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segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

682) Um propósito, várias resoluções

(meu conceito de planejamento estratégico para 2007)

Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

Um dos conceitos modernos de eficiência no trabalho ou de administração por resultados é o de “planejamento estratégico”. A crer em alguns gurus da arte da administração, até os mais modestos empórios de secos e molhados da esquina estão adotando agora o tal de planejamento estratégico. Que seja! Também vou adotar o meu.
Consoante meu espírito racionalista crítico, mas modestamente consciente de meus limites e possibilidades, vou dividir estas primeiras reflexões do ano (que podem ser um substituto ao tal de planejamento estratégico) em duas partes distintas: um reposicionamento quanto ao sentido geral de minha ação intelectual, e uma pequena lista de objetivos que gostaria de cumprir no ano que começa hoje. A tomada de posição tem objetivos meramente “filosóficos” e se destina mais a reafirmar meu compromisso com a honestidade no trabalho intelectual do que em se apresentar como um tratado epistemológico sobre ciência e racionalidade. Já as resoluções podem ser vistas como cumprindo finalidades táticas, isto é, estabelecendo algumas metas que procurarei atingir ao longo do ano, ou pelo menos nos próximos seis meses.

O propósito
Meu propósito mais geral – independentemente de minhas obrigações profissionais ou acadêmicas nos compromissos oficiais hoje desempenhados – é o de realizar uma obra analítica e interpretativa, no campo das relações internacionais e da política externa do Brasil, que possa ser considerada como de qualidade, podendo até servir de referência nessas áreas. Trata-se de um propósito ambicioso, uma vez que minhas atividades principais, enquanto burocrata em tempo integral da administração pública direta (funcionário de carreira do serviço exterior brasileiro) e professor em regime de tempo parcial de um centro universitário privado de Brasília, não se ocupam diretamente dessa faceta intelectual que implica em pesquisas amplas e um esforço de redação cuidadosa que resulta normalmente em artigos de caráter científico e em livros de cunho didático. Mas, para atender a uma vertente que vem se constituindo em uma espécie de segunda natureza nos últimos anos, vou tentar dar um caráter mais sistemático a esse propósito geral.
Não se trata apenas de um enunciado vago de um segundo objetivo na vida – ainda que eu não saiba exatamente qual seja o meu primeiro objetivo de vida – mas de um compromisso com o trabalho sério, suscetível de guardar uma certa permanência na literatura desse campo de conhecimento especializado. Acredito que a responsabilidade primeira de um cientista social – que ao que parece eu pretendo ser – é o de fazer o seu trabalho da melhor forma possível, num terreno, o das relações humanas, inevitavelmente permeado por grandes doses de subjetivismo e altos componentes de impressionismo. Quero dizer que o pretendido cientista social deve encarar o seu trabalho com toda a seriedade que se espera de alguém trabalhando com os melhores métodos da ciência moderna: o alinhamento dos fatos, uma explicação tentativa para eles, daí derivando alguma generalização possível que possa conformar um padrão de comportamento, o que resulta numa exposição analítica desses fatos segundo alguma linha de racionalidade (sim, ainda que não acreditemos muito nisso, devemos presumir que os homens agem racionalmente, ainda que movidos por paixões e desejos que nem sempre são racionalmente explicáveis).
Acredito também que a segunda responsabilidade do cientista social é a da honestidade intelectual, o que implica na consideração de todos os elementos em jogo, não apenas aqueles que respondem às suas preferências políticas ou filosóficas. Considero este critério o mais relevante no trabalho científico, aliás o único relevante no campo das ciências humanas ou sociais, e é em torno dele que eu gostaria de desenvolver minha obra de leitor, de pensador, de sistematizador de argumentos e de expositor de fatos históricos. Não me preocupo tanto, ou talvez nada, com a teoria, pois não creio que ela seja indispensável no desenvolvimento desse tipo de trabalho. Claro, todos nós “partimos” de algum teoria, mesmo de forma inconsciente, mas isso não tem nada a ver com a “necessidade” de expor sua teoria previamente ao trabalho com os fatos. Prefiro deixar que os fatos falem por si, e se alguém quiser depois aplicar alguma teoria a eles, que o faça por sua própria conta e risco, mas eu não vou me preocupar em desenvolver nenhuma nova teoria para tentar encaixar, ou amoldar, os fatos dentro dessa nova camisa de força conceitual. (Parênteses: essa também é uma das razões pelas quais eu praticamente passo por cima dos capítulos teóricos nas muitas dissertações e teses para cuja avaliação eu sou convidado. Acho que os professores “torturam” os seus alunos, obrigando-os a encontrar o famoso “quadro teórico” da sua pesquisa, quando os pobres alunos mal dão conta do emaranhado de fatos brutos que devem processar. Mas isso é uma outra discussão que farei em outra oportunidade. Fecha parênteses.)
Retomando meu propósito mais geral, tentarei resumi-lo da seguinte maneira. Gostaria de produzir uma obra séria no campo das ciências sociais aplicadas às relações internacionais e à diplomacia brasileira, trabalhando os fatos históricos com a maior honestidade possível, tentando oferecer uma síntese razoável “do que efetivamente se passou”, enquadrando os fatos em seu devido contexto mais geral, seu embasamento econômico, suas limitações geopolíticas e levando em conta os famosos fatores “contingentes”, que resultam da ação dos homens (imprevisíveis, como sempre). Não tenho certeza de poder libertar-me de meus próprios “preconceitos”, ou seja, aquilo que nuestros hermanos hispânicos chamam de prejuicios, ou seja, verdades préconcebidas. Esses pré-juizos são os elementos de valor que toda pessoa carrega consigo, como resultado da sua experiência de vida, de suas leituras, de suas preferências momentâneas ou “estruturais”, e que influenciam poderosamente o seu trabalho analítico (e mesmo expositivo, dada a seleção de fatos que somos obrigados a fazer). Mas, posso pelo menos comprometer-me, publicamente, em ser o menos “preconceituoso” possível, guardando respeito aos fatos e levando em consideração argumentos já adiantados por outros cientistas sociais trabalhando no mesmo terreno.
No plano metodológico, porém, devo dizer que tendo fortemente a concordar com as posições e premissas de Karl Popper, quanto ao racionalismo crítico que ele recomendava no terreno da investigação e ao espírito de questionamento constante das “teorias” disponíveis. Não se trata sequer de aderir aos seus princíos da “refutabilidade” ou da “falsificabilidade”, uma vez que no campo das ciências sociais pouco há o que contestar em termos de provas ou testes. Há, sim, argumentos que podem ser questionáveis no plano de seu embasamento empírico, assim como existem afirmações que não se sustentam no plano de sua lógica intrínseca. Quero crer que os que incorrem nesses “pecados” intelectuais o fazem por inconsciência ou despreparo para o trabalho acadêmico de qualidade. Espero não incorrer nos mesmos pecados.
Este o meu propósito geral.

As resoluções
Quanto às resoluções, elas podem ser vistas como o “planejamento estratégico” para o ano de 2007, mas deixando de lado conceitos grandiosos, vamos considerá-las como uma mera “shopping list” de pretensões acadêmicas para o período que agora se inicia.
Disponho, em minha lista de “Working files” e na pasta dos “Books to work”, de dezenas de projetos de trabalho, de centenas de arquivos preliminares, de milhares de idéias, elementos e textos escritos que deveriam, normalmente, converter-se em trabalhos acabados algum dia. Num balanço preliminar da obra já realizada, posso contabilizar uma dúzia de livros, algumas dezenas de artigos publicados e outros tantos capítulos em obras coletivas. Todos esses materiais foram sendo acumulados por puro vício do ofício: assim como mantenho cadernos de notas desde meus tempos de leitor em bibliotecas universitárias, também mantenho arquivos eletrônicos desde o meu primeiro computador (um glorioso Macintosh Plus, daqueles sem hard drive interno e com pouca memória, cujo sistema operacional, processador de textos e arquivo produzido precisavam caber, todos eles, num único disquete de 720kb). Pois bem, o que fazer, este ano, com todos esses materiais?
Como não vou poder, obviamente, terminar todos os livros ou trabalhos que gostaria de fazer, por absoluta impossibilidade material, ou física, vou ter de selecionar algumas prioridades. Vejamos, portanto, uma lista razoável de objetivos limitados, a ser atendida nos próximos meses.
Gostaria, em primeiro lugar, de terminar a revisão de um longo artigo sobre o Brasil no contexto do sistema multilateral de comércio, que poderia constituir a base de um livro sobre esse tema, eventualmente em colaboração. Creio que se trata de um terreno no qual a insuficiência de informação histórica e de análise existem em detrimento da boa qualidade dos cursos de relações internacionais em funcionamento no Brasil. Seria a minha modesta contribuição para a melhoria da qualidade de debate nessa área pouco freqüentada pelos professores desses cursos.
Penso, em segundo lugar, levar adiante meu projeto de um “Dicionário brasileiro de relações internacionais”, ou seja, um dicionário nesse campo que se vincule à participação do Brasil no sistema internacional contemporâneo. Tenho muita coisa escrita, já, e se trata apenas de adquirir disciplina e ritmo para trabalhar de modo sistemático, regular e constante os inúmeros verbetes que devem constar de um instrumento desse gênero. Espero estabelecer essa rotina e cumpri-la religiosamente, se ouso dizer, ainda que eu seja meio anárquico, em meus métodos de trabalho.
Tenho, em terceiro lugar, de aproveitar minha estada no Brasil, que espero se estenda durante dois ou três anos mais, para fazer pesquisas em vista do segundo volume de minha história da diplomacia econômica no Brasil (e não apenas do Brasil). Ele viria na seqüência do primeiro volume, publicado em 2001 (segunda edição em 2005) sob o título de Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (Senac-Funag), cobrindo desta vez o período 1889-1945. Esquema e materiais estão organizados, mas ainda falta muita pesquisa para completar capítulos singulares, em especial em terrenos com pouca documentação consolidada disponível (patentes e investimentos, por exemplo).
Os principais desafios, ou obstáculos, a essa agenda “modesta” de trabalho, são meus próprios instintos dispersivos – o tempo comprometido com informação de atualidade, a redação de comentários sobre fatos e processos do momento – e as demandas externas que normalmente surgem para escrever um artigo aqui, outro acolá, colaborar com um determinado livro, prefaciar um outro, manter sites, blogs, sem falar na demanda “institucional” das aulas, orientações de monografias, dissertações e teses, além das reuniões de trabalho na faculdade, que também ocupam algumas noites e sábados. Sim, não esquecer as colaborações já habituais com alguns veículos acadêmicos, em termos de artigos e resenhas de livros em ritmo mensal (o que eu adoro fazer, de toda forma). Contando tudo isso, ainda me sobram os finais de noite – ou seja, a partir das 23hs – e as madrugadas e os fins de semana para trabalhar seriamente em meus próprios projetos, já que durante o dia eu supostamente estou engajado em atividades profissionais. Sim, devo contar ainda, sem falhar, com os encargos em família, as compras no supermercado e outras tarefas domésticas ou externas que sempre nos ocupam mais do que gostaríamos.
Bem, vou parar por aqui, uma vez que estas resoluções, e seu propósito maior, já estão ocupando um espaço maior ao pretendido. Estão colocados os princípios e os projetos. Resta saber se eu serei capaz de cumprí-los, minimamente que seja. Rendez-vous marcado em seis meses, para examinar o avanço das tarefas.


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1704: 1º janeiro 2007.

681) A Uniao Europeia chega as margens do Mar Negro

Foi um longo caminho desde Sebastopol (1856), mas a Europa alcança novamente as margens do Mar Negro, com direito a todas as confusões que ali se manifestam...

Une zone de tensions géostratégiques
LE MONDE 01.01.07

L'entrée dans l'Union européenne (UE) de la Roumanie et de la Bulgarie, le 1er janvier, jette un coup de projecteur sur la mer Noire, espace stratégique où se concentrent de nombreux enjeux de la relation entre l'Europe et la Russie.

Cette mer-là n'est pas très présente dans les consciences européennes. La dernière fois qu'elle a suscité des passions dans nos capitales remonte à la guerre de Crimée, lorsque Napoléon III et la reine Victoria lançaient leurs troupes à l'assaut de Sébastopol, en 1854 !

Pourtant, c'est bien dans cette zone que se posent aujourd'hui d'importantes questions : l'expansion des normes démocratiques, les futures routes des hydrocarbures, l'apaisement de divers conflits territoriaux, la stabilité du Sud-Est européen et du Caucase, les migrations clandestines, les trafics d'armes et de drogues...

Après la Méditerranée et la Baltique, la mer Noire devient la troisième mer de l'Europe, avec son lot de problèmes et d'opportunités. Pendant la guerre froide, elle n'était qu'une zone figée, partagée entre le bloc communiste - qui, de la Géorgie à la Bulgarie, détenait le plus long rivage - et, au sud, la Turquie, membre de l'Organisation du traité de l'Atlantique nord (OTAN) depuis 1951.

RECUL RUSSE

Les bouleversements entraînés par la chute du mur de Berlin, la disparition de l'URSS (1991), puis les "révolutions" en Géorgie (2003) et en Ukraine (2004), ont profondément changé la donne. Pour la Russie, parvenue de haute lutte sur cette "mer chaude" au XVIIIe siècle, du temps de Catherine la Grande, il s'agit d'un recul géopolitique important.

La portion contrôlée aujourd'hui par Moscou se limite à une bande étroite allant de la ville balnéaire de Sotchi, où le président Poutine dispose d'une résidence d'été, à la mer d'Azov, face à l'Ukraine. La flotte russe mouillant à Sébastopol a le droit d'y rester jusqu'en 2017. M. Poutine a exprimé le souhait que le bail soit prolongé : l'affaire n'est pas acquise.

Membres de l'OTAN, la Roumanie et la Bulgarie vont accueillir des bases militaires américaines. La Géorgie veut rejoindre l'Alliance atlantique. L'Ukraine a récemment gelé les projets qu'elle avait dans ce sens, mais elle est devenue un partenaire peu fiable pour Moscou - et un "pays pivot" pour l'Europe.

"CONFLITS GELÉS"

La mer Noire est un espace constellé de "conflits gelés" dans la résolution desquels l'UE joue, pour l'heure, un rôle marginal. Ils concernent des régions séparatistes soutenues par Moscou, qui y maintient des troupes. En Abkhazie, l'Organisation des Nations unies (ONU) a déployé, en 1994, une force de maintien de la paix, cas unique dans la zone de l'ancienne URSS. En Ossétie du Sud et en Transnistrie, l'Organisation pour la sécurité et la coopération en Europe (OSCE) tente depuis des années de jouer les médiateurs. L'UE a pris une initiative en déployant, fin 2005, une mission d'observation à la frontière entre Transnistrie et Ukraine, non sans protestations russes.

L'espace de la mer Noire est en réalité devenu une zone de confrontation entre deux conceptions opposées : l'une "euro-atlantique", défendue aux Etats-Unis par le lobbyiste Bruce Jackson, qui a ses entrées dans l'administration Bush ; l'autre prorusse ou "euro-asiatique", développée à Moscou par les partisans d'un pouvoir nationaliste usant du gaz comme moyen de pression.

Les Européens assistent, sans mettre beaucoup de poids dans la balance, à cet affrontement. La présidence allemande de l'UE a annoncé que la mer Noire serait l'une de ses priorités au cours des six prochains mois ainsi que les relations avec l'Asie centrale, source alternative d'énergie face à la Russie. Berlin veut une réflexion sur la "politique de voisinage" de l'Europe vers la mer Noire.

Depuis 1993, le projet européen Traceca vise à développer une nouvelle "route de la soie", dotée d'une dimension énergétique, reliant Asie centrale, Transcaucasie, mer Noire et Europe centrale. Ce chantier a encore peu de visibilité.

L'une des questions posées touche au projet de gazoduc intitulé Nabucco reliant l'énorme champ de Shah Deniz, en Azerbaïdjan, à la Hongrie, en passant par la Géorgie, la Turquie, la Bulgarie et la Roumanie, en évitant la Russie.

Un feu vert européen a été donné, en juin 2006, à sa construction. La société russe Gazprom aimerait neutraliser cette concurrence potentielle en obtenant que le gazoduc Blue Stream, reliant la Russie à la Turquie sous la mer Noire, soit à terme branché sur Nabucco. Le choix des Européens aura d'importantes répercussions. Le financement de Nabucco, de l'ordre de 4 milliards d'euros, dépend des compagnies pétrolières, et il n'est pas assuré à ce stade.

"LA GUERRE MOLLE"

La promotion de la vision "euro-atlantique" a débouché, ces dernières années, sur l'apparition de plusieurs organisations régionales, parrainées à des degrés divers par les Etats-Unis : le GUAM (Géorgie, Ukraine, Azerbaïdjan, Moldavie, en 1997), la Communauté de choix démocratique (2005), enfin le Forum de la mer Noire pour le partenariat et le dialogue, né, en juin 2006, sous l'égide du président roumain Traian Basescu.

Ce dernier se passionne pour les questions stratégiques touchant à la mer Noire, qu'il a eu l'occasion d'expliquer à George Bush dans le bureau ovale de la Maison Blanche, dès mars 2005, peu après son élection. La Russie, qui ne fait partie d'aucune de ces structures, a, en particulier, très mal pris la création du Forum, financé par des fondations américaines. Elle n'y a dépêché que son ambassadeur en poste à Bucarest, en lui interdisant de prendre part aux débats.

En accédant aux rivages de la mer Noire, l'Union se trouvera obligée de regarder de plus près les tensions qui parcourent cette zone, après y avoir laissé le plus souvent les Etats-Unis endosser le rôle du "protecteur" - ce qui a braqué une Russie convaincue de faire l'objet d'un vaste plan d'endiguement. Mais Moscou n'a pas, de son côté, respecté l'engagement pris, en 1999, d'évacuer toutes ses troupes de Géorgie et de Transnistrie.

Les Européens devront être plus présents, notamment s'agissant de la Géorgie, pays visé, depuis septembre, par un embargo russe qui semble avoir comme objectif de déstabiliser un pouvoir élu démocratiquement. Le cas de la Transnistrie, qui a tenu, en septembre, un référendum sur son "indépendance", prendra aussi plus d'acuité, au moment où la Moldavie cherche des soutiens européens.

Dans un article intitulé "The Soft War for Europe's East" ("La guerre molle pour l'Europe de l'Est"), Bruce Jackson a exposé, en juillet, la vision américaine d'une "grande mer Noire" où la "promotion de la démocratie" viendrait contrer les ambitions "revanchardes" de Moscou.

Dans cet espace, les objectifs et les valeurs occidentales et ceux de la Russie sont incompatibles, argue-t-il. C'est là, prédit-il avec emphase, que "pour la première fois, depuis cent cinquante ans (...) et le siège de Sébastopol, les relations entre la Russie et l'Europe vont se définir pour les premières décennies du XXIe siècle".

Vision exagérée ? Les Etats-Unis ont mis tout leur poids dans la balance, depuis le milieu des années 1990, pour faire de la mer Noire une zone importante d'évacuation des hydrocarbures d'Asie centrale, contournant la Russie. L'oléoduc BTC, qui relie l'Azerbaïdjan à la Turquie, ainsi que le gazoduc entre Bakou et Erzerum (Turquie) résultent de cette politique. Face aux enjeux qui se profilent, les Européens déploient peu de moyens et peinent à formuler une vision stratégique claire qui regarderait au-delà de l'élargissement qui vient d'avoir lieu.

Natalie Nougayrède
Article paru dans l'édition du 02.01.07.

680) A marcha louca da historia, por Arthur M. Schlesinger Jr.

Folly’s Antidote
Op-Ed Contributor by ARTHUR M. SCHLESINGER Jr.
The New York Times, January 1, 2007

MANY signs point to a growing historical consciousness among the American people. I trust that this is so. It is useful to remember that history is to the nation as memory is to the individual. As persons deprived of memory become disoriented and lost, not knowing where they have been and where they are going, so a nation denied a conception of the past will be disabled in dealing with its present and its future. “The longer you look back,” said Winston Churchill, “the farther you can look forward.”

But all historians are prisoners of their own experience. We bring to history the preconceptions of our personalities and of our age. We cannot seize on ultimate and absolute truths. So the historian is committed to a doomed enterprise — the quest for an unattainable objectivity.

Conceptions of the past are far from stable. They are perennially revised by the urgencies of the present. When new urgencies arise in our own times and lives, the historian’s spotlight shifts, probing at last into the darkness, throwing into sharp relief things that were always there but that earlier historians had carelessly excised from the collective memory. New voices ring out of the historical dark and demand to be heard.

One has only to note how in the last half-century the movements for women’s rights and civil rights have reformulated and renewed American history. Thus the present incessantly reinvents the past. In this sense, all history, as Benedetto Croce said, is contemporary history. It is these permutations of consciousness that make history so endlessly fascinating an intellectual adventure. “The one duty we owe to history,” said Oscar Wilde, “is to rewrite it.”

We are the world’s dominant military power, and I believe a consciousness of history is a moral necessity for a nation possessed of overweening power. History verifies John F. Kennedy’s proposition, stated in the first year of his thousand days: “We must face the fact that the United States is neither omnipotent or omniscient — that we are only 6 percent of the world’s population; that we cannot impose our will upon the other 94 percent of mankind; that we cannot right every wrong or reverse each adversity; and therefore there cannot be an American solution to every world problem.”

History is the best antidote to delusions of omnipotence and omniscience. Self-knowledge is the indispensable prelude to self-control, for the nation as well as for the individual, and history should forever remind us of the limits of our passing perspectives. It should strengthen us to resist the pressure to convert momentary impulses into moral absolutes. It should lead us to acknowledge our profound and chastening frailty as human beings — to a recognition of the fact, so often and so sadly displayed, that the future outwits all our certitudes and that the possibilities of the future are more various than the human intellect is designed to conceive.

Sometimes, when I am particularly depressed, I ascribe our behavior to stupidity — the stupidity of our leadership, the stupidity of our culture. Three decades ago, we suffered defeat in an unwinnable war against tribalism, the most fanatic of political emotions, fighting against a country about which we knew nothing and in which we had no vital interests. Vietnam was hopeless enough, but to repeat the same arrogant folly 30 years later in Iraq is unforgivable. The Swedish statesman Axel Oxenstierna famously said, “Behold, my son, with how little wisdom the world is governed.”

A nation informed by a vivid understanding of the ironies of history is, I believe, best equipped to manage the tragic temptations of military power. Let us not bully our way through life, but let a growing sensitivity to history temper and civilize our use of power. In the meantime, let a thousand historical flowers bloom. History is never a closed book or a final verdict. It is forever in the making. Let historians never forsake the quest for knowledge in the interests of an ideology, a religion, a race, a nation.

The great strength of history in a free society is its capacity for self-correction. This is the endless excitement of historical writing — the search to reconstruct what went before, a quest illuminated by those ever-changing prisms that continually place old questions in a new light.

History is a doomed enterprise that we happily pursue because of the thrill of the hunt, because exploring the past is such fun, because of the intellectual challenges involved, because a nation needs to know its own history. Or so we historians insist. Because in the end, a nation’s history must be both the guide and the domain not so much of its historians as its citizens.


Arthur M. Schlesinger Jr., who has won Pulitzer Prizes for history and biography, is the author, most recently, of “War and the American Presidency.”

domingo, 31 de dezembro de 2006

679) Retrato do diplomata, quando maduramente reflexivo



Um texto auto-centrado, mas justificado pela data e pelo balanço que pretende fazer...

Paulo Roberto de Almeida

Eu nasci na exata metade do século XX, em São Paulo, capital. Sou descendente, tanto por parte dos avós paternos como maternos, de imigrantes pobres, respectivamente de Portugal e da Itália, todos chegados ao Brasil no início do século, para trabalhar nas fazendas de café da então aristocrática elite cafeeira de São Paulo e do sul de Minas. Meu pai nasceu em Rio Claro, interior de São Paulo, no ano da revolução russa, antes da revolução bolchevique e depois da revolução de fevereiro, que derrubou o tzar e a monarquia dos Romanov. A primeira revolução ocorreu em fevereiro, a segunda revolução em outubro (ou em novembro, dependendo se o calendário é o juliano ou o gregoriano), e meu pai nasceu entre as duas. Minha mãe nasceu em Poços de Caldas, MG, alguns anos mais tarde. Ambos vieram pequenos para São Paulo, com meus avós – mas eles ainda não eram meus avós, obviamente –, que se mudaram para a capital paulista por motivos que desconheço, mas que deve ter algo a ver com o abandono das terríveis condições de trabalho na lavoura cafeeira, onde os imigrantes europeus eram tratados um pouco melhor, mas só um pouco, do que os escravos que eles vieram substituir a partir de 1888.
Não sei como meus pais se conheceram, mas sei, em todo caso, que eles não chegaram a terminar a escola primária, tendo ambos de começar a trabalhar desde muito cedo para ajudar nas despesas domésticas, nas casas dos meus avós, obviamente (que só mais tarde se tornaram meus avós). Eu também comecei a trabalhar muito cedo, para ajudar em casa, na casa dos meus pais, evidentemente, depois que eles se tornaram meus pais, na exata metade do século XX, como já disse. Até onde alcançam minhas lembranças de infância, eu sempre trabalhei, mas pelo menos terminei a escola primária, a secundária, a pós-graduação e tudo o mais que tive direito a fazer numa vida de estudos, que infelizmente começou muito tarde paraa meus padrôes atuais. Sim, só aprendi a ler na tardia idade dos sete anos, que foi quando eu finalmente entrei para a escola, como acontecia com o sistema de ensino público nos anos 1950. Antes disso freqüentei o parque infantil e, bem mais importante, a biblioteca pública infantil, pertos de minha casa, no bairro paulistano do Itaim-Bibi, naquela época chamado de “chácara Itaim” (um pequeno aglomerado de casas humildes, ruas de terra e muitos terrenos baldios, onde jogávamos “peladas” de futebol).
Comecei a freqüentar a biblioteca infantil “Anne Frank” ainda antes de aprender a ler, para jogos e sessões de cinema (Oscarito e Grande Otelo eram os meus heróis cinematográficos). Quando chegou a hora de começar o primário, no ano em que completei sete anos, ensaiei um movimento de recusa, no que fui questionado pela minha mãe sobre a razão de não querer ir para a escola. O motivo, bastante plausível, já demonstrava minha responsabilidade em face do estudo e da minha condição de “analfabeto” até então: “Não posso ir para a escola”, respondi, “porque eu não sei ler”. Motivo recusado, fui inscrito compulsoriamente no “Grupo Escolar Aristides de Castro”, onde passei os cinco anos do primeiro ciclo: quatro obrigatórios da escola primária e um quinto ano de “admissão” (ao ciclo médio, então chamado de ginasial, que fiz no Vocacional).
O mais importante, porém, foi que, assim que aprendi os rudimentos da leitura, passei a ler todos os livros da biblioteca infantil, não apenas durante tardes e tardes seguidas, mas também em casa, já que eu sempre retirava livros para continuar a ler pela noite. Não tínhamos televisão então, o que muito me ajudou em meus hábitos de leitura. Monteiro Lobato, Emilio Salgari, Jules Verne, Karl May, foram alguns dos autores que acompanharam minha infância e a primeira adolescência e a eles devo grande parte do meu enorme conhecimento do mundo, sua história e geografia, além das ciências e das artes. Acho que me tornei autodidata desde o primeiro livro, uma característica que conservei durante toda a vida. A partir de um certo momento deixei de prestar atenção ao que se dizia em aula, desde a metade do “colegial” pelo menos, e passei inclusive a não freqüentar as salas de aula: tudo o que sei, aprendi nos livros, em todo tipo de leitura, da extrema esquerda às suas antípodas, sem nenhum preconceito “religioso”.
Trabalhei desde muito cedo, como disse, primeiro recolhendo sobras de metal de fábrica para vendas ao “ferro velho”, a versão artesanal do moderno sistema de reciclagem. Depois fui pegador de bolas de tênis no Esporte Clube Pinheiros e empacotador no supermercado Peg-Pag. Meu primeiro emprego com registro em carteira deve ter sido aos 14 anos, como office-boy no Moinho Santista, no centro da cidade. Nessa época passei a freqüentar a biblioteca da Faculdade de Direito no Largo de São Francisco, muito mais interessante em termos de livros sérios do que a pequena “Anne Frank”. Comecei a ler Celso Furtado, Caio Prado Jr, os sociólogos paulistas e toda a literatura marxista, a começar por um resumo do Capital por J. Duret, numa tradução das Éditions Sociales. O golpe militar impulsionou minha politização precoce e, em pouco tempo, eu já estava nas ruas, protestando com outros jovens e adolescentes contra a ditadura militar, contra o capital estrangeiro e o imperialismo americano. O mundo era mais simples então: tínhamos duas alternativas político-econômicas, e quem não era revolucionário e socialista, como éramos nessa juventude de rebeldia contra os poderes constituídos, a dominação estrangeira e a situação de pobreza que caracterizava grande parte da população (minha família, inclusive), era apenas indiferente, pois poucos eram os que se proclamavam abertamente capitalistas ou liberais. Essa segunda opção nunca foi muito popular no Brasil, aliás até hoje.
Naturalmente impulsionados pelo romantismo guevarista, radicalizamos na oposição ao regime militar, recorrendo inclusive à luta armada, e nisso fomos fragorosamente derrotados, mais por nossos próprios equívocos políticos do que pela “repressão” do regime militar. Alguns desapareceram, outros foram “eliminados” – por diferentes vias – e muitos foram para o exílio, eu inclusive, ainda que por vias legais e conservando o passaporte. Primeiro, em 1971, passei pelo socialismo – na Tchecoslováquia pós-repressão ao “socialismo de face humana”, de 1968 – e constatei uma coisa da qual já suspeitava bem antes: o socialismo, em sua versão soviética, simplesmente não funcionava, era uma imensa mentira, uma sociedade condenada ao passado, na qual as misérias morais, humanas, eram ainda maiores do que as misérias materiais, a da escassez cotidiana, a da penúria institucionalizada em modo de produção. Enfim, uma verdadeira mentira, com perdão pelo paradoxo. Depois, me instalei no capitalismo – em Bruxelas, na Bélgica –, onde encontrei condições de estudar e de trabalhar. Continuei em meu autoditatismo radical, passando mais tempo na biblioteca do Instituto de Sociologia do que nas aulas do curso de graduação em Ciências Sociais (que eu tinha largado no segundo ano da USP, depois da cassação dos mestres).
Foram seis anos e meio de intensas leituras, entre a graduação, o mestrado – em economia internacional, na Universidade de Antuérpia – e o começo de um doutorado, ao início de 1977, interrompido pela minha volta ao Brasil. Daí ao ingresso na carreira diplomática foram poucos meses, de muita atividade e de muitos projetos. O regime ainda era autoritário, mas na sua fase declinante. Em todo caso, dei início a uma dupla carreira, a de servidor público federal e a de professor universitário, que conservo até hoje, com satisfações e decepções em ambas.
As lides diplomáticas e as universitárias me confirmaram – como ocorre em quase todas as atividades humanas – que coexistem excelências e mesquinharias em todas as trajetórias permeadas por burocracias relativamente auto-suficientes. Trabalhei, e continuo trabalhando, intensamente em ambas, delas retirando gratificações pessoais, profissionais e intelectuais. Também constatei que pequenos ciumes e atos de puro despeito ocorrem das formas inesperadas. Nunca escondi o que penso das coisas, na política e na economia, o que nem sempre é recomendado em burocracias de tipo feudal como podem ser as instituições nas quais trabalho. Continuei refletindo, escrevendo e publicando o que penso ser um reflexo honesto de minhas leituras e pesquisas em ambos ambientes de trabalho. Nem sempre o que escrevo é bem recebido em cada um desses meios. Atribuo isso mais à inveja, ou aos ciumes, do que à oposição ao que tenho a dizer. Afinal de contas, não creio escrever nada de muito extraordinário.
Se ouso agora fazer uma síntese do que sou e do que penso, neste limiar do ano de 2007, eis aqui o que eu poderia dizer. Sou intensamente racionalista, ou seja: não costumo refugiar-me em qualquer tipo de crença, mas procuro descobrir as raízes e as razões das coisas, pelas velhas regras do método científico, isto é, a busca de correlações causais que possam ultrapassar o impressionimo e o subjetivismo inerentes ao homem, a procura de explicações que se submetam ao teste da realidade, ao embasamento empírico, e a prática de um saudável ceticismo quanto a respostas tentativas em quaisquer campos do conhecimento humano. Duvidar é bom, buscar a verdade melhor ainda, mesmo que ela esteja distante, ou seja impossível no momento.
No plano dos valores, mantenho o otimismo de que a bondade não só é possível, mas de que ela é capaz de superar a maldade humana, e esta pode ser incrivelmente infinita. O mundo certamente não é o lugar ideal que gostaríamos que fosse, mas ele já melhorou muito em relação ao passado de mortandades e injustiças. A pobreza ainda é um fardo pesado para mais da metade da humanidade e todos os meus esforços intelectuais e práticos estão dirigidos a reduzir, um pouco que seja, essa fardo, a começar pelo meu país, pela nação brasileira. Minhas contribuições para que isso se faça se situam quase todas no plano da reflexão individual e das proposições em termos de políticas públicas, aqui num ambiente coletivo que ultrapassa o da diplomacia. Não sei se tenho sido eficiente nessa “missão” auto-atribuída, mas entendo que meus esforços didáticos e o meu desempenho enquanto produtor de textos especializados não sejam de todo inúteis.
Entendo que devemos procurar fazer o bem, em quaisquer circunstâncias. Nisso vai até algum grau de sacrifício pessoal, e talvez até familiar, para tentar distribuir o bem em torno de si. Espero poder fazê-lo ainda durante muito tempo, nas minhas formas habituais de atuação, onde estão minhas “vantagens comparativas”: na leitura, na reflexão crítica, na escrita, no ensino, na publicação de textos que possam contribuir para o aprendizado dos mais jovens.
Neste final de ano de 2006, quando faço um breve balanço de minhas atividades e creio poder programar algo do que farei em 2007 e nos anos seguintes, gostaria de resumir o sentido de minha ação da seguinte forma: ser intelectualmente honesto é um dever das pessoas que como eu trabalham sobretudo no plano das idéias e da escrita. Prestar contas do que se faz com o dinheiro público também é um dever, individual e coletivo, e nisso sou de uma radical transparência. No mais, creio que devemos procurar a felicidade e contribuir para a felicidade do maior número de pessoas. Eu me esforço para contribuir para que esse objetivo se cumpra na medida das minhas possibilidades, mas não tenho certeza de ser o mais eficiente possível, ou eficaz, o tempo todo. Gostaria de acreditar que, olhando para trás, agora e mais adiante, se possa dizer de mim, um dia: ele fez alguma diferença para diminuir o grau de sofrimento dos seus semelhantes, tanto quanto para aumentar o quantum de felicidade humana possível nas condições que nos são dadas pela história e pelas circunstâncias nas quais vivemos.

Por fim: por que intitulei este texto desta forma? Não sei. Talvez porque o ser diplomata é minha condição atual, minha situação presente, minhas circunstâncias de vida. O ser reflexivo já é uma característica pessoal, um dado de minha personalidade, naturalmente reservada e bastante introspectiva. Quanto ao “retrato”, trata-se de uma radiografia do momento, uma pequena foto do presente, que talvez não seja o melhor possível, daí o relativo pessimismo que possa transpirar destas linhas. Acredito que o Brasil, seu povo e sociedade (a começar pelos núcleos dirigentes), estejam atravessando uma fase não propriamente exitosa, caracterizada por baixo crescimento, por inúmeros problemas acumulados – alguns se agravando –, com perspectivas de “mais do mesmo” nos anos à frente. Talvez seja passageiro, ou talvez se prolongue mais do que o desejado, pois afinal de contas outras sociedades antes da nossa também decairam relativamente, algumas até entraram em “colapso”. O Brasil não será o primeiro exemplo conhecido de estagnação ou de declínio, relativo ou mesmo absoluto. Mas, tenho certeza de que reencontraremos o caminho do crescimento, da prosperidade, da afirmação dos bons valores humanos e sociais. Gostaria de poder contribuir para isso, tanto quanto minhas forças intelectuais e a minha disposição física o permitirem. Continuo otimista quanto à capacidade das sociedades se regenerarem, a partir dos esforços individuais de pessoas que têm algo a contribuir para o bem da humanidade. As pessoas valem pelo que elas são e pelo que elas possam fazer de bem para a felicidade do maior número.
Vale!

Brasília, 1703: 31 dezembro 2006.

sábado, 30 de dezembro de 2006

678) Nosso homem no Itamaraty

(elementos de informação sobre os “intelectuais” do Itamaraty, como subsídio a matéria jornalística; redigido em agosto de 1999.

Quem é exatamente e o que faz, hoje em dia, o diplomata brasileiro? Para começar, ele não mais será mais, majoritariamente, “o” diplomata, pois desde alguns anos um número cada vez maior de mulheres resolveu ingressar na “carrière”, assim como também a proporção dos jovens de boa família — vale dizer, os representantes refinados das antigas elites oligárquicas do passado — tende a equiparar-se à de jovens de classe média, como ocorre aliás com qualquer outra profissão “normal”. Reconhecidamente, o diplomata brasileiro do limiar do século XXI ostenta pouca semelhança com seu homólogo supostamente em “punhos de renda” do começo do século XX. A chamada “diplomacia ornamental e aristocrática” há muito tempo ficou para trás, soterrada pela mesma tendência à burocratização e à tecnocracia que caracterizam quase todos os serviços do Estado nas democracias modernas.
Os diplomatas, a bem da verdade, foram a primeira categoria do funcionalismo público a se submeterem a regras de recrutamento profissionalizado — desde 1939 pelo DASP e a partir de 1945 pelo Instituto Rio Branco —, superando a seleção algo arbitrária de outros estratos funcionais ou a que vigorava entre os próprios diplomatas da época do barão do Rio Branco, no começo do século. Os exames são comprovadamente rigorosos — a “hecatombe” entre o número de inscritos, em torno de 2700 a cada ano, e o dos sobreviventes, aproximadamente 25 apenas, o prova — e o antigo viés elitista marcado pela exigência do francês foi eliminado há cerca de dois anos. Mas não se considere por aí que os novos recrutados tenham se equiparado à média do funcionalismo brasileiro, cujos padrões são altamente desiguais, dependendo da categoria. O diplomata brasileiro continua a ser, antes de mais nada, o mais “intelectualizado” representante da burocracia pública, uma espécie de “ilha de excelência” no mar nem sempre muito azul da competência estatal.
Os exemplos dessa “intelligentsia” diplomática abundam, bastando citar, por exemplo, o falecido crítico literário e polemista político José Guilherme Merquior, o filósofo e ex-ministro da Cultura — hoje embaixador em Praga — Sérgio Paulo Rouanet, o saboroso articulista (e ex-ministro da Fazenda) Rubens Ricupero, atual secretário-geral da UNCTAD em Genebra, o fecundo historiador Evaldo Cabral de Melo, especializado na história regional do Nordeste seiscentista, assim como muitos outros da jovem geração. O atual porta-voz da Presidência da República, Georges Lamaziére (filho de pai francês e mãe brasileira), promete continuar exercendo sua veia de romancista, com mais um “roman à clef” apimentado por algum “crime de Estado”. O ex-cônsul em Lisboa João Almino deixou a sociologia e a filosofia política de seus primeiros livros pela via também atraente da literatura. O próximo Ministro-Conselheiro da Embaixada do Brasil em Washington, Paulo Roberto de Almeida, sociólogo como o Presidente, já publicou sete livros de relações internacionais e dá inicio agora a uma trilogia sobre a diplomacia econômica, desde a abertura dos portos em 1808 até o ano 2000.

Os intelectuais da Casa:
Intelectual “fundador”: Barão do Rio Branco, autor das Efemérides brasileiras e de dezenas de estudos de história do Brasil, delimitação de fronteiras etc.
Poetas: Raul Bopp, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Francisco Alvim
Historiadores: Francisco Aldolfo Varnhagen (anterior ao Barão), Manuel Oliveira Lima, Alvaro Teixeira Soares, Heitor Lyra, Sergio Corrêa da Costa, Evaldo Cabral de Melo
Juristas: João Augusto Araújo Castro, João Hermes Pereira de Araujo, Mello, Rubens Ferreira de Melo, José Sette Câmara, Geraldo Eulálio Nascimento e Silva, José Augusto Lindgren Alves, Guido Fernando Silva Soares,
Economistas: Dionisio Dias Carneiro, Paulo Nogueira Batista, Raphael Valentino Sobrinho, Roberto Campos, Sérgio Abreu e Lima Florêncio, Samuel Pinheiro Guimarães, Jório Dauster,
Literatos: Guimarães Rosa, André Amado, João Almino, Georges Lamazière
Filósofos, críticos literários: José Guilherme Merquior, Heloísa Vilhena de Araújo, Sérgio Paulo Rouanet
Articulistas: Antonio Amaral Sampaio, José Oswaldo de Meira Penna, Rubens Ricupero, Rubens Antonio Barbosa
Cientistas políticos e sociólogos das relações internacionais: Celso Amorim, Amaury Porto de Oliveira, Ronaldo Sardenberg, Gelson Fonseca Jr., Paulo Roberto de Almeida.

Revistas de relações internacionais:
(onde escrevem os diplomatas)
Revista Brasileira de Política Internacional: Rio de Janeiro, quadrimestral, depois semestral (1958-1992); Brasília (1993) revista semestral editada pelo Instituto Brasileiro de Relações Internacionais.

Contexto Internacional: Rio de Janeiro (1985), revista semestral editada pelo Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ.

Política Externa: São Paulo (1992), revista trimestral editada pelo Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e pela Editora Paz e Terra.

Originais: 704; 18.08.99

677) Profissionalizacao em relacoes internacionais: exigencias e possibilidades

Profissionalização em relações internacionais: exigências e possibilidades

Paulo Roberto de Almeida
Trecho retirado das “Leituras complementares”, do capítulo 11:
“A diplomacia econômica brasileira no século XX: grandes linhas evolutivas”
do livro do autor: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), pp. 244-248

(…)
O estudo e a profissionalização em relações internacionais no Brasil têm avançado muito no período recente, em grande medida em função dos processos de globalização e de regionalização – tanto via Mercosul, como mediante as discussões em torno da ALCA – experimentados pelo país de forma mais intensa desde o início dos anos 1990. Pretendo abordar rapidamente alguns aspectos desta questão, utilizando-me do recurso a algumas perguntas que muitos estudantes nessa área também devem se fazer a si mesmos.

1) Quem é o profissional de relações internacionais no Brasil?
Trata-se não apenas do graduado em relações internacionais, uma vez que são ainda relativamente poucos os egressos dos parcos cursos existentes nesse nível no Brasil, muito embora a oferta tenha crescido exponencialmente nos últimos anos, em especial no setor universitário privado e em faculdades isoladas. Esse profissional, típico destes tempos de “globalização”, é mais suscetível de ter cursado uma vertente mais tradicional de estudos — ciências sociais, direito, economia e áreas afins —, dirigindo-se em seguida aos, estes sim inúmeros, cursos de pós-graduação ou mais geralmente de especialização (pós-graduação lato sensu, mestrado profissionalizante) que multiplicaram-se no Brasil no período recente. Não há uma identificação formal desse profissional, uma vez que não há, nem se afigura provável haver no futuro previsível, uma regulamentação dessa carreira (já seria uma profissão?), a exemplo de outras tantas existentes no cenário trabalhista brasileiro. Considero particularmente desnecessária e mesmo indesejada tal regulação profissional, uma vez que seria uma maneira de manter a adequada flexibilidade do mercado laboral e propiciar uma demanda adaptada a um maior espectro de capacidades intelectuais e acadêmicas.

2) Como se faz a formação do profissional em relações internacionais?
Em função da já citada “precocidade” da profissão, ela é, compreensivelmente, a mais variada possível e não há, propriamente, homogeneidade didática nos cursos oferecidos, sendo portanto “normal” a qualidade muito diferenciada dos egressos desses cursos. Os resultados também variam em função da orientação e do conteúdo substantivo dos cursos disponíveis, cabendo notar uma orientação mais tradicionalmente acadêmica nas faculdades públicas e preocupações mais pragmáticas nas particulares. Com efeito, uma observação perfunctória revela uma maior ênfase em aspectos conceituais e teóricos nos cursos mantidos pelas instituições tradicionais (universidades públicas e católicas) e um cuidado bem mais acentuado com o lado prático da profissão naqueles oferecidos pelas privadas (comércio exterior e administração de negócios internacionais, por exemplo).
Essa dicotomia aparente, ainda largamente empírica nesta fase de sedimentação dos cursos especializados, não apenas é saudável do ponto de vista disciplinar, como desejável do ponto de vista das necessidades do “mercado”, mas ela deveria ser bem mais evidente na formulação e apresentação ao público interessado nesses cursos. A evolução institucional conduzirá provavelmente a um núcleo comum de requisitos disciplinares básicos, mas a diversidade programática e a “divisão do trabalho” entre “especializações mercadológicas” devem continuar manifestando-se, de maneira a assegurar a necessária flexibilidade na formação dos muitos profissionais que devem continuar a sair dessas instituições.

3) Para que serve um profissional de relações internacionais?
Ele pode ocupar-se de uma uma série crescente de atividades públicas e privadas, todas elas situadas num “nicho” cada vez mais amplo da vida da Nação: a interface entre o contexto interno e o cenário externo, seja no plano dos negócios, seja no âmbito da administração pública, seja ainda nas lides acadêmicas. Essa ponte entre o lado doméstico e as vertentes regional e internacional exige um profissional que saiba não apenas uma ou várias línguas estrangeiras, mas também comércio exterior, direito e economia internacionais e o próprio funcionamento das muitas organizações multilaterais e regionais de integração e de cooperação que permeiam a vida contemporânea das nações.
Esse profissional é antes de mais nada um “técnico especializado” a serviço de uma larga burocracia hierarquizada, se trabalhar numa empresa privada ou na administração pública, ou será uma espécie de “livre atirador” da globalização, se estiver lotado numa instituição universitária, onde a liberdade de escolha temática e a maior latitude na utilização do tempo são proverbiais. Em qualquer desses casos e mesmo nas especializações menos bem delimitadas, esse profissional serve, antes de mais nada, para processar informações, ou seja, para digerir massas de insumos “externos” e produzir volumes de “soluções” possíveis aos problemas que são colocadas às suas instituições respectivas de afiliação laboral. A qualidade do “produto final” será tanto mais relevante quanto mais pertinente ao objeto de trabalho e ao desafio colocado à instituição a que pertence esse profissional.

4) Quais são os setores preferenciais de atividades desse profissional?
As possibilidades são praticamente infinitas com a intensificação do processo de globalização, indo desde uma empresa de turismo a um clube de futebol. Podemos, contudo, destacar três grandes áreas ou setores de atuação para os especialistas em relações internacionais: (1) governo, ou setor público de modo geral, no qual se destaca em primeiro lugar a diplomacia, cujos requisitos de ingresso são (a)normalmente elevados (ver o site do Itamaraty: www.mre.gov.br/irbr), mas todos os demais ministérios (com destaque para a nova profissão de “analista de comércio exterior”, do atual MDIC) e agências públicas, bem como os governos estaduais e municipais vêm fazendo crescente apelo a tais profissionais em suas respectivas “assessorias internacionais”; (2) academia, onde as possibilidades efetivas são reconhecidamente mais limitadas, uma vez que as vagas no corpo docente não se renovam todos os dias e tendo em vista o fato de que nem todos os egressandos possuem qualidades ou vocação para a pesquisa e o ensino; (3) setor privado, no qual as chances de trabalho se multiplicam todos os dias, levando-se em conta a necessidade crescente de interagir com o cenário externo.
Nesta última área, as exigências de qualificação são bem mais “prosaicas”, mas ao mesmo tempo mais rigorosas. Uma empresa privada, normalmente, não necessita de longos textos sobre as virtudes e méritos respectivos do neorealismo ou do institucionalismo na política mundial ou sobre como funciona o Conselho de Segurança na ONU, mas, sim, precisa conhecer muito bem as regras do GATT, o perfil aduaneiro da Comunidade Andina e os acordos já feitos com o Mercosul, as obrigações contraídas internacionalmente pelo Brasil em matéria de proteção ambiental ou a evolução da padronização de regulamentos técnicos e da fixação de normas industriais “voluntárias”. Os desafios para as instituições de ensino tornam-se, portanto, muito grandes, uma vez que os professores deverão passar a conhecer não apenas Morgenthau ou Kehoane, mas também, e principalmente, a OMC, a ISO, a UIT e todas as demais organizações multilaterais e suas múltiplas convenções internacionais, sem mencionar as características técnicas precisas do processo de integração regional no Mercosul e suas dezenas de decisões e resoluções já adotadas desde 1991.

5) Que tipo de trabalho desempenha esse profissional?
As tarefas específicas dependem obviamente do entorno e do contexto laborais, mas em todas as áreas a atividade é geralmetne dominada pelo processamento da informação. Não só o diplomata, mas também o “middle manager” corporativo e o “técnico” de uma empresa globalizada têm de processar informações (inputs) que chegam todos os dias, de maneira a transformar essa “matéria bruta” externa em vantagens adaptativas para suas respectivas instituições que “competem” no ambiente internacional (seja por um produto ou serviço, seja por uma determinada disposição ou decisão em organização internacional). O diplomata, ademais, representa seu país no exterior (em embaixadas e missões) e negocia em caráter permanente ou de forma mais irregular acordos bilaterais e convenções multilaterais. Os assessores internacionais alertam para a interface e as limitações externas em suas esferas respectivas de atuação, instituições públicas ou privadas.
Todos eles, diplomatas, empresários, assessores participam, cada um a seu modo ou com distintos graus de independência (com subsídios ou mesmo determinações) do processo decisório em suas instituições de afiliação, contribuindo assim para o sucesso relativo do produto ou serviço. Sublinhei o termo independência uma vez que o diplomata obedece ao seu chanceler e este, em última instância, a um mandatário eleito, ao passo que o funcionário corporativo deve prestar contas a seu gerente imediato e este ao Conselho de Administração ou pelo menos ao CEO da empresa. O acadêmico é bem mais independente e desinvolto em suas atividades, sendo sua principal função — para o que ele é pago — a de transmitir conhecimentos ou a de realizar uma pesquisa, mas deve-se reconhecer que ele participa bem menos de processos decisórios, menos relevantes nas instituições de ensino. Ele o fará, eventualmente, e de forma indireta, se participar como consultor de um determinado projeto contratado externamente, mas para isso precisa apresentar qualificação numa determinada área especializada.
À exceção daquelas profissões regulamentadas e reservadas a um círculo profissional de especialistas registrados — advogados ou mesmo aquelas áreas indevidamente fechadas, como a de jornalista, por exemplo —, a maior parte das demais atividades que podem ser desempenhadas por um formando em ciências sociais, economia, história, comunicações ou ainda em áreas “técnicas” como operador cambial ou no mercado de futuros também podem ser ocupadas por um profissional em relações internacionais, sobretudo se ele combinar essa “especialização” a uma graduação nas vertentes mais tradicionais dos cursos universitários.

6) Quais os requisitos que se espera de um profissional de relações internacionais?
Uma trading, por exemplo, ou seja, uma empresa de comércio exterior não se dispõe a contratar um profissional apenas em virtude de um brilhante currículo acadêmico, mesmo se ele for egresso de uma conceituada faculdade pública. Ela é bem mais propensa a valorizar o conhecimento prático da nomenclatura aduaneira, da regulamentação de comércio exterior, das normas técnicas em vigor nos mercados estrangeiros. Muito embora uma boa cultura geral possa ser, igualmente, um surplus na avaliação do currículo do candidato, a experiência em matéria de regulações e normas aplicadas ao comércio internacional se afigura indispensável, assim como conhecimentos elementares de economia e de estatística. Na outra ponta, uma boa cultura humanista contribui em muito para uma boa performance do candidato nos concursos do Instituo Rio Branco, o que não dispensa contudo um contato íntimo com a atualidade mais imediata sobre as relações internacionais e a política externa do Brasil, que se adquire com a leitura diária dos principais jornais e periódicos de circulação nacional e de algumas revistas especializadas em política internacional (ver, por exemplo, a Revista Brasileira de Política Internacional, disponível em www.ibri-rbpi.org.br).
Em outros termos, as exigências feitas a um profissional de relações internacionais são tão variadas quanto são as possibilidades diversificadas de emprego hoje existentes num Brasil definitivamente inserido nos circuitos da globalização produtiva e financeira. O campo oferece, sem dúvida alguma, oportunidades crescentes aos egressandos dos cursos de graduação e de especialização, mas parece inevitável que um processo de “diluição” das e de “divisão do trabalho” entre as diferentes instituições brasileiras dedicadas à formação e à complementação educacionais desses profissionais deverá necessariamente ocorrer nos próximos anos, como forma de adequar perfis pedagógicos aos requisitos de mercado. O “profissional da globalização” é um ser multifacético, ao mesmo tempo um generalista e um perito em aspectos específicos da crescente interdependência mundial. Longa vida ao profissional em relações internacionais.

© Paulo Roberto de Almeida, 2001
Fonte:
Paulo Roberto de Almeida: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), pp. 244-248

676) Prefacio a um livro de Relacoes Internacionais

Um bem-vindo crescimento na oferta de relações internacionais

Apresentação ao livro Política Internacional, Política Externa e Relações Internacionais
Organizador: Leonardo Arquimimo de Carvalho
(Curitiba: Editora Juruá, 2003)

Que os processos contraditórios e complementares da globalização econômica e da regionalização comercial sejam os elementos característicos da ordem internacional contemporânea pouca gente ainda duvida, sobretudo nos meios universitários, ainda que as atitudes adotadas a respeito de cada um desses fenômenos sejam tão variadas quanto as ideologias políticas ou as crenças religiosas, indo da adesão inquestionável (ou mesmo a aceitação passiva) à avaliação crítica — mais própria dos economistas — e à recusa peremptória, como observado nas ruidosas manifestações contra o chamado “consenso de Washington” e as organizações econômicas multilaterais, a começar pelo FMI. Aspectos menos positivos da globalização são revelados pelos movimentos terroristas, pelos fluxos ilegais de toda sorte — do narcotráfico, à corrupção nos contratos internacionais e à lavagem de dinheiro ilegalmente obtido — ou ainda pelas dificuldades em conciliar os interesses nacionais e os imperativos da administração racional de recursos globais da humanidade, como nos casos da destruição ambiental dentro e fora das fronteiras dos estados, da poluição dos rios, florestas e atmosfera, assim como da regulação do uso de espaços comuns, como ocorre no caso dos mares internacionais.
O Brasil participa plenamente de todos esses fenômenos, processos, instrumentos e movimentos de nossa época, tanto pela sua crescente inserção econômica internacional, como pela vertente sub-regional do Mercosul e pelos esquemas hemisféricos de integração e de liberalização econômica (como exemplificado nas negociações da Alca), sem mencionar o lado mais vasto do sistema multilateral de comércio, hoje regido pela OMC. Ele é fundador e participante ativo de praticamente todos os organismos econômicos e políticos do sistema onusiano, discutiu intensamente a adoção dos principais tratados internacionais regulando espaços comuns — direito do mar, por exemplo —, é parte, ainda que não protagônica, dos instrumentos que regulam o desarmamento e o controle de armas de destruição em massa e sofre, infelizmente, o impacto dos fluxos de capitais voláteis que estiveram na origem do mais recente ciclo de crises financeiras mundiais.
Este livro trata, com saudável diversidade analítica e ampla perspectiva quanto aos temas e métodos, desses fenômenos e processos que passaram a integrar o cotidiano da maior parte dos brasileiros, como uma rápida consulta ao seu sumário poderá revelar. Nele comparecem os problemas da ordem internacional, da ONU, do terrorismo, dos direitos humanos, do direito do mar, da política externa brasileira e da de alguns vizinhos regionais, da globalização e da regionalização, com as questões associadas do Mercosul e da Alca, assim como do papel do capital e do trabalho no contexto da ordem mundial globalizada. Os autores convidados são tanto acadêmicos consagrados nas lides docentes, “escreventes” e investigativas desse campo relativamente novo dos cursos de graduação oferecidos nas universidades brasileiras, como jovens representantes de um terreno de estudos que vem crescendo exponencialmente nos últimos anos.
Com efeito, uma pesquisa perfunctória nas listas de cursos disponíveis nas instituições públicas e privadas nacionais confirmaria essa nova “economia da oferta” no campo das relações internacionais e disciplinas afins. As universidades brasileiras, tanto as públicas como as privadas, mas crescentemente estas últimas, passaram a desenvolver ou ampliar atividades e iniciativas de relações internacionais, desde o estabelecimento de acordos de cooperação com parceiros do exterior, até a criação, em bases relativamente uniformes, de cursos de graduação ou de pós-graduação nessa área, haja vista a enorme demanda despertada, justamente, pelos processos mencionados.
Essa tendência encontra, por sua vez, confirmação no plano editorial, onde as empresas privadas ou essas mesmas universidades, dotadas em grande parte de editoras próprias – já que o avanço da tecnologia e dos sistemas informáticos de editoração eletrônica barateou a montagem de “centrais de produção de livros” –, começaram a criar coleções de livros especializados em temas internacionais, o que representa um significativo avanço para o reforço das bibliografias e materiais didáticos que os professores desses cursos utilizarão em suas aulas. A “economia da oferta” encontra assim a sua própria demanda, numa saudável reedição da “lei de Say” aplicada aos nossos propósitos bibliográficos e universitários.
A bem da verdade, foi Keynes quem fabricou uma versão truncada dessa famosa “lei” com que o economista francês Jean-Baptiste Say intentou fundar, no início do século XIX, sua teoria do valor-utilidade — contra a opinião de Adam Smith e de David Ricardo, que se baseavam na teoria do valor-trabalho, depois retomada por Marx —, afirmando que “a oferta cria sua própria demanda”, quando Say na verdade pretendia dizer que é a utilidade que cria a demanda específica para um determinado produto. Podemos descontar esse pecado venial de Keynes — mais interessado, até por razões políticas, em insistir na demanda agregada e no papel do Estado — e ficar com as geniais intuições de Say sobre o papel dos empresários no sistema econômico, dispostos, segundo ele, a arriscar o seu dinheiro em setores nos quais as ofertas são relativamente raras e onde a taxa de retorno é portanto maior. Segundo Say, a oferta é decisiva e é ela que permite o enriquecimento dos indivíduos.
O presente livro constitui, justamente, um claro exemplo desse enriquecimento, uma vez que ele vem, não apenas, incrementar a qualidade da oferta bibliográfica nesse terreno, como também contribuir para os progressos da discussão acadêmica de bom nível em torno de velhos e novos problemas da inserção externa do Brasil. Constitui, aliás, para mim, especial motivo de satisfação o fato de estar apresentando uma coleção de ensaios de relações internacionais colocada sob o signo de alguns dos temas que têm freqüentado meus últimos livros nessa área: globalização e regionalização, Mercosul e Alca, política externa brasileira, em especial em sua vertente econômica. Ele me parece, pois, ter alcançado êxito no empreendimento, a partir de lentes analíticas tão múltiplas e da já apontada diversidade de perspectivas, como corresponderia, aliás, a um país tão diverso e complexo como o Brasil. Seus autores-colaboradores podem ser considerados como verdadeiros “empresários” da “indústria de relações internacionais” no Brasil, uma das mais prósperas nos últimos tempos de inserção necessária na globalização.
Satisfeita sua demanda com esta nova oferta em relações internacionais, cabe agora ao “consumidor” saborear o produto, tendo eu a certeza de que ele sairá, deste ato deliberado de “consumo conspícuo” — para retomar o famoso conceito do economista genial que era Thorsten Veblen —, muito mais enriquecido do que quando nele inicialmente se engajou. Bom apetite a todos!

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)
Washington, março de 2003

Sumário

Mensagem do Organizador
Leonardo Arquimimo de Carvalho
Apresentação
Paulo Roberto de Almeida

I – Política Internacional, Política Externa e Relações Internacionais
1. O sistema mundial e as Relações Internacionais na passagem do século
Paulo Vizentini
2. A Organização das Nações Unidas e a paz possível
Shiguenoli Miyamoto, Patrícia Nasser de Carvalho
3. Unipolaridade: terrorismo e vulnerabilidade latino-americana
Eduardo Viola, Hector Ricardo Leis
4. Limites à política externa brasileira: perspectivas para o governo Lula
Leonardo Arquimimo de Carvalho
5. A Diplomacia Venezuelana Frente aos Estados Unidos no Período Chavez
Rafael Duarte Villa

II – Política Internacional, Política Externa, Globalização e Direito
6. Globalização e regionalização: tendências contemporâneas mundiais
Sonia de Camargo
7. Política Externa, Política e Direito Internacional: a formação de um regime para o uso dos oceanos
Felipe Kern Moreira
8. Direitos Humanos e Globalização: breve leitura hermenêutica
Ivone F. Morcilo Lixa
9. Ética na relação entre capital e trabalho no contexto da globalização
Katie Arguello

III - Política Internacional, Política Externa e Integração Regional
10. Regionalização e Globalização: fenômenos simultâneos
Andrea Sabbaga de Melo
11. Constrangimentos brasileiros frente à ALCA
Tullo Vigevani
12. ALCA: o ‘Cavalo de Tróia’ da integração hemisférica
Francisco Quintanilha VerasNeto

675) Primeiro Emprego: um caso de diplomata

Primeiro Emprego – Depoimento Pessoal e Reflexões

Paulo Roberto de Almeida
Respostas a perguntas colocadas pela Editora Abril em 2003 (para elaboração do Guia do Primeiro Emprego)

1) Qual foi o seu primeiro emprego na vida? E na área (se não tiver começado nessa área)? Quantos anos tinha nas ocasiões citadas?
Comecei a trabalhar muito cedo na vida, em torno de 12 anos, em trabalhos informais de adolescente (clube de tenis e supermercado), nos quais não havia registro em carteira ou pagamento regular de salário. Entre os 16 e 20 anos, fui auxiliar de escritório em duas grandes empresas (brasileira e multinacional), ao mesmo tempo em que passei a estudar (segundo ciclo do secundário) pela noite. Após uma longa interrupção para estudos universitários de graduação e mestrado, entre 1971 e 1976 (que realizei no exterior, combinado ao exercício não regular de atividades remuneradas), retornei ao Brasil em 1977, passando a desempenhar-me como professor em faculdades de São Paulo.
Meu trabalho como servidor público federal, na carreira de diplomata, teve início em dezembro de 1977, já com 28 anos. Desde essa época (um quarto de século já), servi no exterior em diversas missões diplomáticas e no Brasil (Ministério das Relações Exteriores, em Brasília), geralmente na área econômica. Mais recentemente fui chefe da Divisão de Política Financeira e de Desenvolvimento do Itamaraty, de 1996 a 1999, e desde outubro daquele ano sou Ministro Conselheiro na Embaixada em Washington, o mais importante dos postos externos do Ministério das Relações Exteriores.

2) Como era seu relacionamento com o chefe (ou o superior)?
Tive vários chefes ao longo de uma carreira profissional que teve início muito jovem na iniciativa privada e depois se prolongou, no essencial, no governo. Sempre gozei da confiança de meus chefes, pela dedicação demonstrada no trabalho e pela boa disposição em cumprir sempre um pouco mais do que seria normalmente esperado. Com um desses chefes, trabalhei em diversas ocasiões na carreira diplomática, o atual representante diplomático do Brasil em Washington, Embaixador Rubens Antônio Barbosa. Com ele trabalhei ao ingressar na carreira diplomática e três vezes mais, sempre a seu convite e na base da confiança pessoal: desde 1977, portanto, venho desfrutando da confiança de um dos diplomatas mais distinguidos do serviços exterior brasileiro.

3) Analisando o passado, existe algum erro ou deslize - engraçado ou até constrangedor - que acredita ter cometido por conta da idade, da falta de experiência?
Sim, logo ao início da carreira diplomática, por ter ingressado por concurso direto e não mediante curso do Instituto Rio Branco, como costuma ser a norma, tinha pouca experiência com linguagem diplomática e procedimentos tícpicos da carreira. Meu primeiro telegrama escrito destoava totalmente do estilo habital empregado no serviço exterior, algo como se um “paisano” fosse chamado a exercer o comando de alguma tropa militar. Isso revela que uma boa preparação, com o conhecimento adequado de normas e procedimentos aplicados em qualquer profissão ou atividade, é absolutamente essencial para um bom desempenho profissional. A boa disciplina no exercício das funções também constitui requisito essencial quando se trabalha numa grande burocracia, pois a boa organização no trabalho depende de um certo número de regras de convivência.

4) Que lições tirou do primeiro emprego?
Nunca se deve chegar num primeiro emprego como se não se necessitasse de treinamento ou aperfeiçoamento técnico e profissional. Atitudes do tipo “eu sei fazer”, “eu sei tudo”, “deixa comigo”, geralmente conduzem a desastres, ou pelo menos a situações de constrangimento funcional. Um pouco de humidade e uma boa disposição para aprender e, antes de tudo, para perguntar são essenciais para um bom desempenho nas etapas iniciais da carreira.
Como regra geral, e não apenas no primeiro emprego, tenho por norma que o bom aprendizado se resume geralmente a duas fontes de conhecimento e de aprendizado: bons livros e convivência com gente mais esperta e experiente. Geralmente se aprende mais na leitura e no convívio com gente capacitada e com experiência do que nos estudos formais de escola, onde se perde tempo com matérias que pouco servirão na vida. Não estou recusando a ncessidade do diploma, ou da disciplina e sistemática que são próprios do ensino convencional, mas todos podem constatar a desadequação dos curriculos escolares – necessariamente tradicionais e defasados – em relação a aspectos práticos que serão úteis no desempenho profissional.
Repito: se aprende muito nos livros e no contato com gente mais esperta, o que de certa forma confirma uma velha constatação do senso comum: o verdadeiro aprendizado é auto-didata e a escola pode ensinar alguma coisa, mas educação mesmo é um processo necessariamente pessoal e derivado do esforço individual.

5) Para alguém que está procurando emprego na área, quais cuidados você recomenda para o candidato à vaga se sair bem (cuidados com aparência e roupas, comportamento social, somente preparo intelectual, maturidade, etc)?
A carreira diplomática é obviamente única nos seus requisitos de entrada, não apenas em termos de uma grande bagagem intelectual acumulada ao longo de anos de estudo e preparação dedicada, mas também no sentido em que o diplomata deve exibir algumas qualidades de convivência e de interação social que serão importantes no desempenho posterior. Por isso os exames de ingresso na carreira envolvem não apenas disciplinas tradicionais, mas também entrevistas diretas com banca examinadora que julga as aptidões do candidato para aquele tipo de exercício profissional (a maturidade entra em linha de conta nesse contexto, assim como o comportamento social). O cuidado com sua própria aparência (modo de vestir, portanto) também é avaliado.

6) Para finalizar, preciso de mais três informações: idade, local de nascimento e faculdade(s) que cursou.
Nasci em 19 de novembro de 1949, na cidade de São Paulo: estou portanto com 53 anos atualmente, praticamente a metade vividos no exterior.
Iniciei estudos de ciências sociais na Universidade de São Paulo em 1969, tendo interrompido porém os estudos no curso do segundo ano, após que medida arbitrária do regime militar então em vigor resultou na aposentadoria compulsória de vários professores (entre eles Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Octavio Ianni e vários outros). Retomei os estudos na Universidade de Bruxelas, onde me graduei em Ciências Sociais em 1974, com a apresentação de dissertação de licenciatura intitulada “Ideologia e Política no Desenvolvimento Brasileiro, 1945-1964”.
Completei mestrado em planejamento econômica na Universidade de Antuérpia em 1976, com tese de economia internacional intitulada “Problemas Atuais do Comércio Exterior Brasileiro: uma avaliação do período 1968-1974”.
Fiz inscrição para doutoramento em Ciências Sociais na Universidade de Bruxelas em 1976, mas retornei ao Brasil em 1977 interrompendo os estudos para ingresso na carreira diplomática; eles só seriam retomados em 1981, quando refiz meu projeto de tese e efetuei nova inscrição, sempre na Universidade de Bruxelas. Obtive o doutoramento por essa universidade em 1984, com defesa de tese que mereceu “grande distinção” sobre “Classes sociais e poder político no Brasil: uma avaliação dos fundamentos empíricos e metodológicos da revolução burguesa”.
Já fui professor de Sociologia e de Economia Internacional em diversos cursos de graduação e de pós-graduação em São Paulo e Brasília, desde 1985, assim como sou professor convidado em várias universidades estrangeiras. Atualmente sou orientador de mestrado do Instituto Rio Branco, a academia diplomática do Ministério das Relações Exteriores. Tenho diversos livros publicados no Brasil e no exterior, como pode ser constatado em minha página pessoal: www.pralmeida.org.

Paulo Roberto de Almeida, Washington: 22 de maio de 2003

674) Relacoes Internacionais: profissionalizacao e atividades

Relações Internacionais: profissionalização e atividades
Paulo Roberto de Almeida
(um texto de 2003)

Respostas a questões colocadas por estudantes de MG para subsidiar Mostra Profissional sobre relações internacionais.


1) Quais seriam as vantagens e desvantagens da grade curricular multidiciplinar do bacharelado em Relações Internacionais?
PRA: Como vantagem principal se coloca obviamente o fato de que o profissional em relações internacionais – chamemo-los de internacionalistas – é naturalmente chamado a tratar de matérias as mais diversas possíveis, atinentes aos terrenos econômico, político, jurídico, ou mesmo cultural e tecnológico, daí a ncessidade de uma formação abrangente de maneira a cobrir esses diversos campos. A própria disciplina de relações internacionais retira métodos e substância de várias áreas curriculares, notadamente história, ciência política, economia, direito, sociologia ou mesmo antropologia. Todas essas disciplinas, e possivelmente mais algumas outras (como línguas, metodologia científica, psicologia social, estatística ou sociografia), podem e devem figurar numa grade curricular de um curso desse tipo.
Eventuais desvantagens não estão propriamente vinculadas à estrutura curricular, mas à natureza do curso em si, que não conduz a uma especialização muito bem delimitada no padrão atual (tradicional) de classificação profissional, uma vez que o egresso desse tipo de curso não está exatamente habilitado para se desempenhar numa carreira de economista, de historiador, de cientista político ou ligado à área jurídica, por lhe faltar talvez alguns instrumentos e perícia em determinadas matérias técnicas ligadas a cada uma dessas especialidades individuais. Daí a preferência de alguns especialistas em fazer com o que o curso de relações internacionais seja na verdade uma pós-graduação, ou especialização estrito senso, e não como ocorre de maneira cada vez mais generalizada no Brasil, um curso de graduação.

2) O mercado se encontra mais receptivo a profissionais não especializados, como o bacharel em Relações Internacionais, ou àqueles preparados em cursos com habilidades específicas, como o caso do bacharel em Direito?
PRA: Tem havido uma boa recepção do profissional em relações internacionais, mas isso talvez se deva a uma espécie de “novidade do momento”, a uma percepção (talvez incorreta) de que os desafios dos processos de regionalização e de globalização possam ser melhor enfrentados pelos internacionalistas ou mesmo a uma demanda específica que ainda não foi “saturada” nesse nicho. Creio, contudo, que nas condições atuais do Brasil – país ainda insuficientemente “globalizado” e dotado, de todo modo, de poucas empresas verdadeiramente internacionais – o “excesso” de oferta que vem sendo verificado nessa vertente possa não se sustentar no futuro, daí minha preferência por uma abordagem ainda relativamente conservadora da profissionalização nessa área. Ou seja, seria preferível que os profissionais de graduação tivessem habilidades específicas (direito, economia, história etc.), para só a partir daí, então, encaminhar-se para a especialização em relações internacionais.
O mercado sempre estará preparado, por muito tempo ainda, para os profissinais tradicionais e muito pouco para o internacionalista, que precisará esforçar-se para encontrar seus nichos de trabalho no quadro de demanda ainda organizada segundo os padrões disciplinares e profissionais clássicos.

3) Sabemos que a boa relação com os países que nos cercam pode nos auxiliar em problemas internos. Qual seria o maior exemplo para comprovar tal situação?
PRA: Os países enfrentam ciclos econômicos ascendente e descendentes em suas atividades produtivas, tanto em função de problemas propriamente internos – esgotamento de determinados recursos naturais, por exemplo – como devido à própria dinâmica econômica internacional, daí a necessidade de determinadas válvulas de escape para dificuldades temporárias. Um exemplo óbvio é o da crise em determinados setores da economia ou em determinadas regiões, o que “obriga”, de certa forma, à “exportação” de “excedentes demográficos”. O Brasil, tradicional país recipiendários de imigrantes ao longo de toda a sua história, tornou-se moderadamente “exportador” de mão-de-obra (geralmente não especializada) para outros países, da própria região ou em outros continentes. A mobilidade profissional deve ser vista, aliás, como algo normal e mesmo desejável, diferentemente, talvez, da simples “expulsão econômica” de desempregados em momentos de crise. Boas relações gerais com vizinhos, e mesmo países distantes, ajuda, nesse sentido, a conduzir de maneira adequada esses movimentos de entrada e saída de pessoas ao longo de alguns anos.
Da mesma forma, a ocorrência de surtos epidêmicos na população humana ou animal impõe, necessariamente, a cooperação transfronteiriça, assim como problemas ambientais de uma certa dimensão, que não respeitam fronteiras políticas e limites geopolíticos. Cooperação em matéria de segurança – terrorismo, nacrotráfico – também são bons exemplos de que resultados efetivos são melhor alcançados quando as relações políticas entre Estados vizinhos são satisfatórias.

4) Como o senhor avalia o surgimento de inúmeros cursos de Relações Internacionais nos últimos anos? Esse fato traz desvantagens para os jovens recém-formados na profissão?
PRA: Difícil dizer, neste momento, pois se trata de um fenômeno que tem menos de dez anos, sendo resultado dos progressos da globalização e da regionalização nos anos 1990. As instituições privadas de ensino têm respondido de maneira dinâmica a essa demanda percebida, seguidas de longe por algumas insituições públicas, mas seria preciso esperar um processo natural de “decantação” nessa área para uma avaliação mais precisa. Não creio que se trata de desvantagem, pois do ponto de vista do mercado pode ser até uma vantagem, na medida em que a oferta ampliada provocará uma saudável concorrência entre as instituições, um “barateamento” das tarifas e uma progressiva melhoria de qualidade nos cursos mais competitivos.
Creio, todavia, que uma certa especialização nas orientações se torna de certo modo inevitável. Uma cidade como Brasilia, governamental e diplomática por excelência, apela naturalmente uma formação centrada nas disciplinas clássicas ligadas à diplomacia (direito, história, línguas, economia internacional). Já métropoles como São Paulo e Rio de Janeiro, onde se localizam a maior parte das empresas internacionais brasileiras e o grosso das multinacionais (em atividades diversas dos serviços e da indústria) requerem formações voltadas para “global business”, com matérias de comércio exterior, finanças internacionais etc. No sul do país, talvez, mais voltado para atividades do agribusiness e em contato direto com os demais parceiros do Mercosul, as especializações podem estar no comércio internacional (inclusive normas relativas ao Mercosul e à Aladi), questões fitossanitárias e diretamente o domínio da língua espanhola. Como se vê, as especializações se farão, inevitavelmente, nas diversas instituições de ensino situadas nessas regiões, quase que de forma natural.

5) Quais seriam, basicamente, suas funções como Ministro Conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington?
Sou o “segundo” do Embaixador, e portanto o representante alterno, o que em linguagem diplomática costuma se chamar “Encarregado de Negócios” (na ausência do Embaixador titular). Ademais de supervisionar o trabalho de uma chancelaria, de modo geral, sou encarregado da assinatura de determinados papéis, de visar preliminarmente grande parte dos telegramas diários (antes de serem despachados pelo chefe do posto), de representá-lo eventualmente em determinadas cerimônias, reuniões de trabalho e na recepção a uma determinada categoria de visitantes na Embaixada, assim como ficar a disposição do Embaixador e da própria Secretaria de Estado para qualquer tarefa que se imponha fora da rotina normal de trabalho. Normalmente, numa grande embaixada como a de Washington, existe mais de um ministro-conselheiro, o que também implica uma certa especialização entre eles. Como somos três, fico encarregado dos temas econômicos e financeiros, havendo outro para os temas políticos e um terceiro para questões administrativas e consulares.

6) O avanço da globalização tem aumentado a importância do diplomata no cenário internacional. Que peculiaridades podem ser destacadas na carreira diplomática?
A carreira continua similar ao que sempre foi, constituída basicamente pelas tarefas de: informação, representação, negociação. A globalização impõe talvez uma certa redefinição da primeira função, pois não mais se considera necessário informar sobre o cotidiano ou o corriqueiro do país, como talvez fosse o caso na era dos ofícios a bico de pena. A informação deve ser seletiva, limitado aos temas que interessam diretamente ao serviço diplomático ou às relações com o país de origem.
Por outro lado, a intensificação dos contatos humanos, dos intercâmbios comerciais e tecnológicos determinam que se procure aproveitar as novas oportunidades oferecidas pela cooperação internacional, em novas áreas ou de formas inéditas até então. Permanece, no entanto, a peculiaridade do contato direto com representantes do governo junto ao qual se está acreditado, o bom conhecimento das características locais e um certo sentido de oportunidade na construção de laços mais duradouros do que os simples contatos burocráticos de trabalho. Uma boa relação pessoal entre chefes de estado ou de governo é por vezes importante no acompanhamento e solução de determinados problemas internacionais – uma crise financeira, por exemplo – e quem deve preparar o terreno é o diplomata. Nisso, sua função ainda é insubstituível, pois ele não pode ser “representado” por nenhum sistema informático ou tecnologia high tech. O chamado “fator humano” ainda é uma alavanca indispensável nos assuntos sociais e, por extensão, internacionais.

7) O senhor ingressou muito cedo no mercado de trabalho, mesmo que de forma informal. Que experiências foram importantes nesta etapa de sua vida e em que isso colaborou para que o senhor alcançasse a realização profissional?
O sentido do esforço individual, o desejo de aprender por mim mesmo, um certo auto-didatismo e, de modo geral, a persistência nos esforços pessoais, como forma de alcançar objetivos relevantes ou metas desejáveis. Aprendi a valorizar a conquista de aspirações significativas, em lugar de esperar que me fossem oferecidos oportunidades ou favores. De certa forma, posso dizer, hoje em dia, que, vindo de família modesta e desprovido quase que completamente de mecanismos sociais ou familiares de sustentação, pude ascender profissionalmente e socialmente graças a meu próprio esforço, um pouco como os “self-made men”, com a diferença de que no meu caso não estava aspirando poder ou riqueza, mas tão simplesmente bem desempenhar minhas tarefas profissionais e lograr manter, ao mesmo tempo ou paralelamente, atividades acadêmicas que são demonstradas, atualmente, nos muitos livros publicados por mim.

8) Que conselho o senhor daria aos jovens que desejam ingressar em um curso superior de Relações Internacionais?
Apenas um: não dependam do curso para sua própria formação, não considerem suficiente ou adequado o que for “aprendido” nas salas de aula, mas construam vocês mesmos o “seu” curso, pela leitura e estudo intensos, pelo questionamento constante do “saber adquirido” e pelo exercício regular e sadio da “inquirição” bem orientada. Não se contentem com os jornais diários, nem com as revistas, procurem livros, manuais, enciclopédias, sistemas de informação online, não esperem que o professor “transmita” a vocês aquilo que pensam dever aprender no curso, mas façam dele um orientador de novas leituras, um conselheiro de métodos, mais do que um simples “educador” (o que ele de certa forma nunca será, pois professores em geral apenas transmitem técnicas, que educa é a própria vontade individual de aprender cada vez mais).
Em uma palavra: entrem no curso como se já estivessem preparados para dele sair para o exercício de alguma atividade profissional, ou seja, com um certo propósito-guia, que os vai orientar durante todo o curso, e que os fará buscar sempre mais, além das simples obrigações acadêmicas do dever de casa e das leituras obrigatórias. Construam o seu próprio saber.

9) O que pode se afirmar das relações exteriores do Brasil hoje, em relação aos demais países e ao passado do próprio país?
As relações exteriores do Brasil, stricto sensu, não são diferentes das de outros países em desenvolvimento, ou seja um esforço constante de inserção nos circuitos mais dinâmicos da economia internacional, a busca do rompimento com certas fragilidades e dependências – financeira, tecnológica, educacional e científica – que sempre marcaram o país e a intensificação da participação nos negócios internacionais, num sentido positivo, ou seja, da promoção da paz, da cooperação internacional e o progressos dos direitos humanos e da democracia nos planos global e regional.
No que se refere especificamente à sua diplomacia, caberia registrar, sem qualquer falsa modéstia, as qualidades excelentes de profissionalismo, preparação e dedicação, fruto de praticamente dois séculos de exercício constante das relações diplomáticas a partir do próprio país. Nossa diplomacia é certamente mais eficiente do que a de muitos outros países emergentes e mesmo do que a de vários países ditos avançados.

10) Quais são, na sua visão, os momentos históricos mais marcantes nos quais a diplomacia entre os povos foi decisiva?
Nos momentos de crise internacional, ela se torna relevante. As guerras são de certo modo o fracasso da diplomacia, mas não são sempre evitáveis, em face de algum ditador expansionista, como Hitler, por exemplo. Em outros momentos, se conseguiu evitar a guerra, como na crise dos foguetes em Cuba (1962), quando o mundo viveu praticamente a situação limite de um conflito nuclear, nunca ocorrido na história da humanidade. O próprio Brasil contribuiu para alguns episódios de pacificação entre países vizinhos, como na Guerra do Chaco entre Bolívia e Paraguai (1936) ou nos conflitos fronteiriços entre Peru e Equador (1942 e novamente em 1997).
Mas, a diplomacia não precisa atuar apenas nos momentos de crise. Ela deve exercer-se de modo constante, em qualquer época e lugar, contribuindo para a expansão do direito internacional e a promoção dos direitos humanos. Considere-se, por exemplo, a noção de soberania estatal: ela não pode ser absoluta, a ponto de se permitir que um ditador coloque em risco a vida de seu próprio povo, ou que cometa atentados pesistentes contra a dignidade da pessoa humana ou os direitos civis e religiosos das minorias. A próxima etapa do direito internacional talvez se situe na regulação do chamado “direito de intervenção” (muito vinculado ao direito humanitário), de maneira a evitar aspectos bastante constrangedores, como os vividos recentemente pela intervenção unilateral dos Estados Unidos no Iraque.

11) Quais os desgastes, nas relações exteriores, causados por medidas protecionistas adotadas por determinados países, como a imposta recentemente pelos EUA que reduziam as exportações de aço brasileiro para tal país?
Uma visível diminuição na confiança bilateral, na medida em que se tem, de modo claro, consciência da ilegalidade das medidas (como determinado pela OMC em relação às salvaguardas aplicadas pelos EUA ao arrepio das normas internacionais). Ocorre também um sentimento de frustração pelas perdas econômicas ocasionadas e uma desconfiança de que eventuais acordos de liberalização comercial serão efetivamente cumpridos, na letra e no espírito das regras acordas bilateralmente ou multilateralmente. Por isso mesmo, o Brasil vem insistindo para que, ao lado das medidas de acesso a mercado (redução de barreiras tarifárias), sejam contemplados também nos futuros acordos da Alca ou da OMC regras claras no que ser refere a medidas de defesa comercial (antidumping e salvaguardas), ademais da redução de todas as demais barreiras protecionistas existentes (como podem ser os subsídios à produção interna, notadamente em agricultura, e as subvenções às exportações).

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 15 de julho de 2003

673) A formacao e a carreira do diplomata

Uma preparação de longo curso e uma vida nômade

Paulo Roberto de Almeida

A carreira diplomática tem atraído número crescente de jovens, em decorrência da maior inserção internacional do Brasil e dos avanços da globalização e da regionalização. Os candidatos têm em geral procurado os cursos de graduação em relações internacionais. Cabe indagar se esses cursos fornecem a preparação adequada para o concurso do Itamaraty e, alternativamente, considerando que apenas um número restrito será admitido na carreira, se eles fornecem os instrumentos necessários para lograr uma boa colocação no setor privado, que é ainda o grande “absorvedor” da oferta universitária.
Não é tampouco certo que um curso de graduação em relações internacionais seja a melhor via de acesso à carreira diplomática, uma vez que os requerimentos de entrada são mais amplos, ou mais específicos, do que a grade curricular desses cursos, ainda desiguais e com ênfases distintas nos vários estados: alguns são teóricos, voltados para a pesquisa em política mundial, outros colocam ênfase no comércio internacional e no chamado global business (o que pode ser uma orientação correta, se pensarmos que as relações econômicas internacionais compõem o essencial da agenda contemporânea). Os cursos tradicionais — direito, economia ou administração, com um complemento em línguas — podem ser mais útil ao aspirante à carreira, já que ele poderá se exercer também nas profissões pertinentes. Ele pode, depois, buscar uma especialização em relações internacionais, familiarizando-se com os debates teóricos e com a agenda da política mundial.
Em todo caso, o candidato à carreira pode não receber num curso de graduação, ou num preparatório de seis ou doze meses, o conhecimento de que necessita para atender aos requisitos do concurso do Instituto Rio Branco. Ele precisa ter sólida formação, feita geralmente de anos de acumulação de cultura humanista e de incontáveis leituras. Mais do que qualquer curso ex-catedra, o importante é o esforço individual do candidato, que será idealmente um auto-didata. Um curso de preparação à carreira pode ajudar, ao transmitir um “conhecimento mastigado” e alguma “segurança psicológica”. Mesmo vindo de família modesta e carente de aperfeiçoamentos no exterior ou em cursos de línguas, o candidato motivado pode suprir lacunas pessoais ou de ambiente social ao construir o seu próprio curso, mediante um sério programa de estudos sistemáticos, feito da bibliografia sugerida pelo IRBr, da leitura diária de um jornal econômico e do acesso constante à Internet (como The Economist, Financial Times, Foreign Affairs e outros).
Nos últimos anos, o Instituto Rio Branco tem selecionado um em cada oitenta ou cem candidatos: a seleção é portanto rigorosa e a grande maioria deverá buscar uma outra profissão dentro da área, na espera de poder um dia ingressar na carreira. O mercado é basicamente constituído pelo setor privado, e cabe ao jovem ter consciência disso desde o início. Algumas faculdades mantêm cursos com perfil excessivamente acadêmico, feito de matérias teóricas ou de disciplinas voltadas para os grandes equilíbrios geopolíticos do cenário internacional, como se todos os seus egressos fossem passar a vida discutindo as teorias realista ou racionalista de relações internacionais ou resolvendo algum problema no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Essa não é a realidade da agenda mundial, que, mesmo em sua vertente negocial, é feita mais de questões de comércio internacional do que de problemas relativos ao poder mundial.
Algumas especializações podem responder melhor ao perfil específico para uma inserção nos mercados regionais de trabalho. Uma cidade como Brasilia, governamental e diplomática por excelência, chama naturalmente uma formação centrada nas disciplinas diretamente ligadas à diplomacia (direito, história, línguas, economia internacional), para um trabalho no governo, nas organizações internacionais ou no meio acadêmico. Métropoles como São Paulo e Rio de Janeiro, onde se localizam a maior parte das empresas internacionais brasileiras e o grosso das multinacionais (em atividades diversas dos serviços e da indústria), requerem formações voltadas para o chamado global business, com matérias de comércio exterior, finanças internacionais etc. No sul do país, mais voltado para atividades do agribusiness e em contato direto com os parceiros do Mercosul, as especializações podem estar no comércio internacional (inclusive normas relativas ao Mercosul), em questões fitossanitárias e no domínio da língua espanhola.
Alguém dotado de conhecimento acadêmico, de uma boa disposição para o auto-aprendizado e de senso prático em algumas das áreas mencionadas tem chances de subir em qualquer profissão, à medida em que sua experiência de vida o colocar em contato com pessoas dotadas de densidade nessas áreas. Nunca se deve chegar num primeiro emprego como se não se necessitasse de treinamento ou de aperfeiçoamento técnico e profissional. Atitudes do tipo “eu sei fazer”, “eu sei tudo”, “deixa comigo”, geralmente conduzem a desastres, ou pelo menos a situações de constrangimento funcional.
A carreira diplomática é única nos seus requisitos de entrada, não apenas em termos da bagagem intelectual acumulada ao longo de anos de estudo, mas também no sentido em que o diplomata deve exibir algumas qualidades de convivência e de interação social que serão importantes no desempenho ulterior. Por isso os exames de ingresso na carreira envolvem disciplinas tradicionais, mas também entrevistas com banca examinadora que julga as aptidões do candidato para aquele tipo de profissão: a maturidade entra em linha de conta nesse contexto, o comportamento social, assim como a própria aparência pessoal.
Meu trabalho como servidor público federal, na carreira de diplomata, teve início em dezembro de 1977, por meio de um concurso direto, o que, aliado ao fato de já possuir mestrado, dispensou-me de frequentar o curso de preparação mantido pelo Instituto Rio Branco. Desde essa época (um quarto de século já), servi no exterior em diversas missões diplomáticas e no Brasil (Ministério das Relações Exteriores, em Brasília), geralmente na área econômica. Em postos, estive nas embaixadas em Berna, Belgrado e Paris, ademais das delegações do Brsil em Genebra e Montevidéu (Aladi). Mais recentemente fui chefe da Divisão de Política Financeira e de Desenvolvimento do Itamaraty, de 1996 a 1999, e desde outubro daquele ano até outubro de 2003 fui Ministro Conselheiro na Embaixada em Washington, o mais importante dos postos externos do Ministério das Relações Exteriores. Paralelamente ao exercício regular das atividades profissionais, pude manter, ainda que de maneira alternada, minha carreira acadêmica, o que me habilitou não apenas a ministrar cursos em universidades do Brasil e do exterior, como também a fazer pesquisas e manter uma produção de livros e artigos que hoje compõe a bibliografia especializada no campo das relações internacionais. Uma amostra dessa produção pode ser vista em minha página pessoal: www.pralmeida.org.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15 de janeiro de 2004