Dias Toffoli faz história
Mario Sabino
Crusoé, 22/08/2019
Nestes tempos tão pródigos em acontecimentos empolgantes, como a aprovação da lei de abuso de autoridade que salvará o país da sua própria Justiça, elejo uma frase proferida por Dias Toffoli, em palestra em São Paulo, como o melhor resumo de tudo o que está ocorrendo: “O Brasil ficou travado em quatro anos num moralismo enfrentando questões de ordem e esquecendo o progresso. Você nunca vai ter progresso se tiver que ter ordem como uma premissa.”
Sim, caso você tenha perdido, o presidente do Supremo Tribunal Federal, chefe do Poder Judiciário, disse exatamente isso, segundo o G1, numa inversão do lema da Bandeira Nacional.
Posso estar errado, mas acho que Dias Toffoli criticou a maior operação anticorrupção da história brasileira e quiçá mundial. A minha dedução parte da constatação de que faz quatro anos que a Lava Jato começou a mandar para a cadeia os peixes graúdos do espetacular assalto à Petrobras e adjacências. As palavras de Dias Toffoli levam a crer que ele também compartilharia da opinião pitoresca de que a Lava Jato é a grande culpada pela recessão e estagnação da economia brasileira, ao pulverizar as empreiteiras e outras campeãs nacionais que viviam de pagar propinas milionárias ao governo, em troca de contratos superfaturados. A crise teria pouco a ver com a irresponsabilidade fiscal de Dilma Rousseff e, antes dela, o endividamento geral dos cidadãos promovido por Lula, para além da própria dinheirama desviada do Erário.
Avançando na interpretação de texto, a Lava Jato travou o progresso porque teria deixado em segundo plano o desenvolvimento do país. O que move os procuradores e juízes seria apenas moralismo — aquela afecção da moral que tende a priorizar exacerbadamente valores éticos e mesmo religiosos, em detrimento do contexto. Arrisco um exemplo: Jesus Cristo no momento em que expulsa os mercadores do templo. Ele simplesmente ignorou a teia econômica da Jerusalém de dois mil anos atrás. Contra-exemplo: os robber baronsamericanos do século XIX. Talvez Dias Toffoli ache que, se não fosse a Lava Jato, Marcelo Odebrecht poderia ter-se tornado o nosso Cornelius Vanderbilt. Ou o nosso Jay Gould — modelo mais apropriado, por ter elevado à categoria de arte a distribuição de propinas a políticos e juízes.
Sigo para o corolário toffoliano: “Você nunca vai ter progresso se tiver que ter ordem como uma premissa”. A afirmação significaria, portanto, que barões ladrões que desafiam a ordem são toleráveis, assim como nos Estados Unidos do passado, visto que inevitáveis para impulsionar a economia neste ponto da nossa infância histórica. Ou seja, só daqui a 150 anos não seria moralismo pôr na cadeia os ladrões poderosos que criam departamentos de operações estruturadas, para meter a mão no dinheiro público e comprar facilidades nos poderes constituídos. No futuro, com uma nação plenamente desenvolvida, os barões ladrões, que tanto ajudaram a destravar o caminho, não seriam mais necessários. Se a minha interpretação é correta, Toffoli tem uma visão evolucionista do processo histórico, que iria adiante por meio de fases e mutações sempre positivas. É uma espécie de Giambattista Vico em ondas tropicais.
Como a opinião categórica do presidente do Supremo Tribunal Federal tende a prevalecer no próximo século e meio, deixando em suspenso o imperativo categórico da moralidade, só resta aos cidadãos variar nos sinônimos de ladrão. Vou contribuir para o progresso brasileiro com o roubo de 35 expressões do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo:
“Ladrão, camafonge, pichelingue, unhante, lapim, meliante, rato, milhafre, rabaz, empalmador, abafador, rapinante, harpia, quadrilheiro, alfaneque, lascarino, pente-fino, sacomão, filhos da noite (atualíssimo), captor, corsário, fraudador, marraxo, embusteiro, miquelete, forrageiro, peculatário, estelionatário (há os digitais patriotas), concussor, mensaleiro (está no livro, não é contrabando meu), corrupto, escroque, corruptor, propinado aliciante, extorsor.”
Ninguém tem moral para julgar Dias Toffoli. Ele está fazendo história.
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