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segunda-feira, 24 de março de 2025

Nem o mundo, os europeus, ou os próprios americanos, ninguém merece Donald Trump - The Economist

 Putin é um cleptocrata e assassino serial, isso já sabemos. Ou seja, um perverso motivado, agindo racionalmente. Só pode ser contido pela força bruta.

Já Trump é um megalomaníaco imprevisivel, e portanto perigoso para todos, inimigos e “amigos” (mas ele não tem nenhum, só ele mesmo e o dinheiro). 

Vamos ler o que a Economist tem a dizer… PRA


THE ECONOMIST

 

A armadilha que Vladimir Putin armou para Donald Trump

O presidente russo quer sugerir que a Ucrânia é apenas um detalhe em um relacionamento maior 

Por The Economist

23/03/2025 


Eles conversaram pelo telefone por mais de duas horas, mas Vladimir Putin deixou Donald Trump sem quase nenhum resultado para mostrar — um tapa na cara que somente um homem possuidor de coragem ilimitada poderia fingir que foi uma vitória. Uma semana antes, os negociadores dos Estados Unidos e da Ucrânia concordaram com um cessar-fogo de 30 dias em um conflito que já dura mais de três anos. Trump disse que, se a Rússia não assinasse, ele poderia atingi-la com novas sanções duras. No caso, ele cedeu. Até Boris Johnson, um ex-primeiro-ministro britânico que admira Trump, declarou que Putin está “rindo de nós”.

Em vez de um cessar-fogo incondicional, Putin propôs apenas que ambos os lados parassem de atacar a infraestrutura energética um do outro, uma área em que a Ucrânia tem desferido alguns golpes pesados contra o invasor. Para que algo mais aconteça, diz o governo russo, a Ucrânia deve aceitar um congelamento na ajuda militar estrangeira e o fim do recrutamento e treinamento, embora a Rússia não proponha tais restrições a si mesma. Putin também quer uma solução para as “causas-raiz” do conflito, com o que ele realmente quer dizer o fim da existência da Ucrânia como um país independente. Essas não são as palavras de um homem que está ansioso para fazer concessões.

Os otimistas podem extrair disso um pouco de conforto. Uma pausa nos ataques a alvos de energia, acordada em uma ligação com Volodmir Zelenski, presidente da Ucrânia, é um pequeno avanço. Trump também sugeriu que as usinas nucleares passem para a propriedade americana, para sua proteção, e disse que tentaria obter alguns mísseis Patriot da Europa. Em público, ele se absteve de endossar as exigências mais severas de Putin para a Ucrânia.

O verdadeiro perigo está à frente. Putin quer que o presidente americano acredite que, como estadistas, eles têm peixes maiores para fritar do que ficar brigando por um lugar abandonado como a Ucrânia. Contanto que isso não atrapalhe, a Rússia e os EUA podem realizar quase tudo juntos. A Rússia poderia ajudar a resolver crises no Oriente Médio e além, talvez pressionando seu amigo Irã a abrir mão da bomba. O investimento americano em negócios russos, como exploração de gás no Ártico, poderia avançar. As sanções seriam suspensas e a Rússia poderia voltar a se juntar ao G7. Imagine se a Rússia fosse separada de sua “parceria sem limites” com a China. A “terceira guerra mundial”, uma preocupação constante de Trump, teria sido evitada.

Tudo isso é uma fantasia projetada para fazer Trump cair na tentação de entregar a Putin o que ele quer na Ucrânia em troca de promessas vazias. A realidade é que a Rússia agora depende mais da China do que jamais dependerá dos EUA, e não será separada dela. A influência da Rússia no Irã é limitada. A economia da Rússia é menor que a da Itália e sujeita aos caprichos de um déspota, o que significa que as oportunidades de negócios são escassas.

Pelo contrário, se em busca dessa quimera Trump aliviar a pressão que o Ocidente impôs à Rússia, os EUA perderão. Para começar, isso criará uma nova divisão entre os EUA e a Europa, que não seguirá Trump. A Ucrânia será desestabilizada, representando riscos para toda a Europa. As alianças e valores que os Estados Unidos têm defendido por décadas serão degradados, e os próprios Estados Unidos ficarão mais fracos como resultado disso. Trump pode se importar pouco com essas coisas, mas certamente ficará preocupado com o risco de parecer fraco, como seu antecessor Joe Biden fez quando o Talibã tomou conta do Afeganistão.

A ligação Putin-Trump ocorreu quando um cessar-fogo mediado pelos Estados Unidos em Gaza estava se rompendo em meio a ataques israelenses. O estilo pessoal de diplomacia de Trump pode quebrar impasses, mas a pacificação parece muito cansativa e detalhada para que ele a leve adiante. O comunicado da Casa Branca sobre a ligação com a Rússia falou de “enormes acordos econômicos e estabilidade geopolítica quando a paz for alcançada”. Está claro o que Putin quer. É estranho que Trump pareça tão pronto a entregar isso a ele. 


TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL


segunda-feira, 3 de março de 2025

A Europa é capaz de enfrentar sozinha a Rússia de Vladimir Putin? - The Economist

 A Europa é capaz de enfrentar sozinha a Rússia de Vladimir Putin? 

A Europa é capaz de enfrentar sozinha a Rússia de Vladimir Putin?

Um exército independente, uma força aérea e uma bomba nuclear teriam um alto custo 

The Economist, 03/03/2025 


Poucas horas depois de seu partido vencer as eleições nacionais, Friedrich Merz, o provável próximo líder da Alemanha, soltou uma bomba. Donald Trump “não se importa muito com o destino da Europa”, disse ele. A prioridade era “passo a passo... alcançar a independência em relação aos EUA”. Este não era um objetivo distante. Ele não tinha certeza, disse ele, se a Otanainda existiria “em sua forma atual” em junho, quando os líderes devem se reunir nos Países Baixos, “ou se teremos que estabelecer uma capacidade de defesa europeia independente muito mais rapidamente do que isso”.

Quem pensou que Merz estava sendo alarmista foi rapidamente despertado para a realidade. Em 24 de fevereiro, em uma resolução da ONU que culpava a Rússia por invadir a Ucrânia, os Estados Unidos votaram contra seus aliados europeus, ficando ao lado da Rússia e da Coreia do Norte.

Merz não é o único “transatlanticista” convicto preocupado com o ataque de Donald Trump à Otan, a aliança que manteve a paz na Europa por quase oito décadas. “A arquitetura de segurança na qual a Europa confiou por gerações se foi, e não vai voltar”, escreve Anders Fogh Rasmussen, ex-secretário-geral da Otan, em um ensaio para a Economist. “A Europa deve aceitar o fato de que não somos apenas existencialmente vulneráveis, mas também estamos aparentemente sozinhos.”

Na verdade, pode levar uma década até que a Europa consiga se defender sem a ajuda dos Estados Unidos. A enormidade do desafio pode ser vista na Ucrânia. Os países europeus estão atualmente discutindo a perspectiva de uma mobilização militar ali para impor qualquer futuro acordo de paz. As negociações, lideradas pela França e pelo Reino Unido, preveem o envio de uma força relativamente modesta, de talvez dezenas de milhares de soldados. Eles não seriam mobilizados no leste na linha de frente, mas em cidades ucranianas, portos e outras infraestruturas importantes, de acordo com uma autoridade ocidental.

Qualquer implementação desse tipo, no entanto, exporia três fraquezas sérias. Uma delas é que isso sobrecarregaria as forças europeias. Há aproximadamente 230 brigadas russas e ucranianas na Ucrânia, embora a maioria esteja abaixo do efetivo previsto. Muitos países europeus teriam dificuldade para produzir uma única brigada com capacidade de combate cada. Segundo, isso abriria sérias lacunas nas próprias defesas da Europa.

Uma implantação britânica na Ucrânia, por exemplo, provavelmente engoliria unidades já destinadas à Otan, deixando buracos nos planos de guerra da aliança. Acima de tudo, os europeus reconhecem que qualquer implantação precisaria de apoio americano significativo, não apenas na forma de “facilitadores” específicos, como inteligência e equipamento de defesa aérea, mas também a promessa de apoio, caso a Rússia atacasse.

O fato de que a Europa teria dificuldade para gerar uma força independente do tamanho de uma divisão para a Ucrânia expõe a dimensão da tarefa prevista na visão de Merz. Atender aos planos de guerra existentes da Otan — com a presença dos Estados Unidos — exigiria que a Europa gastasse 3% do PIB em defesa, muito acima dos níveis existentes para a maioria dos países.

O Reino Unido deu um passo nessa direção em 25 de fevereiro, anunciando um plano para gastar 2,5% do PIB até 2027, mas mesmo isso pode ser insuficiente. Dizem que Mark Rutte, o secretário-geral da Otan, está propondo uma meta de 3,7%. No entanto, compensar os déficits americanos exigiria um valor bem acima de 4%.

Pagar por isso já seria difícil o suficiente. Traduzir dinheiro em capacidade também é mais difícil do que parece. A Europa precisaria formar 50 novas brigadas, calcula o centro de estudos estratégicos Bruegel, sediado em Bruxelas, muitas delas unidades “pesadas” com blindagem, para substituir as 300.000 tropas americanas que, estima-se, que seriam enviadas ao continente no caso de uma guerra. Os requisitos de mão de obra seriam proibitivos.


Fileiras de tanques

Esses números são estimativas. A sugestão do Bruegel de que a Europa precisaria de 1.400 tanques para impedir um avanço russo nos estados bálticos reflete suposições de planejamento tradicionais e provavelmente ;é um pouco exagerada. Em todo caso, esse tipo de contagem mostra apenas metade da história.

A Europa tem forças aéreas impressionantes, com muitos jatos modernos. Mas esses jatos não têm um estoque significativo de munições capazes de destruir as defesas aéreas inimigas ou atingir alvos distantes em terra ou no ar, explica Justin Bronk do Royal United Services Institute (RUSI), um centro de estudos estratégicos em Londres, em um artigo a ser publicado futuramente.

Apenas algumas forças aéreas, como a da Suécia, têm treinamento suficiente para guerra aérea de alta intensidade. Além disso, guerra eletrônica aerotransportada e inteligência, vigilância, aquisição de alvos e reconhecimento (ISTAR), ou a capacidade de encontrar e avaliar alvos, “são quase exclusivamente fornecidos pelos EUA”, observa Bronk.

Outro problema gritante é de comando e controle, ou as instituições e indivíduos que coordenam e lideram grandes formações militares na guerra. A Otan tem um amplo conjunto de quartéis-generais por toda a Europa, com o Quartel-General Supremo das Potências Aliadas da Europa em Mons, Bélgica, no topo da hierarquia, liderado pelo general Chris Cavoli que, como todos os Comandantes Aliados Supremos da Europa antes dele, é americano. “A coordenação da Otan é frequentemente um eufemismo para oficiais do estado-maior dos EUA”, diz Matthew Savill, um ex-oficial de defesa britânico agora no RUSI.

A experiência europeia na gestão de grandes formações é esmagadoramente concentrada em oficiais britânicos e franceses — ambos os países supervisionam dois “corpos” de reserva, que são quartéis-generais de altíssimo nível. Mas o Reino Unido provavelmente seria incapaz de executar uma operação aérea complexa na escala e intensidade da guerra aérea de Israel em Gaza e no Líbano. “Que eu saiba, não há nada que a Europa tenha que realmente se aproxime da escala do que os israelenses supostamente fizeram”, diz Savill.

Se os europeus forem capazes de gerar e comandar suas próprias forças, a próxima questão é se seria possível mantê-las alimentadas com munição. A produção de artilharia da Europa disparou nos três anos mais recentes, embora a Rússia, auxiliada pela Coreia do Norte, continue à frente. A Europa também tem fabricantes de mísseis: a MBDA, uma empresa pan-europeia com sede na França, fabrica um dos melhores mísseis ar-ar do mundo, o Meteor. França, Noruega e Alemanha fabricam excelentes sistemas de defesa aérea. A Turquia está se tornando uma séria potência industrial de defesa.

Entre fevereiro de 2022 e setembro de 2024, os estados europeus da Otan adquiriram 52% dos novos sistemas dentro da Europa e compraram apenas 34% dos EUA, de acordo com um artigo recente do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), outro centro de estudos estratégicos. Mas esses 34% costumam ser vitais. A Europa precisa dos EUA para artilharia de foguetes, defesa aérea de longo alcance e aeronaves furtivas. Mesmo para armas mais simples, a demanda supera em muito a capacidade, uma das razões pelas quais os países europeus se voltaram para o Brasil, Israel e Coreia do Sul.

O nível de dependência em relação aos EUA não é uniforme em todo o continente. O Reino Unido, por exemplo, está unicamente interligada às forças armadas, máquinas de inteligência e indústria dos Estados Unidos. Se os Estados Unidos cortassem o acesso a imagens de satélite e outras informações geoespaciais, como mapas de terreno, as consequências seriam profundas.

Talvez a principal razão pela qual o Reino Unido exigiu o consentimento dos Estados Unidos para deixar a Ucrânia disparar mísseis de cruzeiro britânicos Storm Shadow contra a Rússia no ano passado é que os mísseis dependiam de dados geoespaciais americanos para direcionamento eficaz. A Grã-Bretanha teria que gastar bilhões para comprar imagens de substituição, diz Savill, ou recorrer à França. Por outro lado, o envolvimento britânico com os Estados Unidos também pode fornecer uma forma de pressão. Cerca de 15% dos componentes do jato F-35 usado pelos Estados Unidos são feitos na Grã-Bretanha, incluindo peças difíceis de substituir, como o assento ejetor.

Como se a tarefa de construir forças convencionais independentes não fosse assustadora o suficiente, a Europa enfrenta outro desafio. Por 80 anos, ela se abrigou sob o guarda-chuva nuclear dos Estados Unidos. Se a Europa estiver realmente “sozinha”, como Rasmussen afirma, então a questão não é apenas que as forças americanas não lutariam por ela, mas também que não sew poderia contar com as armas nucleares americanas.

“Precisamos ter discussões com os britânicos e os franceses — as duas potências nucleares europeias”, disse Merz em 21 de fevereiro, “e saber se o compartilhamento nuclear, ou pelo menos a segurança nuclear... também poderia se aplicar a nós”. Na prática, o Reino Unido e a França não podem replicar o escudo nuclear americano sobre a Europa com seus arsenais relativamente pequenos — cerca de 400 ogivas no total, em comparação com mais de 1.700 ogivas russas mobilizadas.

Os insiders americanos torcem o nariz para a ideia de que isso seja adequado para uma dissuasão, pois acreditam que a Rússia seria capaz de limitar os danos a si mesma (não importa a possibilidade de Moscou ter desaparecido) enquanto infligiria um estrago pior à Europa. Dobrar ou triplicar o tamanho dos arsenais anglo-franceses provavelmente levaria anos e canibalizaria o dinheiro necessário para construir forças convencionais; a dissuasão britânica já consome um quinto dos gastos com defesa.


Pensamento estratégico

Outro problema é que, embora a França tenha armas nucleares a bordo de submarinos e aviões, o Reino Unido tem apenas as primeiras, o que limita sua capacidade de se envolver em “sinalização” nuclear em uma crise, por exemplo, usando armas nucleares de baixo poder de destruição, pois isso arriscaria expor a posição de seus submarinos e, portanto, colocaria sua capacidade de dissuasão estratégica em risco.

Além disso, embora o Reino Unido possa disparar suas armas nucleares sem a permissão americana, ela aluga os mísseis dos EUA — aqueles que não estão a bordo de submarinos são mantidos em um pool conjunto no estado da Geórgia — e depende da cooperação americana para componentes-chave.

Esses problemas não são necessariamente insuperáveis. Conversas silenciosas a respeito da dissuasão nuclear europeia entre ministros da defesa europeus se intensificaram nos meses mais recentes. “O debate alemão está amadurecendo em alta velocidade”, observa Bruno Tertrais, um dos principais pensadores da Europa em questões nucleares. “Os britânicos e os franceses precisarão enfrentar o desafio.”

A dissuasão nuclear não é apenas um jogo de números, ele diz, mas uma questão de vontade. Putin pode levar mais a sério as ameaças nucleares vindas do Reino Unido ou da França, que têm mais em jogo do que os EUA. Essas são as questões que preocuparam os pensadores europeus durante a Guerra Fria; seu retorno marca um novo e sombrio período para o continente. “Agora”, pronunciou Merz em 24 de fevereiro, “é como se realmente faltassem cinco minutos para a meia-noite para a Europa”. 


TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

sábado, 1 de março de 2025

A new Trump world, a Mafia world - The Economist

 A new world has begun, and it is not a nice world. PRA

Donald Trump iniciou uma luta mafiosa pelo poder global, mas as novas regras não se adequam aos Estados Unidos.

The Economist

A ruptura da ordem pós-1945 está se acelerando. Em cenas extraordinárias na ONU nesta semana, os Estados Unidos se alinharam à Rússia e à Coreia do Norte contra a Ucrânia e a Europa. O provável novo chanceler da Alemanha, Friedrich Merz, alerta que, até junho, a OTAN pode estar morta. Aproxima-se rapidamente um mundo regido pela força, no qual as grandes potências fecham acordos e intimidam as menores. A equipe de Trump alega que suas negociações trarão paz e que, após 80 anos sendo enganados, os Estados Unidos transformarão seu status de superpotência em lucro. No entanto, isso tornará o mundo mais perigoso e os próprios Estados Unidos mais fracos e pobres.  

Você pode não estar interessado na ordem mundial, mas ela está interessada em você. A abordagem ao estilo Don Corleone dos Estados Unidos ficou evidente na Ucrânia. Inicialmente, os americanos exigiram US$ 500 bilhões, mas acabaram aceitando um acordo nebuloso para um fundo estatal conjunto destinado ao desenvolvimento de minerais ucranianos. Não está claro se os Estados Unidos oferecerão garantias de segurança em troca.  

A administração Trump é um turbilhão de ideias e egos, mas há um consenso entre seus integrantes: sob a estrutura de regras e alianças pós-1945, os americanos foram prejudicados por um comércio injusto e pagaram por guerras estrangeiras. Trump acredita que pode perseguir o interesse nacional de forma mais eficaz por meio de transações agressivas. Tudo está em jogo: território, tecnologia, minerais e muito mais. "Minha vida inteira são negócios", afirmou ele em 24 de fevereiro, após conversas sobre a Ucrânia com Emmanuel Macron, presidente da França. Os aliados de Trump com experiência empresarial, como Steve Witkoff, estão viajando entre capitais para explorar acordos que ligam diferentes objetivos — desde fazer a Arábia Saudita reconhecer Israel até reabilitar o Kremlin.  

Esse novo sistema estabelece uma nova hierarquia. A América é a número um. Em seguida, vêm os países com recursos para vender, ameaças a fazer e líderes sem restrições democráticas. Vladimir Putin busca restaurar a Rússia como uma grande potência imperial. Mohammed bin Salman quer modernizar o Oriente Médio e conter o Irã. Xi Jinping, um comunista convicto e nacionalista, deseja moldar um mundo adequado a uma China forte. No terceiro nível estão os aliados da América, cuja dependência e lealdade são vistas como fraquezas a serem exploradas.  

O território está em negociação, desafiando as regras pós-1945. A fronteira da Ucrânia pode ser redefinida com um aperto de mão entre Trump e Putin. As fronteiras de Israel, Líbano e Síria foram borradas por 17 meses de guerra. Algumas potências externas permanecem indiferentes. No entanto, Trump está de olho em Gaza, assim como na Groenlândia. Em possíveis negociações sino-americanas, Xi poderia oferecer concessões territoriais, como limitar exportações em troca de vantagens em Taiwan, no Mar da China Meridional ou no Himalaia.  

A barganha econômica vai muito além das tarifas e envolve uma fusão entre poder estatal e negócios. Isso marca um retrocesso na ideia de que o comércio deve ser regido por regras neutras. As negociações bilaterais entre os Estados Unidos e Rússia, Arábia Saudita, executivos taiwaneses e Ucrânia abrangem produção de petróleo, contratos de construção, sanções, fábricas da Intel, o uso do serviço de satélite Starlink de Elon Musk e até um torneio de golfe no deserto.  

Os novos negociadores afirmam que essa abordagem beneficiará o mundo. Trump argumenta que ela também será vantajosa para os Estados Unidos. Eles estão corretos? Tanto Trump quanto os líderes do Sul Global têm razão ao afirmar que a ordem pós-1945 se deteriorou. Quando a diplomacia tradicional falha, ideias não convencionais podem funcionar — basta lembrar dos Acordos de Abraão entre Israel e alguns estados árabes.  

No entanto, há uma grande diferença entre isso e usar a negociação como princípio organizador da política global. A complexidade é esmagadora: a Arábia Saudita quer um pacto de defesa contra o Irã, que os Estados Unidos poderiam conceder caso Riad reconheça Israel. Mas isso exigiria que Israel e os palestinos aceitassem uma solução de dois Estados — algo que Trump rejeitou em seu plano para a paz em Gaza. A Rússia deseja que as sanções ao petróleo sejam suspensas, mas isso poderia reduzir a receita da Arábia Saudita e aumentar os custos para a Índia. E assim por diante. Enquanto isso, quando fronteiras se tornam negociáveis, as guerras seguem. Até mesmo potências como a Índia podem se sentir inseguras. Como Trump encara o poder de forma pessoal, em vez de vê-lo ancorado nas instituições americanas, ele pode ter dificuldades para convencer seus pares de que seus acordos terão longevidade — uma das razões pelas quais ele não é um Henry Kissinger.  

O mundo, portanto, sofrerá. O que Trump não percebe é que a América também sofrerá. Seu papel global impôs um fardo militar e uma abertura comercial que prejudicou algumas indústrias americanas. No entanto, os ganhos foram muito maiores. O comércio beneficia consumidores e indústrias importadoras. Ser o coração do sistema financeiro baseado no dólar economiza aos Estados Unidos mais de US$ 100 bilhões anuais em juros e permite ao país manter um alto déficit fiscal. Os negócios estrangeiros de empresas americanas valem US$ 16 trilhões. Essas empresas prosperam no exterior porque operam sob regras globais razoavelmente previsíveis e imparciais, em vez de dependerem de corrupção e favores transitórios — um ambiente que favorece muito mais as empresas chinesas e russas.  

Trump acredita que os Estados Unidos podem abandonar parcial ou totalmente a Europa e talvez seus aliados asiáticos também. Ele argumenta que o país tem um "belo oceano como separação". No entanto, as guerras hoje envolvem espaço e ciberespaço, tornando a distância física uma barreira ainda menos eficaz do que em 1941, quando o ataque japonês a Pearl Harbor pôs fim ao isolacionismo americano. Além disso, quando os Estados Unidos querem projetar poder militar ou defender seu território, dependem da colaboração de aliados — desde a base aérea de Ramstein, na Alemanha, até a estação de sinais de Pine Gap, na Austrália, e o rastreamento de mísseis no Ártico canadense. No mundo de Trump, os americanos podem perder esse acesso privilegiado.  

Os defensores dessa nova diplomacia assumem que os Estados Unidos podem obter o que desejam apenas pela barganha. No entanto, à medida que Trump explora relações de dependência construídas ao longo de décadas, a influência americana pode cair rapidamente. Sentindo-se traídos, os aliados na Europa e além podem buscar segurança em novas alianças. Se o caos se espalhar, os Estados Unidos enfrentarão novas ameaças enquanto dispõem de menos ferramentas para lidar com elas — imagine uma corrida armamentista nuclear na Ásia em um sistema com alianças americanas fragilizadas e um controle de armas mais fraco ou inexistente.  

Em tempos perigosos, amigos, credibilidade e regras valem mais do que dinheiro fácil. O Congresso, os mercados financeiros ou os eleitores ainda podem persuadir Trump a recuar. Mas o mundo já começou a se preparar para uma era sem lei.

Tradução da matéria do The Economist "Donald Trump has begun a mafia-like struggle for global power: But the new rules do not suit America" | 27/02/2025

sábado, 1 de fevereiro de 2025

A esquerda brasileira sobreviverá sem Lula? Presidente não tem herdeiros aparentes (The Economist ) - A tragédia do carisma - Paulo Roberto de Almeida (OESP)

Uma matéria sobre o carisma em pessoa, Lula, o que lembra de uma mat eria que escrevi no ano passado sobre a tragédia do carisma. Vou reproduzir depois da matéria. PRA

A esquerda brasileira sobreviverá sem Lula? 

Presidente não tem herdeiros aparentes 

The Economist, 1fev25 

 

Após sair do hospital, em dezembro, Luiz Inácio Lula da Silva mostrou um visual elegante. O presidente brasileiro adotou um chapéu panamá para esconder cicatriz de uma cirurgia craniana de emergência. Ela foi realizada para conter uma hemorragia após ele escorregar no banheiro e bater a cabeça. 

Lula, que tem 79 anos, tem estado de bom humor. Recentemente, brincou que poderia viver até os 120 anos. Seu Partido dos Trabalhadores (PT) insiste que ele concorrerá novamente na próxima eleição presidencial do Brasil, em 2026. 

Lula, de chapéu panamá após cirurgia intracraniana, durante a posse de Sidônio Palmeira na Secretaria de Comunicação Social - Evaristo Sá - 14.jan.2025/AFP 

Nos bastidores, há menos certeza. Em 20 de janeiro, o jornal O Globo relatou que Lula surpreendeu seu gabinete ao dizer que não concorreria novamente a menos que estivesse com boa saúde. O Partido dos Trabalhadores foi lançado em um frenesi. Lula é a única figura popular do partido. 

A base do PT encolheu à medida que o Brasil em que ele foi forjado mudou. Antes uma potência industrial construída sobre uma força de trabalho sindicalizada e majoritariamente católica, hoje o Brasil é marcado pela agricultura de alta tecnologia e por trabalhadores de aplicativos que se aglomeram em templos evangélicos. 

À medida que a estrela de Lula desvanece, o partido que ele construiu, que domina a esquerda brasileira, enfrenta "uma crise de identidade", diz Celso Rocha de Barros, autor de um livro sobre o PT. 

A notável história de vida de Lula e seu magnetismo pessoal o ajudaram a se conectar com os eleitores de maneiras que a maioria dos políticos só pode sonhar. Nascido em uma família pobre no Nordeste do Brasil, região marcada pela seca, ele se mudou para São Paulo, onde trabalhou de engraxate a operador de torno e, mais tarde, liderou o sindicato dos metalúrgicos. 

É o primeiro presidente brasileiro a ser eleito para três mandatos não consecutivos. Barack Obama uma vez o chamou de "o cara". 

A trajetória de Lula 

O cara 

Durante seus dois primeiros mandatos, de 2003 a 2010, a demanda chinesa por commodities brasileiras disparou. A estatal Petrobras descobriu enormes reservas de petróleo bruto. Isso ajudou a financiar um amplo programa de bem-estar social e a reduzir a pobreza. 

Então a sorte de Lula acabou. Os preços das commodities caíram e, em 2014, o PT foi envolvido em um escândalo de corrupção. Empresas de construção estavam pagando propinas a executivos da Petrobras e políticos, incluindo muitos do PT. Em 2017, o caso alcançou Lula, e ele foi condenado a nove anos de prisão (sua condenação foi posteriormente revertida). Durante todo esse tempo, o PT conduziu campanhas agressivas contra qualquer potencial rival de Lula, mantendo seu controle sobre o partido. 

Os escândalos de corrupção prejudicaram a reputação de Lula, mas ele continua sendo um gigante da política brasileira. Após sua libertação, ele recuperou a presidência de Jair Bolsonaro, um populista de extrema-direita, em 2023. 

Fernando Morais, biógrafo de Lula, descreve-no como "um búfalo", ríspido, disciplinado e enérgico. Ele minimizou preocupações sobre sua idade insinuando que faz muito sexo com sua esposa, que é 21 anos mais jovem. 

Uma pesquisa com mais de 8.500 brasileiros realizada entre 4 e 9 de dezembro sugeriu que Lula venceria qualquer rival em 2026. No entanto, uma maioria magra dos brasileiros também disse que ele não deveria concorrer novamente. Neste ano "as coisas vão ficar complicadas" à medida que candidatos disputam a bênção de Lula, diz Morais. 


No topo da lista de potenciais sucessores no PT está Fernando Haddad, o ministro da Fazenda. Haddad é considerado um pragmático e uma rara voz no governo que defende a contenção fiscal. No entanto, isso atraiu a ira da base do PT. 

Seu perfil acadêmico —ele tem diplomas em direito, economia e filosofia e escreveu uma tese de doutorado sobre "materialismo histórico"—faz dele uma escolha difícil de vender. Como candidato presidencial do PT em 2018, ele foi derrotado por Bolsonaro, que surfou uma onda anti-establishment até o poder. 


Casal poderoso 

Tabata Amaral, deputada de São Paulo e jovem estrela em ascensão da esquerda, ainda não parece ter peso político suficiente. Ela também concorreu à Prefeitura de São Paulo, mas recebeu apenas 10% dos votos. 

Seu parceiro, João Campos, prefeito do Recife, capital do estado natal de Lula, Pernambuco, pode ter chances melhores. Em outubro, ele foi reeleito prefeito com quase 80% dos votos. Ambos têm 31 anos e, por isso, estão sujeitos a acusações de inexperiência. 

Quando o nome de Lula não está na urna, o PT é frágil, e partidos de centro-direita dominam. O número de municípios com prefeitos do PT caiu de 624 em 2012 para 252. 

Sua base mudou do Sudeste, o coração industrial, para o Nordeste, onde muitas pessoas dependem de auxílio governamental. Isso é uma desvantagem, já que governos de direita também adotaram a distribuição de benefícios. 

"O PT costumava depender dos pobres organizados", diz Barros. "Agora eles dependem dos pobres desorganizados." Enquanto Lula se prepara para se retirar, o movimento que ele construiu pode ter dificuldades para sobreviver a ele.

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4709. “A tragédia do carisma”, Brasília, 22 julho 2024, 3 p. Artigo sobre a intransmissibilidade do carisma. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo (30/08/2024, p. 4; link: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/a-tragedia-do-carisma/). Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/08/a-tragedia-do-carisma-paulo-roberto-de.html). Relação de Publicados n. 1562.


A tragédia do carisma

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

 

Certos líderes políticos possuem, ou adquirem, carisma, outros não. Pode-se perder o carisma original e depois recuperá-lo. Mas existem características únicas no fenômeno, o que o torna intransmissível a outrem, ainda que discípulo do detentor original.

O jovem Winston Churchill adquiriu o seu carisma precocemente, como jornalista e voluntário nas forças coloniais britânicas que lutaram no Sudão e na África do Sul. Tornou-se Lorde do Almirantado (ministro da Marinha) na Grande Guerra, mas perdeu seu cargo no desastre de Dardanelos. Recuperou um pouco de prestígio ao se engajar, como simples oficial subalterno nas forças britânicas que lutavam contra as tropas do Império alemão no norte da França. Isso lhe permitiu ser designado Lord of the Exchequer (ministro do Tesouro) em 1925, mas sua insistência em retornar ao padrão ouro na paridade de 1914 – contra os alertas de Keynes – provocou a grande crise de 1926, o que arruinou a sua carreira durante muitos anos. Passou a maior parte dos anos 1930 no ostracismo, ainda que clamando insistentemente na House of Commons contra os totalitarismos expansionistas da época: só recuperou o poder, o prestígio e o carisma no desastre de 1940 e na longa guerra que se seguiu contra o hitlerismo. Ainda assim perdeu as eleições de 1945 para os trabalhistas.

Franklin D. Roosevelt adquiriu tremendo prestígio ao conduzir os Estados Unidos na depressão dos anos 1930 e na terrível guerra em duas frentes a partir de 1941. Ainda assim, não transmitiu nenhum carisma a seu sucessor, o vice-presidente Harry Truman. O presidente seguinte, Dwight Eisenhower quase não tinha carisma, mas sim um grande prestígio, como comandante supremo das forças aliadas contra o domínio nazista na Europa. Kennedy, em contrapartida, adquiriu, sim, um prestígio extraordinário, por ser o mais jovem presidente da história política americana, pela sua elegantíssima esposa francesa, adquirindo seu carisma no exercício do cargo, sobretudo ao confrontar os soviéticos no episódio dos mísseis soviéticos em Cuba: seu assassinato, um ano depois, acrescentou a tragédia ao carisma imorredouro.

O vice-presidente Lyndon Johnson, um político tradicional do Texas, não tinha nenhum carisma, e a guerra do Vietnã (engajada por Kennedy) terminou por destruir sua carreira, tanto que escolheu não concorrer a um segundo mandato. O vencedor na disputa de 1968, Richard Nixon, adquiriu certo prestígio ao reinserir a China comunista no sistema mundial, mas perdeu ao se tornar um vulgar larápio no escândalo do Watergate. Reagan tinha o seu prestígio de ator de Hollywood e ganhou certo carisma ao lograr, junto com Thatcher, implodir a União Soviética, o que aconteceu com seu sucessor, Bush pai, facilmente derrotado na tentativa de reeleição pelo carismático Bill Clinton, um grande animal político (a despeito de suas escapadas conhecidas). Obama tinha um grande carisma, o que já não ocorreu com seu vice, desistente da reeleição em 2024, depois do desastroso, mas incrivelmente e absurdamente carismático governo Trump. Não se pode dizer que Trump tivesse qualquer carisma atrativo no plano da política normal, pois sua mensagem aos eleitores era basicamente antipolítica, seduzindo a franja lunática dos antiglobalistas, os xenófobos e, mais notoriamente, os supremacistas e racistas em geral.

Na história política do Brasil, Vargas construiu um grande carisma em torno de si, mediante o controle do Estado e sua máquina de propaganda. JK também, mas por motivos inteiramente justos: presidiu ao mais notável desenvolvimento do Brasil com pleno regime democrático. O carisma de Jânio, um fenômeno populista dos mais notáveis, sobreviveu até mesmo à inexplicável renúncia aos seis meses de governo, e conseguiu preservar certo capital político, pelo menos para retornar como prefeito da maior cidade do país. Não se pode dizer que qualquer um dos presidentes militares tenha exibido algum carisma, o que tampouco foi o caso do presidente da redemocratização, Sarney, embora o candidato eleito, Tancredo Neves, tinha obviamente enorme prestígio político ao encerrar exitosamente 21 anos de ditadura militar. Collor, o primeiro presidente eleito por voto direto desde 1960, começou com grande sucesso, ao dar início a um processo de reformas importantes nas políticas econômicas, mas logo soçobrou ao se revelarem os negócios obscuros de um assessor super corrupto. 

Não se pode dizer que Itamar, vice-presidente acidental, tenha tido qualquer carisma, mas o sucesso do Plano Real fez do seu ministro da Fazenda pouco carismático um vencedor duas vezes do pleito presidencial no primeiro turno. Finalmente, chegamos a uma figura política verdadeiramente carismática, Lula, embora só tenha sido eleito na quarta tentativa, depois de esconder seus instintos intervencionistas na economia e de promover o seu lado populista pela expansão extraordinária dos programas sociais criados pelo seu antecessor acadêmico, Fernando Henrique Cardoso. Saiu ungido triunfalmente por 80% de aprovação popular, o que lhe garantiu prestígio suficiente para retornar uma terceira vez ao poder, a despeito de ter presidido ao mais vasto esquema de corrupção da história da República. 

O carisma de Lula assegurou a vitória de sua sucessora, uma administradora medíocre e que conseguiu produzir a maior recessão econômica da história do Brasil. Carisma nenhum, o que tampouco foi o caso de Temer, indignamente acusado de golpista pela máquina de propaganda do PT, relativamente eficiente até a chegada dos novos operadores políticos da extrema direita. Bolsonaro era antes um fenômeno fabricado por essa propaganda nas novas redes sociais, do que propriamente um movimento político organizado, mas a polarização política criada entre o lulopetismo e o bolsonarismo continuou mantendo seu prestígio inusitado, em face das muitas acusações de fraudes, malversações e até de golpismo. A nova realidade pode assegurar um embate político entre o petismo e o antipetismo em 2026.

Lula continua exibindo inegável carisma, embora bem mais disseminado entre os beneficiários da assistência pública do que entre os eleitores de regiões mais avançadas; basta conferir os mapas eleitorais do PT dos anos 2000 à atualidade para confirmar essa nova realidade: o PT se transformou no partido dos “grotões”. A tragédia do carisma de Lula, que é a de todos os demais carismas, é que ele não é transmissível a algum sucessor designado, além do próprio Lula, que sempre buscou eliminar qualquer herdeiro político dotado de voo próprio. 

Joe Biden, ainda que forçado, teve de reconhecer que idade avançada e falta de carisma não o habilitavam a disputar uma reeleição. Sua atitude corajosa servirá de lição, ou de exemplo, a Lula, que também enfrenta o peso da idade e o carisma declinante para lograr nova vitória em 2026? 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4709, 22 julho 2024, 3 p.

Nota sobre a intransmissibilidade do carisma.



terça-feira, 28 de janeiro de 2025

A IA chinesa está se recuperando, e isso representa um dilema para Trump - The Economist

A IA chinesa está se recuperando, e isso representa um dilema para Trump

O sucesso do DeepSeek e de outros criadores de modelos chineses ameaça a liderança dos Estados Unidos na área

Por The Economist

27/01/2025 

 

Se há uma única tecnologia de que os Estados Unidos precisam para criar a “nova e emocionante era de sucesso nacional” que o presidente Donald Trump prometeu em seu discurso de posse, essa tecnologia é a inteligência artificial generativa. No mínimo, ela contribuirá para os ganhos de produtividade da próxima década, impulsionando o crescimento econômico. No máximo, impulsionará a humanidade em uma transformação comparável à da Revolução Industrial.

O fato de Trump ter apresentado no dia seguinte à posse o lançamento do “maior projeto de infraestrutura de IA da história” mostra que ele compreende o potencial. Mas o mesmo acontece com o resto do mundo e, acima de tudo, com a China. Enquanto Trump fazia seu discurso, uma empresa chinesa lançou o mais recente e impressionante modelo de linguagem grande (LLM). De repente, a liderança dos Estados Unidos sobre a China em IA parece menor do que em qualquer outro momento desde que o ChatGPT ficou famoso.

A recuperação da China é surpreendente porque ela estava muito atrás — porque os Estados Unidos se propuseram a desacelerá-la. O governo de Joe Biden temia que a IA avançada pudesse garantir a supremacia militar do Partido Comunista Chinês (PCC). Assim, os Estados Unidos reduziram as exportações para a China dos melhores chips para o treinamento da IA e cortaram o acesso da China a muitas das máquinas necessárias para fabricar substitutos. Atrás de seu muro de proteção, o Vale do Silício se agita. Os pesquisadores chineses devoram os artigos americanos sobre IA; os americanos raramente retribuem o elogio.

No entanto, o progresso mais recente da China está revolucionando o setor e deixando os formuladores de políticas americanos constrangidos. O sucesso dos modelos chineses, combinado com mudanças em todo o setor, pode virar a economia da IA de cabeça para baixo. Os Estados Unidos devem se preparar para um mundo no qual a IA chinesa está respirando em seu pescoço.

Os LLMs da China não são os melhores. Mas sua fabricação é muito mais barata. O QwQ, de propriedade do Alibaba, um gigante do comércio eletrônico, foi lançado em novembro e está menos de três meses atrás dos melhores modelos dos Estados Unidos. 

O DeepSeek, cujo criador saiu de uma empresa de investimentos, está em sétimo lugar em um benchmark. Aparentemente, ele foi treinado usando 2 mil chips de segunda classe — contra 16 mil chips de primeira classe do modelo da Meta, que o DeepSeek supera em algumas classificações. O custo do treinamento de um LLM americano é de dezenas de milhões de dólares e está aumentando. O proprietário do DeepSeek diz que gastou menos de US$ 6 milhões.

As empresas americanas podem copiar as técnicas da DeepSeek se quiserem, pois seu modelo é de código aberto. Mas o treinamento barato mudará o setor ao mesmo tempo em que o design do modelo estiver evoluindo. O lançamento do dia da inauguração na China foi o modelo de “raciocínio” da DeepSeek, projetado para competir com uma oferta de última geração da OpenAI. Esses modelos conversam entre si antes de responder a uma consulta. Esse “raciocínio” produz uma resposta melhor, mas também usa mais eletricidade. À medida que a qualidade do resultado aumenta, os custos crescem.

O resultado é que, assim como a China reduziu o custo fixo da construção de modelos, o custo marginal de consultá-los está aumentando.

Se essas duas tendências continuarem, a economia do setor de tecnologia se inverterá. Na pesquisa na web e nas redes sociais, replicar um gigante estabelecido como o Google envolveu enormes custos fixos de investimento e a capacidade de suportar grandes perdas. Mas o custo por pesquisa era infinitesimal. Esse fato — e os efeitos de rede inerentes a muitas tecnologias da web — fizeram com que esses mercados fossem como “o vencedor leva tudo”.

Se modelos de IA suficientemente bons puderem ser treinados de forma relativamente barata, eles se proliferarão, especialmente porque muitos países estão desesperados para ter seus próprios modelos. E um alto custo por consulta também pode incentivar mais modelos criados para fins específicos que produzam respostas eficientes e especializadas com o mínimo de consultas.

A outra consequência do avanço da China é que os Estados Unidos enfrentam uma concorrência assimétrica. Agora está claro que a China inovará para contornar obstáculos, como a falta dos melhores chips, seja por meio de ganhos de eficiência ou compensando a ausência de hardware de alta qualidade com mais quantidade. Os chips chineses estão ficando cada vez melhores, inclusive os projetados pela Huawei, uma empresa de tecnologia que, há uma geração, conseguiu a adoção generalizada de seus equipamentos de telecomunicações com uma abordagem barata e desonesta.

Se a China permanecer perto da fronteira, poderá ser a primeira a dar o salto para a superinteligência. Se isso acontecer, ela poderá obter mais do que apenas uma vantagem militar. Em um cenário de superinteligência, a dinâmica do “vencedor leva tudo” pode se reafirmar repentinamente. Mesmo que o setor permaneça nos trilhos atuais, a adoção generalizada da IA chinesa em todo o mundo poderá dar ao PCC uma enorme influência política, pelo menos tão preocupante quanto a ameaça de propaganda representada pelo TikTok, um aplicativo de compartilhamento de vídeos de propriedade chinesa cujo futuro nos Estados Unidos ainda não está claro.

O que Trump deve fazer? Seu anúncio sobre infraestrutura foi um bom começo. Os Estados Unidos precisam eliminar os obstáculos legais à construção de data centers. Também deve garantir que a contratação de engenheiros estrangeiros seja fácil e reformar as compras de defesa para incentivar a rápida adoção da IA.

Alguns argumentam que ele também deve revogar as proibições de exportação da indústria de chips.

O governo Biden admitiu que a proibição não conseguiu conter a IA chinesa. No entanto, isso não significa que ela não tenha feito nada. Na pior das hipóteses, a IA poderia ser tão mortal quanto as armas nucleares. Os Estados Unidos jamais enviariam a seus adversários os componentes para armas nucleares, mesmo que eles tivessem outras maneiras de obtê-los. A IA chinesa certamente seria ainda mais forte se agora voltasse a ter acesso fácil aos melhores chips.

Agências ou agência

O mais importante é reduzir o projeto de Biden sobre a “regra de difusão de IA”, que definiria quais países têm acesso à tecnologia americana. Isso foi projetado para forçar outros países a entrarem no ecossistema de IA dos Estados Unidos, mas o setor de tecnologia argumentou que, ao reduzir a burocracia, isso fará o oposto. A cada avanço chinês, essa objeção se torna mais crível. 

Se os Estados Unidos presumirem que sua tecnologia é a única opção para países como a Índia ou a Indonésia, correm o risco de exagerar. Alguns gênios da tecnologia prometem que a próxima inovação colocará novamente os Estados Unidos na frente. Talvez. Mas seria perigoso considerar a liderança dos EUA como garantida.


sábado, 16 de novembro de 2024

O que as escolhas de Trump indicam a respeito de como será sua presidência (The Economist)

O que as escolhas de Trump indicam a respeito de como será sua presidência

THE ECONOMIST, 15nov24

 

O que as escolhas de Trump indicam a respeito de como será sua presidência

Lealdade, competência e apetite pelo disruptivo estão entre as características que ele está procurando

Por The Economist

 

Depois que Donald Trump venceu a eleição presidencial em 2016 — quando era um ex-astro da televisão em vez de um ex-presidente — ele administrou a transição da Casa Branca como se estivesse encenando seu reality show, “O Aprendiz”. Aspirantes a membros do gabinete chegaram à torre que leva seu nome em Nova York e passaram pelas câmeras de TV. Essa série foi prolongada, com a participação de celebridades, incluindo Kanye West. Desta vez, Trump está dirigindo um show mais intimista, deliberando em sua propriedade em Mar-a-Lago, longe das câmeras, e emitindo seus vereditos de contratação nas redes sociais em um ritmo muito mais rápido. Infelizmente, os resultados dificilmente são igualmente insensatos.

As escolhas mais alarmantes ocorreram em um período de 24 horas. Em 12 de novembro, Trump anunciou que Pete Hegseth, uma personalidade da Fox News que serviu na Guarda Nacional, seria secretário de defesa. Hegseth é um dos poucos que defendeu a declaração de Trump de que havia “pessoas boas em ambos os lados” dos protestos contra um comício de supremacistas brancos em Charlottesville, Virgínia, em 2017. Ele está preocupado com o flagelo da lacração no exército, mas não tem experiência no governo.

Trump também anunciou que a diretora de inteligência nacional seria Tulsi Gabbard, uma democrata que se tornou republicana e é ligada em conspirações, um espírito tão livre que conheceu Bashar al-Assad, o ditador assassino da Síria, e o declarou “não inimigo dos Estados Unidos”. Pior, ele decidiu que Matt Gaetz, um congressista extravagante da Flórida, seria seu procurador-geral. O FBI, sobre o qual o procurador-geral tem controle de supervisão, investigou alegações de que Gaetz traficava sexualmente uma menor. Não foram apresentadas acusações, mas Gaetz mais tarde enfrentou uma investigação pelo Comitê de Ética da Câmara (ele nega qualquer irregularidade). Ele é ultraleal e, no ano passado, prometeu que, se o FBI e outras agências “não se curvassem”, elas deveriam ser abolidas ou perder seu financiamento.

Todos esses são cargos importantes pelos quais Trump sentiu que havia sido traído anteriormente. Seus antigos procuradores-gerais agiram com muita independência e muito pouco como seu consigliere; altos funcionários da inteligência atraíram a fúria dele por investigar suas ligações com a Rússia; seus antigos secretários de defesa e generais do alto escalão rejeitaram suas ideias. Com essas seleções, Trump indica que não planeja tolerar tal dissidência desta vez. Aqueles suspeitos de deslealdade (ou neoconservadorismo disfarçado) não são bem-vindos. Escolhas tão bizarras podem enfrentar dificuldade para serem confirmadas pelo Senado, mesmo com uma maioria republicana. Talvez seja esse o ponto. Quatro senadores republicanos desertores seriam suficientes para rejeitá-los, mas bloquear todas as três escolhas seria um gesto atipicamente desafiador.

As outras nomeações de Trump — em departamentos pelos quais ele talvez não se sinta pessoalmente injustiçado — são mais convencionais. Marco Rubio, um senador da Flórida, é sua escolha para ser secretário de Estado. Esta seria uma escolha encorajadora para os aliados dos EUA: Rubio copatrocinou um projeto de lei para dificultar que o presidente retire os Estados Unidos da Otan. Como o Partido Republicano se moveu em uma direção diferente, ele também o fez, abraçando o trumpismo e mantendo alguns de seus antigos instintos. Ele fez declarações de apoio à Ucrânia (mas votou contra o projeto de lei mais recente para armá-la, citando a necessidade de priorizar a segurança da fronteira). Rubio, filho de imigrantes cubanos, tem um anticomunismo hereditário que foi redirecionado para a China.

Outras nomeações de política externa têm visões e credenciais semelhantes. Mike Waltz, um ex-congressista da Flórida, será conselheiro de segurança nacional. Como Rubio, ele fica do lado dos “priorizadores” na Magalândia, como J.D. Vance, o novo vice-presidente, que argumenta que levar a ameaça chinesa a sério requer reduzir os compromissos com a segurança europeia e com a Ucrânia. Elise Stefanik, a escolha para ser embaixadora nas Nações Unidas (a sexta mulher consecutiva a ocupar esse cargo), é uma congressista de Nova York que se destacou como uma das fãs mais entusiasmadas de Trump na Câmara. Ela é mais conhecida por obliterar presidentes de faculdades em audiências envolvendo casos de antissemitismo nos campi. Este parece ser um currículo sólido para alguém representar no fórum multilateral de maior destaque do mundo um governo que desconfia do multilateralismo.

E então há as nomeações mais estranhas — para departamentos que ainda não existem. Trump anunciou que escolheria Elon Musk, o homem mais rico do mundo, para comandar uma nova comissão com Vivek Ramaswamy, um empreendedor e ex-adversário republicano nas primárias, para reduzir o desperdício governamental e cortar a burocracia. Este é um objetivo digno, mas, como acontece frequentemente com Musk, é difícil saber se devemos levá-lo ao pé da letra. Trump o está chamando de Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), em homenagem à sua criptomoeda preferida, que começou como uma piada. No entanto, seus objetivos são grandiosos: Musk pediu US$ 2 trilhões em cortes nos gastos federais (quase um terço do orçamento), o que é impossível de conciliar com a promessa de campanha de Trump de não tocar na Previdência Social ou no Medicare nem aumentar a idade de aposentadoria.

Mesmo antes do Congresso aplicar seus freios e contrapesos, está claro que este gabinete será muito diferente do anterior de Trump. Em Trump Um, Mike Pence, o ex-vice-presidente, ajudou a preencher o primeiro gabinete com republicanos reaganistas. Eles disputavam influência com acólitos do movimento Maga, que zombavam da fé conservadora no governo limitado, internacionalismo robusto e livre comércio. As frentes dessa luta frequentemente se confundiam, e cada lado reivindicava algumas vitórias. Um ex-assessor de Trump disse que o presidente eleito era um moderado em seu próprio movimento Maga. Desta vez, os crentes mais zelosos estão em vantagem. 

 

terça-feira, 29 de outubro de 2024

O plano de Putin para destronar o dólar - The Economist, O Estado de S. Paulo

O plano de Putin para destronar o dólar

O Estado de S. Paulo | Internacional
29 de outubro de 2024

 

Presidente da Rússia espera que parceiros do Brics encampem sua estratégia para driblar sanções O presidente da Rússia, Vladimir Putin, estava animado na semana passada ao receber líderes mundiais, incluindo Narendra Modi e Xi Jinping, na cúpula do Brics em Kazan. No ano passado, quando o bloco se reuniu na África do Sul e se expandiu de cinco para dez membros, Putin teve de ficar em casa para evitar ser preso por um mandado emitido pelo Tribunal Penal Internacional. Desta vez, ele foi o anfitrião do clube em rápido crescimento que está desafiando a ordem liderada pelo Ocidente.

Em 15 anos, o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) conquistou pouco. No entanto, Putin espera dar peso ao bloco, fazendo-o construir um novo sistema de pagamentos internacionais para atacar o domínio dos EUA nas finanças globais e proteger a Rússia e seus amigos das sanções.

Um sistema de pagamentos do Brics permitiria "operações econômicas sem depender daqueles que decidiram transformar dólar e euro em armas".

Esse sistema, que a Rússia chama de "Ponte do Brics", deve ser construído dentro de um ano e permitiria que os países fizessem liquidações transnacionais usando plataformas digitais administradas por seus bancos centrais. Surpreendentemente, ele pode tomar emprestado conceitos de um projeto diferente chamado mBridge, parcialmente administrado por um bastião da ordem liderada pelo Ocidente, o Banco de Compensações Internacionais (BIS), sediado na Suíça.

As negociações elucidaram um pouco a corrida para refazer os circuitos financeiros do mundo. A China há muito aposta que a tecnologia de pagamentos - não uma rebelião de credores ou conflito armado - reduzirá o poder dos EUA.

O plano do Brics pode tornar as transações mais baratas e rápidas. Esses benefícios podem ser suficientes para atrair economias emergentes. Em um sinal de que o esquema tem potencial genuíno, as autoridades ocidentais estão cautelosas de que ele seja projetado para escapar de sanções.

Alguns estão frustrados com o papel não intencional do BIS, conhecido como o banco central dos bancos centrais.

O domínio americano do sistema financeiro global, centrado no dólar, tem sido um pilar da ordem do pós-guerra e colocou os bancos americanos no centro dos pagamentos internacionais. Enviar dinheiro ao redor do mundo é um pouco como pegar um voo de longa distância; se dois aeroportos não estiverem conectados, os passageiros precisam trocar de voo, de preferência em um hub movimentado. No mundo dos pagamentos internacionais, o maior hub são os EUA.

PODER. Como quase todos os bancos que fazem transações em dólares têm de fazê-lo por meio de um banco correspondente nos EUA, o país é capaz de monitorar os fluxos em busca de sinais de financiamento terrorista e evasão de sanções. Isso fornece aos americanos um enorme poder.

Após a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, o Ocidente congelou US$ 282 bilhões em ativos russos mantidos no exterior e desconectou os bancos russos do Swift, usado por cerca de 11 mil bancos para pagamentos internacionais.

Os EUA também ameaçaram "sanções secundárias" a bancos em outros países que apoiem o esforço de guerra da Rússia. Esse tsunami levou os bancos centrais a acumular ouro, e os adversários dos EUA a deixarem de usar o dólar para pagamentos, o que a China vê como uma de suas maiores vulnerabilidades.

Putin esperava capitalizar essa insatisfação em relação ao dólar na cúpula do Brics. Para ele, criar um novo esquema é uma prioridade prática urgente, bem como uma estratégia geopolítica. Os mercados de câmbio da Rússia agora negociam quase exclusivamente em yuans, mas, como o país não consegue obter o suficiente da moeda chinesa para pagar todas as suas importações, a Rússia foi reduzida às trocas. Putin espera avançar seus planos para o Brics Bridge, um sistema de pagamentos que usaria dinheiro digital emitido por bancos centrais e apoiado por moedas fiduciárias. Isso colocaria bancos centrais no meio de transações transnacionais, e não bancos correspondentes com acesso ao sistema de compensação de dólares nos EUA.

A maior vantagem para ele é que nenhum país poderia impor sanções a outro. A mídia estatal chinesa diz que o novo plano do Brics "provavelmente se baseará nas lições aprendidas" com o mBridge, uma plataforma de pagamentos experimental desenvolvida pelo BIS junto com os bancos centrais da China, Hong Kong, Tailândia e Emirados Árabes.

O experimento do BIS foi inocente em seus objetivos e teve início em 2019, antes da invasão feita pela Rússia. Ele tem sido incrivelmente bem-sucedido. Poderia reduzir o tempo de transação de dias para segundos e os custos de transação para quase nada. Em junho, o BIS disse que o mBridge havia atingido o "estágio mínimo de produto viável" e o banco central da Arábia Saudita se juntou como um quinto parceiro no esquema. Ao criar um sistema que poderia ser mais eficiente do que o atual e enfraquecer o domínio do dólar, o BIS involuntariamente entrou em um campo minado geopolítico.

Os ganhos de eficiência de novos tipos de dinheiro digital podem corroer o uso do dólar no comércio internacional, de acordo com o Fed.

Reciprocamente, eles poderiam impulsionar a moeda da China.

A maioria dos pagamentos internacionais é em dólares e normalmente ocorre em uma cadeia de bancos intermediários. Em vez disso, o projeto mBridge depende de bancos centrais e lhes dá visibilidade e algum controle sobre os bancos nacionais e sobre o uso de suas moedas digitais por bancos estrangeiros.

Na etapa 1, um banco que envia um pagamento internacional trocaria a moeda normal (A$) por uma moeda digital (eA$) emitida diretamente pelo banco central. Na etapa 2, o banco a trocaria por uma moeda digital estrangeira (e-B$), que enviaria na etapa 3. O banco estrangeiro trocaria isso de volta para dinheiro normal na etapa 4.

É possível que os conceitos e o código do mBridge sejam replicados pelo Brics, China ou Rússia? O BIS, sem dúvida, vê o mBridge como um projeto conjunto e acredita que tem a palavra final a respeito de quem pode participar.

No entanto, algumas autoridades ocidentais dizem que os participantes do teste do mBridge podem ser capazes de repassar o capital intelectual que ele envolve para outros, incluindo participantes do Brics Bridge.

De acordo com várias fontes, a China assumiu a liderança no software e código por trás do projeto mBridge. Talvez essa tecnologia e know-how pudessem ser usados para construir um sistema paralelo. O BIS não quis comentar semelhanças entre seu experimento e o plano de Putin, defendido por ele na cúpula de Kazan.

GEOPOLÍTICA. 

 Em a reunião do G-20, em 2020, o BIS recebeu a tarefa de melhorar o sistema existente e, a pedido da China, de experimentar moedas digitais. Como diferentes membros da organização têm objetivos concorrentes, manter-se acima da briga está ficando mais difícil.

Uma opção para os EUA e seus aliados é tentar dificultar novos sistemas de pagamento que competem com o dólar.

Autoridades ocidentais alertaram o BIS que o projeto poderia ser mal utilizado por países com motivos malignos. O BIS desde então desacelerou seu trabalho no mBridge.

Outra opção é melhorar o sistema baseado em dólar para que seja tão eficiente quanto os novos rivais. Em abril, o Fed de Nova York se juntou a seis outros bancos centrais em um projeto do BIS com o objetivo de tornar o sistema existente mais rápido e barato.

O Fed também pode vincular seu sistema doméstico de pagamentos instantâneos àqueles de outros países. Qualquer sistema de pagamento rival do Brics ainda enfrentará enormes desafios. Garantir liquidez será difícil ou exigirá grandes subsídios governamentais implícitos.

Se os fluxos subjacentes de capital e comércio entre dois países estiverem desequilibrados, o que geralmente acontece, eles terão de acumular ativos ou passivos nas moedas um do outro, o que pode ser desagradável.

Por tudo isso, o esquema do Brics pode ter força.

Há consenso de que os atuais pagamentos transnacionais são lentos e caros. Embora os países ricos tendam a se concentrar em torná-los mais rápidos, muitos outros querem derrubar o sistema atual completamente. Pelo menos 134 bancos centrais estão experimentando dinheiro digital, principalmente para fins domésticos, avalia o Atlantic Council, centro de estudos em Washington.

A cúpula do Brics da semana passada não foi um Bretton Woods. Tudo o que a Rússia e seus amigos precisam fazer agora é mover um número relativamente pequeno de transações relacionadas a sanções para além do alcance dos EUA. Ainda assim, muitos estão mirando mais alto.

No ano que vem, a cúpula do Brics será no Brasil, recebida por seu presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, que se queixa do poder do dólar. "Toda noite eu me pergunto por que todos os países têm de basear seu comércio no dólar", disse ele no ano passado.

"Quem foi que decidiu isso?" 

@ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL © 2023 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

ARTIGO O BIS, com sede na Suíça, involuntariamente entrou em um campo minado geopolítico