Deparei-me com uma entrevista quase esquecida que concedi às Páginas Amarelas de
Veja, em outubro de 2001, pela qual recebi uma punição, que reputo ilegal e indevida, do Itamaraty.
Nada do que declarei contradizia uma virgula sequer das posições tradicionais do Itamaraty em matéria de política comercial.
Mas, os ciúmes de certos figurões, de certos barões da (Santa) Casa, fizeram com que eu recebesse uma advertência por ter concedido a entrevista sem antes ter pedido a permissão dos mesmos barões da Casa. Se eu tivesse pedido a permissão, ela certamente teria sido negada, pois como é que barões vão permitir que seus "servos", ou subordinados, passem na frente deles?
Que ousadia, que rebeldia! Continuo afirmando que a punição foi ilegal e equivocada, pois não discordei da política externa oficial (sequer toquei nisso) e tudo o que eu disse em matéria de política comercial, multilateral, agrícola, o Itamaraty vinha dizendo desde sempre.
Ou seja, foi hipocrisia e despeito.
Como certas questões voltam a se colocar, posto novamente essa entrevista.
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 25/02/2016)
Revista Veja, Páginas Amarelas, Edição
1 723 - 24 de outubro de 2001
Ricos e arrogantes
Especialista
em relações internacionais
diz que os países desenvolvidos agem de
forma desleal com seus parceiros pobres
Cristiana
Baptista
Ron Sachs/CNP
|
"O
Brasil é competitivo na área agrícola, assim
como os americanos o são em tecnologia. A abertura tem de ser
recíproca" |
O sociólogo
Paulo Roberto de Almeida, 50 anos, é autor de sete livros sobre
comércio internacional. Outros três serão lançados
nos próximos meses. São Os Primeiros Anos do Século
XXI: Relações Internacionais Contemporâneas, com
as atualizações que se mostraram necessárias depois
dos atentados terroristas nos Estados Unidos, e Formação
da Diplomacia Econômica no Brasil, os dois em português.
Além desses, ele é autor de um livro de história
brasileira destinado a leitores estrangeiros, que está sendo editado
na França. Ultimamente, ele tem se interessado pela hipocrisia
que norteia as relações de troca entre os países
ricos e as nações pobres.
Em artigo
publicado recentemente no jornal O Estado de S. Paulo, Paulo
Roberto de Almeida demoliu com argumentos avassaladores as idéias
fora do lugar de Luís Inácio Lula da Silva, candidato do
PT à Presidência da República, que defendeu a política
agrícola européia, viciada em proteção excessiva
e subsídios e altamente nociva aos interesses brasileiros. Paulo
Roberto de Almeida vive atualmente em Washington, nos Estados Unidos.
Veja –
Os países ricos são hipócritas por pregar o livre
comércio para os outros ao mesmo tempo que erguem barreiras protecionistas
em torno de suas economias. Há alguma chance de eles mudarem de
atitude?
Almeida
– Não. É desalentador constatar que os países
mais avançados, amparados nas melhores teorias econômicas,
preconizam as virtudes do livre comércio, mas estão longe
de praticá-lo. Os Estados Unidos têm um déficit comercial
de 400 bilhões de dólares ao ano e são de longe a
economia mais aberta do planeta, mas em relação a uma gama
de produtos, que por acaso coincidem com nossos principais bens de exportação
– especialmente na área agrícola –, os americanos
praticam um protecionismo renitente, com a utilização de
barreiras não-tarifárias de diversos tipos. Isso sem falar
dos subsídios maciços com que adubam sua agricultura. Para
outros produtos, como o aço, existem medidas anti-dumping que também
são abusivas. Não é preciso lembrar os efeitos nefastos
que o protecionismo agrícola da União Européia provoca
não só em nossas exportações, mas no comércio
internacional como um todo. Os europeus praticam não apenas um
protecionismo para dentro, ou seja, restringem o ingresso de produtos
de outros países em seus mercados. Eles também praticam
uma concorrência desleal para fora, na medida em que subvencionam
pesadamente as exportações de determinados bens que poderiam
ser vendidos por países produtores agrícolas não-subvencionistas.
O protecionismo agrícola é certamente um obstáculo
importante porque penaliza uma parte substancial do comércio exterior
brasileiro. Os subsídios internos também são um fator
relevante à medida que eles distorcem os preços. Se alguém
dá subsídios aos produtores de soja, por exemplo, faz com
que os preços caiam nos mercados internacionais, e isso penaliza
produtores não-subsidiados.
Veja –
No caso do aço, eles têm alguma razão econômica
indiscutível para sobretaxar o produto brasileiro?
Almeida
– O
aço é uma das indústrias tradicionais americanas.
Ela emprega centenas de milhares de pessoas e patrocina um dos mais ativos
e bem-sucedidos lobbies dos Estados Unidos. As siderúrgicas americanas
por força do lobby vêm mantendo como verdadeira a idéia
falsa de que o aço estrangeiro é vendido a preço
baixo em seu mercado apenas porque os países exportadores praticam
o dumping – o rebaixamento irreal e, no caso do comércio internacional,
ilegal de preços. Isso é uma falsidade. O Brasil consegue
vender produtos siderúrgicos a preços mais baixos que os
Estados Unidos pela simples razão de que nossa indústria,
nesse setor, é mais eficiente. A siderurgia brasileira é
mais competitiva que a americana. Obviamente existem fatores naturais
que nos favorecem, como a proximidade das jazidas e a qualidade do minério.
Mas, em modernização tecnológica, a siderurgia brasileira
dá um banho na americana. Por isso ela recorre aos lobbies e abusivamente
acusa o Brasil de fazer dumping. Como vimos, são alegações
sem fundamento.
Veja –
Os países ricos estão sendo sinceros quando criam dificuldades
ao comércio das nações em desenvolvimento em nome
da preservação ambiental ou da coibição do
trabalho infantil?
Almeida
– A
intenção declarada é a mais meritória possível:
defender o meio ambiente e melhorar as condições de trabalho
dos operários. Na prática, sabemos que tais cláusulas
acabam atuando em detrimento dos países em desenvolvimento e justificando
medidas protecionistas abusivas, a pretexto de defender regras "leais
de comércio". O Brasil não tem nada a temer nesse tipo de
questão. Não apenas porque possuímos uma legislação
ambiental adequada, mas também porque nossas empresas exportadoras
apresentam alto grau de conformidade com os princípios mais modernos
do ciclo de vida dos produtos. No plano trabalhista, igualmente, o Brasil
aderiu à maior parte das convenções internacionais
que defendem direitos dos trabalhadores e liberdade sindical. Em muitos
pontos estamos à frente dos Estados Unidos, que exibem um registro
pouco lisonjeiro nessa área.
Veja –
Luís Inácio Lula da Silva, candidato do PT à Presidência
da República, afirmou que a Europa tem lá suas razões
para defender a agricultura com subsídios e barreiras. A política
agrícola européia é defensável?
Almeida
– Não.
A política européia está em total contradição
com o que os europeus pregam sobre abertura econômica, competição
leal e livre concorrência. A questão central, a meu ver,
não é dar dinheiro aos agricultores. Se os europeus acharem
que devem subsidiar a agricultura, é uma questão interna
deles. O condenável é barrar a competição
de fora tanto na Europa quanto nos países onde eles vendem seus
produtos. Se achar certo, o governo francês tem todo o direito de
levar os agricultores a Paris, hospedá-los nos melhores hotéis
da Avenida Champs-Élysées e ainda pagar um bônus para
eles se divertirem. Esse não é o ponto. Essas mordomias
até sairiam mais baratas que a política agrícola
européia atual. Os europeus gastam 60 bilhões de dólares
por ano em subvenções agrícolas. Eles que gastem
como quiserem o dinheiro público. O problema começa quando
eles, além disso, usam mecanismos francamente condenáveis
para barrar a competição externa. Obviamente, está-se
diante de um grave problema de eficiência. A competição
externa permitiria baixar à metade o preço da cesta de comidas
típicas dos europeus. Não há legitimidade na defesa
da política agrícola européia.
Veja –
Lula a defendeu...
Almeida
– Não
posso acreditar que líderes políticos defendam uma guerra
de subsídios. Isso claramente não é do interesse
nacional. Não tenho nada contra o fato de que os europeus façam
o que quiserem com seu dinheiro. Mas interessa a todos os brasileiros
e deveria interessar também aos partidos de oposição
que o mercado mundial funcione com regras leais de competição.
Por lealdade, entendo uma situação em que os produtos brasileiros
recebam na Europa o mesmo tratamento que os europeus recebem no Brasil.
Veja –
Como avançar diplomaticamente nesse campo, em que os países
ricos mostram tanta intransigência?
Almeida
– Com
negociação. Há muito tempo o Brasil vem insistindo
na abertura dos mercados agrícolas, assim como os Estados Unidos
e os europeus insistem em regras para a proteção da propriedade
intelectual. Cada grupo de países tem seus interesses. O Brasil
é competitivo na área agrícola, assim como os americanos
o são em tecnologia e propriedade intelectual. Queremos que essas
áreas sejam negociadas da mesma forma. A abertura precisa ser recíproca.
O papel dos países ricos no comércio mundial tem de sofrer
uma mudança radical. Internamente, eles precisam aceitar mais competição.
Mas o dano maior que causam é pela maneira ilegal como massacram
os produtos originários de países pobres nos mercados não-europeus.
Ao subsidiar seus produtores rurais, os europeus estão arruinando
os produtores agrícolas dos países pobres. Essa situação
não pode continuar.
Veja
– É correta a alegação de que uma maior abertura
da Europa aos produtos agrícolas importados arruinaria a economia
da região?
Almeida – Não.
Está provado por uma série de evidências recentes
que abertura comercial não tem relação direta e causal
com problemas econômicos internos. Os Estados Unidos ostentam um
déficit comercial anual de 400 bilhões de dólares
e são a economia mais aberta do planeta. Poucas vozes aqui relacionam
os problemas atuais da economia americana com o grau de abertura de seu
mercado. Outras duas economias que estão entre as mais abertas
do mundo, Cingapura e Holanda, são também altamente desenvolvidas.
Os países podem ter problemas internos em quaisquer circunstâncias,
com ou sem abertura da economia. A idéia de que praticar o livre
comércio de duas vias pode fazer as economias entrar em colapso
é retrógrada. Essa visão corresponde a uma concepção
mercantilista do comércio e da economia internacional que não
tem mais razão de ser em nossa época. A União Européia,
uma potência comercial e nosso mais importante parceiro econômico,
é protecionista e desleal. Ponto. Agindo assim, a Europa provoca
efeitos econômicos danosos a si própria e ao bom funcionamento
do comércio mundial.
Veja –
Com terrorismo e recessão, podemos estar entrando numa fase
de retrocesso da globalização?
Almeida
– Não
acredito. Uma série de medidas já foram tomadas para inverter
essa tendência recessiva. E não acho que haja uma tendência
à volta ao protecionismo.
Veja –
A crise argentina e as dificuldades enfrentadas por Brasil, Uruguai
e Paraguai estão enfraquecendo os laços criados pelo Mercosul.
O senhor acredita na eficiência e sobrevivência dos blocos
econômicos regionais?
Almeida
– A
União Européia começou em 1957 e levou praticamente
quarenta anos para ser totalmente constituída. Ela alternou momentos
de euforia, de crescimento, de recessão, pessimismo e otimismo.
O Mercosul tem apenas dez anos. Ele cresceu extraordinariamente nesse
período. Hoje enfrenta dificuldades temporárias que serão
certamente superadas.
Veja –
Depois dos atentados terroristas aos Estados Unidos, o senhor sentiu
necessidade de revisar seu livro Os Primeiros Anos do Século
XXI: Relações Internacionais Contemporâneas, que
está prestes a ser publicado. O que mudou na situação
mundial?
Almeida
– Talvez
não seja totalmente correto afirmar que o mundo mudou radicalmente
com essa ação espetacular do terrorismo fundamentalista,
mas é absolutamente certo que a agenda internacional já
é outra. A prioridade agora são os temas de segurança
e a luta contra as redes de terroristas. O Brasil também partilha
essas preocupações, ainda que não seja alvo provável
de atentados. As prioridades centradas na questão do desenvolvimento
passaram para o segundo plano.
Veja –
Por que o comércio internacional é sempre uma questão
tensa e confusa?
Almeida
– Porque
ele funciona de uma maneira que não é exatamente a esperada
pelo senso comum. O comércio internacional não pode ser
uma via de mão única. A visão mercantilista, segundo
a qual exportar é bom e importar é ruim, não cabe
mais nos tempos de hoje. Isso não corresponde à realidade
econômica dos países em geral, nem do Brasil em particular.
Quando o país importa ele moderniza sua economia e passa a estar
qualificado também para exportar mais e melhor. Precisamos certamente
exportar mais, mas isso também não significa dizer que precisamos
voltar a ter saldos superavitários estrondosos como nos anos 80,
quando eles chegavam a 12 bilhões de dólares ao ano.
Veja –
Os produtos brasileiros são competitivos no mercado internacional?
Almeida
– O
Brasil é bastante competitivo em alguns setores e perde feio em
outros. Mas diferenciais de competitividade e de produtividade não
podem ser de nenhuma maneira invocados como justificativas para o protecionismo,
sobretudo quando levados às raias do absurdo comercial e do irracionalismo
econômico, como acontece com a política agrícola européia.
Na verdade, a competitividade agrícola brasileira não deixa
nada a desejar quando confrontada à da Europa ou dos Estados Unidos,
com exceção de poucos setores de notória especialização
e de alta intensidade tecnológica. De fato, é justamente
por ser competitivo que o Brasil está sendo penalizado no acesso
ao mercado europeu de alimentos e insumos processados.
Veja –
O Brasil está finalmente descobrindo que uma das funções
dos diplomatas é vender a imagem do país no exterior e com
isso facilitar os negócios?
Almeida
– O
Brasil descobriu que precisa criar uma cultura exportadora. Como todo
grande país, ele está voltado para dentro. Isso também
acontece com os Estados Unidos. O comércio exterior ocupa um pedaço
muito pequeno na economia brasileira, algo como 10% do produto nacional
bruto. Agora, a condição para que o Brasil se desenvolva,
para que a população tenha um progresso social, uma melhoria
no padrão de vida, um aumento na renda, é a inserção
bem-sucedida do país no comércio internacional. O Mercosul
e a abertura econômica foram passos importantes nesse sentido, mas
é preciso avançar mais.