Ainda não reli, para verificar o que escrevi, mais de dez anos atrás, quando li o eletrizante livro do jornalista Guilherme Fiuza, autor deste livro (que já era um bom roteiro de filme) que serviu de base ao filme recém lançado nos cinemas.
Ainda não vi o filme, mas preciso achar o livro, entre milhares de outros em minha kit-biblioteca, para reler, antes de ver a obra filmada.
O
bunker voador: a aventura eletrizante do Plano Real
Paulo
Roberto de Almeida
Guilherme Fiuza:
3.000
dias no bunker: um plano na cabeça e um país na mão
Rio de Janeiro: Record, 2006, 331 p.; ISBN:
85-01-07342-3
Como o antigo refrigerante Grapette ou o atual
achocolatado Nescau, este livro tem sabor de aventura. Uma aventura que se
prolonga no tempo e que ainda não acabou. Marcos Sá Corrêa, na orelha, resume a
trajetória do Plano Real: “Começa num governo desmiolado e sem rumo, o do
presidente Itamar Franco. E não acabou ainda em outro governo desmiolado e sem
rumo, o do presidente Lula”. O mesmo jornalista também registra que se trata de
um livro de repórter, com nenhuma fórmula e muita intriga: “Tem pouco mercado e
muito ringue de luta livre. Nenhuma tabela e rasteira de ponta a ponta”. Da
maneira como está construído e redigido, o livro daria um bom filme, se planos
de estabilização fornecessem roteiros interessantes para a sétima arte.
De fato, a reportagem de Guilherme Fiuza se aproxima
mais de um roman à clefs do que de
uma história linear do Plano Real, ao estilo, por exemplo, da Real História do Real, de Maria Clara do
Prado. O jovem jornalista carioca do NoMínimo
retraça, em estilo cinematográfico, as diferentes etapas da concepção,
implementação e defesa da nova moeda, sem fazer, em nenhum momento, história
monetária. São incursões propriamente teatrais aos episódios mais relevantes de
um processo que transcendeu, na verdade, a simples introdução de um novo meio
circulante no Brasil, para expor, de maneira viva, toda a trajetória
macroeconômica do Brasil nas últimas décadas. Trata-se de uma inside story, que se insere numa great history, cujo cenário principal é
dado pelo próprio substantivo que fornece o título ao livro: um bunker.
O conceito militar de bunker é, obviamente, o de uma
posição ou posto defensivo, não necessariamente fortificado, mas isolado ou
protegido dos ataques inimigos pela sua estrutura de aço e concreto, geralmente
escondido ou subterrâneo. Meu adjetivo “voador” se deve a que a capa do livro é
a de uma planície desolada com o perfil de Brasília ao fundo e um avião
solitário num imenso céu em tonalidade ocre. O bunker a que se refere Fiuza foi
de fato voador, ou móvel, e é aplicado à pequena equipe de valorosos
combatentes da estabilidade macroeconômica que tomou forma a partir da assunção
de FHC como ministro da Fazenda, em maio de 1993. “Como era uma metáfora”,
explica o autor, “o bunker podia ser em qualquer lugar. E durante um bom tempo
a equipe de Fernando Henrique trabalhou de forma totalmente subterrânea...” (p.
44).
O grupo se decompôs ao longo do tempo, mas seu legado,
inegavelmente positivo, está conosco ainda hoje, sob a forma de uma economia
menos esquizofrênica do que aquela que conhecemos ao longo das últimas décadas
do século passado. Os economistas Pedro Malan, Gustavo Franco, Winston Fritsch,
Edmar Bacha, André Lara Resende e Persio Arida, mais o administrador Clovis
Carvalho foram os integrantes mais intimamente ligados ao poder político do
novo ministro da Fazenda. Eles conceberam, implementaram e defenderam o novo
plano de estabilização contra os ataques de vários exércitos inimigos, geralmente
políticos fisiológicos, economistas românticos, sindicalistas corporativistas
(mas isso é uma redundância) e industriais protecionistas.
Existem vários outros personagens, evidentemente, que
interagiram a diversos títulos e em diferentes momentos com o bunker, dentre os
quais poderiam ser citados: Sérgio Besserman Vianna, o “comunista” do BNDES
convertido às virtudes de uma economia competitiva; Marcelo de Paiva Abreu, que
entrou e saiu do governo Collor logo no primeiro dia, ao descobrir que o seu chefe
de gabinete, já designado, era um homem de PC Farias; David Zylbersztajn, outro
antigo comunista que aprendeu que o socialismo não funcionava e montou o
esquema paulista das privatizações e o modelo federal das agências reguladoras;
Murilo “Mãos de Tesoura” Portugal, o homem que fechou o caixa do Tesouro ao
apetite voraz de gastadores contumazes; José Serra, que chegou, viu, mas não se
convenceu, sobretudo pelo lado cambial; além de vários outros, economistas de
passagem ou funcionários da burocracia permanente do Estado.
Ator central nessa trama, além de Pedro Malan – o mais
longo ministro econômico da história do Brasil, com exceção de Souza Costa, que
serviu à ditadura Vargas –, foi o jovem economista da PUC Gustavo Franco,
sucessivamente Secretário Adjunto de Política Econômica, diretor de Assuntos
Internacionais e presidente do BC. Estrategista econômico, articulador das
principais medidas que estiveram na base do lançamento da URV, operador prático
– e defensor corajoso – da nova moeda, Gustavo Franco representou, por assim
dizer, a verdadeira alma do Plano Real, o que está refletido em seus muitos
livros de ensaios e crônicas, desde O Plano Real e Outros Ensaios (1995), até o mais recente Crônicas da Convergência (2006), passando por O Desafio Brasileiro: ensaios sobre desenvolvimento, globalização e
moeda (1999), além de várias outras contribuições a livros coletivos ou artigos
em periódicos de grande tiragem.
Ademais de um gosto incomum pela
história, para um economista, Gustavo Franco tem um dom também incomum para a
polêmica e o debate de idéias, este, infelizmente, muito pouco cultivado no
Brasil, reduzindo-se, na maior parte das vezes, a uma troca ácida de acusações
entre os contendores. Conhece-se, aliás, no Brasil, a ofensiva invulgar deslanchada
pelos economistas ditos desenvolvimentistas contra os fundamentos do plano de
estabilização, que foi por eles equiparado a nada menos do que uma operação de
rendição ideológica e de submissão prática aos ditames de Washington, aos
cânones de neoliberalismo e a não se sabe qual, exatamente, das regras do
chamado Consenso de Washington, tão desprezado quanto desconhecido nessas
hostes. Fiuza reproduz parte da crítica de uma conhecida professora da USP,
marxista, a um artigo de Gustavo Franco sobre as virtudes da abertura comercial
para o crescimento econômico: ela parte do “capital mundializado” para condenar
o “absoluto domínio do credo liberal”, entre outras bobagens. Franco, em
resposta, perguntou apenas por que a professora estava tão zangada: ela “fala
da ‘atual etapa do sistema capitalista’ com um verdadeiro nojo, como se
estivesse segurando um rato nas mãos” (p. 214). Em outros artigos, ele não
deixava de fustigar os “parnasianos” da Unicamp, com sua prosa rebuscada, plena
de fetichismos e de financeirização.
Mas, esse é o lado prosaico, digamos
assim, do combate diário pela sobrevivência da nova moeda, atacada à direita e
à esquerda com igual desenvoltura e inacreditável insensibilidade em relação
aos cofres públicos. Havia outros aspectos, preocupantes, da sabotagem,
consubstanciada, justamente, na gastança generalizada das estatais e das
agências públicas de modo geral. Fiuza relata o caso ocorrido com David
Zylbersztajn, levado à direção da Eletropaulo: encontrou um fabuloso contrato
com uma empresa de vigilância no qual cada hora de trabalho de um vigilante
representava o inacreditável valor de 28 dólares. “O responsável explicou-lhe
que, infelizmente, não existiam no mercado seguranças confiáveis por um valor
inferior àquele. Zylbersztajn não prolongou a conversa: ‘— Não tem mais barato?
Ok, então rescinde todos os contratos. Acabou a segurança. Por esse preço,
prefiro o ladrão’” (p. 170).
O essencial da reportagem de Fiuza
está voltado aos ataques especulativos ao real, no bojo das crises financeiras
internacionais. Esses ataques tinham pouco a ver, no entanto, com alienígenas
de Wall Street, como gosta de acreditar a esquerda, e sim com os espertos
capitalistas nacionais, sempre prontos a arbitrar as pequenas diferenças de
cotação no valor da moeda, como resultado das suas próprias operações
concertadas. Gustavo Franco, atento ao jogo pesado desses brokers, comandou pessoalmente, das mesas de câmbio do BC,
operações defensivas e ofensivas, dobrando o mercado com lances ousados e
algumas táticas inesperadas. O real sobreviveu a esses ataques especulativos
“clássicos”, mas não foi capaz de resistir a uma operação mais singela,
consistindo na suspensão do pagamento, em janeiro de 1999, da dívida estadual
de Minas Gerais, determinada pelo então governador, e ex-presidente, Itamar
Franco: no espaço de poucos dias as reservas se tinham volatilizado, resultando
na saída de Gustavo Franco da direção do BC e na própria mudança do regime
cambial. Vários lances dramáticos desses dias estão perfeitamente reconstituídos
no livro de Fiuza, numa espécie de crônica dos eventos correntes em tempo
real.
Ainda segundo a orelha, 3.000 dias no bunker foi escrito em três meses, quase sempre de
madrugada, às vezes virando a noite. Acredito: eu também passei uma madrugada
inteira lendo este livro, sem o largar um minuto, com a boca seca e os olhos
piscando, impossível largar. A história é muito importante: ela fala do nosso
país, como ele foi reconstruído em sua dignidade monetária, que há muito tinha
deixado de existir. E não se trata de história documental, insossa, em economês
ou juridiquês: é uma história real do real, feita por homens em carne e osso,
idéias e sentimentos, conquistas e frustrações. Uma história que estava
esperando ser contada.
Poucos sabem, por exemplo, que a inspiração para a URV
foi retirada por Gustavo Franco da experiência do rentenmark, a moeda indexada com a qual o “mago das finanças”
Hjalmar Schacht salvou a Alemanha da hiperinflação nos anos 1920. Fiuza
conseguiu traduzir muito bem os sentimentos do enfant terrible do BC na concepção, montagem e defesa da nova moeda
brasileira. Sua obra, o real, ainda está de pé. Seus inimigos de outrora devem
a ele o atual sucesso eleitoral. Uma simples palavra de agradecimento, por essa
obra de estadista, não seria descabida. Este livro dá todas as razões para esse
beau geste...
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
10 dezembro 2006