Eis abaixo a versão completa de meu artigo publicado de forma resumida na edição de ontem, 14/08/2019, no jornal O Estado de S.Paulo:
O Senado e a diplomacia
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, lotado na Divisão do Arquivo;
professor no Uniceub, Brasília; organizador, com o embaixador Rubens Barbosa,
do livro: Relações Brasil-Estados Unidos:
assimetrias e convergências (São Paulo: Saraiva, 2012);
Historicamente, durante
décadas, chanceleres brasileiros foram selecionados dentre os parlamentares, na
verdade por mais de um século, no Império e na maior parte da República. Eram recrutados
mais na Assembleia Geral – a Câmara do Império – do que no Senado. Mas os
senadores vitalícios prestavam relevantes serviços quando no Conselho de
Estado, cuja área diplomática teve papel decisivo, ainda que meramente consultivo,
no encaminhamento de processos decisórios que marcaram época nos anais de nossa
diplomacia, com ênfase nos assuntos regionais – sobretudo no Prata – e nas
relações com as grandes potências. Vale consultar os pareceres do Conselho,
vários assinados por senadores, todos eles publicados.
Quando não eram
parlamentares eram grandes tribunos, juristas, ou jornalistas e professores. O
Visconde do Rio Branco combinava todas essas qualidades: chefe de governo,
várias vezes ministro, instituiu o cargo de consultor jurídico na antiga
Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, iniciativa retomada por seu
filho no Ministério das Relações Exteriores da República. O Parlamento
preservava inteira autonomia e controlava de perto os atos do ministro, como na
recusa do acordo que o primeiro chanceler republicano, Quintino Bocaiúva, fez
com a Argentina, pelo qual ela abocanharia boa parte do atual território de
Santa Catarina. Ruy Barbosa, antigo membro do Conselho de Estado, primeiro
ministro da Fazenda da República, senador, não foi chanceler, mas desempenhou funções
diplomáticas, a mais famosa delas como delegado na segunda Conferência da Paz
da Haia, em 1907.
O sucessor do Barão do Rio
Branco, Lauro Muller, era parlamentar, assim como Nilo Peçanha e também
Epitácio Pessoa, senador, designado chefe da delegação às negociações de paz de
1919, aliás, eleito presidente mesmo estando em Paris. Oswaldo Aranha (embaixador
em Washington antes), Afonso Arinos de Mello Franco, San Tiago Dantas, foram
brilhantes parlamentares que serviram como chanceleres, assim como, mais
recentemente, os senadores Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Aloysio
Nunes.
Chefes de missões
diplomáticas, embora mais raramente, podiam ser designados dentre notáveis
nomes da política ou da magistratura. No Império e na República velha, os
diplomatas no exterior formavam uma carreira distinta da dos funcionários da
Secretaria de Estado, e ambas da dos cônsules, que eram considerados simples
negociantes de “secos e molhados”. As carreiras foram unificadas nos anos 1930;
desde então, missões permanentes no exterior foram tradicionalmente ocupadas
por funcionários de carreira. Ainda assim, tivemos um “barão” da imprensa – Assis
Chateaubriand, em Londres –, e um banqueiro, Walter Moreira Salles, duas vezes embaixador
em Washington. Mas sempre sob o rigoroso escrutínio da Comissão de Relações
Exteriores do Senado Federal. Esta chegou a recusar uma ou outra designação – sequer
chamou para sabatina um preferido do general Ernesto Geisel – e, mais
recentemente, recusou aprovação a um outro nome, justamente por considerar que
havia abuso de parentesco (era irmão do ministro da vez, diplomata).
A tendência de se designar
diplomatas de carreira como chanceleres – limitada nos regimes anteriores – se
ampliou durante o período militar, com uma sobrevida temporária durante os
governos do PT. No período de transição voltaram os senadores, e outros haveria
para o exercício do cargo, mas o governo Bolsonaro preferiu um diplomata de
carreira, aliás, um que jamais foi embaixador – ou seja, chefe de missão
permanente – ou que tenha exercido relevantes serviços na diplomacia. Agora,
cogita nomear alguém totalmente sem experiência nas lides internacionais como
representante diplomático junto à mais importante embaixada do Brasil no
exterior. A Comissão de Relações Exteriores jamais se defrontou com um caso desse
tipo, tanto mais inédito por se tratar de nepotismo explícito, ou de claro “filhotismo”.
Não existem precedentes na
carreira, ou fora dela, embora filhos de presidentes ou de ministros tenham
exercido chefias de postos. Um – Rodrigues Alves Filho –, foi admitido depois da
morte do pai; outro – Afonso Arinos, filho –, sem conexão com as funções
eletivas do pai e a despeito delas: como é a norma desde 1946, ele e todos os
outros têm de passar no concurso do Instituto Rio Branco. Alguns, educados no
exterior, nunca lograram êxito nos exames, notoriamente difíceis, talvez por deficiências
no Português. Seria de se presumir que o atual indicado seja um exímio
conhecedor das relações internacionais, tenha domínio perfeito do inglês e de
várias outras matérias, além de uma boa familiaridade com a agenda diplomática
brasileira e mundial, que é o que se exige nos concursos de admissão. Ele já
tentou alguma vez?
Não considerando o aspecto
moral da indicação – segundo a senadora Simone Tebet um “erro estratégico” do
presidente –, resta a questão, a ser cuidadosamente examinada pelos senadores,
da capacidade do indicado para tal função. Cabe registrar seu notório apreço
pelo atual presidente americano – visível em visitas com o boné da reeleição –,
o que já seria um impedimento substantivo a um seguimento isento, independente,
das políticas daquele país. Não se trata apenas da hipótese de um opositor ser
eleito em novembro de 2020, mas do diálogo que se deve manter com amplos
setores da sociedade americana, cuja maioria urbana e mais educada esmagou, com
milhões de votos, o vencedor no colégio eleitoral.
Que tipo de informação
objetiva – que é o mínimo que se espera de um embaixador – poderá oferecer à
chancelaria brasileira, contendo uma análise equilibrada das políticas de um
governo com o qual está empaticamente identificado? Como seria ele visto na Câmara,
atualmente dominada por uma maioria de oposição ao presidente? Como vai ser com
os diplomatas profissionais, dotados de maior experiência em assuntos internacionais
do que ele mesmo? E o que farão os ministros, conselheiros, secretários mais
antigos, ao se defrontar com um chefe de posto notoriamente despreparado para
tratar dos mais diversos assuntos da agenda bilateral, hemisférica e
internacional, financeira, política e cultural, como é o caso dessa embaixada
que vale quase por uma chancelaria inteira?
A CREDN-SF tem um imenso
desafio pela frente, uma vez que o que está em causa é a própria credibilidade
da diplomacia brasileira junto ao país com o qual já tínhamos relações ainda
antes da independência, e laços formais desde 1824. O primeiro embaixador do
Brasil, designado por Rio Branco em 1905, se chamava Joaquim Nabuco, elevado a
essa categoria sem precedentes na diplomacia brasileira justamente para servir
em Washington.
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