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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Vargas Llosa sobre Isaac Deutscher e Isaiah Berlin, em livro de David Caute

Isaac e Isaiah
Mario Vargas Llosa
O Estado de S.Paulo, 30/11/2013

Num livro que acaba de publicar, Isaac & Isaiah: The Cover Punishment of a Cold War Heretic, ("Isaac e Isaiah: a punição oculta de um herege da Guerra Fria", em tradução livre), David Caute compara as vidas, ideias e destinos de Isaac Deutscher e Isaiah Berlin, dois ensaístas que, nos anos 50 e 60 do século passado, tiveram muito prestígio e influenciaram muitos intelectuais da Europa e da América do Norte. Eles eram muito semelhantes em vários aspectos, mas suas ideias representavam dois polos irreconciliáveis: Deutscher, o marxismo revolucionário; Berlin, a democracia liberal.
Ambos eram judeus não praticantes, da mesma geração, e precisaram fugir dos seus respectivos países em razão do totalitarismo (soviético no caso de Berlin, nascido na Letônia; e Deutscher, que era polonês, do nazismo). Ambos acabaram se exilando em Londres e se naturalizaram britânicos. A única coincidência, em termos de ideologia, entre eles, e só por alguns anos, foi seu apoio ao sionismo, que mais tarde Deutscher atacou duramente, chamando Israel de lacaio do imperialismo americano durante a Guerra Fria.
Berlin foi muito reconhecido no âmbito acadêmico. Passou quase toda a sua vida em Oxford, chegou a presidir a Royal Academy e ser condecorado pela rainha. Ao passo que Deutscher, apesar de ter participado de seminários e trabalhado como professor convidado em importantes universidades, foi sobretudo jornalista e um escritor independente.
Seu único desejo, ser contratado por uma universidade britânica, de Sussex, foi frustrado por culpa de Berlin, afirma o autor, e daí o subtítulo um tanto enganador do livro: "A punição oculta a um herege da Guerra Fria". Enganador porque, embora haja indícios de que a opinião hostil de Berlin sobre a obra e a posição política de Deutscher influiu na decisão da Universidade de Sussex de não contratá-lo, o caso não está nada claro. E, de qualquer modo, Berlin sempre rejeitou a acusação, inclusive em duas cartas explicando sua intervenção no caso à viúva do autor das célebres biografias de Stalin e de Trotsky.
O livro é interessante, muito documentado, mas não é agradável, diante da antipatia que Caute nutre por Berlin, sentimento que transparece com frequência, sobretudo quando se empenha em ressaltar suas frivolidades, sua tendência a cultivar a amizade dos poderosos e dos milionários, e a mostrar-se, às vezes, presunçoso e arrogante com as pessoas. E ainda, o que é muito mais grave, dando a entender, de maneira sub-reptícia, que algumas das maiores contribuições de Berlin à cultura da liberdade, como sua teoria sobre a liberdade "negativa" e a "positiva", a divisão dos intelectuais em "ouriços" e "raposas" e a clara demarcação entre um liberal e um conservador, não foram nem originais nem importantes.
A verdade é outra: Berlin é um dos mais importantes pensadores políticos do nosso tempo e um dos poucos cuja obra define com uma coerência sistemática e perfeita o liberalismo limitado e sectário dos que o entendem como sendo uma doutrina exclusivamente econômica de defesa do mercado, e os que, como ele próprio, veem no liberalismo uma doutrina em que a tolerância, a coexistência política, os direitos humanos, o espírito crítico, a cultura e a fiscalização do poder são tão importantes quanto a propriedade privada e a economia de mercado para estimular o progresso social.
Isaiah Berlin e Isaac Deutscher viram-se apenas duas vezes na vida e nunca se enfrentaram diretamente. Mas, como diz o autor, as coisas que defendiam e criticavam eram quase sempre incompatíveis e, ao mesmo tempo, de grande solidez intelectual e elegância expositiva. No decorrer dos anos e diante de tudo o que ocorreu na vida deles, sabemos que o debate foi vencido por Berlin, como prova o desaparecimento da União Soviética e a conversão da China ao capitalismo autoritário.
Agora, o fato de todas as profecias e anseios políticos de Deutscher terem malogrado não desvaloriza sua obra nem diminui o mérito, a coragem e a honestidade com que sempre defendeu suas ideias. Ele foi um marxista contrário ao totalitarismo, uma exceção. Foi a razão pela qual o Partido Comunista polonês o expulsou das suas fileiras e porque sempre foi o pesadelo dos stalinistas da União Soviética e do Ocidente.
Nunca negou os terríveis crimes cometidos à época de Stalin e, nos livros e ensaios que dedicou ao ditador soviético e a Trotsky, ele os documentou rigorosamente. No entanto, estava convencido de que, apesar de tudo, o comunismo se reformaria no curto ou no longo prazo e um retorno às fontes primitivas do marxismo criaria sociedades mais justas, mais humanas, mais decentes do que o capitalismo, cujo êxito exigia a exploração da maioria pela minoria e era inerentemente injusto, por isso, condenado, cedo ou tarde, a perecer. A famosa reforma interna da União Soviética, pela qual Deutscher tanto esperou, jamais tornou-se realidade. Afinal, foi o comunismo que deixou de existir, pelo menos como uma alternativa concreta às democracias liberais.
Mas, em sua condenação ao colonialismo, à corrupção e aos abusos que o poder econômico podia chegar a cometer nos países capitalistas, na ênfase na necessidade de não condicionar o progresso exclusivamente ao crescimento econômico, conferir à democracia um conteúdo criativo e constantemente renovado por um ideal de justiça e solidariedade com os pobres, os discriminados, os marginalizados, as ideias de Deutscher têm valor perene.
E é verdade também, afirma Caute, que sua vida foi um modelo de coerência, o que lhe exigiu sacrifícios enormes. Mas também se equivocou muitas vezes. Por exemplo, acreditou que o movimento contra a guerra do Vietnã, nos EUA, seria a gestação de um socialismo que uniria os estudantes e os trabalhadores americanos numa revolução contra o capitalismo.
Por que Berlin sempre manifestou uma antipatia tão profunda com relação a Deutscher a ponto de, em sua correspondência, usar contra ele termos tão insólitos como "repelente" e "desprezível"? Certamente, não era a divergência de ideias que os separava. Berlin dedicou mais tempo tentando entender os inimigos da liberdade do que seus defensores e consagrou ensaios escrupulosamente honestos a Marx, Comte, Herder, Hobbes e Sorel, e muitos outros dessa corrente.
Assim, a razão da antipatia não era ideológica. E também não era pessoal, pois eles apenas se viram em duas ocasiões. O autor do livro dá a entender que a razão poderia estar numa crítica negativa escrita por Deutscher contra o ensaio de Berlin sobre a "inevitabilidade histórica". No entanto, esse parece um episódio muito pequeno para despertar tanto ódio pessoal.
Não menos surpreendente é o desprezo que Berlin manifestou sempre por Hannah Arendt, uma amante da liberdade não menos comprometida do que ele na luta contra o comunismo e o fascismo (que conheceu na carne, pois foi torturada durante nove dias e nove noites pela Gestapo antes de conseguir fugir da Alemanha) e quase toda a sua obra é dedicada a estudar as raízes do totalitarismo, suas origens culturais e históricas e as iniquidades que causou. Em suas cartas, Berlin refere-se a ela de uma maneira profundamente depreciativa, negando-lhe competência filosófica e acusando-a, injustamente, de escrever calhamaços incompreensíveis.
Talvez não haja respostas para essas perguntas. Ou talvez sim, mas não são satisfatórias em razão de sua imprecisão. Os grandes nomes - e Isaiah é um deles - são também seres humanos e não super-homens e, por isso, sujeitos às pequenezes e misérias que, por exemplo, nos deixam consternados quando revolvemos a vida íntima de um Picasso, um Victor Hugo ou qualquer outro gênio. Eram grandes quando escreviam, compunham, filosofavam ou pintavam. Entretanto, quanto ao resto, eram feitos do mesmo barro que nós, pobres mortais.

 TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

* É ESCRITOR E PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

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