"Existe algo de grave na nossa economia"
Entrevista com Marcos Lisboa
Marcos Strecker
Revista IstoÉ, edição 16/08/2019 - nº 2590
O economista Marcos
Lisboa tem se firmado como uma das vozes mais influentes no debate econômico
nos últimos anos. Após participar do primeiro governo Lula como secretário de
Política Econômica, despertou reações ao criticar os rumos da gestão Dilma, e
anteviu a crise que se seguiria. Agora, ele alerta sobre o fato de que o País
estará condenado à estagnação e ao crescimento baixo se as reformas como a da
Previdência não forem logo implementadas. “É preciso reconhecer que existe algo
de grave na nossa economia”, afirma. Lisboa considera que o governo está lento
na agenda de privatizações. Pior: acha que não tem sido eficiente para melhorar
o ambiente de negócios e atrair mais investimentos: “A medida da liberdade econômica
me decepcionou profundamente. A impressão que fica, com raras exceções no
governo, é que existe boa intenção, mas pouco conhecimento técnico.” Sobre a
Reforma Tributária, o próximo grande projeto que vai mobilizar o Congresso e
pode ajudar a destravar a economia, ele é enfático: “Voltar à CPMF é
inacreditável”.
Como o senhor vê as propostas de Reforma Tributária que
incluem uma nova CPMF?
O Brasil perdeu o bonde da história. Mais de 150 países
usam o imposto sobre valor agregado (IVA), que é bastante simples. Você paga
sobre o que vendeu, descontado o que seus fornecedores já recolheram. É
simples, padrão. Temos um sistema tributário completamente deformado, e isso
aparece em diversos indicadores.
O País tem uma dívida com Rogério Marinho pela Reforma da
Previdência. Mas parece que boa parte do governo se perde em problemas menores
Por exemplo…
O contencioso entre a Receita Federal e as empresas
representa 12% do PIB. Esse número não existe em outro país. É resultado de
regras ruins. No ICMS o problema é maior ainda. Voltar à CPMF é inacreditável.
Os poucos países arrumados que adotaram um imposto sobre movimentação
financeira o abandonaram. Há um que o mantém, com uma alíquota elevada, de 2%:
a Venezuela. É surpreendente que lideranças empresariais e o próprio governo
pensem em fazer um imposto que, nessa proporção, só existe na Venezuela. É descabida
essa tributação. Entendo o medo dos empresários, que receiam pagar mais
impostos. Precisamos então tratar da informalidade, dos problemas. Mas não
vamos criar um espantalho completamente descabido, que ninguém razoável no
mundo usa, porque se tem medo de pagar um pouco mais.
A Reforma da Previdência no seu formato atual é suficiente
para resolver o problema fiscal?
Precisamos derrubar alguns mitos. Primeiro, a Reforma da
Previdência não resolve o problema fiscal. Ela faz com que a situação pare de
piorar. Na melhor das hipóteses, vai estabilizar o gasto em relação ao PIB.
Vamos precisar de outras reformas para economizar dinheiro. Segundo, o problema
dos estados é grave. A reforma precoce de professores e PMs é um problema para
eles. Por que professores precisam ter aposentadoria precoce em relação a
outras profissões? Em que medida seus trabalhos são mais desgastantes ou
estressantes do que os de um médico de UTI? Em diversos estados 70% dos gastos
com aposentadoria são com PMs e professores. Esse é o drama brasileiro. O
oportunismo, o autointeresse exacerbado e a falta de solidariedade são típicos.
O agronegócio não quer pagar contribuição para a Previdência. A indústria diz
que precisa de crédito subsidiado e proteção contra os estrangeiros. Esse egoísmo
dos diversos grupos de interesse explica o motivo pelo qual o Brasil ficou para
trás.
O Banco Central baixou a Selic. Os juros menores vão
impulsionar a economia? Em outras palavras, a política monetária sozinha pode
levar à retomada econômica?
Imaginar que a política monetária ajuda o crescimento é um
equívoco que a gente comete há anos. Ela controla a inflação e ajuda a
atividade. Os juros estão caindo por uma razão ruim, pois a economia está muito
fraca. Pela queda que ocorreu, já devia ter se recuperado. Isso é um sinal
preocupante de como a economia está frágil. Há sinais um pouco positivos. Esse
ano vamos terminar com crescimento ao redor de 1%, talvez um pouco menos. É
possível que, 12 meses à frente, possamos crescer 2%. Mas o nosso crescimento potencial,
sustentado, é de 1% ou menos. Isso é uma má notícia.
E no curto prazo?
Podemos ter uma retomada maior no curto prazo pela
capacidade ociosa, mas não será sustentável. A economia brasileira está muito
machucada. Vamos crescer pouco, a menos que façamos diversas reformas difíceis
e importantes.
As polêmicas criadas pelo presidente Jair Bolsonaro e sua
pauta de costumes põem em risco a agenda de reformas?
Certamente esse ruído tem atrapalhado. Passa a Previdência
e começamos a discutir nomeação de embaixador, como se fosse algo relevante.
Isso cria uma insegurança nas pessoas sobre se o governo sabe para onde está
indo e o que é prioridade. Aparentemente não, em muitos casos. Porém,
precisamos ressaltar as exceções. O País tem uma dívida com o Rogério Marinho
pela Reforma da Previdência e com o Mansueto Almeida pela clareza com os
problemas fiscais. Mas parece que boa parte do governo se perde em problemas
menores, em um País que está estagnado há uma década.
A polarização política e a falta de consensos ameaçam o
enfrentamento das questões estruturais, como educação, saúde e segurança?
Nada mais parecido no Brasil do que a extrema esquerda e a
extrema direita. Basta ver a Reforma da Previdência. A esquerda dizia que não
havia déficit, não havia problema. Afirmava que serviria para ajudar alguns
setores, haveria interesses escusos. E o pior é que uma parte da direita tem a
mesma combinação de superficialidade e leviandade no discurso. É preocupante.
Há muitos problemas relevantes, e no entanto fica uma briga de comadre entre a
esquerda e a direita, um difamando o outro de maneira disfuncional.
A guerra comercial EUA-China ameaça o Brasil?
Esse é outro ponto preocupante. É preciso um mínimo de
responsabilidade, porque o mundo hoje é mais instável, difícil. O País precisa
cuidar dos seus fundamentos para que possa crescer de forma minimamente
sustentável. Uma parte da América Latina foi bem-sucedida. O Chile conseguiu
crescer, o Peru, a Colômbia, o Panamá. E outra parte insiste nesses discursos
disparatados. Há um país, há anos, que empobrece lentamente: a Argentina. Outro
escolheu o lado do penhasco: a Venezuela. Infelizmente, o Brasil parece estar
entre os dois.
Os acordos de livre comércio com a União Europeia e talvez
com os EUA podem acelerar o crescimento?
O acordo com a União Europeia é ótimo. É um processo de
dez anos, que requer muitas medidas e ações. Mas boa parte do que um acordo como
esse com a UE requer é cuidar do meio ambiente. Parece que de um lado se quer
fazer o acordo, de outro, não. O Brasil é um país estranho. É um dos mais
fechados ao comércio industrial. Há restrições de tarifas, técnicas. Esse é um
clube que integramos com alguns países africanos muito pobres. Há a burocracia,
as regras de conteúdo nacional. É um pesadelo trazer uma máquina mais eficiente
do exterior. Esses anúncios ufanistas são bacanas, mas temo a frustração, pois
não estamos fazendo o dever de casa. São temas que estão na mão do governo
federal.
As privatizações estão caminhando no ritmo adequado?
O Brasil está mais do que atrasado. Há resistências de
quem quer ser oposição — pois tem de falar mal do governo — e dos sindicatos,
dos servidores. Por outro lado, na campanha, o governo prometeu mais do que
tem. Já podia ter privatizado a Eletrobras. Por que está tão lento? Privatizar
diversas empresas é bom, mas não vai resolver o problema do País. Fico
frustrado de esse processo demorar tanto. Em termos de saneamento, ainda somos
reféns das empresas estaduais. Por que isso não andou?
O combate à corrupção ainda é um dos principais desafios
do País?
É fundamental. O Brasil deu um salto imenso, mas é
importante entender também o que o permitiu. Esse é um problema histórico. A
causa foi o Estado grande com poder discricionário. Numa hora você quer
fortalecer uma grande empresa estatal, e o diretor pode decidir construir isso
ou aquilo. Quando se cria esse poder público gigantesco com tamanho poder
decisório, nas mãos de diretores de estatais, abre-se espaço para a corrupção.
Se o País acha razoável regras tributárias tão diferenciadas, essa meia entrada
generalizada, você abre espaço para a corrupção. Às vezes se dá o benefício por
boas intenções. Outras vezes, pelas razões erradas. É preciso resgatar o
princípio republicano de tratar os iguais como iguais. E dar transparência à
concessão de benefícios. Toda vez que ela é obscura, abre-se margem para o
malfeito. Não se deve concedê-los por meio de isenções tributárias. Isso deve
ser feito via orçamento, gasto, jamais via tributação. Ela não é o mecanismo
adequado para fazer política pública. a não ser em casos excepcionais.
O estrago do governo Dilma é equivalente ao do governo Geisel. O
sistema tributário virou um pesadelo
O liberalismo econômico nunca foi popular no País. A
agenda do ministro Paulo Guedes vai prosperar?
Acho que isso vem mudando no Brasil há uns 20 anos.
Começou no final do governo Sarney, com a abertura comercial, além das privatizações
que vieram no governo Collor e Itamar. A introdução das agências reguladoras no
governo FHC… Mesmo o governo Lula, no começo, preservou essa agenda. Tivemos um
retrocesso imenso a partir de meados do segundo governo Lula e no governo
Dilma. Vamos pagar por isso por muito tempo. O estrago do governo Dilma é
equivalente ao estrago do governo Geisel. Houve destruição e má alocação de
recursos, o sistema tributário virou um pesadelo. Essa disfuncionalidade é uma
das responsáveis pela pobreza no Brasil. O que está me preocupando é que está
havendo muito discurso e pouco resultado. A medida da liberdade econômica me
decepcionou profundamente, não foi bem feita. Precisamos enfrentar os
problemas, e não criar regras gerais, princípios. A impressão que fica — com
raras exceções no governo — é que existe boa intenção, mas pouco conhecimento
técnico de como implementar as medidas. Acabam vendendo pílula do câncer.
Haverá retomada econômica?
Olha a demora para a recuperação. O estado ao qual o
Brasil chegou. Se alcançarmos 2% de crescimento vamos ficar aliviados — uma
economia com 12 milhões de desempregados e que andou para trás na última
década. Isso depois da imensa queda de juros desde o governo Temer. É preciso
reconhecer que existe algo de grave na nossa economia, ou estaremos condenados
à estagnação e ao crescimento baixo por mais uma geração. Meu receio é que,
depois de crescermos 2%, volte a crise. Tem sido assim recorrentemente.
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