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sexta-feira, 30 de agosto de 2024

A tragédia do carisma - Paulo Roberto de Almeida ( Estadão)

 Carisma: ou se tem ou não, mas não se transmite; pode-se perder e recuperar, ou gozar de simples prestigio. Não tinha espaço para desenvolver as ideias. PRA 

A tragédia do carisma

Biden, ao reconhecer que a idade avançada não lhe facultaria disputar a reeleição, desistiu da empreitada. Lula poderia mirar-se nesse exemplo?

Paulo Roberto de Almeida

O Estado de S. Paulo, 30/08/2024 | 03h00

link: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/a-tragedia-do-carisma/

Certos líderes políticos possuem carisma, outros, não. Pode-se perder o carisma original e recuperá-lo. Mas existem características únicas no fenômeno, o que o torna intransmissível a outrem, ainda que discípulo do detentor original.

Winston Churchill adquiriu carisma como jornalista e voluntário nas forças britânicas que lutaram no Sudão e na África do Sul. Tornou-se lorde do Almirantado na Grande Guerra, mas perdeu o cargo no desastre de Dardanelos. Recuperou o prestígio ao se engajar nas forças britânicas que lutavam contra as tropas do império alemão na França. Foi ministro do Tesouro em 1925, mas a insistência em retomar o padrão-ouro na paridade de 1914 levou à crise de 1926, que provocou sua queda. Ficou no ostracismo, clamando contra os totalitarismos da época: só voltou ao poder no desastre de 1940 e na guerra contra o nazismo. A despeito do carisma perdeu as eleições de 1945 para o Labour.

Franklin Roosevelt conduziu os Estados Unidos na depressão dos anos 1930 e na guerra em duas frentes a partir de 1941, mas não transmitiu nenhum carisma a seu sucessor, Harry Truman. Dwight Eisenhower não tinha carisma, mas sim prestígio, como comandante das forças aliadas contra o domínio nazista na Europa. John Kennedy, em contrapartida, adquiriu um prestígio extraordinário por ser o mais jovem presidente da história americana, adquirindo carisma sobretudo ao confrontar os soviéticos no episódio dos mísseis soviéticos em Cuba.

O vice-presidente Lyndon Johnson, político tradicional do Texas, não tinha nenhum carisma; a guerra do Vietnã demoliu sua imagem, tanto que optou por não disputar novo mandato. O vencedor na disputa de 1968, Richard Nixon, adquiriu prestígio ao reinserir a China comunista no sistema mundial, mas perdeu ao se tornar um vulgar larápio no escândalo do Watergate. Ronald Reagan tinha prestígio vindo de Hollywood; ganhou carisma ao lograr, junto com Margaret Thatcher, implodir a União Soviética; seu vice, Bush pai, foi derrotado na tentativa de reeleição pelo carismático Bill Clinton, um grande animal político (a despeito das escapadas). Barack Obama tinha grande carisma, o que não impediu a vitória de um bizarro outsider, Donald Trump. Seu sucessor em 2020, Joe Biden, vice de Obama, desistiu da reeleição em 2024, pelo peso da idade.

No Brasil, Getúlio Vargas construiu seu carisma pelo controle da máquina de propaganda do Estado Novo. Juscelino Kubitschek ganhou o seu, ao fazer o Brasil crescer “50 anos em 5″, com democracia. O carisma de Jânio Quadros, um populista dos mais notáveis, sobreviveu à renúncia aos seis meses de governo e conseguiu preservar capital político para retornar como prefeito da maior cidade do País. Não se pode dizer que os presidentes militares tenham exibido qualquer carisma, o que tampouco foi o caso do presidente da redemocratização, José Sarney, embora o candidato eleito, Tancredo Neves, tivesse enorme prestígio político ao encerrar 21 anos de ditadura militar. Fernando Collor, o primeiro eleito por voto direto desde 1960, começou com grande sucesso ao dar início a importantes reformas econômicas, mas soçobrou ao serem revelados os negócios obscuros de um assessor.

Não se pode dizer que Itamar Franco, alçado presidente, tenha tido carisma, mas o sucesso do Plano Real levou seu ministro da Fazenda pouco carismático a vencer duas eleições no primeiro turno. Finalmente, chegamos a uma figura política de fato carismática, Lula da Silva, embora eleito apenas na quarta tentativa, depois de esconder seus instintos intervencionistas; reforçou seu lado populista na enorme expansão dos programas sociais criados por Fernando Henrique Cardoso. Saiu ungido por 80% de aprovação popular, o que lhe garantiu prestígio suficiente para retornar ao poder em 2023, a despeito de ter presidido o mais vasto esquema de corrupção da história do País.

No intervalo, uma administradora medíocre, Dilma Rousseff, sem qualquer carisma, conseguiu produzir a maior recessão da história econômica do Brasil. Jair Bolsonaro, por sua vez, era mais um fenômeno fabricado pela manipulação das redes sociais do que um movimento político organizado. A polarização contra o lulopetismo preservou-lhe inusitado prestígio, mesmo em presença de fraudes, malversações e até golpismo. Tal cenário pode suscitar novo embate entre petismo e antipetismo em 2026.

Lula continua com carisma, mais disseminado entre os beneficiários da assistência pública do que entre eleitores de regiões avançadas; os mapas eleitorais do PT confirmam que, dos anos 2000 à atualidade, ele se transformou no partido dos “grotões”. A tragédia do carisma de Lula, que é a de todos os carismas, é o fato de o fenômeno não ser transmissível a qualquer sucessor designado; mas o próprio Lula encarregou-se de sabotar eventuais discípulos dotados de voo próprio.

Biden, ao reconhecer que a idade avançada não lhe facultaria disputar a reeleição, desistiu da empreitada. Lula, que também enfrenta o peso da idade e um carisma declinante, poderia mirar-se nesse exemplo para optar por não enfrentar nova difícil disputa em 2026?

DIPLOMATA E PROFESSOR

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Versão original, mais ampla: 

A tragédia do carisma

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

 

Certos líderes políticos possuem, ou adquirem, carisma, outros não. Pode-se perder o carisma original e depois recuperá-lo. Mas existem características únicas no fenômeno, o que o torna intransmissível a outrem, ainda que discípulo do detentor original.

O jovem Winston Churchill adquiriu o seu carisma precocemente, como jornalista e voluntário nas forças coloniais britânicas que lutaram no Sudão e na África do Sul. Tornou-se Lorde do Almirantado (ministro da Marinha) na Grande Guerra, mas perdeu seu cargo no desastre de Dardanelos. Recuperou um pouco de prestígio ao se engajar, como simples oficial subalterno nas forças britânicas que lutavam contra as tropas do Império alemão no norte da França. Isso lhe permitiu ser designado Lord of the Exchequer (ministro do Tesouro) em 1925, mas sua insistência em retornar ao padrão ouro na paridade de 1914 – contra os alertas de Keynes – provocou a grande crise de 1926, o que arruinou a sua carreira durante muitos anos. Passou a maior parte dos anos 1930 no ostracismo, ainda que clamando insistentemente na House of Commons contra os totalitarismos expansionistas da época: só recuperou o poder, o prestígio e o carisma no desastre de 1940 e na longa guerra que se seguiu contra o hitlerismo. Ainda assim perdeu as eleições de 1945 para os trabalhistas.

Franklin D. Roosevelt adquiriu tremendo prestígio ao conduzir os Estados Unidos na depressão dos anos 1930 e na terrível guerra em duas frentes a partir de 1941. Ainda assim, não transmitiu nenhum carisma a seu sucessor, o vice-presidente Harry Truman. O presidente seguinte, Dwight Eisenhower quase não tinha carisma, mas sim um grande prestígio, como comandante supremo das forças aliadas contra o domínio nazista na Europa. Kennedy, em contrapartida, adquiriu, sim, um prestígio extraordinário, por ser o mais jovem presidente da história política americana, pela sua elegantíssima esposa francesa, adquirindo seu carisma no exercício do cargo, sobretudo ao confrontar os soviéticos no episódio dos mísseis soviéticos em Cuba: seu assassinato, um ano depois, acrescentou a tragédia ao carisma imorredouro.

O vice-presidente Lyndon Johnson, um político tradicional do Texas, não tinha nenhum carisma, e a guerra do Vietnã (engajada por Kennedy) terminou por destruir sua carreira, tanto que escolheu não concorrer a um segundo mandato. O vencedor na disputa de 1968, Richard Nixon, adquiriu certo prestígio ao reinserir a China comunista no sistema mundial, mas perdeu ao se tornar um vulgar larápio no escândalo do Watergate. Reagan tinha o seu prestígio de ator de Hollywood e ganhou certo carisma ao lograr, junto com Thatcher, implodir a União Soviética, o que aconteceu com seu sucessor, Bush pai, facilmente derrotado na tentativa de reeleição pelo carismático Bill Clinton, um grande animal político (a despeito de suas escapadas conhecidas). Obama tinha um grande carisma, o que já não ocorreu com seu vice, desistente da reeleição em 2024, depois do desastroso, mas incrivelmente e absurdamente carismático governo Trump. Não se pode dizer que Trump tivesse qualquer carisma atrativo no plano da política normal, pois sua mensagem aos eleitores era basicamente antipolítica, seduzindo a franja lunática dos antiglobalistas, os xenófobos e, mais notoriamente, os supremacistas e racistas em geral.

Na história política do Brasil, Vargas construiu um grande carisma em torno de si, mediante o controle do Estado e sua máquina de propaganda. JK também, mas por motivos inteiramente justos: presidiu ao mais notável desenvolvimento do Brasil com pleno regime democrático. O carisma de Jânio, um fenômeno populista dos mais notáveis, sobreviveu até mesmo à inexplicável renúncia aos seis meses de governo, e conseguiu preservar certo capital político, pelo menos para retornar como prefeito da maior cidade do país. Não se pode dizer que qualquer um dos presidentes militares tenha exibido algum carisma, o que tampouco foi o caso do presidente da redemocratização, Sarney, embora o candidato eleito, Tancredo Neves, tinha obviamente enorme prestígio político ao encerrar exitosamente 21 anos de ditadura militar. Collor, o primeiro presidente eleito por voto direto desde 1960, começou com grande sucesso, ao dar início a um processo de reformas importantes nas políticas econômicas, mas logo soçobrou ao se revelarem os negócios obscuros de um assessor super corrupto. 

Não se pode dizer que Itamar, vice-presidente acidental, tenha tido qualquer carisma, mas o sucesso do Plano Real fez do seu ministro da Fazenda pouco carismático um vencedor duas vezes do pleito presidencial no primeiro turno. Finalmente, chegamos a uma figura política verdadeiramente carismática, Lula, embora só tenha sido eleito na quarta tentativa, depois de esconder seus instintos intervencionistas na economia e de promover o seu lado populista pela expansão extraordinária dos programas sociais criados pelo seu antecessor acadêmico, Fernando Henrique Cardoso. Saiu ungido triunfalmente por 80% de aprovação popular, o que lhe garantiu prestígio suficiente para retornar uma terceira vez ao poder, a despeito de ter presidido ao mais vasto esquema de corrupção da história da República. 

O carisma de Lula assegurou a vitória de sua sucessora, uma administradora medíocre e que conseguiu produzir a maior recessão econômica da história do Brasil. Carisma nenhum, o que tampouco foi o caso de Temer, indignamente acusado de golpista pela máquina de propaganda do PT, relativamente eficiente até a chegada dos novos operadores políticos da extrema direita. Bolsonaro era antes um fenômeno fabricado por essa propaganda nas novas redes sociais, do que propriamente um movimento político organizado, mas a polarização política criada entre o lulopetismo e o bolsonarismo continuou mantendo seu prestígio inusitado, em face das muitas acusações de fraudes, malversações e até de golpismo. A nova realidade pode assegurar um embate político entre o petismo e o antipetismo em 2026.

Lula continua exibindo inegável carisma, embora bem mais disseminado entre os beneficiários da assistência pública do que entre os eleitores de regiões mais avançadas; basta conferir os mapas eleitorais do PT dos anos 2000 à atualidade para confirmar essa nova realidade: o PT se transformou no partido dos “grotões”. A tragédia do carisma de Lula, que é a de todos os demais carismas, é que ele não é transmissível a algum sucessor designado, além do próprio Lula, que sempre buscou eliminar qualquer herdeiro político dotado de voo próprio. 

Joe Biden, ainda que forçado, teve de reconhecer que idade avançada e falta de carisma não o habilitavam a disputar uma reeleição. Sua atitude corajosa servirá de lição, ou de exemplo, a Lula, que também enfrenta o peso da idade e o carisma declinante para lograr nova vitória em 2026? 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4709, 22 julho 2024, 3 p.

Nota sobre a intransmissibilidade do carisma.