A economia política do Barão, na obra de L.
C. Villafañe
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: resenha de livro; finalidade: integrar coleção de
resenhas]
Luís
Cláudio Villafañe G. Santos:
Juca Paranhos, o barão do Rio Branco
São Paulo:
Companhia das Letras, 2018, 560 p.; ISBN: 978-85-359-3152-5
O Barão era um
grande estrategista político, tomando a política em seu sentido mais elevado e no
mais corriqueiro também. Como aparece magistralmente na biografia de Luís
Cláudio Villafañe, Rio Branco tinha perfeita noção das fragilidades do Brasil,
não só em face do jogo pesado entre as grandes potências da época – sobretudo
as europeias, mas o dos Estados Unidos também –, como vis-à-vis a própria
Argentina, que era então bem mais rica e mais forte militarmente do que o
Brasil. Ele também sabia valer-se de um outro tipo de jogo, o das nomeações de
compadrio, os conchavos com parlamentares e com os donos dos grandes jornais,
as boas relações com poderosos em geral, para ajudar a empurrar a sua agenda,
não só a diplomática, mas sobretudo a pessoal. Em uma palavra, no jogo do
poder, ele estava inteiramente à vontade, tendo construído para si uma bela
imagem de defensor impoluto dos interesses da nação, a ponto de ser quase
canonizado no panteão dos heróis nacionais.
Em matéria de
política, portanto, ele ficaria, dentro dos padrões habituais usados nas
instituições de ensino para classificar os desempenhos individuais, nos graus mais
elevados de classificação, ou seja, SS ou entre 9 e 10/10. Mas, quais seriam as
“notas” do Barão em matéria de economia? Para ser mais exato, qual a sua
compreensão dos problemas econômicos do Brasil e quais seriam as melhores
políticas a serem seguidas pelo Itamaraty, para poder realçar, tanto quanto se
podia, as virtudes econômicas de um país devotado basicamente à exportação de
sua principal produção, o café?
Comecemos pela
principal questão da base produtiva do país durante mais de três séculos, o
escravismo, já abolido três lustros antes de Rio Branco assumir o comando do Itamaraty,
mas cuja centralidade, não só na economia, mas também na psicologia nacional,
pode ser reveladora dos instintos conservadores de Paranhos Jr. Já nos seus
tempos de estudante de Direito em São Paulo, com base nas provas feitas por
ele, tal como analisadas detidamente na biografia de Álvaro Lins (1945), Juca
respondia inequivocamente pela abolição, mas, consciente das “imensas
dificuldades [que] se apresentam para que essa abolição se faça com a rapidez
que era de desejar”, ele completava: “por que se não deixará que ela termine
vagarosa e parcialmente?” (42). Embora tenha apoiado seu pai na aprovação da
Lei do Ventre Livre (1871), ele nunca assumiu decisivamente uma tribuna
abolicionista, como fez seu amigo Joaquim Nabuco da forma mais vigorosa
possível. Villafañe não deixa de registrar a “discretíssima participação do
deputado Paranhos Júnior na discussão e aprovação do projeto mais importante da
gestão do Visconde de Rio Branco” (67). Villafañe resume ainda a atitude geral
de Paranhos Júnior, fiel aderente ao Partido Conservador:
Monarquista convicto, via as propostas federalistas [dos republicanos]
como a antessala da fragmentação territorial do país. Condenava a escravidão,
que considerava imoral, mas entendia que o direito de propriedade sobre outros
seres humanos estava estabelecido na legislação brasileira e que a abolição
progressiva se mostrava o caminho mais sábio e menos perigoso do que sua
extinção imediata. (...)
Juca não chegaria em nenhum momento a descrer dos princípios, conceitos
e estruturas daquele mundo que estava por desabar, ou mesmo a questioná-los.
(89)
Se Paranhos não
chegava a atinar para a incongruência, sobretudo econômica, do regime de
escravidão para o futuro do Brasil, ele não deixava de se preocupar com seu
futuro financeiro, e para isso mirava um posto específico no exterior:
A vaga de cônsul-geral em Liverpool... era cobiçadíssima, uma vez que
estava cotada como o emprego mais rendoso do Estado brasileiro. Na época, a
título de remuneração os cônsules embolsavam o grosso da arrecadação de suas
repartições, e o porto de Liverpool era a principal via de entrada e saída do
comércio com a Inglaterra. (90)
A função foi assumida em 1876, e certamente constituía um excelente
posto de observação sobre a economia inglesa e mundial, o que Paranhos parece
ter aproveitado parcamente, pois seus estudos continuavam a ser sobre a
história do Brasil, com frequentes incursões a Paris. Mais adiante, em 1887,
numa vinda ao Brasil a partir de seu rendoso posto, Paranhos (já órfão de pai,
mas em melhores termos com o Imperador, que lhe negara o cobiçado posto, que,
finalmente, tinha sido concedido pelo princesa regente) farejou a possível
queda da monarquia, ao constatar a iminência da abolição e ao assistir ao
desenlace de uma das questões militares que abalavam o Império. Concluiu então
serem poucas as chances de um Terceiro Reinado:
O pessimismo de Paranhos pode ser medido pela decisão que tomou, de
regresso a Liverpool, ao encomendar papel timbrado para uso na repartição:
substituir a expressão ‘consulado-geral do Império do Brasil’ por
‘consulado-geral do Brasil’. (119)
Vivendo mais em
Paris do que em Liverpool, e quase às vésperas da proclamação da República, Paranhos
Jr. conheceu e conviveu com grandes economistas franceses, entre eles o liberal
Paul Leroy-Beaulieu (cunhado do ministro Michel Chevalier, que concluiu o
tratado de livre comércio com a Grã-Bretanha, em 1860), e Émile Levasseur, também geógrafo, que lhe encomendou
uma colaboração sobre o Brasil para a Grande
Encyclopédie. Mas, sua participação resumiu-se “à história, à imprensa, às
belas-artes, e acabou colaborando também no item sobre antropologia” (124). A
despeito desse convívio com economistas liberais, aparentemente Rio Branco
nunca se deixou seduzir pelos ensinamentos de David Ricardo sobre o livre
comércio, nem pela obra máxima da economia política da segunda metade do século
XIX, então dominada pela figura de John Stuart Mill, cujo livro, Principles of Political Economy (1848) teve
diversas edições ao longo dessa época (Almeida, 2012).
Nessa conjuntura,
ao início da última década do século XIX, já feito barão – título porém
anulado, como todos os demais do Império, pelo novo regime republicano, o que
motivou Paranhos a simplesmente agregar Rio-Branco ao seu nome –, quando ele
começava a cooperar com o novo Jornal do
Brasil com suas “Efemérides” e outros artigos anônimos, Paranhos “acumulou
com o consulado a chefia da Superintendência Geral do Serviço de Emigração para
o Brasil na Europa, com sede em Paris” (101), o que lhe habilitava a permanecer
legalmente na capital francesa, onde residia sua família. Em março de 1893,
porém, pediu dispensa do cargo, “que não lhe gerava proventos” (162). A
imigração europeia para o Brasil foi um dos mais importantes temas do início da
República, cujos novos próceres tinham, como salientado em brilhante estudo de
Skidmore – Black Into White (1974) –,
a ideia de branqueamento da raça, opondo-se, portanto, à entrada de africanos e
de asiáticos. A preocupação do Barão com o tema da imigração foi, no entanto,
mínima, e o tema sequer é tratado especificamente na biografia de Villafañe. De
resto, a questão migratória ficava mais sob a responsabilidade dos principais
estados interessados, com São Paulo à frente, do que propriamente com a União,
já bastante atazanada com supostos complôs monarquistas e agitações regionais e
nos meios militares.
O segundo aspecto da
“economia política” do Barão refere-se à sua atitude em face dos acordos de
comércio, ainda negociados em bases estritamente bilaterais. Provavelmente,
como tantas outras personalidades brasileiras da passagem do século, Rio Branco
apenas se rendia ao Zeitgeist em
matéria de políticas comerciais, cujas tendências, naquele fin-de-siècle, foram de um nítido retour en force do protecionismo, a começar pela França e pela
Alemanha, com recrudescimento nos EUA e em outros países. Em uma era de acordos
bilaterais de comércio contendo uma modalidade restrita, condicional e limitada
da cláusula de nação-mais-favorecida, muitos países passam a adotar duas
tarifas: uma “de favor”, para eventuais acordos comerciais, outra “normal” para
todos os demais casos. Foi o que ocorreu então no Brasil, o que também
correspondia, mais do que a necessidades prementes de natureza fiscal, a velhas
reações mercantilistas, parte da herança mental portuguesa das elites.
Suas colaborações
intelectuais relativas ao Brasil, nessa época da passagem do Império à
República compreenderam diversos pequenos trabalhos escritos em francês, mas
bem mais nos terrenos da história, da geografia e da política, do que nas áreas
da economia ou do comércio internacional. Os trabalhos mais importantes,
ademais do já referido verbete sobre o Brasil – que ficou enorme – para a Grande Encyclopédie, foram um “esboço da
história do Brasil”, para um livro sobre o país a ser publicado por ocasião da
participação na Exposição Universal de 1889 – comemorativa do primeiro
centenário da Revolução –, e uma biografia de Dom Pedro II, empereur du Brésil, assinada pelo rabino Benjamin
Mossé, mas na verdade escrita inteiramente por ele.
Nos anos
seguintes, a última década do século XIX, e já iniciada a República, Rio Branco
vai se ocupar basicamente das questões de fronteiras, o que explica – não só em
sua trajetória, mas na própria biografia de Villafañe – uma relativa ausência
de temas econômicos ou comerciais. Nos dez anos anteriores à sua assunção como
ministro das relações exteriores, Rio Branco trata quase que exclusivamente das
questões de limites com a Argentina – território de Palmas, ou das Missões –,
com a França – no Oiapoque – e com a Grã-Bretanha, a questão da Guiana, na
verdade entregue a seu amigo Joaquim Nabuco, mas para cuja arbitragem Paranhos
ofereceu praticamente toda a argumentação geográfica, com base em seus estudos
de história e de cartografia colonial e imperial. E, ao assumir o posto supremo
da diplomacia brasileira, sua atenção já estava toda ela voltada, aliás desde
antes, para o grave problema do Acre, até então boliviano, questão aliás
conectada às ambições do Peru por uma parte, ao menos, mas certamente muito
grande, daquele distante território amazônico. As poucas questões econômicas
que podiam entrar, nesse período, em suas preocupações se referiam ao câmbio do
mil-réis, sempre volátil, e à promoção das vendas de café, base indispensável
da economia nacional. Não só os diplomatas brasileiros no exterior, mas
igualmente os diplomatas estrangeiros lotados no Rio de Janeiro viviam
conectados à cotação da libra, base irrecusável de todas as transações
financeiras, nacionais e individuais. A legação em Londres, aliás, seguia
febrilmente as oscilações na bolsa dos nossos títulos emitidos pelos banqueiros
britânicos, um termômetro da credibilidade do país no exterior.
A questão do Acre,
por sinal, se prendia ao segundo produto mais importante na pauta das
exportações, situação que tinha emergido no último terço do século XIX e que se
manteria durante toda a gestão de Rio Branco à frente do Itamaraty, para só se
encerrar, aliás de forma abrupta, às vésperas da Grande Guerra. A borracha
vinha galgando posições nos volumes e valores embarcados a partir do porto de
Belém, mas o produto penetrava fundo na selva amazônica, até justamente a
região do Acre, território legitimamente boliviano, mas literalmente invadido
por seringueiros brasileiros, muitos dos quais vindos do Nordeste, numa dessas
febres temporárias surgida com um novo ciclo lucrativo à base de recursos
naturais. Villafañe escreve claramente a esse respeito:
Na época em que os automóveis começavam a tornar-se comuns e a produção
de borracha sintética para pneus ainda não se desenvolvera, a seiva das
seringueiras representava fonte de riqueza importante, a ponto de a borracha
passar a ser, em valor, o segundo produto de exportação brasileiro, superada
apenas pelo café. (252)
Rubens Ricupero,
em sua contribuição específica sobre a questão do Acre, no volume comemorativo
dos cem anos da morte do Barão, apresentada em seminário promovido pelo
Itamaraty em 2012, já tinha enfatizado a importância econômica da borracha:
Em nenhum outro litígio que afetou o Brasil existia, já em plena
exploração, uma extraordinária fonte de riqueza como a da seringueira, que
aparecia no Acre em formações mais compactas, árvores de maior diâmetro,
fornecendo látex copioso e de melhor qualidade. Em termos atuais, é como se a
região fosse riquíssima em petróleo. Convém lembrar que no auge do ciclo da
borracha, próximo da crise fronteiriça, a borracha alcançou, em alguns
momentos, 40% da receita de exportação do Brasil, quase igualando a do café, e
o Acre concorria com 60% da nova mercadoria.
Eram gigantescos os recursos envolvidos na abertura e na manutenção dos
seringais amazônicos, estimados, em 1910, em mais de 700 milhões de mil reis,
equivalentes à imensa soma de 43 milhões de libras, mais de 20 vezes a
indenização que finalmente se pagaria à Bolívia pela cessão do Acre (2 milhões
de libras, hoje [2012] correspondem a um total de 220 a 250 milhões de dólares,
segundo os critérios adotados para correção e atualização monetária). Na mesma
época, cerca de 150 mil pessoas estavam empregadas na coleta e no transporte da
borracha... (Ricupero, 2012: 122-23)
Paranhos,
convidado para a chancelaria no mesmo momento em que a ocupação ilegal
suscitava reações em La Paz, tomou as primeiras providências num sentido
totalmente contrário ao que tinha ocorrido nas três pendências anteriores:
recusou absolutamente a solução arbitral e passou a negociar diretamente com
cada um dos envolvidos no litígio, afastando inicialmente o Bolivian Syndicate
– um consórcio de venture capitalists
ao qual o governo boliviano tinha arrendado o território –, pagando-lhe uma
indenização para o abandono da concessão, e depois isolando o Peru das
negociações preliminares com a Bolívia. Villafañe relata como isso foi feito:
Por intermédio dos Rothschild, agentes financeiros do Brasil em Londres,
Rio Branco propôs que os investidores do Bolivian Syndicate desistissem do
contrato em troca de uma compensação financeira. (...) Os Rothschild foram
orientados a oferecer 100 mil libras, quantia que poderia subir até 125 mil. O
acordo final ficou em 110 mil... [segundo] contrato de renúncia do Bolivian
Syndicate, assinado em Nova York em 26 de fevereiro de 1903. (322)
Depois de intensas
negociações, com as tribulações entre os membros da delegação brasileira, que
Villafañe descreve em detalhe, o resultado, o Tratado de Petrópolis, concluído
em 17 de novembro de 1903, não passou isento pelas críticas dos comentaristas
de jornal, como transcreve abundantemente Villafañe:
Ainda que a contrapartida territorial tenha sido o principal foco das
críticas ao tratado, não faltaram queixas contra a compensação financeira paga
à Bolívia. O Tagarela de 19 de
novembro exibe uma caricatura de Falstaff em que Rio Branco joga um saco de
dinheiro com 2 milhões de libras esterlinas na boca de um vulcão que exala uma
fumaça, onde se lê: ‘Questão do Acre’. (267)
No Correio da Manhã, de seu inimigo pessoal
Edmundo Bittencourt, uma outra caricatura com o título de “Resultado final”
alerta que este “nos custou muito caro”. Um editorial ainda mais agressivo
reclamava da cessão do território brasileiro “e mais um porto e mais uma
estrada de ferro, e ainda 40 mil contos em dinheiro” (267). Pouco antes da
assinatura do tratado, em 22 de outubro, Rui Barbosa havia deixado a equipe de
negociadores brasileiros, “por discordar das concessões territoriais que o
Barão estava propenso a aprovar” (267), mas aparentemente também “por temer a
reação popular”, propondo então “submeter o tema a arbitragem, pois confiava no
direito brasileiro sobre o território” (268).
Ao lado da resolução
dos problemas fronteiriços, o que ele fez desde 1893 até o último presidente ao
qual serviu, Paranhos tinha perfeita consciência das questões de defesa do
país, numa época em que os imperialismos europeus andavam praticando a
“diplomacia da canhoneira”, sem excluir o grande vizinho do hemisfério norte
com o qual ele pretendia manter uma política de respeito mútuo e de
reconhecimento recíproco de responsabilidades sobre cada área de influência. O
problema era o aparente poderio da Argentina, nessa época bem mais rica do que
o Brasil, praticamente cinco vezes mais em termos per capita, e relativamente
mais bem armada, o que suscitava preocupações de Paranhos e dos militares
quanto a um possível ataque à capital da República. Esta sempre esteve exposta
a esse tipo de constrangimento, desde a época da arrogância britânica com
respeito ao tráfico escravo, e com mais razão ainda numa fase em que as armadas
experimentavam notável progresso tecnológico, com poderosos canhões instalados
em encouraçados movimentados por motores a diesel. Foi uma das razões que
levaram estadistas como José Bonifácio e Hipólito da Costa, e mais tarde o
historiador-diplomata Varnhagen, a recomendarem a transferência da capital para
o interior, projeto que já tinha sido objeto de uma missão ao planalto central
em 1892.
As questões
comerciais ocupavam um papel central nas relações com os principais parceiros
do hemisfério, mas enquanto os Estados Unidos se revelaram, desde meados do
século XIX, um grande, senão o principal, comprador do café brasileiro (e
também da borracha), com a Argentina o comércio, a despeito de importante,
permanecia modesto. Com base numa aprovação do Congresso a tarifas reduzidas
aos países que favorecessem as exportações brasileiras, Rio Branco reforçou
essa relação com o anúncio de uma medida que contemplava, como no acordo
comercial de 1891 negociado por Salvador de Mendonça, bem mais os interesses
exportadores dos Estados Unidos do que os do Brasil.
Em 16 de abril de 1904 foi expedido o decreto n. 5192, concedendo uma
redução de 20% nas tarifas incidentes sobre as importações estadunidenses de
trigo [em detrimento, portanto, da Argentina], leite condensado, artefatos de
borracha, relógios, vernizes e tintas. (351)
A partir do ano
seguinte, Nabuco, convertido no primeiro embaixador brasileiro, passou a
reforçar cada vez mais as relações entre os dois países, a ponto de se tornar, a
despeito de ser um “europeísta” como Rio Branco, “um entusiasta do alinhamento
do Brasil aos Estados Unidos” (365). As relações com a Argentina mantinham-se
num patamar morno, como evidenciado na resistência do país platino, e da
Venezuela, a que o Brasil sediasse a III Conferência Internacional Americana,
que se realizaria em 1906 no Rio de Janeiro, com a presença do Secretário de
Estado Elihu Root (385). A doutrina Drago, por exemplo, patrocinada pela
Argentina – baseada na inadmissibilidade do uso da força na cobrança de dívidas
soberanas – foi retirada da pauta da reunião, a pretexto de que entraria na
agenda da conferência da Haia, prevista para 1907. Ainda assim, Rio Branco
preconizava uma coordenação de políticas com a Argentina e o Chile, ideia que
seria materializada alguns anos depois por Lauro Muller no Pacto ABC, mas que
tem origem na sua concepção sobre o equilíbrio de poderes no Cone Sul. O que,
no entanto, não implicava em conceder aos argentinos os mesmos favores
comerciais que o Brasil concedia aos americanos. Como informa ainda Villafañe:
Pelo decreto n. 6079, de 30 de junho de 1906, foi prorrogada a isenção
tarifária de 20% na importação de uma lista de produtos estadunidenses que
incluía trigo, leite condensado, artefatos de borracha, tintas (exceto de
escrever), geladeira, balanças e pianos. Essa preferência seria renovada
anualmente até 1911, quando a redução foi aumentada para 30%. (390)
Se 1906 foi um ano
excelente nas relações com os Estados Unidos, foi também “naquele ano que as
relações com a Argentina começaram a desandar de maneira assustadora.” (398). O
responsável pela deterioração foi, em grande medida, o novo chanceler, Estanislao
Zeballos, o antigo advogado argentino na questão de Palmas, mas no centro dos
novos contenciosos estava o programa de reequipamento naval do Brasil, que
previa a aquisição de enormes encouraçados. O assunto arrastou-se de forma
praticamente indefinida, com programas similares nos outros dois países do Cone
Sul:
A relutância absoluta do Brasil em admitir qualquer conversação para
limitar os armamentos encurralou os três países do ABC em uma corrida
armamentista que se estenderia pelas décadas seguintes. A questão do controle
dos armamentos navais acabaria sendo discutida nas conferências pan-americanas
seguintes e arrastou-se até 1923, com o Brasil isolado, acusado de intenções
militaristas. (430)
Permanecia,
contudo, o tema do comércio:
Além das questões políticas, o país vizinho se ressentia da preferência
dada às importações brasileiras de trigo dos Estados Unidos e propôs, naquele
ano [1907], que a mesma vantagem lhe fosse concedida. Pela proximidade entre a
Argentina e o mercado brasileiro, que se traduzia em um custo de transporte
mais reduzido, apenas esse diferencial explicava a competitividade do trigo
estadunidense no mercado brasileiro. Contudo, superavitário no comércio com os
Estados Unidos e deficitário com a Argentina, não convinha ao Brasil, no
entendimento de Rio Branco, estender a tarifa preferencial ao país vizinho.
Ademais, os Estados Unidos importaram mais de 5 milhões de sacas de café em
1906 e 1907, contra as 180 mil compradas pela Argentina. (406-7)
Assis Brasil,
embaixador em Buenos Aires, insistiu com Rio Branco por um acordo com a
Argentina, mas seus argumentos “não convenceram seu chefe” (407). Ele também
propôs que os três países do Cone Sul formassem uma “grande esquadra”
intencionalmente conjunta.
Era uma proposta, de fato, revolucionária, que iria muito além da noção
de equivalência naval. Rio Branco, contudo, era visceralmente contrário à ideia
de restringir a liberdade do Brasil de reconstituir suas Forças Armadas como
bem lhe aprouvesse. (408)
As relações
bilaterais com a Argentina só se distenderam a partir de 1910, a partir da
eleição do presidente Sáenz Peña, o autor da famosa frase: “Tudo nos une, nada
nos separa” (457). No plano do comércio, o retorno ao protecionismo reforçou-se
um pouco em todas as partes, mas no caso das relações comerciais com os Estados
Unidos um novo contencioso teve origem a partir da política brasileira de
valorização do café.
No decorrer de 1909, discutiu-se no Congresso estadunidense a criação de
uma taxa sobre as importações do café brasileiro. Além de o produto concorrer
com a pequena produção porto-riquenha, a política de sustentação dos preços do
café, inaugurada pelo Convênio de Taubaté em 1906, incomodava os compradores
estadunidenses. Ademais, apesar de o café ter isenção de impostos ao ingressar
nos Estados Unidos, os consumidores arcavam com a taxa de exportação retida
pelos produtores e embutida no preço final. (449-50)
Em sua avaliação
final da obra do Barão, Villafañe reconhece que a grande obra de Paranhos
situou-se, indiscutivelmente, na resolução das pendências fronteiriças herdadas
da colônia e da monarquia:
Não há dúvida de que o cerne da obra político-diplomática de Rio Branco
está na definição final do corpo da pátria brasileira. Por seus conhecimentos
de história e geografia, sua capacidade argumentativa, seu temperamento
obstinado e sua imensa visão política, seja nas negociações diplomáticas, seja
no manejo das vicissitudes da ordem doméstica, Paranhos mostrou ser a pessoa
certa para enfrentar o desafio. Mais que definir as fronteiras, consolidou o
discurso brasileiro sobre os limites do território nacional. (478)
Esta nova
biografia também faz, em seu capítulo final, uma apreciação absolutamente
inatacável das concepções geopolíticas do Barão:
Seus valores e sua visão do mundo e do funcionamento das relações
internacionais refletem a sociedade hierárquica e oligárquica em que foi
socializado, bem como sua longa experiência com a diplomacia das potências
europeias, em suas relações entre si e com o resto do mundo. Tendo vivido mais
de um quarto de século no exterior, Paranhos conheceu por dentro as engrenagens
que moviam a Era dos Impérios. Aceitava a ordem internacional como natural e
provavelmente imutável. Era, no sentido mais estrito da palavra, um
conservador: não considerava uma prioridade transformar as estruturas políticas
ou a sociedade.
Em sintonia com seu realismo, seu conservadorismo e sua crença num mundo
oligárquico e hierárquico, Paranhos via com naturalidade as diferenças de poder
entre os países e o uso – e mesmo o abuso – da força nas relações
internacionais. Aos fracos restava o recurso ao direito, como afinal ocorreu em
Haia (vencidas suas tentativas de ver o Brasil reconhecido entre os
dominantes).
O elemento decisivo continuava sendo o poder. (...)
Rio Branco via com resignação a possibilidade de intervenção dos
poderosos contra os fracos. Cabia, portanto, fortalecer-se e buscar alianças
que reforçassem a segurança e a autonomia do país. Percebia com clareza o
funcionamento do sistema internacional baseado no concerto das grandes
potências – na prática, estabelecendo uma hierarquia (ainda que sujeita a
alterações no tempo) entre as nações. A posição de cada país nessa ordem
determinaria as regras a que teria de se submeter quanto aos demais nas
relações econômicas e políticas. As nações fracas, instáveis ou avessas às
regras do sistema (pagar dívidas, por exemplo) estavam expostas a intervenções
que ele considerava justificáveis. Os países fortes, estáveis e ‘civilizados’
estariam, em contraste, a salvo das expressões mais cruas do imperialismo.
Assim, a imagem internacional do Brasil – uma das maiores preocupações do
Barão – era um elemento crucial no manejo das relações do país com as
potências, inquietude que ia muito além da simples expressão de sua vaidade e
de sua plena identificação com os valores e ideias dominantes. (479-80)
Rio Branco foi,
portanto, um realista, no plano da política e da geopolítica, inclusive em sua
visão cautelosa da relação que o Brasil haveria de ter com o mais importante
vizinho, a Argentina. Numa circular expedida em 1908 às legações no exterior,
também publicada sob a forma de artigo anônimo na imprensa brasileira, “Rio
Branco revelava as principais linhas de seu pensamento estratégico” (481). A
primeira recomendação era a de “não intervir nas questões internas de povos
vizinhos”, mas negava ao mesmo tempo “o desinteresse dos assuntos
sul-americanos e da sorte dos países do nosso continente”, sem comprometer,
porém, as “alianças com potências europeias”. Segundo o texto, na conferência
da Haia, o Brasil “soube defender não só o seu direito, mas também o direito e
a dignidade de todos os Estados latino-americanos”, embora ressalvando que “é
com o Chile e com os Estados Unidos da América que o Brasil mantém relações de
mais íntima amizade e recíproca confiança” (481), entrando aqui num terreno
sensível, que, ulteriormente, não seria mais retomado dessa forma explícita, compreensivelmente
discriminatório vis-à-vis a Argentina.
Seguindo a visão
realista de Rio Branco, Villafañe destaca os elementos principais da posição
que o Brasil deveria adotar nas relações hemisféricas e regionais:
Nesse mundo hobbesiano, as ideias de um ‘concerto americano’ e do
guarda-chuva protetor dos Estados Unidos estão claramente expostas como únicos
abrigos contra o imperialismo europeu. (482)
Mas Rio Branco
também visava mais longe do que a simples preservação da paz e da estabilidade
no continente sul-americano, como transcrito por Villafañe num artigo
intitulado “Brasil e Argentina” que Rio Branco divulgou na mesma época:
Há muito a nossa intervenção no Prata está terminada. O Brasil nada mais
tem que fazer na vida interna das nações vizinhas; está certo de que a
liberdade e a independência internacional não sofrerão ali um desequilíbrio
violento. O seu interesse político está em outra parte. É para um ciclo maior
que ele é atraído. Desinteressando-se das rivalidades estéreis dos países
sul-americanos, entretendo com esses Estados uma cordial simpatia, o Brasil
entrou resolutamente na esfera das grandes amizades internacionais, a que tem
direito pela aspiração de sua cultura, pelo prestígio de sua grandeza
territorial e pela força de sua população. (482-3)
É sintomático que
Rio Branco – mas Villafañe não discute os argumentos supostamente positivos que
Paranhos identificava no Brasil – se refira apenas a conceitos largamente
indefinidos, ou genéricos, como uma “cultura” (que não é qualificada), a uma
“grandeza territorial” (que é um dado primário da natureza e, do lado da sua
progressiva conformação, derivada uma história basicamente portuguesa, ou
colonial), e, finalmente, a uma suposta “força” da população (que tampouco encontra
fundamentos empíricos a sustentar tal tipo de argumento). Não se percebe bem
como esses elementos quase etéreos exibidos por Rio Branco poderiam sustentar
um envolvimento ativo do Brasil na “esfera das grandes amizades
internacionais”, como ele pretendia. Não existem no texto de Paranhos referências
a fatores que seriam esperados na construção de um poderio econômico capaz de
sustentar uma maior projeção externa do país, com base, por exemplo, em fluxos
de comércio mais vigorosos, em finanças excedentárias, em alguma inovação tecnológica
e, obviamente, no sentido de uma projeção geopolítica apoiada em correspondente
poderio militar.
Tais limitações,
evidentes no caso do Brasil, sobretudo no confronto com uma Argentina mais rica
e militarmente mais preparada, não é discutida na biografia aqui resenhada, mas
concentrada em seus elementos “econômicos”. Existe, ao menos, uma discussão
final sobre a circunstância geográfica inevitável do Brasil, pouco explorada por
Rio Branco, mas evidenciada por Villafañe:
Uma das (poucas) críticas recorrentes ao desempenho do Barão no comando
da chancelaria brasileira fica por conta desse fracasso em levar a melhores
termos as relações com a Argentina. Seus contemporâneos afirmaram, inclusive,
que na verdade ele teria alimentado essa rivalidade, da qual se aproveitaria
para reforçar a própria popularidade. (483-4)
Villafañe
reconhece que “eventuais concessões comerciais à Argentina (...)
provavelmente teriam tido um efeito
benéfico” (484), mas a maior parte dos elementos conceituais discutidos no
seguimento dessa seção do livro remetem novamente aos aspectos geopolíticos, ou
diplomáticos, das relações entre os dois países, no contexto do sistema
internacional em vigor naqueles anos. A argumentação de Villafañe é, a esse
respeito, bastante convincente, embora caiba uma crítica, não a ele, como
biógrafo – pois de outro modo se estaria derivando para hipóteses puramente especulativas
–, mas ao próprio Barão, ao preservar este, justamente, uma visão basicamente
geopolítica das relações internacionais do Brasil, descurando, na visão deste
resenhista, o conteúdo interno, ou nacional, de poder intrínseco a qualquer
país aspirando a círculos maiores de “amizades internacionais”. Tal pretensão é
dada pela sua base econômica e pelo seu coeficiente de abertura internacional,
ou seja, a parte do produto formada nos grandes intercâmbios comerciais e
fluxos financeiros no âmbito da economia mundial.
Esta última
observação permite retomar a pontuação atribuída ao inicio desta resenha ao
próprio Barão, enquanto protagonista maior das relações internacionais do
Brasil numa determinada época: se, em matéria de política e de diplomacia, pode-se
atribuir a ele uma classificação superior – SS, ou 9/10 e mesmo 10/10 –, em
matéria de economia e de relações comerciais a pontuação, na opinião deste
resenhista, alcançaria se tanto uma posição intermediária na faixa de MM a MS,
ou seja, 6/10, ou no máximo 7/10. Tal pontuação não pode ser ponderada em
função de uma suposta predominância naquela época de fatores essencialmente
políticos, ou militares, de poderio geopolítico, atribuindo ao poder econômico
um peso menor na equação do poder. Um colega do Barão, na mesma conjuntura, Brazílio
Itiberê da Cunha (1907), havia
identificado claramente os fatores essenciais para o sucesso econômico e o
progresso social de uma nação: educação popular, inclusive comercial e
financeira, e sólida base econômica, a partir de ampla e ativa inserção
econômica internacional. Mas talvez fosse pedir muito a representantes das
elites “douradas”, que preferiam usar rapidamente as libras obtidas em
exportações primárias nos cabarés de Paris, numa época em que estava muito em
voga o “Brésilien d’opérette”.
Como em várias
outras esferas da construção da nação, passados mais de 80 anos de
independência aos tempos do Barão, o Brasil e suas elites dirigentes não haviam
feito o mínimo dever de casa em matéria de: acesso à propriedade (sobretudo
terras), garantia de direitos políticos em bases igualitárias, educação de
massa de boa qualidade, instituições de governança efetivas, transparentes e
responsáveis, políticas econômicas estáveis, ambiente de negócios competitivo e
abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros. Tampouco
foi o caso nos cem anos seguintes, isto é, até os nossos dias. Espera-se que no
limiar do segundo centenário, o Brasil possa completar a visão generosa e
otimista de Rio Branco quanto à possibilidade do estabelecimento de “grandes
amizades internacionais”, com base numa sólida economia competitiva, estável
macroeconomicamente, numa governança responsável, numa alta qualidade do
capital humano e com plena inserção na economia mundial. Tudo isso ainda é uma
promessa, mas a biografia do Barão, por Villafañe, nos transmite a certeza de
que uma parte da “superestrutura” dessa grande edifício, a política externa e a
diplomacia, já possui sólidas bases conceituais e evidências empíricas, a
partir das palavras e dos ensinamentos de Rio Branco e dos membros das elites
governantes que se seguiram até recentemente na Casa que também é chamada pelo
seu nome. O que talvez tenha faltado a essas elites dominantes ou dirigentes
foi cuidar adequadamente da infraestrutura da nação, ou seja, a educação popular.
Um dia chegaremos lá...
Bibliografia citada:
Almeida, Paulo
Roberto de. “A economia do Brasil nos tempos do Barão do Rio Branco”, In: Pereira,
Manoel Gomes (org.): Barão do Rio Branco:
100 anos de memória. Brasília: Funag, 2012, p. 523-563.
Cunha, Brazílio Itiberê da. Expansão Econômica Mundial. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1907, 2 volumes.
Ricupero,
Rubens, “Acre: o momento decisivo de Rio Branco” in: Pereira, Manoel Gomes (org.):
Barão do Rio Branco: 100 anos de memória.
Brasília: Funag, 2012, p. 119-161.
Skidmore,
Thomas. Black Into White: race and
nationality in Brazilian thought. Durham: Duke University Press, 1974.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de fevereiro de 2019