. Observamos ecos disto nas ideias de Xi Jinping de uma “comunidade de um futuro compartilhado para a humanidade” e na constante ênfase nos resultados em que todos ganham, na dependência e no respeito mútuos. As obrigações dos países dependem do seu lugar numa rede cujo centro é a China.
A gratidão e a dependência dos outros são convenientes para a China à medida que ela busca reciclar seu superávit de divisas externas, empregar seus trabalhadores em canteiros de construção no exterior, garantir matéria prima e impingir uma produção de baixa qualidade para outros de modo a manter internamente sua melhor manufatura e melhores serviços de alta tecnologia. O governo Trump qualifica essa abordagem de “diplomacia da armadilha da dívida”. Mas esta noção deixa de lado a atração que ela exerce para muitos beneficiários da generosidade chinesa. No momento ninguém se mostra tão generoso quanto ela.
Além disto, como afirma Parag Khanna em The Future is Asian (O Futuro é Asiático), em que faz uma avaliação otimista de uma Grande Ásia, outros países recebem com simpatia as incursões da China “porque elas dão cobertura para eles implementarem suas próprias agendas comerciais”. E o fato de Índia, Japão, Coreia do Sul e Turquia se lançarem numa corrida infraestrutural armamentista não implica um jogo de soma zero em que uns ganham e outros perdem. Para Khanna, geoestrategista indiano radicado em Singapura, a China está “dando o pontapé inicial num processo pelo qual os asiáticos sairão debaixo da sua sombra”.
Khanna mostra-se pouco preocupado com os inconvenientes do autoritarismo. Ele atribui muita habilidade tecnocrática às elites da região e analisa superficialmente as brutais dimensões do desenvolvimento, incluindo a repressão da China contra os uigures. Mas, num ponto importante, ele concorda com Maçães e Frankopan: o futuro da Eurásia deverá ser mais maleável e não imutável e hegemônico. Nesta nova ordem mundial, as ações ainda provocarão reações. O alinhamento crescente do Japão, Austrália e Índia, países democráticos, em resposta ao posicionamento mais assertivo da China é somente um caso em análise.
Inevitavelmente, a Eurásia será coesa, mas não com base na opressiva união baseada no conceito do tianxia. Em seus aspectos diferentes, esses livros servem como antídoto aos temores americanos de uma disputa maniqueísta com a China. E detalham as forças latentes que já são impossíveis de ignorar. 

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

No One’s World, by Charles A. Kupchan - Resenha de Oliver Stuenkel

Acabo de receber este livro, que comprei de segunda mão, no Abebooks, bem barato, a despeito de ser relativamente recente.
Concordo, em grande medida, com a resenha abaixo de meu colega acadêmico e de Academia.edu, que fui buscar nessa plataforma, mas sempre insisto em que as pessoas, autores ou resenhistas, sempre fazem certa confusão em torno da política externa do Brasil, ao dizer, por exemplo: o Brasil fez isto, ou o Brasil fez aquilo. Sempre sou tentado a corrigir, dizendo: não foi o Brasil, foi o PT, ou foi Lula. O exemplo citado é o famoso "acordo nuclear" turco-brasileiro-iraniano", rejeitado imediatamente pelo P5+1, pois não preenchia os mínimos requerimentos solicitados pelos membros do CSNU mais a Alemanha, quanto às garantias de desenvolvimento pacífico da energia nuclear.
Foi o Brasil que fez esse acordo? Duvidoso que o Itamaraty se engajasse, por vontade própria, nesse assunto, que foi conduzido quase solitariamente pelo chanceler de Lula a pedido deste, que talvez aspirasse a qualquer outra coisa que não apenas o acordo nuclear em questão.
Bem, ainda vou ler o livro, e depois opinar.

Paulo Roberto de Almeida

Book review: 


No one’s world: the West, the rising rest and the coming global turn
Charles A. Kupchan
New York and Oxford: Oxford University Press, 2012, 272 p.
International Affairs, vol. 89, n. 4, 2013, p.1025-1027


What will replace the western world order once the United States is no longer capable of exercising global leadership? Will China’s rise be ‘unpeaceful’ and prove to be disruptive, as John Mearsheimer argues, or will rising powers support today’s system that is ‘easy to  join and hard to overturn’, as G. John Ikenberry predicts? Who will rule the world once the United States’ reign ends, and what will such a world look like? Is it a ‘post-American world’, a ‘Chinese world’, or simply a western world order under non-western leadership? 

Rejecting such predictions, Charles Kupchan predicts that tomorrow’s world will ‘belong to no one’. Before elaborating on this claim, the author briskly moves through centuries of history to explain why the West was quickly able to develop economically and leave other, tradition-ally successful, regions behind, thus initiating western global dominance. While the world had historically been compartmentalized, with each region operating according to cultur-ally particular and exclusive principles, the author argues that Europe’s rise helped create one single global system: as European powers conquered the world, ‘they also exported European conceptions of sovereignty, administration, law, diplomacy, and commerce’ (p. 65) — thus creating what we now call the ‘western world order’. Kupchan writes that ‘remaking the world in its own image was perhaps the ultimate exercise of Western power’ (p. 66). 

The West’s capacity to define modernity caused generations of non-western thinkers to argue about whether there was a dierence between modernization and westernization. Kupchan shows that in a few decades, at least three BRIC countries will be among the world’s five leading economies, and he predicts that there will be multiple versions of modernity. Not only do the characteristics of Brazil’s, India’s and China’s rise dier markedly from Europe’s, but their cultural DNA is dierent, too, he argues. 
This is hardly news; the author fails to explain how internal peculiarities aect countries’ strategy vis-à-vis the global system. His assertion that ‘much of Latin America has been captivated by left-wing populism’ and that this represents ‘an alternative to the West’s brand of liberal democracy’ is controversial (p. 90). What exactly are the characteristics of the ‘West’s brand of liberal democracy’? Is Brazil’s democratic system fundamentally dierent from, say, Portugal’s?
  
The author speaks of the ‘West’ as if it were a cohesive bloc, a somewhat misleading idea to begin with. For example, he writes that Brazil’s then President Lula’s decision in 2010 to meet Iran’s Mahmoud Ahmadinejad to negotiate Iran’s nuclear programme serves as proof that Brazil will not accept the western global order. Turkey’s quarrels with Israel are supposedly evidence of Turkey’s drift away from the West. Yet such views find little support among policy-makers and analysts in Brazil and Turkey. Equally controversially, Kupchan argues that India’s voting behaviour in the UN shows that ‘its interests and status as an emerging power are more important determinants of its foreign policy than its democratic institutions’ (p. 143), thus implying that the United States’ democratic institutions are somehow more important to US policy-makers than the national interest. 

Yet the history of US foreign policy is littered with instances when strong partnerships with non-democratic regimes were established to promote US national interest—not at least in the Middle East where Saudi Arabia remains an important US ally. This highly US-centric argument paradoxically shows how dicult it will be for policy-makers in Washington to adapt to a truly multipolar world in which the United States will be one among several large actors. 

Kupchan thus interprets emerging countries’ independent foreign policy strategies as evidence that they will undermine today’s global order, all the while overlooking the fact that despite their growing strength, there is little evidence that countries such as China seriously challenge the norms and rules that undergird today’s system. In the final chapter, Kupchan lays out a series of interesting ideas about how the new world order could appear. He argues that ‘the West will have to embrace political diversity rather than insist that liberal democracy is the only legitimate form of government’. He rightly observes that ‘even as the West does business with autocracies … it also delegitimizes them in word and action’ (p. 187). Kupchan argues that while such a pro-democracy stance  may be morally compelling, it was simply not pragmatic and made unnecessary enemies in the emerging world. He declines, however, to specify at which degree of a dictator’s nastiness the West should switch from cooperation to condemnation. 

No one’s world is sprinkled with interesting insights, yet the ground Kupchan covers is vast, forcing him often to remain superficial and to rely on sound bites when commenting on other countries’ domestic aairs. ‘The world’, he writes, ‘is headed toward a global dissensus’ (p. 145). The prediction that we will live in a world with competing narratives (rather than a convergence towards a western narrative) is an important starting point. Yet Kupchan could oer a more rigorous analysis of what these competing narratives might look like. 

Oliver Stuenkel, Fundação Getulio Vargas, Brazil

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Prata da Casa: as instituições de Bretton Woods - Carlos Marcio B. Cozendey

Como é meu habito, sempre leio e resenho os livros dos diplomatas, de qualidades notoriamente desiguais, em função dos diferentes formatos dos textos originais. Muito frequentemente se trata de teses internas ao Itamaraty, e são portanto cercados por todos aqueles cuidados que o diplomata, em face de uma banca que pretende esquartejá-lo, deve tomar para justamente evitar esse massacre. Outros são livros escritos para um público externo, o que pode aumentar ou diminuir outras qualidades, mas enfim, a maior parte do que tenho lido supera justamente a maior parte do que vejo publicado no mundo acadêmico.
É o caso deste pequeno livrinho, da coleção Em Poucas Palavras, que reúne todas as qualidades para ter sido publicado por uma grande editora comercial, e conhecer assim divulgação mais ampla.
Eu acabei de fazer uma resenha, mas aí me dei conta que já tinha feito a resenha para um número anterior do Boletim da ADB, a associação dos diplomatas.
Bem, junto as duas aqui para novamente expressar meu reconhecimento por essa obra.
Paulo Roberto de Almeida 

Carlos Márcio B. Cozendey:
Instituições de Bretton Woods: desenvolvimento e implicações para o Brasil
(Brasília: Funag, 2013, 181 p.; ISBN 978-85-7631-488-2; Coleção Em Poucas Palavras)

As 160 páginas do corpo de texto não perfazem exatamente um livro “em poucas palavras”, mas cada linha da obra está impregnada de um triplo conhecimento: histórico, teórico e prático, sobre as origens, o desenvolvimento, nas décadas seguintes, e sobre o funcionamento atual dos dois irmãos de Bretton Woods, o Banco e o Fundo, que foram criados em 1944 na pequena cidade do New Hampshire para presidir à ordem econômica do pós-guerra. O autor é o secretário de Assuntos Internacionais da Fazenda, e como tal segue, no G20 e em outras instâncias, as negociações para a reforma do sistema monetário, que já passou por fases melhores do que a atual. Depois das paridades cambiais estáveis, o regime de flutuação não ajuda a manter a estabilidade mundial, mas o maior perigo advém dos desequilíbrios fiscais nacionais, um tema que todavia foge do escopo deste livro. 
           
O autor conhece a bibliografia e domina a teoria do comércio e das finanças internacionais. Mais importante: ele é o negociador brasileiro nas duas irmãs de Bretton Woods e no G-20 financeiro, o que lhe dá um conhecimento direto das diferenças entre o ancien régime e o novo, que não é bem um regime, e sim arranjos parciais e limitados entre os principais protagonistas, para evitar as “guerras cambiais” do passado. O dólar continua tão hegemônico quanto foi na origem, embora o Banco Mundial já não seja tão importante como no imediato pós-Segunda Guerra. O G-20, contudo, tem menos da metade dos participantes da conferência de 1944, e a distribuição de poder econômico é mais equilibrada; ou seja, a oligarquia financeira continua firme no comando do timão, embora as divergências sobre o que fazer continuem tão agudas quanto antigamente.

  

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Mais um pouco de Pikettysmo, mas serio e bem feito - Carlos Goes (Mercado Popular)

O Piketty é pop

Entenda o livro de economia mais badalado do século, seus acertos e seus erros.
"Capital in the Twenty-First Century", de Thomas Piketty. (Harvard University Press, 2014, 685 páginas)
“Capital in the Twenty-First Century”, de Thomas Piketty. (Harvard University Press, 2014, 685 páginas)
É estranho pensar que um livro de teoria econômica de 700 páginas está entre os dez livros mais vendidos da Amazon. Capital no Século XXI, o novo livro do francês Thomas Piketty, colocou os centros intelectuais dos Estados Unidos de pernas para o ar. Ao capitalizar sobre um tema central da política americana no momento – o aumento da desigualdade econômica – o livro foi alçado para o topo das listas de mais vendidos. Essa excêntrica popularidade tornou Piketty um rockstar da noite para o dia e faz do seu Capital o livro mais importante de economia do século – ao menos até agora.

As contribuições e a tese de Piketty

Não acredite em quem diz que Piketty (ou seu livro) não é sério. O catálogo empírico que relata tendências de (des)igualdade social nos últimos 300 anos é uma contribuição importantíssima para a história econômica. O autor organizou dados dos fiscos nacionais de diversos países para estimar qual porcentagem da renda nacional (ou seja, de tudo aquilo que é produzido por uma sociedade durante um ano) é retida pelos diversos estratos sócio-econômicos.
De fato, o Capital é muito mais um compêndio estatístico e um relato de história econômica que um livro de teoria. Sua parte teórica é, contudo, intrigante.
Para lançar as bases de sua teoria, Piketty analisa como a renda nacional é divida entre dois insumos essenciais ao processo produtivo: capital e trabalho (chamados em economês de “fatores de produção”). Essa divisão entre capital e trabalho não é, como pode soar, algo tipicamente marxista. É uma tradição que se estende desde os economistas clássicos como Smith e Ricardo e, com tons e perspectivas diferentes, passa por Marx, Mises, Friedman e Keynes. É também algo comum em qualquer curso de graduação em economia (para os curiosos, veraqui).
É importante entender que a remuneração, tanto do capital quanto do trabalho, está ligada à produtividade de cada um desses “fatores”. Quanto maior a produtividade de um trabalhador (ou seja, quanto mais ele produz e quão maior a qualidade de seu produto ou serviço por cada hora de trabalho), maior tende a ser seu salário. Igualmente, quanto maior for o valor do produto (ou serviço) que cada unidade de capital (uma máquina, um computador, um prédio) produz, maior vai ser a remuneração de quem é o dono daquele capital.
Sobre essa base, que é consenso na economia, Piketty constrói uma tese polêmica. O argumento, de forma bem simplificada, é: como os rendimentos [r] do capital (imóveis, ações, máquinas, títulos de dívida, conta de poupança no banco, etc.) tendem a ser maiores do que o crescimento da produtividade dos trabalhadores [g], os donos dos bens de capital vão ver sua riqueza aumentar mais rapidamente que o resto da população. (Na verdade, g inclui o crescimento populacional e o crescimento da produtividade, mas o crescimento populacional futuro vai se aproximar a zero, tornando essa variável menos relevante).
E como a renda do capital é muito mais concentrada do que a renda do trabalho, se r > g, a consequência seria um aumento da desigualdade de renda. Outra consequência dessa premissa (r > g) seria que a quantidade total de riqueza acumulada (nas mãos de poucos) aumentaria. Com essa dupla desigualdade (de renda e de riqueza), a mobilidade social seria restringida, uma vez que a renda presente passaria a ser menos relevante frente à riqueza herdada.
O autor relata que uma classe não-meritocrática de herdeiros que não trabalharam por suas fortunas era comum no século XIX. Piketty vai além, ao afirmar que esse movimento de concentração (impulsionada pelo suposição de que r > g) é uma tendência inerente à economia capitalista. Ela teria sido revertida no século XX por situações extraordinárias (guerras mundiais, crescimento populacional alto e “impostos confiscatórios”, nas palavras do autor), mas voltará a ser uma realidade no século XXI.

O principal problema da tese de Piketty

Existe um problema muito grande na tese de Piketty. Ele (quase) desafia uma das relações mais constantes na economia: a lei dos retornos marginais decrescentes. Essa relação não é muito difícil de ser compreendida.
A lógica é simples: do mesmo modo que aquele bem mais escasso em relação a outros bens tende a ter um preço mais alto no mercado, quanto mais escasso o fator de produção (capital ou trabalho), maior tende a ser a sua produtividade (e, por consequência, sua remuneração).
Pense da seguinte maneira.
Você tem uma empresa de jardinagem e corta gramados por aí. Você tem dois funcionários e uma máquina de cortar grama. Os funcionários trabalham de oito da manhã até seis da tarde, revezando-se em turnos de uma hora. Eles recebem uma comissão por cada casa que tem sua grama cortada. Nesse cenário, a máquina vai ser utilizada por 10 horas sem parar e cada trabalhador vai ter 5 horas de produtividade.
O que acontece se você comprar uma outra máquina de cortar grama (um unidade extra de capital)? Seus trabalhadores vão continuar trabalhando de oito às seis. Mas agora eles não precisam se revezar na máquina. Vão tirar suas necessárias duas horas de almoço e trabalhar de oito ao meio dia e de duas às seis.
Nesse novo cenário (com o aumento de capital), a produtividade média dos trabalhadores aumenta de 5 para 8 horas por dia. Você vai poder atender mais casas, aumentar a comissão de seus funcionários e ainda assim ganhar mais dinheiro.
Mas se antes a máquina funcionava dez horas sem parar, agora cada uma delas fica ociosa durante duas horas. A produtividade média por cada máquina caiu de 10 para 8 horas por dia. Embora você e seus funcionários ganhem mais dinheiro no total, o seu retorno pelo investimento feito em cada máquina (a “remuneração do capital”) vai ser menor.
Se a quantidade de capital acumulado aumentar, como Piketty prevê, a produtividade dos trabalhadores (g) deve aumentar e os retornos ao capital (r) devem diminuir. Com o estoque de capital aumentando, em algum momento [r] vai ser igual a [g]. E se a quantidade de capital crescer demais, a relação se inverte de tal modo que r < g! Parece difícil justificar as previsões de baixo crescimento da produtividade dos trabalhadores em um mundo com uma disponibilidade de capital tão grande quanto Piketty argumenta que o século XXI terá – em especial em um mundo em que o crescimento populacional, como o autor ressalta, deve estagnar.
O francês reconhece, em bom economês, que “é natural esperar que a produtividade marginal do capital diminua à medida que o estoque de capital aumenta” (p. 215). Mas acha que o ritmo dessa diminuição vai ser bem lenta. Se os capitalistas tiverem muita facilidade em substituir trabalhadores por bens de capital (como Piketty acha que eles têm), o aumento da quantidade de capital vai ser mais rápido que a diminuição da sua rentabilidade, o que implicaria que uma parcela maior da renda nacional ficaria com os proprietários e uma parcela menor com os trabalhadores.
Na lógica de Piketty, segue-se o ciclo: mais capital, mais renda para os mais ricos, mais desigualdade, menos mobilidade social. QED (dito latino para “como foi demonstrado”). Mas…ele demonstrou isso mesmo?
Qual o problema nessa lógica? Apesar de trazer um compêndio estatístico muito amplo, as evidências que ele apresenta em apoio à sua tese são bem escassas. Elas não passam de uma correlação aparente. Tão importante quanto isso, uma boa parte dos economistas que estuda essa velocidade de substituição entende que ela era até hoje superestimada, e não subestimada como afirma Piketty. (Para quem gosta de economês, o jargão para se referir a essa relação é “elasticidade de substituição entre o capital e o trabalho”.)
Quando se testa uma teoria, ela precisa passar por um duplo teste da razão. O primeiro testa a coerência interna de uma teoria – e nesse teste a tese central de Piketty passa, pois o francês trabalha sobre um quadro de análise já bem familiar à economia. O segundo é o de consistência externa, isto é, provar que as premissas teóricas são de fato verdadeiras – e nesse teste o novo popstar da economia não chega a passar.

Problemas adicionais da análise de Piketty

Uma das análises recorrentes no Capital é o argumento de que um aumento na desigualdade tende a criar uma aristocracia que vive de rendas e não de seu próprio trabalho – ou seja, que é rica por ter herdado uma fortuna e não por ter construído sua própria fortuna. A lógica faz algum sentido. Quanto maior parte da renda nacional fica com o donos do capital e quanto maior o estoque de riqueza acumulado, mais difícil é alguém se alçar à condição de rico e a riqueza herdada passa a ter mais relevância. Assim era o mundo no século XIX. E, traçando um paralelo com o século XIX, Piketty conclui que o atual aumento da desigualdade necessariamente levará a uma falta de mobilidade social.
Mas isso é sempre verdade? Ainda que o 1% mais rico de 2014 tenha uma parcela maior da renda do que o 1% de 1980, isso não significa que as pessoas que eram o 1% mais rico em 1980 (ou seus descendentes) continuem a ser os mais ricos em 2014.
Na verdade, existe uma volatilidade grande quanto a quem faz parte de cada uma das camadas de renda na sociedade. Os economistas Mark Rank e Thomas Hirschl, após acompanharem dados de renda das mesmas pessoas durante 40 anos, chegaram a uma impressionante conclusão: 73% dos americanos passaram ao menos um ano dentre os 20% mais ricos; 56% dentre os 10% mais ricos; 39% dentre os 5% mais ricos; e 12% entre o 1% mais rico. As pessoas experimentam tanto riqueza quanto pobreza no curso suas vidas, o que indica não uma elite estática, mas uma significativa mudança quanto a quem ocupa o vértice (e a base) da pirâmide de renda em momentos distintos.
Outro método de verificar essa mesma volatilidade é olhando a lista dos mais ricos do mundo publicada pela revista Forbes. O banco Credit Suisse analisou essa persistência e verificou que, à medida que o tempo passa, a maioria dos ricaços é substituída por novos ricaços (veja o gráfico abaixo), o que enfraquece a tese de Piketty de uma aristocracia estática controlando a sociedade do topo. A desigualdade pode estar aumentando, mas não necessariamente a mobilidade social está acabando.
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Um segundo ponto que Piketty acaba ignorando é que, segundo seus próprios dados, quase a totalidade do aumento do capital a partir dos anos 1980 decorre do aumento do valor total das habitações. Como o autor reconhece, esse processo ocorreu simultaneamente ao surgimento do que ele chama de “classe média patrimonial” (p. 186). Se no século XIX a classe média (os 40% do meio da distribuição de renda) quase não tinha riqueza alguma, atualmente ela detém quase um terço do capital nacional nos países desenvolvidos.
À medida que as cidades cresceram e as pessoas enriqueceram, o valor total dos imóveis subiu muito, já que é impossível criar novas habitações nas rígidas cidades europeias. Sendo parisiense, Piketty deveria saber disso muito bem.
Se excluirmos a habitação do capital total, praticamente não houve mudança alguma (como você pode ver no gráfico abaixo, feito com os dados de Piketty) no estoque total de capital. Fazendo essa distinção, ao invés do infactível imposto global sobre a riqueza que Piketty propõe, talvez faça mais sentido buscar políticas que facilitem a construção de novos imóveis,desregulamentando os códigos urbanos e facilitando a verticalização – como argumenta Tyler Cowen.
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O julgamento fundamental: pobreza ou desigualdade?

Essa discussão deságua em um ponto fundamental. O que é mais importante: combater a pobreza ou a desigualdade? O Nobel de economia Robert Solow levanta essa bola em suabrilhante resenha sobre o livro de Piketty:
Você preferiria viver em uma sociedade em que o salário real está aumentando rapidamente mas a parcela do trabalho [na renda nacional] está diminuindo … ou uma em que o salário real é estagnado … e a parcela do trabalho não se altera? A primeira é certamente preferível em termos estritamente econômicos: você come seu salário, não sua parcela na renda nacional. Mas pode ser que haja vantagens sociais e políticas decorrentes da segunda opção.
Por que o livro de Piketty fez tanto sucesso? Uma resposta possível é que, hoje, os EUA vêem um aumento na desigualdade que não se observava há muito tempo – e isso cria conflitos sociais. Outra resposta – que para mim parece mais razoável – é entender que a renda mediana e os níveis de pobreza nos EUA pararam de melhorar. Na década de 1990, enquanto a renda aumentava e a pobreza diminuía, não havia percepção de conflito social – a despeito do aumento da desigualdade.
Nos países desenvolvidos, os seis anos de baixo crescimento econômico deixaram sequelas que levam a conflitos sociais – pois o aumento dos salários estagnou. O foco talvez deva se dar mais no “g” do que no “r” de Piketty. O crescimento econômico é inclusivo desde que os pobres estejam vendo suas vidas melhorarem. Afinal, os pobres comem mais e vivem melhor quando sua renda aumenta, e não quando uma estatística nas tabelas dos economistas muda.
A despeito do tom apocalíptico de muitos dos entusiastas do livro de Piketty, numa perspectiva global as coisas estão melhorando significativamente: esteja você interessando na pobreza ou na desigualdade. A pobreza cai ininterruptamente desde a década de 1980 (veja gráficos abaixo) e temos tudo para testemunhar o virtual fim da pobreza absoluta no mundo no decurso de nossas vidas.
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Por causa do forte crescimento na Índia e na China, mais de um bilhão de pessoas foram alçadas ao mercado de consumo e, acredite, a realidade é que a desigualdade mundial está caindo. Taxas altas de poupança e acumulação de capital levaram a um maior crescimento econômico e à inclusão social através da eliminação da pobreza. E, ao contrário de alguns conceitos obscuros de macroeconomistas, a pobreza não é uma estatística nas tabelas de burocratas. Ela ainda mata gente de fome todos os dias.
Apesar das críticas acima, o livro de Piketty é uma grande obra e merece ser lido por todo estudante de economia. Mas ele só conta um lado do problema. Ele confirma que maior poupança e menor consumo presente leva à maior acumulação de riqueza futura. Mas tem uminsight posterior: para que os pobres se beneficiem mais dessa acumulação, eles também precisam poupar – caso contrário os efeitos distributivos do crescimento econômico não vão ser equitativos. Sua maior lição é que precisamos dar acesso aos trabalhadores à renda do capital. E eu adiciono: devemos fazê-lo sem sacrificar o crescimento e a redução da pobreza.
A maior lição não-explícita que há no livro de Piketty é: precisamos aburguesar o proletariado.
texto publicado inicialmente no Mercado Popular.