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sábado, 30 de dezembro de 2006
677) Profissionalizacao em relacoes internacionais: exigencias e possibilidades
Paulo Roberto de Almeida
Trecho retirado das “Leituras complementares”, do capítulo 11:
“A diplomacia econômica brasileira no século XX: grandes linhas evolutivas”
do livro do autor: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), pp. 244-248
(…)
O estudo e a profissionalização em relações internacionais no Brasil têm avançado muito no período recente, em grande medida em função dos processos de globalização e de regionalização – tanto via Mercosul, como mediante as discussões em torno da ALCA – experimentados pelo país de forma mais intensa desde o início dos anos 1990. Pretendo abordar rapidamente alguns aspectos desta questão, utilizando-me do recurso a algumas perguntas que muitos estudantes nessa área também devem se fazer a si mesmos.
1) Quem é o profissional de relações internacionais no Brasil?
Trata-se não apenas do graduado em relações internacionais, uma vez que são ainda relativamente poucos os egressos dos parcos cursos existentes nesse nível no Brasil, muito embora a oferta tenha crescido exponencialmente nos últimos anos, em especial no setor universitário privado e em faculdades isoladas. Esse profissional, típico destes tempos de “globalização”, é mais suscetível de ter cursado uma vertente mais tradicional de estudos — ciências sociais, direito, economia e áreas afins —, dirigindo-se em seguida aos, estes sim inúmeros, cursos de pós-graduação ou mais geralmente de especialização (pós-graduação lato sensu, mestrado profissionalizante) que multiplicaram-se no Brasil no período recente. Não há uma identificação formal desse profissional, uma vez que não há, nem se afigura provável haver no futuro previsível, uma regulamentação dessa carreira (já seria uma profissão?), a exemplo de outras tantas existentes no cenário trabalhista brasileiro. Considero particularmente desnecessária e mesmo indesejada tal regulação profissional, uma vez que seria uma maneira de manter a adequada flexibilidade do mercado laboral e propiciar uma demanda adaptada a um maior espectro de capacidades intelectuais e acadêmicas.
2) Como se faz a formação do profissional em relações internacionais?
Em função da já citada “precocidade” da profissão, ela é, compreensivelmente, a mais variada possível e não há, propriamente, homogeneidade didática nos cursos oferecidos, sendo portanto “normal” a qualidade muito diferenciada dos egressos desses cursos. Os resultados também variam em função da orientação e do conteúdo substantivo dos cursos disponíveis, cabendo notar uma orientação mais tradicionalmente acadêmica nas faculdades públicas e preocupações mais pragmáticas nas particulares. Com efeito, uma observação perfunctória revela uma maior ênfase em aspectos conceituais e teóricos nos cursos mantidos pelas instituições tradicionais (universidades públicas e católicas) e um cuidado bem mais acentuado com o lado prático da profissão naqueles oferecidos pelas privadas (comércio exterior e administração de negócios internacionais, por exemplo).
Essa dicotomia aparente, ainda largamente empírica nesta fase de sedimentação dos cursos especializados, não apenas é saudável do ponto de vista disciplinar, como desejável do ponto de vista das necessidades do “mercado”, mas ela deveria ser bem mais evidente na formulação e apresentação ao público interessado nesses cursos. A evolução institucional conduzirá provavelmente a um núcleo comum de requisitos disciplinares básicos, mas a diversidade programática e a “divisão do trabalho” entre “especializações mercadológicas” devem continuar manifestando-se, de maneira a assegurar a necessária flexibilidade na formação dos muitos profissionais que devem continuar a sair dessas instituições.
3) Para que serve um profissional de relações internacionais?
Ele pode ocupar-se de uma uma série crescente de atividades públicas e privadas, todas elas situadas num “nicho” cada vez mais amplo da vida da Nação: a interface entre o contexto interno e o cenário externo, seja no plano dos negócios, seja no âmbito da administração pública, seja ainda nas lides acadêmicas. Essa ponte entre o lado doméstico e as vertentes regional e internacional exige um profissional que saiba não apenas uma ou várias línguas estrangeiras, mas também comércio exterior, direito e economia internacionais e o próprio funcionamento das muitas organizações multilaterais e regionais de integração e de cooperação que permeiam a vida contemporânea das nações.
Esse profissional é antes de mais nada um “técnico especializado” a serviço de uma larga burocracia hierarquizada, se trabalhar numa empresa privada ou na administração pública, ou será uma espécie de “livre atirador” da globalização, se estiver lotado numa instituição universitária, onde a liberdade de escolha temática e a maior latitude na utilização do tempo são proverbiais. Em qualquer desses casos e mesmo nas especializações menos bem delimitadas, esse profissional serve, antes de mais nada, para processar informações, ou seja, para digerir massas de insumos “externos” e produzir volumes de “soluções” possíveis aos problemas que são colocadas às suas instituições respectivas de afiliação laboral. A qualidade do “produto final” será tanto mais relevante quanto mais pertinente ao objeto de trabalho e ao desafio colocado à instituição a que pertence esse profissional.
4) Quais são os setores preferenciais de atividades desse profissional?
As possibilidades são praticamente infinitas com a intensificação do processo de globalização, indo desde uma empresa de turismo a um clube de futebol. Podemos, contudo, destacar três grandes áreas ou setores de atuação para os especialistas em relações internacionais: (1) governo, ou setor público de modo geral, no qual se destaca em primeiro lugar a diplomacia, cujos requisitos de ingresso são (a)normalmente elevados (ver o site do Itamaraty: www.mre.gov.br/irbr), mas todos os demais ministérios (com destaque para a nova profissão de “analista de comércio exterior”, do atual MDIC) e agências públicas, bem como os governos estaduais e municipais vêm fazendo crescente apelo a tais profissionais em suas respectivas “assessorias internacionais”; (2) academia, onde as possibilidades efetivas são reconhecidamente mais limitadas, uma vez que as vagas no corpo docente não se renovam todos os dias e tendo em vista o fato de que nem todos os egressandos possuem qualidades ou vocação para a pesquisa e o ensino; (3) setor privado, no qual as chances de trabalho se multiplicam todos os dias, levando-se em conta a necessidade crescente de interagir com o cenário externo.
Nesta última área, as exigências de qualificação são bem mais “prosaicas”, mas ao mesmo tempo mais rigorosas. Uma empresa privada, normalmente, não necessita de longos textos sobre as virtudes e méritos respectivos do neorealismo ou do institucionalismo na política mundial ou sobre como funciona o Conselho de Segurança na ONU, mas, sim, precisa conhecer muito bem as regras do GATT, o perfil aduaneiro da Comunidade Andina e os acordos já feitos com o Mercosul, as obrigações contraídas internacionalmente pelo Brasil em matéria de proteção ambiental ou a evolução da padronização de regulamentos técnicos e da fixação de normas industriais “voluntárias”. Os desafios para as instituições de ensino tornam-se, portanto, muito grandes, uma vez que os professores deverão passar a conhecer não apenas Morgenthau ou Kehoane, mas também, e principalmente, a OMC, a ISO, a UIT e todas as demais organizações multilaterais e suas múltiplas convenções internacionais, sem mencionar as características técnicas precisas do processo de integração regional no Mercosul e suas dezenas de decisões e resoluções já adotadas desde 1991.
5) Que tipo de trabalho desempenha esse profissional?
As tarefas específicas dependem obviamente do entorno e do contexto laborais, mas em todas as áreas a atividade é geralmetne dominada pelo processamento da informação. Não só o diplomata, mas também o “middle manager” corporativo e o “técnico” de uma empresa globalizada têm de processar informações (inputs) que chegam todos os dias, de maneira a transformar essa “matéria bruta” externa em vantagens adaptativas para suas respectivas instituições que “competem” no ambiente internacional (seja por um produto ou serviço, seja por uma determinada disposição ou decisão em organização internacional). O diplomata, ademais, representa seu país no exterior (em embaixadas e missões) e negocia em caráter permanente ou de forma mais irregular acordos bilaterais e convenções multilaterais. Os assessores internacionais alertam para a interface e as limitações externas em suas esferas respectivas de atuação, instituições públicas ou privadas.
Todos eles, diplomatas, empresários, assessores participam, cada um a seu modo ou com distintos graus de independência (com subsídios ou mesmo determinações) do processo decisório em suas instituições de afiliação, contribuindo assim para o sucesso relativo do produto ou serviço. Sublinhei o termo independência uma vez que o diplomata obedece ao seu chanceler e este, em última instância, a um mandatário eleito, ao passo que o funcionário corporativo deve prestar contas a seu gerente imediato e este ao Conselho de Administração ou pelo menos ao CEO da empresa. O acadêmico é bem mais independente e desinvolto em suas atividades, sendo sua principal função — para o que ele é pago — a de transmitir conhecimentos ou a de realizar uma pesquisa, mas deve-se reconhecer que ele participa bem menos de processos decisórios, menos relevantes nas instituições de ensino. Ele o fará, eventualmente, e de forma indireta, se participar como consultor de um determinado projeto contratado externamente, mas para isso precisa apresentar qualificação numa determinada área especializada.
À exceção daquelas profissões regulamentadas e reservadas a um círculo profissional de especialistas registrados — advogados ou mesmo aquelas áreas indevidamente fechadas, como a de jornalista, por exemplo —, a maior parte das demais atividades que podem ser desempenhadas por um formando em ciências sociais, economia, história, comunicações ou ainda em áreas “técnicas” como operador cambial ou no mercado de futuros também podem ser ocupadas por um profissional em relações internacionais, sobretudo se ele combinar essa “especialização” a uma graduação nas vertentes mais tradicionais dos cursos universitários.
6) Quais os requisitos que se espera de um profissional de relações internacionais?
Uma trading, por exemplo, ou seja, uma empresa de comércio exterior não se dispõe a contratar um profissional apenas em virtude de um brilhante currículo acadêmico, mesmo se ele for egresso de uma conceituada faculdade pública. Ela é bem mais propensa a valorizar o conhecimento prático da nomenclatura aduaneira, da regulamentação de comércio exterior, das normas técnicas em vigor nos mercados estrangeiros. Muito embora uma boa cultura geral possa ser, igualmente, um surplus na avaliação do currículo do candidato, a experiência em matéria de regulações e normas aplicadas ao comércio internacional se afigura indispensável, assim como conhecimentos elementares de economia e de estatística. Na outra ponta, uma boa cultura humanista contribui em muito para uma boa performance do candidato nos concursos do Instituo Rio Branco, o que não dispensa contudo um contato íntimo com a atualidade mais imediata sobre as relações internacionais e a política externa do Brasil, que se adquire com a leitura diária dos principais jornais e periódicos de circulação nacional e de algumas revistas especializadas em política internacional (ver, por exemplo, a Revista Brasileira de Política Internacional, disponível em www.ibri-rbpi.org.br).
Em outros termos, as exigências feitas a um profissional de relações internacionais são tão variadas quanto são as possibilidades diversificadas de emprego hoje existentes num Brasil definitivamente inserido nos circuitos da globalização produtiva e financeira. O campo oferece, sem dúvida alguma, oportunidades crescentes aos egressandos dos cursos de graduação e de especialização, mas parece inevitável que um processo de “diluição” das e de “divisão do trabalho” entre as diferentes instituições brasileiras dedicadas à formação e à complementação educacionais desses profissionais deverá necessariamente ocorrer nos próximos anos, como forma de adequar perfis pedagógicos aos requisitos de mercado. O “profissional da globalização” é um ser multifacético, ao mesmo tempo um generalista e um perito em aspectos específicos da crescente interdependência mundial. Longa vida ao profissional em relações internacionais.
© Paulo Roberto de Almeida, 2001
Fonte:
Paulo Roberto de Almeida: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), pp. 244-248
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