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segunda-feira, 17 de abril de 2017

Roberto Campos COM HUMOR (grato a Ricardo Bergamini)

Em homenagem aos 100 anos de vida do imortal Roberto Campos, que como todos os seres humanos inteligentes são bem humorados.
 Ricardo Bergamini

Leis da política (19/12/1999)

*Roberto de Oliveira Campos
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Era uma crespa noite de inverno londrino. Eu tinha convidado para um jantar na embaixada brasileira, ao fim dos anos 70, o grande filósofo liberal francês Raymond Aron e dois sociólogos radicados na Inglaterra, Ralf Dahendorf e Ernest Gellner, este último professor de José Guilherme Merquior, meu conselheiro de embaixada. Na curva do conhaque, quando filosofávamos sobre nominalismo, realismo e existencialismo, contei uma piada que Aron achou divertida. Era a definição de "realidade" por um irlandês, revoltado pela interrupção de suas libações alcoólicas à hora do fechamento dos pubs. "A realidade", disse ele, "é uma ilusão criada por uma aguda escassez de álcool".

Quando partiram os hóspedes, resolvemos, Merquior e eu, em rodadas de uísque, testar duas coisas. Primeiro, a teoria irlandesa do realismo alcoólico. Segundo, nossa capacidade de recitarmos, de memória, aquilo que poderíamos chamar de "leis de comportamento sociopolítico" de variadas personagens e culturas. Alternávamos nas citações, que registrei num alfarrábio que outro dia desenterrei numa limpeza de arquivos. Ei-las:

A lei de Lenin: "É verdade que a liberdade é preciosa. Tão preciosa que é preciso racioná-la".

A lei de Stalin: "Uma única morte é uma tragédia; 1 milhão de mortes é uma estatística".

A lei de Krushev: "Os políticos em qualquer parte são os mesmos. Eles prometem construir pontes mesmo quando não há rios".

A lei de Henry Kissinger: "O ilegal é o que fazemos imediatamente. O inconstitucional é o que exige um pouco mais tempo".

A lei de Franklin Roosevelt: "Um conservador é um homem com duas excelentes pernas, que contudo nunca aprendeu a andar para a frente".

A lei de Lord Keynes: "A dificuldade não está nas idéias novas, mas em escapar das antigas".

A lei de Bernard Shaw: "Patriotismo é a convicção de que o país da gente é superior a todos os demais, simplesmente porque ali nascemos".

A lei de Hayek: "Num país onde o único empregador é o Estado, a oposição significa morte por inanição. O velho princípio de quem não trabalha não come é substituído por um novo princípio: quem não obedece não come".

A lei de Mark Twain: "Um banqueiro é um tipo que nos empresta um guarda-chuva quando faz sol, e exige-o de volta quando começa a chover".

A lei de Lorde Kelvin: "Grandes aumentos de custos com questionável melhoria de desempenho só podem ser tolerados em relação a cavalos e mulheres".

A lei de Charles De Gaulle: "As promessas só comprometem aqueles que as recebem".

A lei de John Randolph, constituinte na Convenção de Filadélfia: "O mais delicioso dos privilégios é gastar o dinheiro dos outros".

A lei de Getúlio Vargas: "Os ministérios se compõem de dois grupos. Um formado por gente incapaz, e outro por gente capaz de tudo".

A lei do governador Mario Cuomo, de Nova York: "Faz-se campanha em poesia e governa-se em prosa".

A lei de John Kenneth Galbraith: "A política não é a arte do possível. Ela consiste em escolher entre o desagradável e o desastroso".

A lei de Sócrates: "No tocante a celibato e casamento, é melhor não interferir, deixando que o homem escolha o que quiser. Em ambos os casos, ele se arrependerá".

No último uísque, Merquior me contou um chiste anônimo, que circulava em Londres: "A natureza deu ao homem um pênis e um cérebro, mas insuficiente sangue para fazê-los funcionar simultaneamente". Ao confidenciar a Merquior que pretendia aposentar-me do Itamaraty para ingressar na política, lembrou-me ele a lei de Hubert Humphrey, vice-presidente dos Estados Unidos na administração Lindon Johnson, que dizia: "É verdade que há vários idiotas no Congresso. Mas os idiotas constituem boa parte da população e merecem estar bem representados".

Tendo em vista minhas ambições políticas, combinamos fabricar conjuntamente uma lei, que passaria à posteridade como a lei Campos/Merquior: "A política é a arte de fazer hoje os erros do amanhã, sem esquecer dos erros de ontem". Ao nos despedirmos, já mais sóbrios, lembrei-me de duas leis. A lei do King Murphy, que assim reza: "Não estão seguras a vida, a liberdade e a propriedade de ninguém enquanto a legislatura estiver em sessão". E a lei do sábio Montesquieu, o inventor da teoria da separação de poderes: "O político deve sempre buscar a aprovação, porém jamais o aplauso". Em minha vida política no Senado e na Câmara procurei descumprir a lei do King Murphy e cumprir a lei de Montesquieu. Sem resultados brilhantes nem num caso, nem no outro...

*Defensor apaixonado do liberalismo. Economista, diplomata e político também se revelou um intelectual brilhante. De sua intensa produção, resultaram inúmeros artigos e obras como o livro A Lanterna na Popa, uma autobiografia que logo se transformou em best-seller. Foi ministro do Planejamento, senador por Mato Grosso, deputado federal e embaixador em Washington e Londres. Sua carreira começou em 1939, quando prestou concurso para o Itamaraty. Logo foi servir na embaixada brasileira em Washington, e, cinco anos depois, participou da Conferência de Bretton Woods, responsável por desenhar o sistema monetário internacional do pós-guerra. 

TV Senado faz documentario sobre Roberto Campos; links

Recebido, links do Senado:





Roberto Campos além do tempo: uma voz dissidente e profética do Brasil

   
Patrícia Oliveira | 17/04/2017, 08h34
“O mundo está ficando cada vez mais parecido com as minhas ideias”, disse o cuiabano Roberto Campos em referência às mudanças que ocorriam no final da década de 90. Se estivesse vivo, completaria cem anos este mês e constataria que suas ideias estão mais atuais do que nunca. O economista, diplomata e parlamentar antecipou os grandes debates que dominariam o cenário político e econômico do país e do mundo neste século.
Nesta segunda-feira (17), a pedido do senador Cidinho Santos (PR-MT), o Senado Federal faria sessão especial destinada a comemorar o centenário de nascimento do ex-senador. Em decorrência de requerimento do deputado Paes Landim (PTB-PI), a iniciativa foi transformada em sessão solene do Congresso Nacional. A sessão está prevista para começar às 11h.
Roberto Campos ajudou a criar o atual Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Banco Central do Brasil, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o Estatuto da Terra. Participou da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, importante estágio na construção do pensamento brasileiro em planejamento econômico.
Frequentou as principais conferências mundiais que estabeleceram as regras para as relações comerciais e financeiras entre os países: Bretton Woods (1944), que criou o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial; Conferência de Havana (1947), que deu origem à Organização Mundial de Comércio (OMC).
Liberal, defendia a privatização e as reformas, a educação, a tecnologia e o acesso aos mercados externos. Pragmático e polêmico, cultivou muitos admiradores e desafetos. Os críticos que o acusavam de ser “entreguista” e “americanizado” cunharam-lhe o famoso apelido “Bob Fields”. Para ele, no entanto, o antiamericanismo era “a moléstia infantil do nosso nacionalismo”. E em entrevista na TV cravou: “O dinheiro não tem cor e se ele toma a forma de investimento é útil. Seja providenciado por Deus ou pelo diabo”.
Embaixador em Londres e também em Washington, no governo João Goulart (1961-1964), Roberto Campos passou boa parte da vida diplomática na tentativa de negociar empréstimos para o Brasil.
Foi autor (e coautor) de diversas obras, entre elas destacam-se: O Mundo que Vejo e não DesejoA Lanterna na Popa, livro de memórias; e os últimos ensaios do Na Virada do Milênio.

Dissidente

Voz sempre dissidente, demitiu-se no segundo governo de Getúlio Vargas (1930-1945) por condenar o que considerava “demagogia e populismo”, e não hesitou em se demitir também sob Juscelino Kubitscheck, com quem colaborou na elaboração do Plano de Metas. Chamou Brasília de “a capital do deficit e da inflação”, construída “contra o orçamento”.
Foi figura de destaque como ministro do Planejamento de Castello Branco, no período do regime militar, com medidas que levariam ao milagre econômico; mas contra o qual depois fez críticas pelo tamanho do Estado.
Também combateu a Constituição de 1988, que julgava “desnecessária”, e não poupava os pares no Congresso. Desse período restaram as recordações do senador Edison Lobão (PMDB-MA), seu colega na Constituinte.
— Ele tinha verdadeiras cólicas de decepção com algumas emendas que eram aprovadas na Constituinte que, a juízo dele, mais prejudicavam o país que ajudavam — relembra.
A ironia fina, que era marca registrada de Campos, também ficou na lembrança de Lobão.
— Certa vez ele me disse: 'Olha Lobão, hoje eu fiquei feliz porque a Constituinte aprovou uma emenda que me beneficia diretamente. Eu sempre tive muito medo de morrer e com essa emenda aprovada aqui eu não vou morrer nunca mais'. Eu disse:'Como assim?' E ele respondeu: 'Está dito lá que todos os brasileiros têm direito à vida' — relatou.

Trajetória

A trajetória desse personagem fundamental para o país, falecido em 2001, está descrita no livro O Homem que Pensou o Brasil, lançado em comemoração ao seu centenário e organizado pelo diplomata Paulo Roberto de Almeida, diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais. Para escrever metade da obra, ele leu toda a bibliografia de Roberto Campos desde a dissertação de mestrado e artigos para jornais, até textos póstumos e outros ainda inéditos.
— O trabalho de mestrado dele foi considerado por um grande economista austríaco da época, Joseph Schumpeter, como uma tese de doutorado, dada a profundidade da análise sobre flutuações e ciclos econômicos — observa.
O livro destaca o saneamento financeiro promovido por Roberto Campos no final da década de 60 para a construção das bases de crescimento do país.
— O Brasil alcançou taxas que, nós diríamos hoje, chinesas. De 10% a 14% ao ano em 1973. Eram os asiáticos que vinham até aqui tomar receitas de crescimento econômico — comenta Paulo Roberto de Almeida.
As ideias de Roberto Campos são realçadas no livro de modo a revelar o “homem do mundo”, um tanto insurgente, mas depois legitimado pela história na defesa das liberdades econômicas e da racionalidade política.
— Ele se batia contra cinco “ismos”: populismo, nacionalismo, protecionismo, patrimonialismo e prebendalismo. Para sair da “miséria dispensável” e caminhar para uma riqueza aceitável e possível — explica.
Almeida lembra que apesar do papel importante que teve na construção do Estado forte dos militares, Roberto Campos se arrependeria depois.
— Nos últimos 20 anos de sua vida, praticamente foi um obstrutor do Estado promotor do desenvolvimento. Ele achava que o Estado controla todo o setor privado, mas não controla a si próprio. Ele teve razão antes do tempo — avalia.
Autointitulado “diplomata herege”, Roberto Campos também tem, apontado no livro, seu lado contestador no Itamaraty , como nas questões nucleares e de desenvolvimento.

Vida parlamentar

As obras sobre Roberto Campos ainda têm a colaboração de outros autores importantes, entre eles Antonio José Barbosa, professor de História na Universidade de Brasília (UnB), que traçou o perfil parlamentar e leu todos os discursos de Campos no Congresso.
Quando foi eleito senador por Mato Grosso, Campos já era uma figura nacional conhecida.
— Ele chega ao Senado em um momento de crise aguda. Era o último governo do regime militar, de João Figueiredo, com a dívida externa que crescia exponencialmente e a inflação cada vez mais descontrolada — explica.
A atuação no Senado — entre 1983 e 1991 — foi marcada pelas proposições na área da economia, a partir da própria experiência acadêmica, intelectual e profissional. Os grandes discursos que fazia lotavam o Plenário. E alguns se tornaram históricos.
— O primeiro, de posse, quando ele fez uma espécie de confissão de seu ideário. E o último discurso, de despedida do Senado, é também impressionante, pois atesta a sua extrema coerência; mostra que os problemas apontados oito anos antes continuavam existindo, porque o Brasil teimava em não ter coragem de tomar as decisões necessárias — diz.
Famosos também eram os embates com os colegas parlamentares, como Fernando Henrique Cardoso, por quem tinha admiração.
— Ele não levava desaforo para casa. Muitas vezes quando era atacado de forma grosseira e não estava no Plenário, em viagens ao exterior, voltava e fazia questão de responder, mas sem baixar o nível da discussão.
Suas propostas não foram aprovadas. Projetos como o de combate à Lei de Informática ou da flexibilização da CLT não foram adiante. O mesmo se repetiria em seu último cargo público, na Câmara dos Deputados.
— Na verdade, ele se orgulhava das derrotas. Uma personalidade extremamente controversa, sobretudo porque refletiu o grande embate intelectual que acontecia no Brasil — ressalta o professor.
Roberto Campos é retratado nessa parte do livro não como homem de direita, ortodoxo, enclausurado na conjuntura, mas um homem prático e racional. No seu texto, o professor Antonio José Barbosa também destaca a “clarividência” de Campos.
— Problemas que estão na ordem do dia da agenda política brasileira em 2017 como as reformas tributária, previdenciária e trabalhista, tudo isso foi alertado por Roberto Campos lá nos anos 80 na tribuna do Senado.

Homenagem

O senador Cidinho Santos (PR-MT) é o autor do requerimento para a sessão especial do Senado em homenagem ao centenário de Roberto Campos.
— Meu primeiro voto foi em Roberto Campos, para senador pelo Mato Grosso. Sempre fui um admirador dele. Todos os mato-grossenses ansiavam pela oportunidade de fazer essa homenagem — disse.
Cidinho também é defensor das ideias do homenageado com relação à economia.
— Ele lá atrás já dizia que o Brasil só teria jeito se cada um tivesse a oportunidade de trabalhar e vencer na vida. E se naquele momento o Brasil tivesse seguindo um pouco  o pensamento do Roberto Campos, talvez nós estivéssemos numa situação muito melhor hoje — opina. 
O ex-seminarista e intelectual retraído — que defendeu o livre mercado, a racionalidade política e a eficiência econômica no Brasil — não prometeu igualdade e foi duramente contestado. Se soubesse que hoje muita gente sente sua falta, Campos talvez repetisse satisfeito que “É excelente ser bem falado na saída. Melhor do que ser bem recebido na entrada”.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
“O mundo está ficando cada vez mais parecido com as minhas ideias”, disse o cuiabano Roberto Campos em referência às mudanças que ocorriam no final da década de 90. Se estivesse vivo, completaria cem anos este mês e constataria que suas ideias estão mais atuais do que nunca. O economista, diplomata e parlamentar antecipou os grandes debates que dominariam o cenário político e econômico do país e do mundo neste século.


Ricardo Bergamini relembra um dos melhores textos de Roberto Campos: 100 anos hoje

Prezados Senhores

Em homenagem aos 100 anos de vida do imortal Roberto Campos, leiam com atenção seus ensinamentos para o grave momento atual do Brasil. Creio que o título do artigo já diz tudo.

Repetindo o óbvio (09/01/2000)

126417*Roberto de Oliveira Campos
 

Aceito o risco de parecer repetitivo. Diante das grandes questões que preocupam mais no nosso país, a originalidade do articulista fica em segundo lugar. Estamos atravessando dias pesados, um ambiente de insatisfações e sombras. Os mais jovens sentem-se angustiados diante das incertezas do futuro, da ameaça de desemprego, de falta de horizontes. Os mais velhos tentam lembrar-se daqueles períodos em que o Brasil não atravessava um estado de crise permanente. Salvo alguns breves anos do começo do Plano Real, parte da Era Kubitschek e o otimismo do "milagre econômico" do fim dos anos 60 - que, no entanto, foi tisnado pela situação política de exceção -, todo o resto de nossa História contemporânea é um confuso mosaico de problemas e condições institucionais instáveis.


Não chegamos felizmente ao extremo dos gulags, campos de extermínio, "limpezas étnicas" e coisas que tais. Nossos chamados "anos de chumbo", comparados às experiências de outras nações (e certamente aos "anos de aço" dos regimes comunistas), pareceriam antes de papel de cigarro metalizado. Se afundamos numa situação crítica injustificável, é por nossa própria culpa, por falta coletiva de bom senso e de responsabilidade.

O público exprime sua perplexidade naquela conhecida anedota de como Deus, tendo presenteado nossa geografia com uma abundância de vantagens materiais, colocou no Brasil, como contrapeso, um "povinho ruim". Essa autodepreciação está errada. O trabalhador brasileiro, ainda que subinstruído, é diligente e flexível, como as empresas estrangeiras são as primeiras a reconhecer. Os engenheiros e gerentes especializados têm em alguns casos nível bastante alto. Somos a oitava economia do mundo e temos conseguido adaptar-nos a mudanças tecnológicas complexas. Falta-nos reduzir os excessivos contrastes em matéria de educação, informação e saúde - demanda social justa, mas não um impedimento real ao nosso desenvolvimento tecnológico ou industrial.

A verdade é que nosso grave subdesenvolvimento não é só econômico ou tecnológico. É político. Somos um gigante preso por caguinchas dentro de estruturas disfuncionais. A máquina político-administrativa que rege hoje nossos destinos é uma fábrica de absurdas distorções cumulativas. O regime presidencialista e o voto puramente proporcional, cada um dos quais, já de si, dificilmente funcionam bem, transformam-se, quando combinados, numa crise quase ininterrupta. O presidencialismo americano, que nos serviu de modelo, é conjugado ao voto distrital, e a federação é autêntica, porque foram os Estados que a criaram, enquanto que no Brasil estes resultaram do desfazimento do império unitário.

Não é que os políticos só pensem em si ou sejam "corruptos" de nascença. Essa é uma visão popular deformada. A maioria é dedicada e séria. Mas o deputado, o senador, o prefeito, o governador e, obviamente, o presidente têm de ser eleitos, ponto de partida do qual não há escapatória. Nas eleições proporcionais de hoje, os deputados são obrigados a catar votos por todo o Estado, garimpando aqui e ali - um processo caro e tremendamente incerto, porque eleitor em geral não sabe como discriminar entre dezenas de representantes eleitos. Como é que o eleitor médio vai se lembrar de quem propôs medidas ou leis, para poder avaliar quem merece o seu voto? Um americano ou um inglês pode falar no "seu" deputado: sabe exatamente quem ele elegeu e tem como cobrar respostas ao representante do "seu" distrito. O alemão, com um sistema misto, tem o "seu" deputado distrital e também o da lista do seu partido. E, como o regime é parlamentarista, pode cobrar de ambos.

No Brasil, cobrar o quê? De quem? Mal acaba de ser eleito por um partido, o deputado ou senador se sente à vontade para mudar de partido. Não existe sanção. A eleição presidencial então é sempre um trauma violento, agravado pela percepção de que o vencedor passará a controlar a máquina pública, os mecanismos de dar ou negar favores. Gerir a coisa pública é, entre nós, um contínuo varejo. Dá para estranhar que, desde o início da República, raros tenham sido os governos que não se envolveram em conflitos com o Congresso, com riscos de descontinuidade institucional? Contra um sistema tão ruim, tanto faz se os políticos são santos ou bandidos. Num ônibus sem freios, o perigo de desastre é o mesmo para todos. Há perto de três séculos e meio, Colbert, o famoso ministro protecionista da França monárquica, assim se lamentava na Carta de Luís XIV aos funcionários e ao povo de Marselha (26 de agosto de 1764):

"Como desde a morte de Henrique IV temos tido só exemplos de carências e necessidades, precisamos determinar como aconteceu que, durante tão longo tempo, não tenhamos tido, se não abundância, pelo menos uma renda toleravelmente satisfatória..." Colbert põe a culpa no sistema fiscal e afirma que piores do que os muitos corruptos foram aqueles altos funcionários "cuja incompetência prejudicou mais o Estado e o povo do que os roubos pessoais". Entre os vícios da burocracia fiscal da época, Colbert lista os seguintes: "Consumir com despesas correntes as receitas ordinárias e extraordinárias dos dois próximos anos..." e "negligenciar as receitas gerais ordinárias afazendadas, dedicando-se ativamente à busca de fontes de renda extraordinárias..."

Colbert se revelou um reformista e desenvolvimentista avant la lettre. Mas a França já estava politicamente entalada, e ele não conseguiu realizar sua "reforma fiscal". O mundo está cansado de esperar pelas "reformas" brasileiras. E de ouvir lamentações sobre a nossa pobreza. Há muito, exceto em regiões desérticas da África ou gravemente sobrepovoadas da Ásia, a pobreza deixou de ser uma fatalidade. É um acidente histórico de povos que preferem externalizar a culpa em vez de fabricar seu próprio destino.

*Defensor apaixonado do liberalismo. Economista, diplomata e político também se revelou um intelectual brilhante. De sua intensa produção, resultaram inúmeros artigos e obras como o livro A Lanterna na Popa, uma autobiografia que logo se transformou em best-seller. Foi ministro do Planejamento, senador por Mato Grosso, deputado federal e embaixador em Washington e Londres. Sua carreira começou em 1939, quando prestou concurso para o Itamaraty. Logo foi servir na embaixada brasileira em Washington, e, cinco anos depois, participou da Conferência de Bretton Woods, responsável por desenhar o sistema monetário internacional do pós-guerra.

Ricardo Bergamini