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sábado, 24 de agosto de 2019

A economia política do Barão, na obra de L. C. Villafane


A economia política do Barão, na obra de L. C. Villafañe

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: resenha de livro; finalidade: integrar coleção de resenhas]
Publicado em Meridiano 47 - Journal of Global Studies 20 (agosto 2019); disponível no link: https://doi.org/10.20889/M47e20007).

Luís Cláudio Villafañe G. Santos:
Juca Paranhos, o barão do Rio Branco
São Paulo: Companhia das Letras, 2018, 560 p.; ISBN: 978-85-359-3152-5



O Barão era um grande estrategista político, tomando a política em seu sentido mais elevado e no mais corriqueiro também. Como aparece magistralmente na biografia de Luís Cláudio Villafañe, Rio Branco tinha perfeita noção das fragilidades do Brasil, não só em face do jogo pesado entre as grandes potências da época – sobretudo as europeias, mas o dos Estados Unidos também –, como vis-à-vis a própria Argentina, que era então bem mais rica e mais forte militarmente do que o Brasil. Ele também sabia valer-se de um outro tipo de jogo, o das nomeações de compadrio, os conchavos com parlamentares e com os donos dos grandes jornais, as boas relações com poderosos em geral, para ajudar a empurrar a sua agenda, não só a diplomática, mas sobretudo a pessoal. Em uma palavra, no jogo do poder, ele estava inteiramente à vontade, tendo construído para si uma bela imagem de defensor impoluto dos interesses da nação, a ponto de ser quase canonizado no panteão dos heróis nacionais.
Em matéria de política, portanto, ele ficaria, dentro dos padrões habituais usados nas instituições de ensino para classificar os desempenhos individuais, nos graus mais elevados de classificação, ou seja, SS ou entre 9 e 10/10. Mas, quais seriam as “notas” do Barão em matéria de economia? Para ser mais exato, qual a sua compreensão dos problemas econômicos do Brasil e quais seriam as melhores políticas a serem seguidas pelo Itamaraty, para poder realçar, tanto quanto se podia, as virtudes econômicas de um país devotado basicamente à exportação de sua principal produção, o café?
Comecemos pela principal questão da base produtiva do país durante mais de três séculos, o escravismo, já abolido três lustros antes de Rio Branco assumir o comando do Itamaraty, mas cuja centralidade, não só na economia, mas também na psicologia nacional, pode ser reveladora dos instintos conservadores de Paranhos Jr. Já nos seus tempos de estudante de Direito em São Paulo, com base nas provas feitas por ele, tal como analisadas detidamente na biografia de Álvaro Lins (1945), Juca respondia inequivocamente pela abolição, mas, consciente das “imensas dificuldades [que] se apresentam para que essa abolição se faça com a rapidez que era de desejar”, ele completava: “por que se não deixará que ela termine vagarosa e parcialmente?” (42). Embora tenha apoiado seu pai na aprovação da Lei do Ventre Livre (1871), ele nunca assumiu decisivamente uma tribuna abolicionista, como fez seu amigo Joaquim Nabuco da forma mais vigorosa possível. Villafañe não deixa de registrar a “discretíssima participação do deputado Paranhos Júnior na discussão e aprovação do projeto mais importante da gestão do Visconde de Rio Branco” (67). Villafañe resume ainda a atitude geral de Paranhos Júnior, fiel aderente ao Partido Conservador:
Monarquista convicto, via as propostas federalistas [dos republicanos] como a antessala da fragmentação territorial do país. Condenava a escravidão, que considerava imoral, mas entendia que o direito de propriedade sobre outros seres humanos estava estabelecido na legislação brasileira e que a abolição progressiva se mostrava o caminho mais sábio e menos perigoso do que sua extinção imediata. (...)
Juca não chegaria em nenhum momento a descrer dos princípios, conceitos e estruturas daquele mundo que estava por desabar, ou mesmo a questioná-los. (89)

Se Paranhos não chegava a atinar para a incongruência, sobretudo econômica, do regime de escravidão para o futuro do Brasil, ele não deixava de se preocupar com seu futuro financeiro, e para isso mirava um posto específico no exterior:
A vaga de cônsul-geral em Liverpool... era cobiçadíssima, uma vez que estava cotada como o emprego mais rendoso do Estado brasileiro. Na época, a título de remuneração os cônsules embolsavam o grosso da arrecadação de suas repartições, e o porto de Liverpool era a principal via de entrada e saída do comércio com a Inglaterra. (90)

A função foi assumida em 1876, e certamente constituía um excelente posto de observação sobre a economia inglesa e mundial, o que Paranhos parece ter aproveitado parcamente, pois seus estudos continuavam a ser sobre a história do Brasil, com frequentes incursões a Paris. Mais adiante, em 1887, numa vinda ao Brasil a partir de seu rendoso posto, Paranhos (já órfão de pai, mas em melhores termos com o Imperador, que lhe negara o cobiçado posto, que, finalmente, tinha sido concedido pelo princesa regente) farejou a possível queda da monarquia, ao constatar a iminência da abolição e ao assistir ao desenlace de uma das questões militares que abalavam o Império. Concluiu então serem poucas as chances de um Terceiro Reinado:
O pessimismo de Paranhos pode ser medido pela decisão que tomou, de regresso a Liverpool, ao encomendar papel timbrado para uso na repartição: substituir a expressão ‘consulado-geral do Império do Brasil’ por ‘consulado-geral do Brasil’. (119)

Vivendo mais em Paris do que em Liverpool, e quase às vésperas da proclamação da República, Paranhos Jr. conheceu e conviveu com grandes economistas franceses, entre eles o liberal Paul Leroy-Beaulieu (cunhado do ministro Michel Chevalier, que concluiu o tratado de livre comércio com a Grã-Bretanha, em 1860), e Émile Levasseur, também geógrafo, que lhe encomendou uma colaboração sobre o Brasil para a Grande Encyclopédie. Mas, sua participação resumiu-se “à história, à imprensa, às belas-artes, e acabou colaborando também no item sobre antropologia” (124). A despeito desse convívio com economistas liberais, aparentemente Rio Branco nunca se deixou seduzir pelos ensinamentos de David Ricardo sobre o livre comércio, nem pela obra máxima da economia política da segunda metade do século XIX, então dominada pela figura de John Stuart Mill, cujo livro, Principles of Political Economy (1848) teve diversas edições ao longo dessa época (Almeida, 2012).
Nessa conjuntura, ao início da última década do século XIX, já feito barão – título porém anulado, como todos os demais do Império, pelo novo regime republicano, o que motivou Paranhos a simplesmente agregar Rio-Branco ao seu nome –, quando ele começava a cooperar com o novo Jornal do Brasil com suas “Efemérides” e outros artigos anônimos, Paranhos “acumulou com o consulado a chefia da Superintendência Geral do Serviço de Emigração para o Brasil na Europa, com sede em Paris” (101), o que lhe habilitava a permanecer legalmente na capital francesa, onde residia sua família. Em março de 1893, porém, pediu dispensa do cargo, “que não lhe gerava proventos” (162). A imigração europeia para o Brasil foi um dos mais importantes temas do início da República, cujos novos próceres tinham, como salientado em brilhante estudo de Skidmore – Black Into White (1974) –, a ideia de branqueamento da raça, opondo-se, portanto, à entrada de africanos e de asiáticos. A preocupação do Barão com o tema da imigração foi, no entanto, mínima, e o tema sequer é tratado especificamente na biografia de Villafañe. De resto, a questão migratória ficava mais sob a responsabilidade dos principais estados interessados, com São Paulo à frente, do que propriamente com a União, já bastante atazanada com supostos complôs monarquistas e agitações regionais e nos meios militares.
O segundo aspecto da “economia política” do Barão refere-se à sua atitude em face dos acordos de comércio, ainda negociados em bases estritamente bilaterais. Provavelmente, como tantas outras personalidades brasileiras da passagem do século, Rio Branco apenas se rendia ao Zeitgeist em matéria de políticas comerciais, cujas tendências, naquele fin-de-siècle, foram de um nítido retour en force do protecionismo, a começar pela França e pela Alemanha, com recrudescimento nos EUA e em outros países. Em uma era de acordos bilaterais de comércio contendo uma modalidade restrita, condicional e limitada da cláusula de nação-mais-favorecida, muitos países passam a adotar duas tarifas: uma “de favor”, para eventuais acordos comerciais, outra “normal” para todos os demais casos. Foi o que ocorreu então no Brasil, o que também correspondia, mais do que a necessidades prementes de natureza fiscal, a velhas reações mercantilistas, parte da herança mental portuguesa das elites.
Suas colaborações intelectuais relativas ao Brasil, nessa época da passagem do Império à República compreenderam diversos pequenos trabalhos escritos em francês, mas bem mais nos terrenos da história, da geografia e da política, do que nas áreas da economia ou do comércio internacional. Os trabalhos mais importantes, ademais do já referido verbete sobre o Brasil – que ficou enorme – para a Grande Encyclopédie, foram um “esboço da história do Brasil”, para um livro sobre o país a ser publicado por ocasião da participação na Exposição Universal de 1889 – comemorativa do primeiro centenário da Revolução –, e uma biografia de Dom Pedro II, empereur du Brésil, assinada pelo rabino Benjamin Mossé, mas na verdade escrita inteiramente por ele.
Nos anos seguintes, a última década do século XIX, e já iniciada a República, Rio Branco vai se ocupar basicamente das questões de fronteiras, o que explica – não só em sua trajetória, mas na própria biografia de Villafañe – uma relativa ausência de temas econômicos ou comerciais. Nos dez anos anteriores à sua assunção como ministro das relações exteriores, Rio Branco trata quase que exclusivamente das questões de limites com a Argentina – território de Palmas, ou das Missões –, com a França – no Oiapoque – e com a Grã-Bretanha, a questão da Guiana, na verdade entregue a seu amigo Joaquim Nabuco, mas para cuja arbitragem Paranhos ofereceu praticamente toda a argumentação geográfica, com base em seus estudos de história e de cartografia colonial e imperial. E, ao assumir o posto supremo da diplomacia brasileira, sua atenção já estava toda ela voltada, aliás desde antes, para o grave problema do Acre, até então boliviano, questão aliás conectada às ambições do Peru por uma parte, ao menos, mas certamente muito grande, daquele distante território amazônico. As poucas questões econômicas que podiam entrar, nesse período, em suas preocupações se referiam ao câmbio do mil-réis, sempre volátil, e à promoção das vendas de café, base indispensável da economia nacional. Não só os diplomatas brasileiros no exterior, mas igualmente os diplomatas estrangeiros lotados no Rio de Janeiro viviam conectados à cotação da libra, base irrecusável de todas as transações financeiras, nacionais e individuais. A legação em Londres, aliás, seguia febrilmente as oscilações na bolsa dos nossos títulos emitidos pelos banqueiros britânicos, um termômetro da credibilidade do país no exterior.
A questão do Acre, por sinal, se prendia ao segundo produto mais importante na pauta das exportações, situação que tinha emergido no último terço do século XIX e que se manteria durante toda a gestão de Rio Branco à frente do Itamaraty, para só se encerrar, aliás de forma abrupta, às vésperas da Grande Guerra. A borracha vinha galgando posições nos volumes e valores embarcados a partir do porto de Belém, mas o produto penetrava fundo na selva amazônica, até justamente a região do Acre, território legitimamente boliviano, mas literalmente invadido por seringueiros brasileiros, muitos dos quais vindos do Nordeste, numa dessas febres temporárias surgida com um novo ciclo lucrativo à base de recursos naturais. Villafañe escreve claramente a esse respeito:
Na época em que os automóveis começavam a tornar-se comuns e a produção de borracha sintética para pneus ainda não se desenvolvera, a seiva das seringueiras representava fonte de riqueza importante, a ponto de a borracha passar a ser, em valor, o segundo produto de exportação brasileiro, superada apenas pelo café. (252)

Rubens Ricupero, em sua contribuição específica sobre a questão do Acre, no volume comemorativo dos cem anos da morte do Barão, apresentada em seminário promovido pelo Itamaraty em 2012, já tinha enfatizado a importância econômica da borracha:
Em nenhum outro litígio que afetou o Brasil existia, já em plena exploração, uma extraordinária fonte de riqueza como a da seringueira, que aparecia no Acre em formações mais compactas, árvores de maior diâmetro, fornecendo látex copioso e de melhor qualidade. Em termos atuais, é como se a região fosse riquíssima em petróleo. Convém lembrar que no auge do ciclo da borracha, próximo da crise fronteiriça, a borracha alcançou, em alguns momentos, 40% da receita de exportação do Brasil, quase igualando a do café, e o Acre concorria com 60% da nova mercadoria.
Eram gigantescos os recursos envolvidos na abertura e na manutenção dos seringais amazônicos, estimados, em 1910, em mais de 700 milhões de mil reis, equivalentes à imensa soma de 43 milhões de libras, mais de 20 vezes a indenização que finalmente se pagaria à Bolívia pela cessão do Acre (2 milhões de libras, hoje [2012] correspondem a um total de 220 a 250 milhões de dólares, segundo os critérios adotados para correção e atualização monetária). Na mesma época, cerca de 150 mil pessoas estavam empregadas na coleta e no transporte da borracha... (Ricupero, 2012: 122-23)

Paranhos, convidado para a chancelaria no mesmo momento em que a ocupação ilegal suscitava reações em La Paz, tomou as primeiras providências num sentido totalmente contrário ao que tinha ocorrido nas três pendências anteriores: recusou absolutamente a solução arbitral e passou a negociar diretamente com cada um dos envolvidos no litígio, afastando inicialmente o Bolivian Syndicate – um consórcio de venture capitalists ao qual o governo boliviano tinha arrendado o território –, pagando-lhe uma indenização para o abandono da concessão, e depois isolando o Peru das negociações preliminares com a Bolívia. Villafañe relata como isso foi feito:
Por intermédio dos Rothschild, agentes financeiros do Brasil em Londres, Rio Branco propôs que os investidores do Bolivian Syndicate desistissem do contrato em troca de uma compensação financeira. (...) Os Rothschild foram orientados a oferecer 100 mil libras, quantia que poderia subir até 125 mil. O acordo final ficou em 110 mil... [segundo] contrato de renúncia do Bolivian Syndicate, assinado em Nova York em 26 de fevereiro de 1903. (322)

Depois de intensas negociações, com as tribulações entre os membros da delegação brasileira, que Villafañe descreve em detalhe, o resultado, o Tratado de Petrópolis, concluído em 17 de novembro de 1903, não passou isento pelas críticas dos comentaristas de jornal, como transcreve abundantemente Villafañe:
Ainda que a contrapartida territorial tenha sido o principal foco das críticas ao tratado, não faltaram queixas contra a compensação financeira paga à Bolívia. O Tagarela de 19 de novembro exibe uma caricatura de Falstaff em que Rio Branco joga um saco de dinheiro com 2 milhões de libras esterlinas na boca de um vulcão que exala uma fumaça, onde se lê: ‘Questão do Acre’. (267)

No Correio da Manhã, de seu inimigo pessoal Edmundo Bittencourt, uma outra caricatura com o título de “Resultado final” alerta que este “nos custou muito caro”. Um editorial ainda mais agressivo reclamava da cessão do território brasileiro “e mais um porto e mais uma estrada de ferro, e ainda 40 mil contos em dinheiro” (267). Pouco antes da assinatura do tratado, em 22 de outubro, Rui Barbosa havia deixado a equipe de negociadores brasileiros, “por discordar das concessões territoriais que o Barão estava propenso a aprovar” (267), mas aparentemente também “por temer a reação popular”, propondo então “submeter o tema a arbitragem, pois confiava no direito brasileiro sobre o território” (268).
Ao lado da resolução dos problemas fronteiriços, o que ele fez desde 1893 até o último presidente ao qual serviu, Paranhos tinha perfeita consciência das questões de defesa do país, numa época em que os imperialismos europeus andavam praticando a “diplomacia da canhoneira”, sem excluir o grande vizinho do hemisfério norte com o qual ele pretendia manter uma política de respeito mútuo e de reconhecimento recíproco de responsabilidades sobre cada área de influência. O problema era o aparente poderio da Argentina, nessa época bem mais rica do que o Brasil, praticamente cinco vezes mais em termos per capita, e relativamente mais bem armada, o que suscitava preocupações de Paranhos e dos militares quanto a um possível ataque à capital da República. Esta sempre esteve exposta a esse tipo de constrangimento, desde a época da arrogância britânica com respeito ao tráfico escravo, e com mais razão ainda numa fase em que as armadas experimentavam notável progresso tecnológico, com poderosos canhões instalados em encouraçados movimentados por motores a diesel. Foi uma das razões que levaram estadistas como José Bonifácio e Hipólito da Costa, e mais tarde o historiador-diplomata Varnhagen, a recomendarem a transferência da capital para o interior, projeto que já tinha sido objeto de uma missão ao planalto central em 1892.
As questões comerciais ocupavam um papel central nas relações com os principais parceiros do hemisfério, mas enquanto os Estados Unidos se revelaram, desde meados do século XIX, um grande, senão o principal, comprador do café brasileiro (e também da borracha), com a Argentina o comércio, a despeito de importante, permanecia modesto. Com base numa aprovação do Congresso a tarifas reduzidas aos países que favorecessem as exportações brasileiras, Rio Branco reforçou essa relação com o anúncio de uma medida que contemplava, como no acordo comercial de 1891 negociado por Salvador de Mendonça, bem mais os interesses exportadores dos Estados Unidos do que os do Brasil.
Em 16 de abril de 1904 foi expedido o decreto n. 5192, concedendo uma redução de 20% nas tarifas incidentes sobre as importações estadunidenses de trigo [em detrimento, portanto, da Argentina], leite condensado, artefatos de borracha, relógios, vernizes e tintas. (351)

A partir do ano seguinte, Nabuco, convertido no primeiro embaixador brasileiro, passou a reforçar cada vez mais as relações entre os dois países, a ponto de se tornar, a despeito de ser um “europeísta” como Rio Branco, “um entusiasta do alinhamento do Brasil aos Estados Unidos” (365). As relações com a Argentina mantinham-se num patamar morno, como evidenciado na resistência do país platino, e da Venezuela, a que o Brasil sediasse a III Conferência Internacional Americana, que se realizaria em 1906 no Rio de Janeiro, com a presença do Secretário de Estado Elihu Root (385). A doutrina Drago, por exemplo, patrocinada pela Argentina – baseada na inadmissibilidade do uso da força na cobrança de dívidas soberanas – foi retirada da pauta da reunião, a pretexto de que entraria na agenda da conferência da Haia, prevista para 1907. Ainda assim, Rio Branco preconizava uma coordenação de políticas com a Argentina e o Chile, ideia que seria materializada alguns anos depois por Lauro Muller no Pacto ABC, mas que tem origem na sua concepção sobre o equilíbrio de poderes no Cone Sul. O que, no entanto, não implicava em conceder aos argentinos os mesmos favores comerciais que o Brasil concedia aos americanos. Como informa ainda Villafañe:
Pelo decreto n. 6079, de 30 de junho de 1906, foi prorrogada a isenção tarifária de 20% na importação de uma lista de produtos estadunidenses que incluía trigo, leite condensado, artefatos de borracha, tintas (exceto de escrever), geladeira, balanças e pianos. Essa preferência seria renovada anualmente até 1911, quando a redução foi aumentada para 30%. (390)

Se 1906 foi um ano excelente nas relações com os Estados Unidos, foi também “naquele ano que as relações com a Argentina começaram a desandar de maneira assustadora.” (398). O responsável pela deterioração foi, em grande medida, o novo chanceler, Estanislao Zeballos, o antigo advogado argentino na questão de Palmas, mas no centro dos novos contenciosos estava o programa de reequipamento naval do Brasil, que previa a aquisição de enormes encouraçados. O assunto arrastou-se de forma praticamente indefinida, com programas similares nos outros dois países do Cone Sul:
A relutância absoluta do Brasil em admitir qualquer conversação para limitar os armamentos encurralou os três países do ABC em uma corrida armamentista que se estenderia pelas décadas seguintes. A questão do controle dos armamentos navais acabaria sendo discutida nas conferências pan-americanas seguintes e arrastou-se até 1923, com o Brasil isolado, acusado de intenções militaristas. (430)

Permanecia, contudo, o tema do comércio:
Além das questões políticas, o país vizinho se ressentia da preferência dada às importações brasileiras de trigo dos Estados Unidos e propôs, naquele ano [1907], que a mesma vantagem lhe fosse concedida. Pela proximidade entre a Argentina e o mercado brasileiro, que se traduzia em um custo de transporte mais reduzido, apenas esse diferencial explicava a competitividade do trigo estadunidense no mercado brasileiro. Contudo, superavitário no comércio com os Estados Unidos e deficitário com a Argentina, não convinha ao Brasil, no entendimento de Rio Branco, estender a tarifa preferencial ao país vizinho. Ademais, os Estados Unidos importaram mais de 5 milhões de sacas de café em 1906 e 1907, contra as 180 mil compradas pela Argentina. (406-7)

Assis Brasil, embaixador em Buenos Aires, insistiu com Rio Branco por um acordo com a Argentina, mas seus argumentos “não convenceram seu chefe” (407). Ele também propôs que os três países do Cone Sul formassem uma “grande esquadra” intencionalmente conjunta.
Era uma proposta, de fato, revolucionária, que iria muito além da noção de equivalência naval. Rio Branco, contudo, era visceralmente contrário à ideia de restringir a liberdade do Brasil de reconstituir suas Forças Armadas como bem lhe aprouvesse. (408)

As relações bilaterais com a Argentina só se distenderam a partir de 1910, a partir da eleição do presidente Sáenz Peña, o autor da famosa frase: “Tudo nos une, nada nos separa” (457). No plano do comércio, o retorno ao protecionismo reforçou-se um pouco em todas as partes, mas no caso das relações comerciais com os Estados Unidos um novo contencioso teve origem a partir da política brasileira de valorização do café.
No decorrer de 1909, discutiu-se no Congresso estadunidense a criação de uma taxa sobre as importações do café brasileiro. Além de o produto concorrer com a pequena produção porto-riquenha, a política de sustentação dos preços do café, inaugurada pelo Convênio de Taubaté em 1906, incomodava os compradores estadunidenses. Ademais, apesar de o café ter isenção de impostos ao ingressar nos Estados Unidos, os consumidores arcavam com a taxa de exportação retida pelos produtores e embutida no preço final. (449-50)

Em sua avaliação final da obra do Barão, Villafañe reconhece que a grande obra de Paranhos situou-se, indiscutivelmente, na resolução das pendências fronteiriças herdadas da colônia e da monarquia:
Não há dúvida de que o cerne da obra político-diplomática de Rio Branco está na definição final do corpo da pátria brasileira. Por seus conhecimentos de história e geografia, sua capacidade argumentativa, seu temperamento obstinado e sua imensa visão política, seja nas negociações diplomáticas, seja no manejo das vicissitudes da ordem doméstica, Paranhos mostrou ser a pessoa certa para enfrentar o desafio. Mais que definir as fronteiras, consolidou o discurso brasileiro sobre os limites do território nacional. (478)

Esta nova biografia também faz, em seu capítulo final, uma apreciação absolutamente inatacável das concepções geopolíticas do Barão:
Seus valores e sua visão do mundo e do funcionamento das relações internacionais refletem a sociedade hierárquica e oligárquica em que foi socializado, bem como sua longa experiência com a diplomacia das potências europeias, em suas relações entre si e com o resto do mundo. Tendo vivido mais de um quarto de século no exterior, Paranhos conheceu por dentro as engrenagens que moviam a Era dos Impérios. Aceitava a ordem internacional como natural e provavelmente imutável. Era, no sentido mais estrito da palavra, um conservador: não considerava uma prioridade transformar as estruturas políticas ou a sociedade.
Em sintonia com seu realismo, seu conservadorismo e sua crença num mundo oligárquico e hierárquico, Paranhos via com naturalidade as diferenças de poder entre os países e o uso – e mesmo o abuso – da força nas relações internacionais. Aos fracos restava o recurso ao direito, como afinal ocorreu em Haia (vencidas suas tentativas de ver o Brasil reconhecido entre os dominantes).
O elemento decisivo continuava sendo o poder. (...)
Rio Branco via com resignação a possibilidade de intervenção dos poderosos contra os fracos. Cabia, portanto, fortalecer-se e buscar alianças que reforçassem a segurança e a autonomia do país. Percebia com clareza o funcionamento do sistema internacional baseado no concerto das grandes potências – na prática, estabelecendo uma hierarquia (ainda que sujeita a alterações no tempo) entre as nações. A posição de cada país nessa ordem determinaria as regras a que teria de se submeter quanto aos demais nas relações econômicas e políticas. As nações fracas, instáveis ou avessas às regras do sistema (pagar dívidas, por exemplo) estavam expostas a intervenções que ele considerava justificáveis. Os países fortes, estáveis e ‘civilizados’ estariam, em contraste, a salvo das expressões mais cruas do imperialismo. Assim, a imagem internacional do Brasil – uma das maiores preocupações do Barão – era um elemento crucial no manejo das relações do país com as potências, inquietude que ia muito além da simples expressão de sua vaidade e de sua plena identificação com os valores e ideias dominantes. (479-80)

Rio Branco foi, portanto, um realista, no plano da política e da geopolítica, inclusive em sua visão cautelosa da relação que o Brasil haveria de ter com o mais importante vizinho, a Argentina. Numa circular expedida em 1908 às legações no exterior, também publicada sob a forma de artigo anônimo na imprensa brasileira, “Rio Branco revelava as principais linhas de seu pensamento estratégico” (481). A primeira recomendação era a de “não intervir nas questões internas de povos vizinhos”, mas negava ao mesmo tempo “o desinteresse dos assuntos sul-americanos e da sorte dos países do nosso continente”, sem comprometer, porém, as “alianças com potências europeias”. Segundo o texto, na conferência da Haia, o Brasil “soube defender não só o seu direito, mas também o direito e a dignidade de todos os Estados latino-americanos”, embora ressalvando que “é com o Chile e com os Estados Unidos da América que o Brasil mantém relações de mais íntima amizade e recíproca confiança” (481), entrando aqui num terreno sensível, que, ulteriormente, não seria mais retomado dessa forma explícita, compreensivelmente discriminatório vis-à-vis a Argentina.
Seguindo a visão realista de Rio Branco, Villafañe destaca os elementos principais da posição que o Brasil deveria adotar nas relações hemisféricas e regionais:
Nesse mundo hobbesiano, as ideias de um ‘concerto americano’ e do guarda-chuva protetor dos Estados Unidos estão claramente expostas como únicos abrigos contra o imperialismo europeu. (482)

Mas Rio Branco também visava mais longe do que a simples preservação da paz e da estabilidade no continente sul-americano, como transcrito por Villafañe num artigo intitulado “Brasil e Argentina” que Rio Branco divulgou na mesma época:
Há muito a nossa intervenção no Prata está terminada. O Brasil nada mais tem que fazer na vida interna das nações vizinhas; está certo de que a liberdade e a independência internacional não sofrerão ali um desequilíbrio violento. O seu interesse político está em outra parte. É para um ciclo maior que ele é atraído. Desinteressando-se das rivalidades estéreis dos países sul-americanos, entretendo com esses Estados uma cordial simpatia, o Brasil entrou resolutamente na esfera das grandes amizades internacionais, a que tem direito pela aspiração de sua cultura, pelo prestígio de sua grandeza territorial e pela força de sua população. (482-3)

É sintomático que Rio Branco – mas Villafañe não discute os argumentos supostamente positivos que Paranhos identificava no Brasil – se refira apenas a conceitos largamente indefinidos, ou genéricos, como uma “cultura” (que não é qualificada), a uma “grandeza territorial” (que é um dado primário da natureza e, do lado da sua progressiva conformação, derivada uma história basicamente portuguesa, ou colonial), e, finalmente, a uma suposta “força” da população (que tampouco encontra fundamentos empíricos a sustentar tal tipo de argumento). Não se percebe bem como esses elementos quase etéreos exibidos por Rio Branco poderiam sustentar um envolvimento ativo do Brasil na “esfera das grandes amizades internacionais”, como ele pretendia. Não existem no texto de Paranhos referências a fatores que seriam esperados na construção de um poderio econômico capaz de sustentar uma maior projeção externa do país, com base, por exemplo, em fluxos de comércio mais vigorosos, em finanças excedentárias, em alguma inovação tecnológica e, obviamente, no sentido de uma projeção geopolítica apoiada em correspondente poderio militar.
Tais limitações, evidentes no caso do Brasil, sobretudo no confronto com uma Argentina mais rica e militarmente mais preparada, não é discutida na biografia aqui resenhada, mas concentrada em seus elementos “econômicos”. Existe, ao menos, uma discussão final sobre a circunstância geográfica inevitável do Brasil, pouco explorada por Rio Branco, mas evidenciada por Villafañe:
Uma das (poucas) críticas recorrentes ao desempenho do Barão no comando da chancelaria brasileira fica por conta desse fracasso em levar a melhores termos as relações com a Argentina. Seus contemporâneos afirmaram, inclusive, que na verdade ele teria alimentado essa rivalidade, da qual se aproveitaria para reforçar a própria popularidade. (483-4)

Villafañe reconhece que “eventuais concessões comerciais à Argentina (...) provavelmente  teriam tido um efeito benéfico” (484), mas a maior parte dos elementos conceituais discutidos no seguimento dessa seção do livro remetem novamente aos aspectos geopolíticos, ou diplomáticos, das relações entre os dois países, no contexto do sistema internacional em vigor naqueles anos. A argumentação de Villafañe é, a esse respeito, bastante convincente, embora caiba uma crítica, não a ele, como biógrafo – pois de outro modo se estaria derivando para hipóteses puramente especulativas –, mas ao próprio Barão, ao preservar este, justamente, uma visão basicamente geopolítica das relações internacionais do Brasil, descurando, na visão deste resenhista, o conteúdo interno, ou nacional, de poder intrínseco a qualquer país aspirando a círculos maiores de “amizades internacionais”. Tal pretensão é dada pela sua base econômica e pelo seu coeficiente de abertura internacional, ou seja, a parte do produto formada nos grandes intercâmbios comerciais e fluxos financeiros no âmbito da economia mundial.
Esta última observação permite retomar a pontuação atribuída ao inicio desta resenha ao próprio Barão, enquanto protagonista maior das relações internacionais do Brasil numa determinada época: se, em matéria de política e de diplomacia, pode-se atribuir a ele uma classificação superior – SS, ou 9/10 e mesmo 10/10 –, em matéria de economia e de relações comerciais a pontuação, na opinião deste resenhista, alcançaria se tanto uma posição intermediária na faixa de MM a MS, ou seja, 6/10, ou no máximo 7/10. Tal pontuação não pode ser ponderada em função de uma suposta predominância naquela época de fatores essencialmente políticos, ou militares, de poderio geopolítico, atribuindo ao poder econômico um peso menor na equação do poder. Um colega do Barão, na mesma conjuntura, Brazílio Itiberê da Cunha (1907), havia identificado claramente os fatores essenciais para o sucesso econômico e o progresso social de uma nação: educação popular, inclusive comercial e financeira, e sólida base econômica, a partir de ampla e ativa inserção econômica internacional. Mas talvez fosse pedir muito a representantes das elites “douradas”, que preferiam usar rapidamente as libras obtidas em exportações primárias nos cabarés de Paris, numa época em que estava muito em voga o “Brésilien d’opérette”.
Como em várias outras esferas da construção da nação, passados mais de 80 anos de independência aos tempos do Barão, o Brasil e suas elites dirigentes não haviam feito o mínimo dever de casa em matéria de: acesso à propriedade (sobretudo terras), garantia de direitos políticos em bases igualitárias, educação de massa de boa qualidade, instituições de governança efetivas, transparentes e responsáveis, políticas econômicas estáveis, ambiente de negócios competitivo e abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros. Tampouco foi o caso nos cem anos seguintes, isto é, até os nossos dias. Espera-se que no limiar do segundo centenário, o Brasil possa completar a visão generosa e otimista de Rio Branco quanto à possibilidade do estabelecimento de “grandes amizades internacionais”, com base numa sólida economia competitiva, estável macroeconomicamente, numa governança responsável, numa alta qualidade do capital humano e com plena inserção na economia mundial. Tudo isso ainda é uma promessa, mas a biografia do Barão, por Villafañe, nos transmite a certeza de que uma parte da “superestrutura” dessa grande edifício, a política externa e a diplomacia, já possui sólidas bases conceituais e evidências empíricas, a partir das palavras e dos ensinamentos de Rio Branco e dos membros das elites governantes que se seguiram até recentemente na Casa que também é chamada pelo seu nome. O que talvez tenha faltado a essas elites dominantes ou dirigentes foi cuidar adequadamente da infraestrutura da nação, ou seja, a educação popular. Um dia chegaremos lá...

Bibliografia citada:

Almeida, Paulo Roberto de. “A economia do Brasil nos tempos do Barão do Rio Branco”, In: Pereira, Manoel Gomes (org.): Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Brasília: Funag, 2012, p. 523-563.
Cunha, Brazílio Itiberê da. Expansão Econômica Mundial. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907, 2 volumes.
Ricupero, Rubens, “Acre: o momento decisivo de Rio Branco” in: Pereira, Manoel Gomes (org.): Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Brasília: Funag, 2012, p. 119-161.
Skidmore, Thomas. Black Into White: race and nationality in Brazilian thought. Durham: Duke University Press, 1974.


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de fevereiro de 2019



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