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segunda-feira, 18 de dezembro de 2006
661) Revendo as propostas de laureados Nobel vinte anos depois
Uma agenda ainda válida para o século XXI?
Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)
Em janeiro de 1988, reunidos em Paris, sob a iniciativa do humanista polonês Elie Wiesel, 75 cientistas e personalidades do mundo literário, de 31 diferentes países, mas todos agraciados com o Prêmio Nobel, elaboraram dezesseis propostas para tornar o mundo do século XXI melhor do que ele tinha sido no “breve século XX” de mortes, genocídios e destruições maciças. O objetivo deste ensaio é o de verificar se a agenda proposta na conferência dos laureados Nobel naquela oportunidade seria ainda válida em pleno século XXI.
Passados quase dezenove anos daquele encontro de “sábios”, o que poderia ser retido daquele conjunto de princípios – na verdade, um enunciado de nobres propósitos – destinados a aperfeiçoar um mundo então claramente insatisfatório? Caberia, antes de mais nada, colocar em seu contexto histórico a conferência convocada para para discutir as “ameaças e promessas no alvorecer do Século XXI”. Num segundo momento, seria útil verificar se aquelas propostas elaboradas dezoito anos atrás ainda guardam validade para os nossos tempos.
A iniciativa do Prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel, escritor judeu de naturalidade polonesa, foi, sem dúvida alguma, meritória em seus próprios termos, mesmo se se pode questionar a representatividade intrínseca de cientistas e homens de letras de origens as mais diversas (com maciça presença dos EUA, como é de regra nas premiações Nobel), bem como sua competência específica para debater problemas complexos que afetam a toda a humanidade, ainda que de maneira variada. Uma vez que se reconhece, porém, a um biólogo o direito de apresentar propostas, enquanto cidadão, sobre problemas do desarmamento ou da educação, ou a um homem de letras o de argumentar sobre a melhor maneira de resolver o problema da dívida do Terceiro Mundo ou de acelerar a transferência de tecnologia em favor dos países em desenvolvimento, pode-se concordar em que o impacto mediático de uma conferência de laureados representa uma boa maneira de chamar a atenção da opinião pública ou dos homens de Estado para algumas das questões mais cruciais da agenda mundial.
O problema essencial, contudo, poderia ser colocado da seguinte forma: as propostas formuladas pelos Nobel eram condizentes com a natureza das “ameaças” percebidas e suas recomendações caminhavam realmente em direção das “promessas” do século XXI? Se a principal qualidade de um bom cientista é a de ser um pouco “visionário”, isto é, de saber antecipar-se aos desafios futuros, as “conclusões” dos Prêmio Nobel devem ser julgadas à luz de sua adequação aos cenários desenhados para o novo milênio, ou seja, segundo sua capacidade de realizar, nos termos do filósofo alemão Reinhart Koselleck, uma “projeção utópica do futuro”.
Formulando a questão em outros termos: a agenda que os Nobel estabeleceram para os homens do final do século XX correspondia efetivamente às necessidades de desenvolvimento das sociedades do futuro, tais como as percebemos hoje, e as recomendações propostas representaram algo mais do que a simples manifestação de boa-vontade de homens desvinculados de tarefas executivas ou responsabilidades governamentais? Subsidiariamente, se poderia também indagar se os “remédios” propostos levaram em consideração os meios disponíveis ou a organização social e política do sistema inter-estatal contemporâneo, bem como a relação de forças nele predominante.
Pretendo neste ensaio fazer a uma “releitura do passado”, adotando o seguinte procedimento: transcreverei o teor completo das 16 propostas originais (traduzidas por mim a partir do documento final da conferência), aduzindo depois comentários onde pertinentes. Creio que a maior parte das propostas se sustenta, ainda hoje, muito embora seu caráter “otimista” já fosse passível de algumas críticas naquele mesmo momento. As três primeiras apresentam, em minha opinião, caráter universalmente válido e não são passíveis de qualquer restrição ou comentário, mas a partir daí tenho qualificações ou condicionantes a agregar, como explicito no seguimento das propostas comentadas.
AS 16 PROPOSTAS DA CONFERÊNCIA DOS NOBEL DE 1988
Comentários de Paulo Roberto de Almeida em 2006: (PRA)
1. Todas as formas de vida devem ser consideradas como um patrimônio essencial da Humanidade. Causar dano ao equilíbrio ecológico constitui, portanto, um crime contra o futuro.
PRA: Propósito ainda plenamente válido.
2. A espécie humana é única e cada indivíduo que a compõe tem os mesmos direitos à liberdade, à igualdade e à fraternidade.
PRA: Propósito ainda plenamente válido.
3. A riqueza da Humanidade está também na sua diversidade. Ela deve ser protegida em todos os seus aspectos: cultural, biológico, filosófico e espiritual. Para isso, a tolerância, a atenção a outrém, a recusa das verdades definitivas devem ser incessantemente lembradas.
PRA: Propósito ainda plenamente válido.
4. Os problemas mais importantes que a humanidade enfrenta atualmente são ao mesmo tempo universais e interdependentes.
PRA: Os problemas mais importantes não estão expressamente referidos – embora alguns deles figurem nos tópicos seguintes –, mas creio que eles podem ser resumidos da seguinte forma: segurança, paz, bem estar e igualdade de chances. A segurança e a paz fizeram enormes progressos no mundo, depois que os cientistas e literatos se reuniram em Paris, no início de 1988. O comunismo acabou e com ele a ameaça de um enfrentamento praticamente suicidário entre as duas grandes potências atômicas. As guerras que subsistem são residuais – com uma ou outra exceção – ou reduzidas ao contexto regional e civil interno. O desenvolvimento social também conheceu enormes avanços, muito embora subsistam zonas de fome endêmica, geralmente naqueles contextos de conflitos civis e político, e alguns casos de privação epidêmica, dados os desequilíbrios ambientais criados pelo homens, também em grande medida coincidentes com as zonas de conflito.
A igualdade de chances não é, infelizmente, muito bem disseminada no mundo, mas isso não quer dizer que se trata de um problema “ao mesmo tempo universal e interdependente”, uma vez que a responsabilidade pela educação dos cidadãos – fator primordial da igualdade de oportunidades – permanece indefectivelmente com os Estados nacionais. Não se concebe, neste momento, processos universais de educação e capacitação técnica, pois isso poderia ser assimilado à “desculturação” ou mesmo ao “etnocídio”. Sim, infelizmente, a ditadura do “politicamente correto” e outras inovações típicas dos anti-globalizadores inviabiliza uma diminuição do grau de soberania estatal associada aos processos de educação e socialização para o trabalho.
5. A ciência é um poder. O acesso à ela deve ser igualmente repartido entre os indivíduos e os povos.
PRA: Interessante como proposta, mas algo ingênua. Se a ciência é um poder, então ela nunca será repartida igualmente entre os povos, uma vez que a humanidade não se encontra suficientemente homogeneizada, ou livre de perigos residuais, para que o poder seja repartido de forma equânime. Isso não vai ocorrer antes de muito tempo.
Mas, mesmo que a ciência não fosse um poder, e sim um simples instrumento de poder – o que redunda quase no mesmo –, ainda assim não haveria condições de “dispensá-la” de forma igualitária entre todos os povos e indivíduos. As condições de sua produção implicam custos e ônus para os que investem nessa atividade, o que deve ser de alguma forma compensado. Por isso que à essa produção estão associados mecanismos de monopolização – patentes e outros títulos proprietários – que são a contrapartida indispensável ao investimento inicial.
De forma geral, entretanto, os avanços propriamente científicos já se encontram à disposição de todos, de forma livre e irrestrita, apenas a tecnologia sendo objeto de apropriação monopólica.
6. O fosso existente em muitos países entre a comunidade intelectual e os poderes públicos deve ser reduzido. Cada um deve reconhecer o papel do outro.
PRA: Propósito ainda plenamente válido.
7. A educação deve tornar-se prioridade absoluta de todos os orçamentos e deve contribuir para valorizar todos os aspectos da criatividade humana.
PRA: Propósito ainda plenamente válido.
8. As ciências e tecnologias devem estar à disposição de todos, especialmente dos países em desenvolvimento, de forma a permitir-lhes o controle de seu próprio destino e a definição dos conhecimentos que julguem necessários a seu futuro.
PRA: Os mesmos comentários do item 5 valem para esta proposta também. Cientistas e literatos, em especial os agraciados com o Prêmio Nobel, deveriam saber o que custa chegar a uma resultado “premiável”: anos e anos de pesquisas, despesas imensas para resultados por vezes frustrantes, sem contar os falsos caminhos e os ensaios fracassados. Os literatos devem gostar de viver de direitos autorais, do contrário teriam de procurar outro meio de vida. Colocar algo que custou muito à livre disposição de terceiros significaria que existe, sim, “almoço grátis”, o que parece contradizer um dos princípios econômicos mais elementares.
9. Se a televisão e os novos meios de comunicação constituem um instrumento essencial de educação para o futuro, a educação deve ajudar a desenvolver o espírito crítico em relação ao que é divulgado nesses meios.
PRA: Propósito ainda plenamente válido.
10. A educação, a alimentação e a prevenção são os instrumentos essenciais de uma política demográfica e de redução da mortalidade infantil. A generalização do uso das vacinas existentes e o desenvolvimento de novas vacinas devem constituir a tarefa comum dos cientistas e dos homens políticos.
PRA: Propósito ainda plenamente válido.
11. Todas as pesquisas relativas à prevenção e ao tratamento da AIDS devem ser partilhadas e estimuladas, sem bloqueios ou barreiras, especialmente através da cooperação da indústria farmacêutica. Uma vez disponível, a vacina contra a AIDS deve ser assegurada pelos poderes públicos.
PRA: Propósito ainda plenamente válido.
12. A biologia molecular, que por seus recentes avanços permite prever progressos na medicina e no isolamento da dimensão genética de certas doenças, deve ser estimulada, o que permitirá prever e talvez curar essas doenças.
PRA: Esses progressos científicos, como o das pesquisas com células-tronco, que alcançaram igualmente, no plano tecnológico, a melhoria genética dos alimentos (plantas e animais), vêm sendo infelizmente obstaculizados por fundamentalistas religiosos e outros fundamentalistas ecológicos, que brandem argumentos não científicos para impedir esses avanços. Os cientistas deveriam esforçar-se mais para vulgarizar o conhecimento técnico, afastando os aspectos religiosos e ideológicos que dificultam sua disseminação.
13. O desarmamento dará um estímulo significativo ao desenvolvimento econômico e social, tendo em vista os recursos limitados do mundo, atualmente drenados pela indústria armamentista.
PRA: Propósito ainda plenamente válido, embora realisticamente pouco efetivo.
14. Nós pedimos a organização de uma conferência internacional para tratar em seu conjunto do problema da dívida do Terceiro Mundo, obstáculo ao seu desenvolvimento econômico e político.
PRA: Esse problema já foi praticamente encaminhado, ao longo das duas últimas décadas, com a renegociação das dívidas dos países emergentes – o que implicou algum desconto do valor face – e o cancelamento unilateral ou negociado das dívidas dos países mais pobres. Caberia registrar, contudo, que o problema da dívida não é uma perversão do sistema financeiro internacional, e sim o resultado de fatores contingentes e outros imponderáveis, numa relação quase simétrica, de disponibilidade de liquidez do lado dos credores – que atuam de forma irresponsável, pelo desejo de lucro – e de demanda excessiva por parte dos tomadores, que também atuam de forma irresponsável ao contratarem encargos acima de suas possibilidades. Trata-se de velho e recorrente problema, que não deixará de conhecer novos episódios no futuro.
15. Os governos devem comprometer-se sem ambiguidades e de maneira legalmente vinculatória com o respeito aos direitos do homem, assim como aos tratados por eles ratificados.
PRA: Propósito ainda plenamente válido, mas o obstáculo mais importante à implementação prática dessa idéia é a validade absoluta do princípio westfaliano, consagrado no sistema onusiano, de que a soberania estatal prima sobre o direito “das gentes” no plano internacional. A Carta da ONU começa invocando os “povos das Nações Unidas”, mas seu teor é inteiramente consagrado às prerrogativas e deveres dos Estados, considerados entes exclusivos da formação do direito internacional e de sua observância prática. A próxima fronteira do progresso da humanidade talvez tenha de ser a derrogação do respeito absoluto a essa norma westfaliana e a adoção da cláusula democrática e dos direitos humanos preventivos como princípios organizadores da nova comunidade internacional. Não vislumbro, contudo, tal evolução no futuro previsível.
16. A conferência dos laureados do Nobel se reunirá novamente dentro de dois anos para estudar estes problemas. No intervalo, se uma urgência se manifestar, vários Nobel poderão reunir-se localmente, ou em todos os lugares onde os direitos do homem estiverem ameaçados.”
PRA: Não se tem notícia de outra reunião dos prêmios Nobel desde então. Se eles se reuniram, não mais voltaram a produzir, em todo caso, um documento abrangente como este. Não seria de todo inútil que os Nobel pudessem continuar oferecendo seus argumentos em prol do aperfeiçoamento da humanidade, embora se possa colocar em dúvida a eficácia desse tipo de exortação para a mudança real das condições de vida de milhões de seres do planeta. O otimismo intrínseco dos cientistas e sua inegável fé no futuro são, de toda forma, incuráveis. Que eles continuem a militar, junto com os homens de letras, pelo aperfeiçoamento da humanidade.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de dezembro de 2006
Publicado no Via Política (17.12.2006; neste link)
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