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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

To Be or Not the Bric (2008) - Paulo Roberto de Almeida


Bric: reflexões a partir do Brasil

Paulo Roberto de Almeida
Publicado, sob o título de “To Be or Not the Bric”,
Inteligência (Rio de Janeiro: Ano: XI - 4º trimestre, 12/2008, p. 22-46).

Sumário:
Introdução: a caminho da briclândia
1. Radiografia dos Bric
2. Ficha corrida dos personagens
3. De onde vieram, para onde vão? 
4. New kids in the block
5. Políticas domésticas
6. Políticas econômicas externas
7. Impacto dos Bric na economia mundial
8. Impacto da economia mundial sobre os Bric
9. Conseqüências geoestratégicas
10. O Brasil e os Bric
Alguma conclusão preventiva?


Resumo: Radiografia do conceito Bric, questionando a realidade subjacente a um exercício intelectual que levou em conta realidades puramente econômicas, sem maiores preocupações com as implicações político-diplomáticas do novo grupo. São analisadas suas políticas e posicionamentos diplomáticos, constatando-se uma grande diversidade de posições. Enfatiza a necessidade de uma agenda positiva dos Bric, não puramente defensiva ou confrontacionista com o atual G7.
Palavras-chave: Bric. Brasil. Rússia. Índia. China. Relações econômicas internacionais.


Introdução: a caminho da briclândia
Economistas costumam ser pessoas estudiosas, essencialmente focadas na estrita racionalidade dos dados da vida material, aparentemente preocupadas apenas com os fundamentos empíricos da economia prática, ou, se pesquisadores, com suas elegantes equações de equilíbrio de mercados, suas linhas de regressão e suas belas curvas de tendência. Eles pareceriam insensíveis aos problemas sociais ou às implicações humanas de eventuais prescrições de políticas econômicas. Segundo certo senso comum, eles seriam, sobretudo, indiferentes às relações de causa a efeito de determinadas propostas feitas a partir de uma análise fria das realidades correntes e suas conseqüências práticas no plano político ou diplomático, ignorando, por outro lado, elementos de psicologia social, tão importantes em estudos de outras vertentes das ciências sociais aplicadas e das humanidades em geral.
Seria esta nova condenação da dismal science aplicável, de alguma forma, ao exercício intelectual de economistas corporativos, que aventaram a idéia de um grupo – quiçá convertido em uma nova entidade internacional – identificado com quatro economias emergentes, os Bric, apresentados repentinamente como as novas estrelas da economia mundial? Constituiria essa suposta identidade grupal, construída a partir de dados econômicos elementares, a base institucional para uma atuação política e diplomática coordenada no plano mundial? Seria essa eventual atuação melhor e mais benéfica do que aquela conduzida atualmente pelos países, individualmente, no seio das organizações internacionais existentes, ou coletivamente por meio dos grupos mais conhecidos de coordenação de políticas econômicas, como o G7 ou a OCDE?
O presente ensaio pretende examinar dez questões relativas a esta nova conformação da geografia econômica mundial e oferecer, em conclusão, uma nota de caução quanto às implicações político-estratégicas desse exercício intelectual que vem encontrando suporte nas ações de diplomacia prática de vários dos Bric. Ele foi escrito com a convicção de que – muito além dos sonhos eventuais dos líderes dos Bric quanto ao poder relativo de seus respectivos países e de suas possíveis intenções de mudar a geografia econômica do mundo e de redesenhar a geopolítica mundial, pela alteração nas relações de poder atualmente existentes – o comprometimento básico de estadistas responsáveis tem de estar com a prosperidade e o bem-estar de seus povos, com a preservação do meio ambiente e com a paz e a segurança internacionais, num quadro de plena vigência (nacional) de instituições democráticas e de total respeito aos direitos humanos.

1. Radiografia dos Bric
O conceito foi cunhado originalmente pelo economista Jim O’Neill, da Goldman Sachs, e figurava num estudo pioneiro intitulado “Building Better Global Economic Brics” (Global Economics Paper nr. 66; November 30, 2001; link: http://www2.goldmansachs.com/ideas/brics/brics-dream.html). A proposta de um novo “grupo econômico”, integrado pelas quatro maiores economias emergentes, Brasil, Rússia, Índia e China (que provavelmente deveriam figurar na ordem inversa de importância econômica: Cirb), foi, em seguida, sugerida num estudo de 2003 da mesma Goldman Sachs, sobre a evolução da economia mundial até 2050, assinado pelos economistas Dominic Wilson e Roopa Purushothaman: “Dreaming with Brics: the path to 2050” (Global Economics Paper nr. 99; October 1st, 2003; link: http://www2.goldmansachs.com/ideas/brics/book/99-dreaming.pdf). Esses papers foram consolidados em dois livros editados pela própria Goldman Sachs, Growth and Development: The Path to 2050, publicado em janeiro de 2004, e The World and the BRICs Dream, publicado em  fevereiro de 2006. Esses estudos foram complementados, em 2007, por nova compilação englobando outras onze economias emergentes e países de grande população (N11), chamado “Brics and Beyond”, que amplia a perspectiva do primeiro trabalho, com novas projeções para 2050 (ver: http://www2.goldmansachs.com/ideas/brics/BRICs-and-Beyond.html; paper: http://www2.goldmansachs.com/ideas/brics/book/BRIC-Full.pdf).
A rigor, o “grupo” Bric não existia oficialmente, ou sequer informalmente, mas dado o succès d’estime logrado pelo conceito e o excelente acolhimento obtido pela idéia mesma de um novo conjunto de futuras economias preeminentes, o que se teve, a partir de então, foi a adoção paradigmática dessa noção, praticamente virtual, como correspondendo a uma nova realidade na economia mundial, digna, portanto, de ser contemplada em estudos e formulações sobre as novas relações econômicas reais. O que é importante sublinhar, desde já, é que a origem do nome buscava apresentar a idéia de novos fundamentos – bricks, ou tijolos – da futura economia mundial em meados do século XXI, sem que no entanto esses fundamentos fossem examinados em sua interação recíproca, que de fato não existia, sequer virtualmente.
Em outros termos, um exploratory paper, que poderia ser considerado mera especulação de um economista inventivo, veio a impulsionar uma realidade política que ainda precisa confirmar suas potencialidades, o que prova, mais uma vez, o poder das idéias no mundo real.

2. Ficha corrida dos personagens
A “sopa de letras” proposta nos trabalhos dos economistas do Goldman Sachs não pode nos fazer esquecer uma simples realidade: estamos falando de quatro países absolutamente distintos entre si, de quatro economias contrastantes e de quatro nações que possuem histórias e percursos civilizatórios fundamentalmente diferentes, nos planos social, militar, econômico e geopolítico, quando não nas esferas cultural e religiosa. No plano demográfico, estamos falando dos dois países mais populosos do planeta e de dois outros de populações “médias”, ainda assim consideráveis, do ponto de vista de seus mercados internos, como se pode constatar na tabela 1. A China representa, sozinha, mais de um quinto da população mundial, seguida de perto pela Índia (17,5%) e, bem mais longe, pelo Brasil (2,9%) e Rússia (2,2%).

1. População (milhões de pessoas) e território (milhões km2)
Bric
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
km2
Brasil
171.2
173.8
176.3
178.9
181.5
184.1
186.7
189.3
8,5
China
1,267.4
1,276.2
1,284.5
1,292.2
1,299.8
1,307.5
1,314.4
1,321.0
9,3
Índia
1,007.0
1,025.5
1,041.7
1,058.0
1,074.7
1,091.7
1,108.0
1,123.9
3,2
Rússia
146.9
146.3
145.2
145.0
144.2
143.5
142.8
142.1
17,0
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008; CIA Fact Book

Mesmo dispondo de grandes territórios – dos 17 milhões de km2 da Rússia, aos 3,2 da Índia, passando pelos 9,3 da China –, os quatro Bric diferem entre si, no que se refere a recursos naturais, graus de industrialização e capacidade de impacto na economia mundial. A tabela 2 apresenta, em valores correntes e em paridade de poder de compra, a evolução absoluta do produto bruto dos Bric, desde 2000.

2. (a) PIB, preços correntes (US$ bilhões)
Bric
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007

Brasil
644.2
554.4
505.7
552.2
663.5
881.7
1,072.3
1,313.5

China
1,198.4
1,324.8
1,453.8
1,640.9
1,931.6
2,243.6
2,644.6
3,250.8

Índia
461.9
473.0
494.9
573.1
669.4
783.1
877.2
1,098.9

Rússia
259.7
306.5
345.4
431.4
591.8
764.2
988.6
1,289.5

(b) PIB, estimado em Paridade de Poder de Compra (PPP) (US$ bilhões)
Brasil
1,230.9
1,276.9
1,333.8
1,377.8
1,494.6
1,584.6
1,695.9
1,835.6
China
3,006.5
3,334.1
3,701.0
4,157.8
4,697.9
5,333.2
6,112.2
6,991.0
Índia
1,519.5
1,616.4
1,719.5
1,876.5
2,096.1
2,354.4
2,665.4
2,988.8
Rússia
1,120.5
1,205.9
1,284.6
1,407.7
1,548.7
1,697.8
1,881.1
2,087.8
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008












É importante registrar tais características, pois que a força de um conceito ingenuamente unificador pode fazer com que similitudes indevidas – ilegítimas, talvez, no plano conceitual – sejam traçadas quanto ao papel dos quatro países na economia mundial; daí redundando possíveis conclusões equivocadas quanto ao que esperar de sua presença – certamente marcante e crescentemente determinante – nos cenários futuros que se possam traçar para o mundo em meados do presente século.
Comecemos pela letra final: China. Trata-se, seguramente – junto com o povo judeu, que passou, entretanto, por processos de fragmentação territorial e social como nenhum outro povo conhecido no mundo, e que, no entanto, conseguiu sobreviver culturalmente de modo relativamente homogêneo –, da mais antiga civilização contínua registrada na história da humanidade, não necessariamente dotada de perfeita unidade política, mas sim de uma notável continuidade cultural. Sua história, moderna e contemporânea é, no entanto, dramática, senão trágica, no sentido da decadência econômica, da instabilidade política, da humilhação militar e de retrocessos sociais expressos em degradação profunda do tecido social, quando as loucuras do maoísmo levaram o país a uma verdadeira hecatombe humana, com uma “lacuna” demográfica que pode ser estimada em algumas dezenas de milhões de pessoas sacrificadas. Em claro: a população e a economia diminuíram, em conseqüência dos anos de socialismo totalitário. Marcas profundas desse passado recente são ainda visíveis na sociedade chinesa, que emerge de um longo intervalo – provavelmente mais de três séculos – de declínio e de deterioração da qualidade de vida no imenso país asiático.
A Índia é, provavelmente, a segunda civilização “contínua” mais antiga do mundo, valendo as aspas pela imensa diversidade de culturas e etnias existentes no subcontinente indiano. Não há, propriamente, e nunca houve unidade cultural na Índia e sua história “política” só parece fazer sentido com base na “unidade” temporária introduzida por invasões estrangeiras, em especial o Império mongol, seguido pela dominação de uma companhia de comércio inglesa, depois convertida em supremacia britânica sobre povos muito distintos entre si, lingüística e religiosamente falando. A Índia moderna é uma “invenção” do Império britânico, tendo sido, aliás, amputada parcialmente (com o Paquistão e depois o Bangladesh, que dele emergiu) logo em seguida à proclamação de sua independência política (sublinhe-se o “política”, posto que economicamente ela já conformava uma jurisdição monetária própria e passou a ter seu próprio território aduaneiro, reconhecido precocemente pelo GATT-1947).
A Rússia é também antiga; não tanto quanto esses dois primeiros países, mas dotada de tradições culturais que a identificam como unidade cultural e lingüística desde a alta Idade Média; deslocamentos de povos bárbaros deram origem a uma nação eslava em processo de homogeneização cultural e social, a caminho de uma formação nacional, que só veio a existir, de fato, quando Pedro, o Grande, submeteu as autoridades feudais e consolidou seu poder sobre um território em grande parte indefinido, sob a forma de um Estado incipiente, baseado no conceito de absolutismo imperial. Esse Estado se estendeu imperialmente ao longo dos séculos XVIII a XX, até atingir o máximo de sua extensão e poderio já sob o domínio dos “czares” soviéticos. O “império soviético” representou, de certo modo, um paradoxo na trajetória da “grande” Rússia, posto que lhe deu a segurança nacional a que sempre aspirou aquele Estado semi-europeu e semi-asiático, ao mesmo tempo em que criou um sistema econômico profundamente irracional no plano de seu funcionamento, o que determinou, inclusive, sua crise estrutural e derrocada estrondosa, basicamente por auto-implosão, não por ter sido minada por um poder exterior ou guerra de usura.
O Brasil, finalmente, é um caso “clássico” de criação colonial – característica que não partilha com nenhum outro Bric – e de lenta constituição de uma economia diversificada, no quadro de uma construção estatal mais precoce e bem sucedida. De fato, o Brasil teve um Estado unificado – e centralizador – antes de ter uma economia integrada nacionalmente ou positivamente integrada à economia mundial. Esse Estado certamente não construiu a nação de modo exclusivo, mas representou um poderoso elemento indutor na construção dessa economia industrializada e relativamente moderna para os padrões usuais dos países “periféricos” ou em desenvolvimento. A despeito de sua qualificação inicial enquanto constituição política – Império – e de sua expansão territorial ao longo do período colonial e imediatamente posterior à sua independência, o Brasil nunca foi de fato imperial ou dominador, como talvez as duas grandes potências militares dos Bric; assim como ele não exibe a mesma “pujança” demográfica e os problemas geopolíticos da Índia. Trata-se de um país “contente” com sua geografia e bastante tranqüilo quanto ao relacionamento regional, o que não é o caso dos demais Bric, envolvidos em disputas de diversos tipos, nem sempre solucionáveis de modo fácil ou rápido. Esse contexto de “paz regional” – pelo menos desde o final da Guerra do Paraguai – e de ausência de ameaças externas define o Brasil em sua singularidade geopolítica no quadro dos Bric e deve ser considerado com um “ativo” positivo no seu processo de inserção regional e internacional.
Estas digressões sobre cada um dos Bric, tomados individualmente, permite visualizar algumas das características que podem marcar sua forma de relacionamento com o entorno geográfico e na comunidade internacional. A percepção que se retira deste brevíssimo racconto storico é a de que seus problemas e ambições nacionais são profundamente distintos, pelo menos observados retrospectivamente. Pode até ser que, no futuro, seus projetos e interesses nacionais possam ser objeto de alguma ação convergente ou ação coordenada; mas esta hipótese ainda precisa ser construída e testada com base em dados da realidade, não apenas a partir da vontade política ou da retórica diplomática de seus dirigentes ocasionais. Esta questão, central para os propósitos deste ensaio, será vista mais adiante.

3. De onde vieram, para onde vão?
As trajetórias respectivas dos Bric na economia mundial, nos últimos dois séculos, e particularmente nas últimas duas décadas, foram bastante desiguais, para não dizer divergentes e contraditórias, seja entre si, seja na sua relação com os centros mais dinâmicos dessa economia global. Suas relações recíprocas ao longo do último meio século foram, aliás, relativamente marginais, com a exceção, talvez, da URSS e da China, numa primeira fase da construção do socialismo neste último país.
Quais foram e quais são os centros dinâmicos e como eles interagiram entre si na construção de uma economia globalizada e cada vez mais abrangente na integração de mercados, na localização de fatores produtivos e na disseminação de tecnologias e circulação de capitais? Para resumir, eles foram, num primeiro momento, a Inglaterra, país pioneiro na revolução industrial e na integração comercial do mundo, e, por outro lado, o mercado financeiro londrino como grande investidor direto e “emprestador de última instância” de países carentes de capitais. Num segundo momento, o centro se deslocou para os EUA e Nova York, respectivamente, com  grande desenvolvimento tecnológico e científico e disseminação do “American way of life” pelos veículos de comunicação e através da indústria do cinema.
A esse respeito, o relacionamento ou a interação, dos Bric, individualmente tomados, com a economia mundial, seguiu uma trajetória errática, nos últimos dois séculos, com alguma convergência nas últimas duas décadas, ou seja, sua maior integração à globalização capitalista, processo complementado, agora, por uma maior interação recíproca, justamente motivado pela “invenção” do conceito de Bric por um banco de investimentos privado. Deve-se dizer, antes de tudo, que os Bric, tomados individualmente e conjuntamente, retrocederam em sua participação nos grandes fluxos mundiais de capitais, comércio, investimentos e tecnologia nos dois séculos que levam da primeira revolução industrial à oitava década do século XX, retomando, a partir daí, uma interação mais intensa com a economia global. Esse retrocesso, no passado, ocorreu tanto por decisões próprias – revoluções socialistas na Rússia e na China, adoção do planejamento estatal na Índia –, como de maneira totalmente involuntária, em virtude de desastres externos, seguidos de introversão estatizante, como no caso brasileiro (basicamente, a crise de 1929 e a depressão dos anos 1930 foram fatores indiretos de estímulo à definição de um projeto nacional de industrialização e de desenvolvimento, aliás exageradamente introvertido).
No período de construção de uma nova ordem econômica internacional, no segundo pós-guerra, tanto a URSS como a China, se auto-excluíram das instituições típicas do sistema mundial capitalista – FMI, BIRD, GATT – enquanto o Brasil e a Índia aderiam de modo muito relutante, e marginal, a essas entidades “capitalistas”. Na verdade, o Brasil foi muito ativo nesses órgãos da interdependência capitalista, ainda que ele o tenha sido mais um “cliente” do que um responsável por processos decisórios que, até a pouco, passaram ao largo de sua capacidade de atuação. Em todo caso, mais do que qualquer outro Bric, ele preservou estruturas de mercado e um estilo capitalista de gestão econômica em razoável sintonia com o padrão formal de organização econômica do capitalismo avançado. O único outro Bric “capitalista” do período da Guerra Fria, a Índia, foi muito mais estatizante, burocratizado e atrasado, no plano gerencial, do que o Brasil, devendo o país do Sul asiático seu forte impulso modernizador do período recente bem mais à sua diáspora econômica nos EUA do que às transformações internas à própria Índia.
A China foi um total desastre econômico, não só pela sua contínua decadência na época da guerra civil e da invasão japonesa, mas também pelos catastróficos (e até criminosos) planos econômicos da era do maoísmo triunfante (Grande Salto Para a Frente e Revolução Cultural). Basta com dizer que, possuindo um produto nacional bruto equivalente, grosso modo, a quase um terço do PIB mundial até o final do século XVIII, ela regrediu a menos de 5% do PIB global nos anos 1960, recuperando parte razoável do que tinha perdido historicamente só nos 2000. Quanto à Rússia, ademais de notavelmente diminuída depois da implosão da URSS, suas estatísticas da era socialista são pouco confiáveis para o estabelecimento de uma série relevante de seu desempenho ao longo do século XX, quando sofreu, além das destruições das duas guerras mundiais, desastres incomensuráveis em termos materiais e, sobretudo, humanos. No período “clássico” do stalinismo triunfante, ao final da Segunda Guerra Mundial, a contribuição do sistema econômico do Gulag (geralmente concentrado nas áreas florestal, mineral e obras de infra-estrutura) pode ter representado quase 5% do PIB soviético. A própria CIA superestimou a produção industrial e a capacidade tecnológica do que era, finalmente, uma imensa “aldeia Potemkim”, vivendo uma mentira institucionalizada ao longo de sete décadas.
A “reincorporação” dos Bric ao mainstream da economia mundial, a partir da oitava década do século XX, foi também muito diferenciada, devido às características bastante divergentes de seus modos de inserção no sistema global. O Brasil, a rigor, nunca dele se afastou, mas exibia, até meados dos anos 1980, quase 95% de nacionalização na oferta interna, por força de um protecionismo renitente. A Índia, provavelmente, levou mais longe o capitalismo burocrático de Estado, o que, junto com um planejamento extensivo, foi responsável por décadas de crescimento reduzido e de baixa modernização tecnológica. Foi a China, na verdade, quem deu a partida para a “grande transformação” na divisão mundial do trabalho, ao iniciar, com as reformas da era Deng Xiao-Ping, uma rápida reconfiguração na geografia mundial dos investimentos diretos. A Rússia, por sua vez, operou uma lamentável reconversão a um capitalismo mafioso nos anos 1990, passando a contar mais como fornecedora de matérias-primas energéticas do que como participante ativa da economia mundial. O Brasil passou a ser um grande provedor de commodities alimentícias e minerais; a Índia consolidou sua presença nas tecnologias de informação e de comunicação e nos serviços vinculados; ao passo que a China industrial assumiu a liderança virtual nos produtos de consumo de massa de todo o tipo, com dominância dos bens duráveis eletrônicos. Todos eles se beneficiaram de suas vantagens ricardianas, com ênfase em mão-de-obra no caso chinês, tecnologia no modelo indiano e recursos naturais para o Brasil e a Rússia.
E para onde caminham os Bric nas próximas décadas? Certamente não em direção ao mesmo destino, ainda que o traço comum de suas respectivas trajetórias seja uma crescente adesão, incontornável, à economia mundial. O estudo de 2003 da Goldman Sachs aposta que esse G4 ultrapassará, conjuntamente, o PIB do atual G7 em 2035, sendo que a China ultrapassará a todos, individualmente, até 2040 (ela já o fez para três ou quatro). Os componentes dessa ultrapassagem econômica são, contudo, muito diversos, com uma provável “explosão” tecnológica da China, uma continuidade “extrativa” no caso da Rússia, uma enorme competitividade agrícola para o Brasil e de serviços de internet e de tecnologia da informação para a Índia, ou seja, nada de muito diferente do que já está ocorrendo atualmente.
A verdade é que a economia mundial apresenta estruturas muito lentas em seu processo de constituição e um pouco menos lentas em sua transformação progressiva. Muitos dos argumentos sobre o declínio inevitável dos atuais países avançados podem carecer de fundamentos reais, uma vez que a natureza dos ganhos de produtividade, na economia moderna, depende bem menos de domínio físico sobre fatores brutos de produção e muito mais sobre elementos intangíveis, ou imateriais, da nova sociedade do conhecimento, e estes são inesgotáveis e sempre surpreendentes. Ou seja, ainda que a “massa atômica” dos Bric possa superar o peso do atual G6 ou G7, todos eles permanecerão, em termos per capita, bem abaixo dos indicadores atuais de bem estar e de produtividade dos países mais avançados. A própria noção de “blocos” parece ser totalmente ilusória, posto que os vínculos entre todas essas economias – e entre eles e novos emergentes – serão substantivamente transformados nas próximas décadas.

4. New kids in the block
Transformações econômicas são sempre o resultado de uma combinação de fatores, alguns estruturais – ao estilo das ondas “geológicas” braudelianas –, outros de natureza contingente, ou seja, derivados de decisões políticas tomadas em alguns momentos especiais por líderes visionários. A Rússia e a China afundaram no “caos destruidor” de suas economias socialistas pela força carismática de líderes políticos bastante competentes no plano orgânico-partidário e absolutamente ineptos no tocante à capacidade de compreender o modo de funcionamento de uma moderna economia de mercado. No primeiro caso, a transição do socialismo ao capitalismo continuou sendo errática e especialmente inepta; mas no caso da China ocorreu uma combinação exitosa de autoritarismo político e de firme condução para um regime de mercado que a converteu em exemplo único na história econômica mundial de crescimento inédito (e sustentado) com transformações estruturais de enorme impacto social.
No caso do Brasil e da Índia, as transformações foram menos o resultado de processos dirigidos de “retorno aos mercados”, ou de “revoluções pelo alto”, e bem mais a ação das “forças profundas” de regimes semi-capitalistas finalmente liberados em suas energias criadoras pela abertura econômica e a liberalização comercial. O problema básico do Brasil era o de romper com a retro-alimentação inflacionária e o estrangulamento cambial, processo conduzido a termo mesmo em meio a turbulências financeiras que ameaçaram o êxito do ajuste entre a segunda metade dos anos 1990 e o início dos 2000. No caso da Índia, se tratava de romper com o dinossauro estatal da economia planejada e do protecionismo exacerbado, o que foi feito de modo tardio, mas facilitado pela existência de uma “diáspora” econômica de alta qualidade nas principais economias desenvolvidas, diáspora que também existe, embora com outras características, na experiência histórica chinesa.
A rigor, a  China parece reproduzir, com maior velocidade adaptativa e uma imensa ambição de recuperar rapidamente as décadas perdidas de socialismo doentio, a experiência japonesa da Revolução Meiji – mandar seus filhos aprenderem com os líderes científicos e tecnológicos do capitalismo avançado – e, sobretudo, o milagre japonês do pós-Segunda Guerra, com muita cópia e adaptação do know-how ocidental e um cuidado extremo em logo reproduzir os mesmos produtos com novos desenhos e marcas próprias. De todos os Bric, é a única economia emergente que está destinada a converter-se, efetivamente, em economia dominante, ademais de potência militar de primeira classe, muito embora ela ainda esteja muito longe de igualar, para os seus cidadãos – muitos deles ainda súditos de um regime autoritário –, os níveis de bem-estar individual das populações dos países do capitalismo avançado.
A Rússia, amputada de territórios, recursos naturais e humanos em dimensões relativamente importantes, não parece próxima de recuperar a relevância estratégica e política alcançada no ponto máximo de sua “expansão” geopolítica, que correspondeu ao “brejnevismo senil” do final dos anos 1970. Ainda que detentora de formidável arsenal nuclear e de certa capacidade de projeção militar, ela não terá condições de desafiar efetivamente os dois gigantes da economia mundial de meados do presente século. Ela depende de recursos finitos e mesmo sua demografia é declinante (ver tabela 1), como já tinha chamado a atenção, desde aquela época, um observador atento como Emmanuel Todd (La Chute Finale, 1976).
No que se refere à Índia, ela pode até dominar com ainda maior competência os serviços eletrônicos que já oferece de maneira bastante competitiva; mas terá de absorver na moderna economia de mercado centenas de milhões de camponeses miseráveis que ainda vegetam numa economia ancestral, totalmente incompatível com o que se entende como modernidade capitalista. O Brasil, finalmente, tem pela frente, durante uma geração aproximadamente, a chance de beneficiar-se do chamado “bônus demográfico” – ou seja, a melhor relação possível entre população ativa e dependentes econômicos –, oportunidade que será provavelmente perdida, em grande medida devido à baixa qualificação técnica e educacional da população, o que reduz bastante os ganhos de produtividade que seriam de se esperar, se fossem outras as condições de capacitação de sua mão-de-obra.
Essas deficiências relativas não impedirão quase todos os Bric de se tornarem relevantes no quadro da economia mundial de meados do século. Mas eles o serão pelo seu enorme peso demográfico e enquanto mercados de consumo em expansão,  com exceção da Rússia, obviamente; não é provável que eles alcancem o nível de excelência tecnológica já logrado por quase todos os países do bloco avançado do capitalismo mundial. A exceção, mais uma vez, deverá ser a China, que reproduzirá, provavelmente, o desempenho tecnológico de Taiwan e da Coréia do Sul em escala ainda mais importante e com uma rapidez surpreendente para os padrões conhecidos.
Cabe registrar, preventivamente, que os Bric lograrão tais desempenhos, sem qualquer uniformidade de ritmos, sem qualquer similaridade entre as características essenciais de seus processos respectivos de modernização, sem qualquer coordenação conjunta e de maneira totalmente independente uns dos outros. Ou seja, eles devem confirmar sua ascensão relativa no futuro cenário econômico mundial sem apresentar os mesmos traços imanentes em suas respectivas economias de mercado – algumas mais capitalistas e capitalizadas do que outras – e sem qualquer comparação possível entre suas políticas econômicas nacionais.

5. Políticas domésticas
Essas políticas não seguem e não seguirão um padrão uniforme por uma razão muito simples. O mundo ainda é, e continuará sendo no futuro previsível, um “teatro de variedades” de experiências econômicas divergentes e até contraditórias entre si, em que pese a gradual convergência de políticas macroeconômicas básicas (fiscal, monetária e cambial), mas com imensas variações de detalhe entre elas. Registre-se que estamos falando aqui de políticas macroeconômicas e setoriais, não de grandes tendências estruturais, que se movem mais lentamente, mas que são, igualmente, determinantes da posição ocupada pelas economias nacionais no sistema mundial.
Políticas domésticas podem ser aferidas por uma variedade de instrumentos de análise econômica. Mas em última instância são julgadas pela sua capacidade de “entregar” (ou não) aquilo que se espera de políticas responsáveis: crescimento (o que significa maior renda nacional), num ambiente de relativa estabilidade (ou seja, com inflação baixa e manutenção do poder de compra da moeda) e equilíbrios interno e externo (contas fiscais em ordem, com pequeno ou nenhum déficit orçamentário, dívida pública administrável e tranqüilidade no balanço de pagamentos). Todos esses indicadores são aferíveis objetivamente, através de séries estatísticas (preferivelmente uniformes, segundo padrões internacionais). Mas eles não querem necessariamente dizer que uma economia em crescimento traga desenvolvimento social, o que implica transformações estruturais (ganhos de produtividade), que se traduzem em bem estar crescente para a população (distribuição relativamente equânime daqueles ganhos) e preservação de um ambiente sustentável para as futuras gerações.
Atendo-se, contudo, ao essencial das políticas domésticas dos Bric, podemos constatar que, a despeito da lógica implícita ao seu agrupamento – grandes economias de crescimento dinâmico, com grande poder de impacto na futura economia mundial –, eles se diferenciam quanto ao desempenho econômico, ainda que suas taxas de crescimento econômico possam ter apresentado, com a exceção conhecida do Brasil, comportamento vigoroso nos últimos anos, como se pode constatar na tabela seguinte.

3. Taxas de crescimento anual do PIB, 2000-2007
Países
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Brasil
4,3
1,3
2,7
1,1
5,7
3,2
3,8
5,4
China
8,4
8,3
9,1
10
10,1
10,4
11,1
11,4
Índia
5,4
3,9
4,6
6,9
7,9
9,1
9,7
9,2
Rússia
10,0
5,1
4,7
7,3
7,2
6,4
7,4
8,1
Emergentes
5,9
3,8
4,7
6,2
7,5
7,1
7,8
7,9
G7
3,6
1,0
1,2
1,8
3,0
2,3
2,7
2,2
Mundo
4,7
2,2
2,8
3,6
4,9
4,4
5,0
4,9
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

A China tem crescido duas vezes mais do que a média mundial e um terço a mais do que os emergentes, ao passo que o Brasil não conseguiu acompanhar aquela média e se situa sistematicamente aquém dos emergentes. Com base em suas taxas de crescimento, a renda per capita nos Bric tem crescido de forma consistente nos últimos anos; com menor vigor no Brasil, cuja progressão nominal pode ser explicada pela valorização de sua moeda nacional, em contraste com a modéstia de resultados quando os valores são considerados em paridade de poder de compra, como se pode constatar na tabela 4. A Rússia operou uma reversão significativa, comparativamente ao terrível declínio que tinha experimentado na última década do século anterior.

4. (a) PIB per capita, preços correntes (US$ mil)
Bric
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Brasil
3,761
3,189
2,866
3,085
3,654
4,787
5,741
6,937
China
945
1,038
1,131
1,269
1,486
1,715
2,011
2,460
Índia
458
461
475
541
622
717
791
977
Rússia
1,767
2,095
2,379
2,975
4,104
5,325
6,923
9,075
(b) PIB per capita, em Paridade de Poder de Compra (PPP) (US$ mil)
Brasil
7,186
7,346
7,561
7,697
8,231
8,603
9,080
9,695
China
2,372
2,612
2,881
3,217
3,614
4,078
4,649
5,292
Índia
1,508
1,576
1,650
1,773
1,950
2,156
2,405
2,659
Rússia
7,627
8,242
8,847
9,708
10,740
11,832
13,173
14,692
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

















Aplicando-se um índice 100 à renda PPP per capita do começo do período, pode-se verificar que o melhor desempenho é o da China, com um índice equivalente a 223 em 2007, seguida da Rússia, com um índice de 192. A Índia, a despeito de sua enorme (e ainda crescente) população, conseguiu multiplicar sua renda per capita em 1,76, ao passo que o Brasil experimentou modesto desempenho, expandindo seu índice em apenas 1,34. Políticas de distribuição de renda representam um componente essencial de todo país moderno. Mas os indicadores e modalidades que apresentam os Bric nesse particular tornam pouco significativa uma comparação direta entre eles.
A capacidade dos governos garantirem estabilidade monetária nesses países também tem variado ao longo dos anos, como se pode ver na tabela 5. O Brasil vem consolidando um modelo bem sucedido de metas de inflação, o que tem produzido bons resultados no período recente. O ritmo do aumento de preços tem declinado no Brasil e na Rússia, mas aumentado na China e na Índia, mesmo antes da ascensão generalizada nos preços das commodities e da energia no período recente.

5. Inflação: aumento médio dos preços ao consumo (% anual)
Bric
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Brasil
7.0
6.8
8.4
14.7
6.5
6.8
4.1
3.6
China
0.4
0.7
-0.7
1.1
3.9
1.8
1.4
4.7
Índia
4.0
3.7
4.2
3.8
3.7
4.2
6.1
6.3
Rússia
20.7
21.4
15.7
13.6
10.8
12.6
9.6
9.0
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

A despeito de que praticamente todos os governos de países avançados apresentam resultados fiscais moderadamente deficitários e dívidas públicas na faixa de 40 a 60% do PIB, estes são indicadores relevantes de risco soberano que interessa mais de perto os Bric, uma vez que é a partir deles que são fixadas as taxas de risco associadas a empréstimos e outros movimentos de capitais. Nesse particular, os dados dos Bric também são variados entre si e variáveis ao longo do tempo, mesmo numa perspectiva de curto e médio prazo. Brasil e Índia são os que apresentam os resultados fiscais mais preocupantes, uma vez que não se trata apenas de déficits orçamentários construídos para fins de investimentos produtivos ou construção de infra-estrutura, e sim de políticas governamentais adotadas com claro sentido político que acabam provocando a agravação das contas públicas.
O serviço público indiano, com seus 10 milhões de empregados, é um sugador contínuo de recursos, da mesma forma como os subsídios para agricultores pobres ou a combustíveis e produtos básicos. No caso do Brasil, despesas com o desequilibrado sistema da Previdência social, mais o peso dos juros da dívida pública e a crescente folha de pagamentos do funcionalismo público representam três enormes e perigosos componentes de uma bomba-relógio fiscal. Em ambos os países, as despesas vêm sendo cobertas pelo aumento da arrecadação gerada pelo crescimento econômico; mas se ocorre uma reversão nessa frente, ou se a demanda externa entra em fase declinante, o cenário está criado para uma nova crise no setor. O nível da dívida pública da Índia, acima de 90% do PIB, é enorme para todos os padrões conhecidos, comparativamente aos 65% da dívida brasileira e menos de 20% para os dois outros.
O governo russo, por sua vez, tem operado uma consistente volta do Estado aos negócios, passando a controlar um número crescente de companhias que operam em setores ditos estratégicos: a conseqüência mais provável pode ser o afastamento de investidores estrangeiros de novas oportunidades empreendedoras naquele país, com uma possível diminuição do ritmo de crescimento no futuro de médio prazo. Reações nacionalistas são típicas em todos os Bric, mas este pode não ser o fator principal na decisão de um investidor estrangeiro. Mais relevantes são: o ambiente de negócios (e, segundo as pesquisas do Banco Mundial em seus relatórios anuais, Doing Business, o cenário no Brasil é extremamente burocratizado) e, sobretudo, peculiaridades da política tributária, setor no qual o Brasil também consegue se alinhar aos países de mais alta extração fiscal – aproximadamente 38% do PIB, que é a média da OCDE –, reduzindo proporcionalmente a poupança privada dirigida aos investimentos.

6. Políticas econômicas externas
As políticas mais importantes no plano da inserção externa têm a ver com o câmbio, a liberalização dos movimentos de capitais e abertura comercial, terrenos nos quais as políticas dos Bric são também muito diversas. Todas tendem à adoção de um padrão mais propício à sua integração econômica internacional, o que contrasta com as formas historicamente restritivas que todos eles exibiam até menos de uma geração atrás. As rupturas políticas mais importantes ocorreram, obviamente, com os dois gigantes socialistas, uma vez que o Brasil e a Índia se situavam nos limites de um capitalismo fortemente marcado pela presença avassaladora do Estado empreendedor. Estes dois últimos foram membros fundadores do GATT e estiveram presentes, desde cedo, nas instituições de Bretton Woods, sem necessariamente acatar de bom grado as prescrições de política econômica formuladas pelas duas entidades de Washington.
A China e a Rússia ingressaram no FMI e no BIRD tão pronto superaram suas restrições ideológicas às duas entidades-símbolo do mundo capitalista, mas o processo foi mais complicado na esfera comercial. A China levou 14 anos para ser admitida no GATT, fazendo-o apenas às vésperas do início da Rodada Doha (2001), mantendo ainda várias práticas não conformes ao padrão normal de relacionamento comercial. A Rússia, a despeito de politicamente admitida no G7 desde os anos 1990 e de ter sido reconhecida como “economia de mercado” desde o G7 de Kananaskis (2002) por esse mesmo G7, não conseguiu, ainda, cumprir todos os requisitos para ingressar no sistema multilateral de comércio, nem parece perto de ingressar na OCDE. O recente retorno a uma política externa “musculosa” pode deixá-la ainda mais longe dessas organizações típicas da interdependência capitalista.
Brasil e Índia mantiveram, durante várias décadas, o padrão típico da política desenvolvimentista preconizada por economistas keynesianos como Raul Prebisch ou Gunnar Myrdal, com muitas restrições cambiais, protecionismo comercial e medidas discriminatórias contra o capital estrangeiro, políticas que começaram a ser mudadas no final dos anos 1980 e início dos 1990. Eles ainda mantêm uma política comercial basicamente defensiva no plano industrial. A Índia, graças à sua qualificação no campo das tecnologias de informação, tem operado abertura no setor de serviços, ao passo que o Brasil se mostra mais ofensivo no combate às políticas subvencionistas na área agrícola (o que deveria incluir, além dos protecionistas desenvolvidos, também os aliados do Brasil no G20, China e Índia, precisamente).
As políticas cambial, comercial e do capital estrangeiro mantidas pelos Bric são, portanto, tão variadas quanto suas formas específicas de inserção internacional. Mas os resultados acabam refletindo-se, como seria de se esperar, no balanço de transações correntes, cujos saldos, deficitários ou superávitários, são então corrigidos pelos movimentos de capitais voluntários e pelos financiamentos compensatórios. A tabela 6 oferece o panorama da evolução recente dos movimentos de fatores para os Bric, com uma evolução crescentemente positiva para os dois grandes exportadores de mercadorias (China) e energia (Rússia), e um comportamento mais errático do lado dos dois outros.

6. (a) Balança de transações correntes (US$ bilhões)
Bric
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Brasil
-24.225
-23.215
-7.637
4.177
11.679
14.193
13.621
3.555
China
20.519
17.405
35.422
45.875
68.660
160.818
249.866
360.705
Índia
-4.599
1.410
7.061
8.773
0.781
-10.285
-9.800
-19.345
Rússia
46.839
33.935
29.116
35.410
59.514
84.443
94.257
76.600
(b) Balança de transações correntes (% do PIB)
Brasil
-3.7
-4.1
-1.5
0.7
1.7
1.6
1.2
0.2
China
1.7
1.3
2.4
2.7
3.5
7.1
9.4
11.0
Índia
-0.9
0.2
1.4
1.5
0.1
-1.3
-1.1
-1.7
Rússia
18.0
11.0
8.4
8.2
10.0
11.0
9.5
5.9
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

O Brasil saiu de uma situação bastante frágil, na segunda metade dos anos 1990 e início dos 2000, o que o levou a buscar financiamento preventivo por meio de três acordos concluídos com o FMI (1998, 2001 e 2002), para uma posição de relativo conforto no plano externo, com reservas internacionais superiores à dívida externa. O superávit em transações correntes deve, no entanto, reverter ainda em 2008, com déficit moderado plenamente coberto por ingressos a título de investimentos diretos. Com seus enormes saldos comerciais, a China caminha para novos recordes de reservas em divisas – superiores a US$ 2 trilhões – e deve se manter como grande exportadora pelo futuro previsível. Os saldos da Rússia são também crescentes ou confortáveis, mas sua posição estrutural apresenta fragilidades, dada a dependência do petróleo e do gás. Os déficits da Índia, por sua vez, a despeito de crescentes, têm apresentado proporção administrável para sua economia também em expansão.
Déficits de transações correntes são financiáveis até certo ponto, dependendo das demais relações da economia com o sistema internacional. Países abertos a fluxos comerciais e financeiros, com contas fiscais ordenadas e perspectivas de crescimento, conseguem obter financiamento a taxas razoáveis, o que parece ser parcialmente o caso de Brasil e Índia. A Rússia, provavelmente, não terá um problema desse tipo pela frente no médio prazo. Mas o único país verdadeiramente confortável quanto à sua inserção dinâmica na economia mundial parece ser a China, como se depreende da tabela 8, mais abaixo.
A despeito de todo o seu sucesso nos fluxos mundiais de mercadorias, a China se mantém como uma grande usuária de medidas de defesa comercial e permanece em posição defensiva quanto a demandas adicionais para abertura de seus mercados (em especial o agrícola), no que ela é largamente acompanhada pela Índia. As diferenças de política comercial entre os Bric são provavelmente maiores do que nos demais vetores da política econômica externa, o que pode surpreender ao se considerar que, à exceção da Rússia, eles integram o mesmo bloco negociador na Rodada Doha (G20).

7. Impacto dos Bric na economia mundial
A grande justificativa para a existência da sigla Bric, segundo seu propositor original, é a dimensão do impacto dessas economias emergentes na economia mundial e sua capacidade de moldar o futuro de muitos outros países em desenvolvimento. De fato, à exceção do Brasil, os três outros Bric vêm consistentemente ganhando peso e importância no contexto global e setorial, como se depreende da tabela 7.

7. PIB em PPP em proporção do PIB mundial (%)
Bric
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Brasil
2,9
2,9
2,9
2,8
2,8
2,8
2,8
2,8
China
7,2
7,6
8,1
8,6
9,1
9,5
10,1
10,8
Índia
3,6
3,7
3,7
3,9
4,0
4,2
4,4
4,5
Rússia
2,6
2,7
2,8
2.932
2,9
3,0
3,1
3,1
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

Teoricamente, portanto, como indicam os autores desse tipo de estudo, os Bric representarão, em poucos anos, um quinto da economia mundial, caminhando paulatinamente para ultrapassar o G7 em duas décadas, segundo as estimativas. Essa agregação de “volumes” individuais pode fazer sentido nesse tipo de exercício intelectual, no qual a aritmética parece predominar sobre a política; mas é pouco provável que ela indique tendências de desenvolvimento da economia mundial, cujos vetores são dados por transformações tecnológicas, fluxos de capitais e informação de tipo científico e estratégico, como sempre ocorreu, aliás, na história do capitalismo.
De fato, pela sua crescente importância demográfica, assim como através da disseminação crescente da tecnologia e de capitais de investimento, pode-se prever com toda segurança que a participação dos países em desenvolvimento (entre os quais estão inseridos os Bric, segundo o FMI) nas exportações mundiais de bens e serviços e no PIB total deverá se expandir a partir dos valores atuais, resumidos na tabela abaixo.




8. Participação no PIB agregado, nas exportações de bens e serviços e na população mundial, 2007 (%)

PIB agregado

Export. bens-serviços

População
Países
ricos
mundo

ricos
mundo

ricos
mundo
Ricos (31)
100
56,4

100
66,4

100
16,3
EUA
37,9
21,4

14,4
9,6

30,7
4,7
Alemanha
7,7
4,3

13,8
9,2

8,4
1,3
França
5,6
3,2

6,0
4,0

6,3
1,-
Itália
4,9
2,8

5,6
3,7

6,0
0,9
Japão
11,7
6,6

7,2
4,7

13,0
2,0
Reino Unido
5,9
3,3

6,4
4,2

6,2
0,9
Canadá
3,5
2,0

4,4
2,9

3,3
0,5
G7
77,2
43,5

57,8
38,4

73,8
11,3

PIB agregado

Export. bens-serviços

População
Países em
em des.
mundo

em des.
mundo

em des.
 mundo
desenv.(141)
100
43,6

100
33,6

100
84,7
Brasil
6,4
2,8

3,2
1,1

3,5
2,9
China
24,8
10,8

23,3
7,8

24,2
20,5
Índia
10,5
4,6

4,0
1,3

20,6
17,5
Rússia
7,3
3,2

6,8
2,3

2,6
2,2
México
4,8
2,1

5,1
1,7

1,9
1,6
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook 2008, Statistical Appendix, p. 235

Trata-se, no entanto, de uma constatação elementar, que nada diz sobre os demais aspectos, sobretudo institucionais e políticos, que atuam de modo interativo com as forças estruturais que estão moldando o sistema econômico mundial. Ou seja, o impacto econômico dos Bric é necessariamente decisivo; mas ele sozinho nada diz sobre os demais condicionantes de um complexo relacionamento que não se resume à contabilidade de PIB e exportações, mas tem a ver com fatores complexos de interdependência recíproca, não dos Bric entre si, mas entre eles, individualmente tomados, e seus múltiplos parceiros na economia mundial.
Em outros termos, os valores registrados nos intercâmbios globais, bem como os próprios volumes físicos de bens e serviços comercializados, não podem ser considerados unicamente em sua base territorial ou sua jurisdição nacional, uma vez que eles resultam de relações contratuais de propriedade intelectual e de criação e apropriação tecnológica – subjacentes a outros fluxos de renda não computados de modo adequado naquelas estatísticas – que traduzem a verdadeira complexidade da economia contemporânea (e futura). Desse ponto de vista, os Bric não possuem existência econômica de fato, sendo puramente uma criação do “espírito econômico”.

8. Impacto da economia mundial sobre os Bric
Os Bric e os demais países emergentes não têm, no contexto da globalização capitalista, um itinerário e um destino econômico independentes dos que possam ser concebidos para os pólos mais avançados da economia mundial. Estes estabelecem os padrões e parâmetros fundamentais por meio dos quais ela se organiza, num processo dinâmico que não é dominado exclusivamente por um centro específico, mas possui “nós” articulados de produção e de disseminação de idéias e de conhecimento prático, através dos quais é tecida a teia da economia mundial. Obviamente, as modalidades de inserção de cada economia nacional no sistema mundial são distintas, assim como são distintos os nichos ocupados e os papéis desempenhados por cada uma delas nessa interdependência cambiante, posto que os processos de desenvolvimento econômico e social são sempre únicos e originais, respondendo a ênfases, orientações e opções que são determinadas, em grande medida, pelas elites dirigentes dos Estados nacionais.
Assim como os Bric podem contribuir para moldar o perfil da futura economia mundial, esta possui um impacto ainda mais decisivo sobre eles, aqui individualmente considerados (já que não se observa, na presente conjuntura, uma ação coordenada no plano das políticas macroeconômicas ou setoriais). A crise financeira deslanchada em 2007 a partir do episódio das subprimes hipotecárias americanas, estendida em 2008 às bolsas e ao sistema financeiro como um todo, nos diversos continentes, demonstra essa interconexão das unidades econômicas nacionais. Com efeito, a despeito das teses sobre o “descolamento” dos Bric do ciclo econômico dos países do G7 e dos demais avançados, o fato é que o impacto destes sobre aqueles é mais relevante do que o usualmente admitido. Não se trata, apenas, de mercados de consumo e de fluxos de investimento direto, mesmo se esses vetores já são importantes para os ciclos econômicos dos emergentes e os de outros países em desenvolvimento. Ademais das especializações ricardianas e de outras vantagens adquiridas, os emergentes, em geral, e os Bric, em particular, estão integrados seja como tomadores, seja como provedores de recursos financeiros para o sistema em seu conjunto.
De fato, a economia mundial não se apresenta apenas como um conjunto de espaços (reais ou virtuais) para o intercâmbio de bens e serviços, com os quais cada unidade nacional pode ter maior ou menor interação física. Mesmo na hipótese de uma osmose dinâmica entre cada economia nacional com essa interface internacional relativamente complexa, ela não esgota as características fundamentais da economia moderna. Esta é, no seu aspecto essencial, sobretudo um espaço para o intercâmbio de idéias. Nesse sentido, a dominação intelectual do chamado Ocidente desenvolvido deve continuar a se exercer pelo futuro previsível e imaginável: ainda que a inovação tecnológica possa se disseminar mais rapidamente, a pesquisa científica continua a ter maior densidade nos centros universitários ligados à tradição baconiana.
Quando se observa o panorama geral da economia mundial, uma conclusão parece inevitável: as mesmas forças que transformaram o mundo desde o século XVI continuam a moldar o mundo contemporâneo e aquele previsível no horizonte, não só pelos fluxos de bens e serviços, mas também pelas formas de organização econômica e, sobretudo, pela produção de idéias e conceitos que sustentam os fluxos reais. Desse ponto de vista, não se pode, ainda, conceber uma suposta independência dos países em desenvolvimento do núcleo central da economia mundial. Aliás, o próprio conceito de “países em desenvolvimento”, ou de economias centrais e “periféricas” pode ser posto em dúvida para fins de uma análise isenta de supostos ideológicos.
Não caberia, nos limites deste ensaio, discutir os preconceitos filosóficos e de organização “mental” que presidiram à construção política do mundo contemporâneo, feita de divisões políticas entre grupos de países supostamente homogêneos, tanto porque esse constructo tem sólidos fundamentos na realidade: existem, claro, países “centrais” e “periféricos”; existem, sim, economias “dominantes” e as “dominadas” ou “dependentes”; ocorre, obviamente, “extração” de recursos e de renda de umas pelas outras, assim como a tutela política e a influência cultural são parte da história mundial nos últimos cinco séculos. Mas essas dicotomias simplistas e redutoras não esgotam a realidade formada a partir das grandes navegações dos séculos XV e XVI, aquela constituída pela unificação econômica do mundo a partir do século XIX, provisoriamente interrompida, durante “breves” setenta anos do século XX, por um experimento socialista alternativo, depois retomada sob a égide do capitalismo global.
Em qualquer hipótese, os Bric possuem a sua própria “periferia”, assim como cada um deles constitui o “centro” de um espaço econômico específico, que não deixa de vincular-se aos muitos círculos concêntricos que emanam naturalmente dos vários pólos da economia mundial. Nesse sentido, pode-se parafrasear George Orwell e dizer que, se todos são interdependentes, alguns são mais interdependentes do que outros. A China, por exemplo, o único dos Brics que tem condições de impactar de maneira decisiva – para o bem ou para o “mal” – a economia mundial, é também a economia mais integrada ao atual pólo hegemônico do capitalismo global: ela “extrai” dele os excedentes comerciais mais volumosos, mas também “devolve” esses recursos sob a forma de financiamento à dívida pública americana, via compra de T-bonds. O Brasil, aliás, é o quarto mais financiador do Tesouro dos EUA, tendo investido três quartos de suas reservas internacionais nos mesmos instrumentos financeiros.

9. Conseqüências geoestratégicas
Qualquer que seja a conformação futura da economia mundial, os Bric, assim como todas as outras economias, maduras, emergentes ou ainda em “hibernação”, são parte integrante de qualquer paisagem geoeconômica ou geopolítica que se possa conceber. Essa é uma realidade que independe de estudos por especialistas e que não tem a ver com o “ajuntamento” artificial de quatro, ou mais, países num novo bloco, supostamente homogêneo, por agregação arbitrária de um desses especialistas em processos econômicos. Todas as economias, em maior ou menor grau, têm um papel a cumprir no sistema econômico mundial. Mas, obviamente, como ocorre no mundo da política de poder, algumas economias são “mais iguais” do que outras, e entre estas se situam os Bric, países capazes de impactar, seletivamente, um ou outro aspecto das relações econômicas internacionais, sem que sua ação seja coordenada ou intencional.
 Economistas acadêmicos, como outros cientistas sociais, tendem a simplificar a realidade a pretexto de racionalizar processos que necessitam de uma explicação mais complexa ou elaborada. O conceito “Bric”, em sua aparente novidade, é uma dessas trouvailles interessantes que passam a ocupar espaços informativos e a mente dos jornalistas, impedindo, talvez, que análises mais elaboradas sejam conduzidas de modo responsável e, talvez até, excitando a imaginação de líderes políticos em busca de alguma idéia nova, mesmo desinteressante. O conceito Bric pode ter essa função.
Mas o que esse conceito representa, verdadeiramente, em acréscimo à, ou além da virtude heurística de organizar – eventualmente simplificando – uma análise mais complexa sobre as novas configurações do sistema mundial? Independentemente de suas conseqüências práticas, em termos de reorganização parcial da economia mundial e, a partir daí, seus inevitáveis reflexos nos planos estratégico, político e até militar, o conceito também tem a capacidade de induzir espíritos preocupados com a realidade de uma “velha” hegemonia a alimentar a idéia de uma “ruptura de sistema”, ou seja, a eliminação, ou talvez a substituição, dessa antiga hegemonia.
Esta é, talvez, a conseqüência mais visível da proposta de transposição de um conceito virtual da análise econômica – conduzida pelos economistas do Goldman Sachs – para a realidade tangível da vida político-diplomática, sob a forma de uma proposta tendente a converter o Bric num grupo efetivo de coordenação de políticas (e eventuais ações) no plano mundial. Estimulados pela honrosa distinção que lhes foi gratuitamente oferecida por um “aprendiz de feiticeiro” econômico, que viu neles os substitutos designados dos velhos hegemons, líderes políticos dos Bric começam a se encantar com a idéia de encarnar uma nova realidade política que, bafejada pela propaganda também gratuita dos meios de comunicação, esperava tão somente por sua formalização adequada.
Essa institucionalização, concebida informalmente, num primeiro momento, entre alguns protagonistas dos Bric, assumiu, em maio de 2008, um formato mais estruturado, quase parecido a um “grupo”, termo que, entretanto, não é utilizado no comunicado liberado em nome dos quatro “Bric countries” em 16 de maio, em Ecaterimburgo, Rússia. Na declaração, os ministros de relações exteriores dos Bric sublinham, em primeiro lugar, seus “interesses comuns” e a “coincidência ou similaridade de abordagens em relação aos problemas urgentes do desenvolvimento global”, para depois concordar com a tarefa de construir “um sistema internacional fundado no predomínio do direito (rule of law) e na diplomacia multilateral”. O resto do texto é ocupado pelo diplomatês habitual da agenda internacional; mas no ponto que mais interessavam o Brasil e a Índia, qual seja, seu eventual acesso ao Conselho de Segurança da ONU, a linguagem é mais cuidadosamente formulada: “Os Ministros da Rússia e da China reiteraram que seus países dão importância ao status da Índia e do Brasil nos assuntos internacionais, e compreendem e apóiam as aspirações da Índia e do Brasil em desempenhar um maior papel nas Nações Unidas.” Ou seja, nada além de compreensão e apoio, sem que no entanto esse apoio se traduza em votos efetivos no processo de reforma da Carta da ONU.
Independentemente, porém, do grau efetivo de “coincidência ou similaridade” dos Bric quanto a seus “interesses comuns”, o fato é que esse exercício intelectual deslanchou um processo de efetiva coordenação entre quatro grandes emergentes, que prometem exercer o seu quantum de poder econômico a serviço de causas políticas ainda não de todo claras, mas que poderiam significar a conformação de uma “nova geografia econômica internacional”; talvez, até, uma “mudança no eixo do poder mundial”, segundo formulações já ouvidas de alguns dentre eles. Com efeito, o que pode estar subjacente à formalização do Bric seria o não tão secreto desejo de alterar a balança de poder, em termos de influência econômica e política mundial por certo, mas talvez também no plano do equilíbrio militar, o “definidor de última instância” do poder mundial. 
Historicamente, são raras as tentativas de alteração pacífica do equilíbrio do poder mundial, na medida em que os beneficiários do status quo tendem a resistir às demandas dos contestadores por novos espaços no quadro dessa mesma ordem. Caso as expectativas não sejam atendidas, os contestadores podem se decidir pela mudança dessa ordem, se possível por meios pacíficos, se necessário por métodos violentos. A Alemanha imperial empreendeu, por duas vezes, entre 1870 e 1918, uma tentativa de alterar o equilíbrio do poder na Europa, com sucesso pleno na primeira vez e um quase sucesso na segunda vez, não fosse pela intervenção dos EUA nos campos do norte da França, em 1917. A partir de 1938, com a anexação da Áustria e de parte da Tchecoslováquia, a Alemanha nazista deu início, em cooperação com a Itália fascista e o Japão militarista, à mais ousada tentativa de alterar pela força a ordem mundial; os três poderes contestadores estiveram próximos de realizar suas metas expansionistas, não fosse pela resistência do Reino Unido e pelo poderio econômico americano (em 1939, a URSS apoiou, indireta mas voluntariamente, essa tentativa de eliminação dos velhos hegemons, mas acabou vítima, ela também, do expansionismo nazista).
Contidos, derrotados e radicalmente transformados os contestadores fascistas do entre-guerras, a geopolítica do poder mundial passou a ser dominada, a partir de 1947, pelo expansionismo soviético, sem, contudo, chegar-se ao enfrentamento direto com a superpotência americana, em vista da mudança brutal nas ferramentas militares em função do vetor nuclear, ele mesmo uma arma de última instância. Os conflitos se deram, então, por procuração, cada lado contabilizando avanços e recuos nos teatros periféricos que passaram a concentrar o essencial do “grande jogo”. Essa “terceira guerra mundial” terminou sem que o hegemon conservador tivesse logrado vitória; a derrota do lado economicamente mais débil se deu, na verdade, por auto-implosão de um socialismo esclerosado e incapaz de competir no plano da eficiência produtiva. Depois da derrocada espetacular da URSS e do momento “unipolar”, do qual os EUA emergiram como única superpotência efetiva, o mundo parece caminhar para uma nova fase de transição, na qual se assiste a um declínio relativo dos EUA e à ascensão (China), reafirmação (Rússia) ou emergência de novos atores (Índia, Brasil, União Européia), que poderão redistribuir as cartas nos novos cenários estratégicos.
Existem fundadas dúvidas, entre os analistas, sobre se o mundo entra em uma era de competição entre novos candidatos a hegemon – dos quais o mais falado seria a China pós-socialista – ou se estão sendo lançadas as bases de uma paz não-kantiana. Esta seria a estabilidade fundada, não sobre a convivência pacífica entre repúblicas democráticas, mas sobre a mútua tolerância entre grandes potências, dado o impasse estratégico produzido pela arma nuclear. O fato é que dentre os poderes emergentes que poderiam entrar na nova equação estratégica figuram pelo menos dois Bric, por acaso ex-socialistas e ainda dominados por sistemas políticos autoritários e agitados por problemas étnicos e territoriais em suas fronteiras próximas e territórios próprios.

10. O Brasil e os Bric
Qualquer que seja a evolução futura da geopolítica mundial no século XXI, é evidente que problemas desse tipo – ou seja, nova Guerra Fria, ou uma Paz Fria – não têm nada a ver com a condição de membro de algum grupo inventado na prancheta de um economista, ainda que conflitos prováveis possam surgir da condição de alguns candidatos a emergente global. A situação de “Bric” é acidental e fortuita, ao passo que a condição de emergente econômico mundial foi adquirida ao longo de um lento processo de qualificação produtiva e tecnológica que deve converter-se em poder político e militar na seqüência natural das coisas. Em outros termos, a construção do futuro geopolítico não será determinada pela introdução fortuita do grupo Bric.
Normalmente, a constituição de agrupamentos políticos ou econômicos tem a ver com afinidades regionais ou agregação de interesses comuns para a realização de objetivos partilhados, seja na esfera da segurança, do desenvolvimento ou na defesa de seus espaços respectivos. Assim foi desde a Liga Ateniense – que escondia mal o imperialismo da cidade e sua supremacia naval –, a Liga Hanseática – criada para defender interesses de mercadores livres – e, mais recentemente, as alianças militares dos dois blocos inimigos – Otan e Pacto de Varsóvia – e a verdadeira proliferação de “Gs”, dentro e fora do sistema onusiano, a começar pelo G77.
O G7, politicamente convertido em G8 com a inclusão da Rússia, tinha (talvez ainda tenha) um sentido claro: coordenar (ou pelo menos tentar fazê-lo) as políticas econômicas dos países mais importantes do capitalismo avançado num momento de desestruturação do sistema monetário criado em Bretton Woods. Vários outros “Gs” foram criados antes e depois do G7, sempre com o sentido de responder de forma coletiva ou coordenada a desafios comuns, como pode ter sido o caso do G20 liderado pelo Brasil: evitar um novo “Blair House” na Rodada Doha e promover os interesses dos países em desenvolvimento na frente negociadora agrícola. Ele é, de certa forma, “complementado” pelo G33, que visa defender a postura mais restritiva dos países em desenvolvimento importadores líquidos de alimentos, congregando inclusive alguns membros do próprio G20, o que pode parecer contraditório. Quase não se fala mais, atualmente, do G15, que deveria ser o pendant desenvolvimentista do G7, este “assediado”, agora, por um G5 de candidatos ao clube (Brasil, Índia, China, México e África do Sul). Existe, também, um G20 financeiro, que deveria seguir de perto os trabalhos do Fóro de Estabilidade Global, que parece ter ficado hibernando desde o arrefecimento da crise financeira dos anos 1997-1999.
Seja como for, cada um desses grupos responde a uma lógica intrínseca a  seus membros e foram concebidos e implementados a partir de uma coordenação que se desenvolveu internamente, com base em uma agregação voluntária dos integrantes. O Bric parece ser o primeiro grupo a ser primeiro definido externamente, por critérios que respondem mais a uma lógica econômica de tipo analítico do que propriamente a critérios políticos definidos soberanamente por cada um dos membros. O conceito, aparentemente, primeiro ganhou status atraente no mundo do jornalismo econômico, para depois ser absorvido e promovido pelos objetos centrais do exercício analítico.
Cada um dos Bric apresenta características fundamentalmente diferentes, sem que essa pretensa unificação de traços econômicos exteriores, por força de uma sigla atraente pelo seu significado simbólico, constitua de fato um elemento agregador de interesses ou um “adesivo” político capaz de justificar a criação de um novo grupo diplomático. O empenho em sua criação pode ser explicado por diferentes razões nacionais, nenhuma delas exatamente coincidentes com as dos demais “membros”. Dos quatro integrantes, os dois ex-socialistas apresentam características políticas profundamente autoritárias, consolidando o legado de séculos de Estados totalitários, eventualmente sob a forma de um Império centralizado, em suas diversas formas, inclusive o comunista. O analista Robert Kagan não hesita em falar de um retorno da Rússia a um sistema político “czarista”, olhando, aliás, para o que os chineses fizeram como modernização econômica e manutenção de um sistema político autoritário (“The End of the End of History”, The New Republic, April 23, 2008). Os outros dois, ditos em desenvolvimento, apresentam trajetórias passavelmente democráticas, ainda que com extremas deficiências de funcionamento e de justiça social; mas também são as economias de mercado que mais se aproximam do padrão usual, capitalista, de organização econômica e social.
Mesmo essa divisão bipartite não permite, porém, aproximar os quatro países para fins dessa entidade artificial que se cogita introduzir no cenário internacional. O Brasil, de todos eles, é o que possui estruturas capitalistas mais avançadas e ostenta a mais moderna dentre as três sociedades. Dos quatro é seguramente a sociedade mais integrada nacionalmente – nos planos lingüístico, cultural, étnico e, talvez, religioso – o que permite, em princípio, melhores formas de administração política, sem grandes rupturas institucionais, e condições mais favoráveis para a modernização econômica e social. O grau de democratização social pode tornar mais lento o ritmo de crescimento e os processos de adaptação aos novos ambientes da economia mundial, mas isso também contribui para maior coesão em torno de objetivos nacionais.
De fato, o Brasil é, dentro os Bric, o país que tem apresentado a menor taxa de crescimento do PIB no período recente, não tendo contribuído em praticamente nada para a alteração do peso econômico dos Bric em face dos países da OCDE. Como se pode constatar pela tabela 9, o aumento da participação do bloco no PIB mundial se deve inteiramente aos RICs (Rússia, Índia e China), tendo o Brasil atuado bem mais como fator retardatário na nova dinâmica criada. Essa tendência pode, evidentemente, vir a ser modificada, caso a economia brasileira venha a conhecer taxas mais vigorosas de crescimento, mas o registro de suas taxas de poupança e de investimento nas últimas duas décadas e as estimativas para a evolução de suas contas fiscais, nos próximos anos, não oferecem perspectivas muito otimistas nesse particular.

9. PIB em PPP em proporção do PIB mundial (%)

2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
BRICs
21,54
22,28
23,05
23,94
24,75
25,66
26,53
  RICs
18,64
19,38
20,15
21,14
21,95
22,86
23,73
  Brasil
2,9
2,9
2,9
2,8
2,8
2,8
2,8
OCDE
60,18
59,43
58,63
57,53
56,48
55,36
54,37
Fonte: Calculado a partir de FMI, World Economic Outlook Database, April 2008

Uma questão relevante, por fim, tem a ver com a geopolítica mundial. A diplomacia brasileira sempre foi exercida de modo bastante profissional, preservando uma tradição de excelência que remonta à própria formação do Estado nacional, tendo herdado a grande experiência prática da diplomacia lusitana (que ela soube preservar e reforçar). Seus processos de recrutamento e formação de quadros sempre foram reputados pela qualidade e preservação do profissionalismo inerente a uma carreira de Estado. O que ocorreu, na fase recente, é que a diplomacia brasileira foi tomada por um ativismo inédito para os padrões usualmente mais discretos do Itamaraty, retomando teses desenvolvimentistas e de coordenação Sul-Sul que se pensava superadas nesta fase de globalização ascendente (a cooperação Sul-Sul, aliás, é expressamente citada na declaração dos ministros dos Bric de 16 de maio de 2008).
A busca de um papel mais ativo nos cenários regional e internacional levou a diplomacia brasileira a desenvolver uma série de articulações no eixo Sul-Sul e com “parceiros estratégicos”, cujos exemplos mais evidentes são o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), o G20 (no contexto da Rodada Doha), as cúpulas inter-regionais (com países africanos e do Oriente Médio), diversas iniciativas no âmbito da América do Sul (reforço e ampliação do Mercosul, criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, Conselho de Defesa no âmbito da Unasul, etc.), além de vários outros foros de diálogo e de cooperação com atores relevantes da agenda internacional (UE e seus mais importantes países, os próprios EUA), para culminar agora na proposta do Bric, que coloca o patamar de articulação mundial da diplomacia brasileira num nível mais elevado de interação com a agenda internacional.
As iniciativas adotadas pela diplomacia brasileira no período recente não se encontram em descompasso ou em ruptura com linhas tradicionais de atuação dessa diplomacia no passado, uma vez que ela sempre buscou aquilo que foi identificado com a “desconcentração do poder mundial” – supondo-se que os atores dominantes estavam interessados no “congelamento” desse poder –, ou seja, uma democratização do sistema internacional. Essa idéia encontra-se potencialmente em contradição com o projeto de ascender ao inner circle do poder mundial – na Liga das Nações ou, agora, a candidatura a uma cadeira permanente no CSNU. Mas não convém enfatizar este ponto neste momento. O fato é que o projeto do Bric, como grupo institucionalizado, pode chocar-se com o outro grande princípio de atuação da diplomacia brasileira, que é o do “pragmatismo democrático”, respaldado em orientações gerais de política externa que figuram na própria Constituição do País.
A atuação do Brasil nos Bric pode ser pautada pela “prevalência dos direitos humanos” e pelo apoio ao “Estado democrático de direito”, que constituem princípios constitucionais brasileiros, embora não se possa garantir que a ação coordenada dos membros do Bric o seja. Como a agenda externa, individual, de cada um dos Bric, deve diferir de uma agenda conjunta, esta teria de ater-se a um mínimo denominador comum, que não necessariamente incorporará aqueles princípios. Por exemplo, uma das possíveis iniciativas dos Bric poderá ser em apoio à proposta brasileira explicitada no comunicado: “Os ministros da Rússia, da Índia e da China saudaram a iniciativa do Brasil de organizar um encontro dos ministros de economia e/ou finanças dos países Bric para discutir questões econômicas e financeiras globais”.
Em face desse tipo de proposição, pode-se perguntar: essa ação conjunta seria no sentido de reforçar as instituições que, para todos os efeitos práticos, criaram algumas décadas de prosperidade para os povos dos países que a elas aderiram desde a sua criação?; tratar-se-ia, presumivelmente, de redistribuir a estrutura do processo decisório e de aumentar sua participação nos órgãos de direção, como é legitimamente seu direito?; ou se trata, alternativamente, de transformar seu modo de funcionamento para que ele passe a refletir uma outra orientação de política econômica que não a que vem sendo seguida tradicionalmente?
Muitas outras questões podem e devem ser colocadas no tocante às propostas dos Bric em pontos sensíveis da agenda mundial: não-proliferação (e o que fazer com proliferadores rebeldes); meio ambiente (e a questão das responsabilidades atuais, não apenas passadas); terrorismo (e a assunção de tarefas concretas para combatê-lo, além da letra das convenções da ONU); desarmamento (e a necessária negociação de um código de conduta para os principais mercadores); a questão do desenvolvimento dos países pobres e Estados falidos (com um comprometimento preferencial pelo lado dos mercados e do comércio, mais do que pela assistência tradicional). Estarão os Bric em condições de se colocar de acordo sobre todas essas frentes de trabalho e manter uma postura não confrontacionista – com o G7, em primeiro lugar – no encaminhamento de soluções consensuais a problemas que afligem a grande maioria da humanidade?
Não existem, por certo, respostas prontas a essas e a muitas outras questões que figuram na agenda mundial e às quais devem se confrontar os Bric, como grupo ou individualmente. Muitas outras questões, talvez a maioria, ostentam uma dimensão basicamente regional e representam, portanto, um desafio considerável a um grupo que nasceu destinado a ser o “sucessor econômico” do atual G7. Outras questões, as mais relevantes provavelmente, têm a ver com o exercício do poder em sua dimensão mais elementar, e nesse particular a postura comum dos Bric enfrentará certamente outros percalços, sendo eles constituídos por três potências nucleares e dois membros permanentes do Conselho de Segurança. O Brasil apresenta, nesse contexto, um perfil único e diferente dos demais Bric, sendo mais propriamente visto como uma potência regional do que mundial.

Alguma conclusão preventiva?
Não há, propriamente, conclusões a serem tiradas nesta fase constitutiva, equivalente de alguma forma ao conjunto de testes iniciais que fazem os competidores antes de empreender uma corrida. Os Bric, sendo verdade que eles vão se consagrar e se consolidar como grupo formal, estão, ainda, flexionando seus músculos e polindo seus discursos antes de se lançarem na arena de um mundo em rápida transformação.
Pode ser que a própria idéia dos Bric acabe sendo, finalmente, o que ela de fato representa enquanto exercício intelectual: um conceito destinado mais a organizar dados e a alinhar indicadores numa tela de computador – excitando, com isso, a imaginação dos jornalistas – do que uma realidade operacional no plano político ou diplomático. Nesse caso, se estaria fazendo muito barulho por nada, ou quase nada. Mas pode ser, também, que se trate, efetivamente, de um novo animal na paisagem geopolítica mundial, com todas as conseqüências que isso pode ter nos alinhamentos existentes e nos realinhamentos prováveis a partir da implementação desse conceito. Nesse caso, os quatro Bric deveriam estar prontos a assumir a responsabilidade de propor uma agenda positiva, que não seja uma simples reação – defensiva ou negativa – à agenda proposta atualmente pelo G7 e os demais participantes do mundo norte-atlântico (que continuam a dominar as principais interações em escala mundial que ocorrem nos planos econômico, comercial, tecnológico, financeiro e cultural).
As principais questões que dividem o mundo não são mais, ainda bem, de natureza ideológica, como ocorria ainda menos de três décadas atrás, quando projetos concorrentes se mobilizavam para conquistar os corações e mentes dos cidadãos ao redor do mundo. Elas nem são de ordem técnica, uma vez que parece haver razoável consenso e colaboração entre cientistas e pesquisadores de todo o mundo em torno das principais fronteiras a desafiar o conhecimento humano nos campos da medicina, da física, da biologia. Os principais dilemas se dão em torno das prioridades políticas e das políticas econômicas alternativas que se colocam, sob a forma de opções, aos estadistas, na busca de  soluções a velhos problemas que afligem a humanidade: fome, desemprego, saúde, educação, segurança e bem-estar.
A experiência do passado – aliás, ainda recente – em torno de algumas dessas escolhas e sobre as tentativas de impô-las de modo autoritário a sociedades inteiras, não nos traz ensinamentos muito otimistas sobre algumas das soluções propostas por desafiantes radicais do status quo. Não é preciso rememorar a história terrível da Alemanha nazista e do Japão militarista para constatar que poderes emergentes podem ser competidores apressados, aptos a contestar, pela violência em alguns casos, o poder estabelecido de hegemons mais antigos. A lição, em todo caso, deve ter sido aprendida. Mas tampouco é preciso ser candidamente panglossiano para desejar que a unificação econômica e política do mundo contemporâneo se processe, doravante, mais com a ajuda filosófica de Erasmo e de Kant do que com as recomendações operacionais de Sun Tzu ou de Clausewitz. Esperemos que desta vez seja diferente...

Paulo Roberto de Almeida é doutor é ciências sociais, mestre em planejamento econômico e diplomata de carreira desde 1977. Professor de Economia Política Internacional no Centro Universitário de Brasília, tem diversos livros nos campos das relações econômicas internacionais, processos de integração e de política externa do Brasil (www.pralmeida.org).

 [Brasília, 26 de agosto de 2008;
Revisão: 20 de novembro de 2008]

Agronegocio: transformacao do quadro economico em 50 anos - OESP


Agronegócio tem leis defasadas, dizem analistas

Lei de Políticas Agrícolas e Estatuto da Terra foram feitos há décadas, quando o Brasil era importador; hoje, País é o segundo maior exportador
Cristiane Barbieri ESPECIAL PARA O ESTADO

O Estado de S. Paulo, 26/10/2017


Na última década, o Produto Interno Bruto (PIB) agropecuário brasileiro cresceu a uma taxa média anual de 3,3% ante 2,3% do resto da economia. A produção deu um salto de mais de 100 milhões de toneladas, a produtividade cresceu em 1,1 quilo por hectare e o País vem conquistando e superando títulos de maior produtor mundial em diferentes produtos agrícolas, nesse mesmo período. Numa área porém, o Brasil parou décadas atrás: a legal. “Apesar de sermos uma potência agrícola, termos algumas das tecnologias mais avançadas do mundo e recursos naturais em abundância, na área do Direito o País está atrasado”, diz Renato Buranello, professor do Insper Direito.
Isso porque os marcos regulatórios que regem o setor, como a Lei de Políticas Agrícolas e o Estatuto da Terra, têm décadas. “O maior diploma jurídico que trata de financiamentos e contratos, o Estatuto da Terra, é datado de 1964 e foi elaborado antes disso, quando o maior objetivo era desenvolver uma política pública de reforma agrária e distribuição de renda”, afirma Buranello. “Não que essa preocupação não deva existir, mas éramos importadores de alimentos naquela época. Hoje, somos o segundo maior exportador.”
As gigantes do agronegócio hoje dependem de contratos que envolvem instrumentos como mercados futuros, derivativos cambiais, certificados de recebíveis, garantias de exportação, entre outros, não previstos na legislação. Na época em que o Estatuto da Terra foi criado, ele protegia, por exemplo, um arrendatário hipossuficiente”, diz Fernando Campos Scaff, professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. “De modo geral, hoje o arrendatário são grandes multinacionais.”
Defasagem. Além de os contratos empresariais e comerciais em si dependerem de leis defasadas, outras áreas relacionadas ao agronegócio, como tributária, ambiental e trabalhista, sofrem do mesmo problema. Com características muito típicas, que envolvem riscos inerentes à atividade, o agronegócio tem obrigado os advogados a adaptarem seus contratos, usando códigos criados e praticados em outras áreas. “Se o consumidor comprar um armário ou uma tonelada de soja, a lei é a mesma”, diz Buranello.
Sem regras e jurisprudência claras a serem aplicadas a suas necessidades, o resultado para as empresas de agronegócios, evidentemente, é a incerteza jurídica – e custos maiores. “Fizemos em outubro um seminário sobre tributação no agronegócio, com temas que de maneira nenhuma são novidade, mas que os produtores não têm conhecimento porque é preciso garimpar artigos e interpretações que podem ser usadas em suas atividades”, diz Fabio Calcini, professor da pós-graduação da FGV Direito SP. “Lotou porque, nem é preciso dizer, a questão tributária pode viabilizar ou não um negócio.”
Na verdade, dizem os especialistas, está se vendo a formação de um novo campo de atuação, o do Direito do Agronegócio. Com a oferta crescente de cursos em pós-graduação e extensão, uma bibliografia variada e a demanda de um mercado de clientes enorme a ser atendido.
Para os especialistas, a solução não seria fazer uma única legislação que abrangesse todo o tema, mas atualizar as pertinentes com capítulos específicos referentes ao agronegócio. Uma formalização essencial já que, segundo levantamento da Confederação Nacional da Agricultura, havia mais de 300 projetos de lei ligados ao setor em andamento. Os ganhos de produtividade, afirmam, seriam sensíveis, com a geração de mais riqueza, empregos e tributos.
Também haveria mais clareza com relação aos assuntos polêmicos ligados ao setor. A recente portaria do Ministério do Trabalho que mudou a legislação sobre o trabalho escravo, atendendo a demanda da bancada ruralista, com fortes críticas até ser suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, não precisaria nem sequer ter existido.

O perigoso caso de Donald Trump - Rubens Barbosa

O PERIGOSO CASO DE DONALD TRUMP
 Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 24/10/2017

Durante a campanha eleitoral, Jeb Bush previu corretamente que Trump era o candidato do caos e que, caso eleito, seria um presidente do caótico. Questões de guerra e paz, armas nucleares, imigração e previdência social que afetam milhões de pessoas nos EUA e em outros países são tratadas surpreendentemente de maneira pública, muitas vezes contrariando as posições de seus ministros, em tweets matinais.
Decorridos dez meses da posse e diante das atitudes desconcertantes de Donald Trump, aumentam as incertezas sobre as perspectivas do atual governo norte-americano. O formato e o estilo de seus pronunciamentos públicos, sem precedentes na história política de Washington, a atitude quase autoritária de impor a sua vontade contra a de seus ministros e a maneira como pauta a Imprensa, atacada e desprezada por ele, causam perplexidade não só na política interna, sobretudo na relação com o Congresso, mas igualmente ao redor do mundo, em especial entre os principais aliados dos EUA na Europa e na Asia. 
As ações unilaterais de Trump, em muitos casos incoerentes, estão mudando políticas em vigor sem definições alternativas. Disputas com aliados republicanos, opositores democratas e membros de seu ministério começam a ser percebidos como ameaças à estabilidade do governo, como indicam os primeiros pedidos de impedimento apresentados ao Congresso. Em várias frentes como saúde, imigração, na chamada guerra cultural, que se estende da briga com atletas por seus protestos contra a violência policial na hora do hino nacional à suspensão da proteção contra a discriminação a transgêneros no trabalho, Trump coleciona derrotas, embora muitos (mais de 38% da população) ainda o apoiam pelo que entendem ser a defesa dos valores americanos, perdidos com Obama.
A crescente falta de credibilidade da administração Trump junto aos governos europeus, em particular ao da Alemanha, começa a acarretar um gradual afastamento nas posições defendidas pelos dois lados. Em termos de segurança e defesa, de um lado, e de comércio de outro percebe-se uma gradual desvinculação da Europa e a busca de um caminho próprio na busca da defesa de seus interesses.
Para justificar essa percepção, cabe mencionar o que está ocorrendo em três áreas: política interna, comércio exterior e política externa.
Em termos de politica doméstica, a guerra com a imprensa (CNN/NBC) pelas noticias falsas (“fake News”) sobre a ação da Rússia durante a eleição presidencial, que levou a designação de um promotor especial para investigar essa interferência; a tentativa de revogar todas as politicas internas e externas aprovadas por Obama e a maneira pouco solidária com que tem tratado a sorte do povo de Porto Rico depois da destruição pelo furacão Maria são alguns exemplos da divisão existente na sociedade norte-americana.
Quanto ao comércio exterior, basta citar o conflito com a Organização Mundial de Comércio (OMC), severamente afetada pela recusa dos EUA em discutir a nomeação de juízes para o órgão de apelação do mecanismo de solução de controvérsias em Genebra, colocando em risco um dos pilares mais importantes da Instituição. Também a crise com o Canadá e o México na discussão do NAFTA, chamado por Trump de o pior acordo negociado pelos EUA, pode criar um clima de incerteza comercial com repercussão global e uma repercussão negativa política e econômica no México na ante-véspera da eleição presidencial que poderá beneficiar o candidato da oposição e de tendência anti-americana, Manuel Lopes Obrador. O governo de Washington apresentou cerca de 7 propostas de mudanças, inclusive uma que determina que o acordo seja renovado a cada cinco anos, introduzindo uma insegurança jurídica que os governos canadense e mexicano consideram muito difíceis de aceitar (“non starters”). A retirada dos EUA do acordo com a Asia (Transpacific Partnership (TPP) e a revisão do acordo comercial com a Coréia do Sul agregam mais um elemento de dúvida quanto a palavra de Washington nas negociações internacionais.
No capítulo da politica externa, Trump conseguiu a proeza de juntar ao mesmo tempo dois desafios nucleares, com o Irã e com a Coréia do Norte. A não certificação do acordo multilateral sobre o programa nuclear iraniano não retira os EUA do acordo, mas transfere ao Congresso o exame de novas sanções econômicas pelo que ele considera descumprimento do acordo. Isso só fez aumentar a divisão com a Rússia, a China e os países europeus consideram que o Irã está cumprindo os termos do acordo.  As manifestações contraditórias em relação aos programas nuclear e balístico de Pyongyang e as ameaças à China para que interrompa o comércio bilateral com Kim Jung Un. A saída da UNESCO, assim como as restrições ao Banco Mundial, em virtude de empréstimos para a China, e o esvaziamento do Acordo do clima de Paris isolaram ainda mais os EUA. A ameaça de intervenção militar na Venezuela alienou o apoio dos países latino-americanos. As marchas e contra-marchas em relação a Rússia e a China (considerada o maior inimigo dos EUA) introduzem mais um elemento de incerteza em termos geopolíticos.
As seguidas manifestações de Trump – verdadeiro reality show - com sinais contraditórios não estão sendo levados a sério e são entendidos e ignorados como expressões de auto-suficiência patológica. O comportamento do presidente norte-americano levou um grupo de 27 psiquiatras e psicanalistas a publicar o livro o Perigoso Caso de Donald Trump (The Dangerous Case of Donald Trump), de grande sucesso editorial nos EUA. 
Fora o fato de estar em jogo a credibilidade da palavra do governo norte-americano, sobram razões de justificada ansiedade no mundo.

Rubens Barbosa, presidente Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)