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domingo, 6 de agosto de 2023

Isaiah Berlin, The First and the Last, Book review - Paulo Roberto de Almeida

 Isaiah Berlin, The First and the Last 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre o livro organizado por Henry Hardy, contendo o primeiro escrito de Isaiah Berlin, de 1922, com 12 anos, e o último, de 1996, aos 86 anos, dois anos antes da morte do grande pensador liberal naturalizado britânico.

 



 

Tenho uma especial predileção por este livro, The First and the Last (New York: The New York Review of Books, 1999), organizado e introduzido por Henry Harden, que contém o primeiro escrito do jovem estudante Isaiah, já vivendo na Inglaterra, e o último texto do grande mestre do liberalismo, escrito pouco antes dele falecer, com 88 anos, em novembro de 1997, talvez porque eu também teria apreciado guardar meu primeiro escrito “sério”, o que infelizmente não ocorreu. Não tenho certeza se meu “último” escrito será preservado, ou se ele igualmente desaparecerá no acúmulo de papeis de minha atual caótica biblioteca. Em todo caso, tomando como exemplo o trabalho efetuado por admiradores do ilustre filósofo, vou começar por expor esses escritos de Berlin e refletir um pouco sobre trabalhos extremos.

Isaiah Berlin nasceu em Riga, em 1909, mas sua família se mudou para Petrogrado em 1916, ou seja, durante a Grande Guerra, quando a agitação da oposição russa ao czarismo moribundo já preparava o terreno para os formidáveis atos revolucionários do ano seguinte, em fevereiro, quando a autocracia russa é deposta, e em outubro (ou novembro), quando ocorre o putsch bolchevique, pondo fim à breve experiência democrática da Rússia, antes de 70 anos de totalitarismo soviético. Em 1921, sua família emigrou para a Inglaterra, e com menos de um ano na nova pátria, que seria a sua até falecer, ele já dominava o inglês com certa suficiência, o que lhe habilitou a escrever o primeiro escrito que sobreviveu de seus primeiros anos escolares. 

Como explica Henry Hardy em breve nota ao primeiro texto, “The purpose justifies the ways”, Isaiah Berlin “came to England in 1921, aged eleven, with virtually no English” (p. 7). A história, que não tinha título no manuscrito original, se refere ao caso de um Comissário bolchevique local, presidente da Checa de Petrogrado, assassinado por um membro da aristocracia russa em 1918, e o título atribuído posteriormente ao texto se deve a que, como explica novamente o organizador,

... because it signals the way in which the story points forward to Berlin’s repeated later insistence in the inadmissibility of justifying present suffering as a route to some imaginary future state of bliss. (p. 8)

 

De certa forma, o título atribuído postumamente à história relatada por Berlin, “os fins justificam os meios”, de cujos fatos ele foi contemporâneo, aos nove anos, parece confirmar a primeira etapa de um itinerário intelectual seguido por ele de forma coerente durante toda a sua vida, o que é confirmado pelo último escrito inserido neste livrinho, “My Intellectual Path”, escrito 74 anos depois, em 1996, como contribuição a um volume organizado pela universidade de Wuhan, na China, sobre filósofos anglo-americanos. Este foi o seu último texto dotado de certa substância reflexiva, depois de uma “memória” escrita em 1988, “On the Pursuit of the Ideal”, em resposta a um prêmio que lhe tinha sido atribuído pela primeira vez pela Fundação Agnelli, em homenagem à sua contribuição à ética, como também explica o introdutor Henry Hardy (p. 23). Esse texto, que possuo em outro volume de seus escritos, foi republicado, depois de ter sido divulgado em primeira mão pela The New York Review, no volume The Crooked Timber of Humanity (Princeton Universitey Press, 1998). 

No caso do comissário bolchevique, o jovem Berlin identificava no “camarada” um homem de ação, que “dividia a humanidade em duas classes, a primeira as pessoas que estavam em seu caminho, a segunda classe as pessoas que o obedeciam. As primeiras pessoas, segundo a compreensão de Uritzky [o nome do bolchevique], não mereciam absolutamente viver” (p. 17-18). Não está claro se o garoto Isaiah assistiu aos fatos, ou se ele apenas relata o que ouviu de testemunhas. Em todo caso, ele descreve exatamente [e o texto preserva a pontuação defeituosa] o que ocorreu, quando um jovem aristocrata confronta o revolucionário que executou seu pai, um velho membro das classes proprietárias: 

And now finished Peter loudly pulling out his automatic [pistol], the hour come! hands up he shouted levelling his pistol with Uritzky’s forehead boom! sounded! The pistol and Uritzky without a groan fell heavily on the floor 

Ho! ahoy! soldiers! shouted Peter and when the soldiers appeared he faced them whith his pistol, the soldiers moved back in alarm, I killed your master he cried, and now my mission on earth is finished my father is executed… without a trial, and I have not got anybody to live for! Oh Father I am going to join you BOOM Fired Peter and fell heavily over the body of his dead enemy when the soldiers came near they found that both were dead (p. 19)

 


 Assim termina o primeiro escrito, que revela a forte impressão que deixou no menino Isaiah os primeiros meses da revolução soviética, provavelmente um estrondo de violência que o acompanhou pelo resto da vida, em busca do ideal de uma postura filosófica que o levou a concluir, no seu último escrito, “My Intellectual Path”, que a ideia de uma sociedade perfeita é uma “enorme falácia intelectual” (p. 78). Como ele mesmo escreve, ao final desse texto que resume o debate filosófico no cenário acadêmico inglês do século XX, 

... the very idea of the perfect world in which all good things are realized is incomprehensible, is in fact conceptually incoherent. And if this is so, and I cannot see how it could be otherwise, then the very notion of the ideal world, for which no sacrifice can be too great, vanishes from view. 

To go back to the Encyclopedists and the Marxists and all other movements the purpose of which is the perfect life: it seems as if the doctrine of all kinds of monstrous cruelties must be permitted, because without these the ideal state of affairs cannot be attained – and all justifications of broken eggs for the sake of the ultimate omelette, all the brutalities, sacrifices, brainwashing, all those revolutions, everything that has made this century perhaps the most appalling of any since the days of the old, at any rate in the West – all this is for nothing, for the perfect universe is not merely unattainable but inconceivable, and everything done to bring it about is founded on an enormous intellectual fallacy. (p. 77-78)

 

Duas coisas podem ser agregadas depois dessas transcrições do primeiro e do último texto escrito por Berlin, aos 12 anos, e aos 86 anos: a primeira é a notável continuidade filosófica do garoto recém emigrado depois da Revolução bolchevique de 1917-18, para o mais liberal dos países da modernidade, para com o maduro filósofo do liberalismo e leitor crítico da literatura clássica russa; a segunda é o fato de concluir sua contribuição a uma publicação universitária chinesa dos anos 1990, quando o gigante asiático começava a se recuperar da trajetória demencial do maoísmo prático, que tinha literalmente destruído o ensino universitário duas décadas antes, durante a Revolução Cultural dos anos 1960-70.

Em todo caso, entre o primeiro e o último dos escritos de Isaiah Berlin, figuram algumas obras que tenho em minha estante e que vale agora revisitar: The Proper Study of Mankind: An Anthology of Essays (Chato & Windows, 1997, editado pelo mesmo Henry Hardy e cujo primeiro texto é “The Pursuit of the Ideal”) e The Sense of Reality: Studies in Ideas and their History (Pimlico, 1997; também editado por Henry Hardy). Tenho especial predileção por Against the Current: Essays in the History of Ideas (Viking Press, 1980), cujo título corresponde ao título similar de um dos meus livros: Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2019). Não sou filósofo, mas sei reconhecer os grandes... 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4453, 6 agosto 2023, 3 p.


 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Isaiah Berlin: um erudito liberal - entrevista com Henry Hardy, editor


Quando alguém lê Isaiah Berlin, sente-se em boas mãos: uma conversa com Henry Hardy
Principal editor das obras de Isaiah Berlin, Henry Hardy analisa a atualidade do pensamento do filósofo.
Estado da Arte
O Estado de S. Paulo, 17/02/2019
17 Fevereiro 2019

Henry Hardy, um dos principais editores da obra de Isaiah Berlin (© The Baltic Times)

por Rodrigo Coppe Caldeira e Jonathan Goudinho


Isaiah Berlin (1909-1997) foi um dos maiores intelectuais do século XX. De origem judaica, nasceu em Riga, atual Letônia, à época pertencente ao Império Russo,  emigrando com a família para o Reino Unido ainda jovem. A mistura fina entre as culturas judaica, russa e britânica moldaram seu espírito e suas formulações intelectuais. Como filósofo e historiador das ideias, tornou-se célebre por duas contribuições em particular: o significado e a aplicação do conceito de liberdade, com a icônica distinção entre as liberdades negativa e positiva, e a noção de pluralismo dos valores morais e culturais, com a igualmente representativa metáfora do ouriço e da raposa. Presenciou a Revolução Russa, a Primeira e a Segunda Grandes Guerras, a Guerra Fria e os horrores do nazismo e do comunismo. Morreu aos 88 anos, em Londres, celebrado como um dos principais pensadores liberais do século.
Berlin era um grande orador, “o maior falador do mundo”, como muitas vezes foi nomeado. Milhares de pessoas compuseram sua audiência em aulas, palestras, discursos, entrevistas e participações em programas de rádio e televisão. Ele também era um exímio ensaísta, com linguagem tão compreensível que poderia enganar incautos com a ilusão de que interpretar pensadores como Giambattista Vico, Johann G. Herder e Aleksandr Herzen fosse tarefa fácil. O que nem todos sabem é que este polímata judeu-russo não era muito afeito a sistematizar seu pensamento em textos bem organizados. O conjunto de sua obra permaneceria esparso e desconhecido se não fosse a persistência de um então entusiasmado estudante de doutorado, o filósofo Henry Hardy (1949).
Hardy conheceu Isaiah Berlin em 1972 na Universidade de Oxford, instituição na qual Berlin construiu toda a sua carreira acadêmica (como estudante, professor, pesquisador e gestor). As primeiras conversas nos espaços comuns do Wolfson College logo despertaram em Hardy o interesse em se aprofundar no pensamento de Berlin, surgindo a proposta da publicação de um volume com alguns de seus ensaios. A primeira coletânea foi Russian Thinkers, publicada em 1978. De lá para cá, Henry Hardy não parou mais: editou ou coeditou 18 livros com textos de Berlin, preparou a publicação de quatro volumes com correspondências do filósofo (que percorrem os anos de 1946 a 1997), e recorrentemente colabora com outros estudiosos do pensamento de Isaiah Berlin.
Desde 2000, Henry Hardy mantém a The Isaiah Berlin Virtual Library (http://berlin.wolf.ox.ac.uk/), um acervo do trabalho de Berlin e outras referências importantes para compreender sua reflexão. Recentemente, em outubro de 2018, lançou In Search of Isaiah Berlin: A Literary Adventure, um precioso livro de memórias que envolve tanto sua atuação como editor quanto a de intérprete do pensamento berliniano. A nova edição de The Sense of Reality: Studies in Ideias and Their History, uma coletânea de ensaios de Berlin, acaba de ser publicada pela Princeton University Press. Atualmente, Henry Hardy é pesquisador honorário do Wolfson College, do qual Berlin foi entusiasta 
e primeiro presidente.
Hardy conheceu Isaiah Berlin em 1972 na Universidade de Oxford, instituição na qual Berlin construiu toda a sua carreira acadêmica
Profundo conhecedor não somente das formulações intelectuais, mas também do próprio Isaiah Berlin, Hardy concedeu esta entrevista ao Estado da Arte por e-mail, abordando temas caros a Berlin que permanecem presentes no debate público contemporâneo. Como principal curador literário de Berlin, Henry Hardy dá razões suficientes para a atualidade do pensamento desse intelectual que tornou as ideias políticas tão fascinantes quanto possível.

Rodrigo Coppe e Jonathan Goudinho: Em “Uma Mensagem para o Século XXI” (Âyiné, 2016), o “credo breve” de Isaiah Berlin, ele tece notas de otimismo em relação ao “futuro brilhante” que projetava para o novo século, afirmando haver razões suficientes para tal. Curiosamente, ele não deixa tão claro quais seriam essas razões. Você, que o conhecia tão bem, saberia apontar quais eram suas esperanças?
Henry Hardy: A passagem final desse texto é estranhamente otimista, e os eventos subsequentes fazem com que pareça excessiva. Devemos nos lembrar que o texto foi escrito para uma cerimônia de graduação [doutorado honorário em Direito] em Toronto, e talvez ele quisesse encorajar seu público a ser esperançoso com a humanidade. Contudo, há uma tendência em todo o trabalho de Berlin de ‘acentuar o positivo’ na natureza humana e subestimar o negativo. É claro que ele reconheceu o quão espantosamente podemos nos comportar, como fez no começo desse discurso, e ele não era um panglossiano simplista. Mas seu temperamento era caloroso e positivo, e ele preferiu se concentrar em nossas potencialidades benéficas. Elas existem, é claro, e embora haja retrocessos e avanços na nossa luta para melhorar o estado político do mundo, acho que no geral Berlin acreditava que o bem prevaleceria sobre o mal, ainda que a luta nunca terminasse e fosse renovada em cada geração. Aqui ele fala do poder da racionalidade, da tolerância e da democracia liberal para melhorar o nosso mundo. Ele acreditava, em geral, no poder das ideias, considerando ser dever dos pensadores profissionais promover as boas e desacreditar as más, para que estas não ganhassem influência. No discurso, ele está cumprindo esse dever e, ao fazê-lo, fornece motivos para a esperança.
RC e JG: Quase 25 anos depois de “Uma Mensagem para o Século XXI”, que avaliação é possível ser feita sobre as esperanças de Berlin em relação ao que a realidade tem mostrado?
HH: Deve-se admitir que, em retrospecto, podemos ver que o otimismo de Berlin foi até certo ponto prematuro. Se isso é um revés temporário ou um caso de “reculer pour mieux sauter”, ainda não se tem certeza. Mas se não buscarmos melhorias, mesmo a um nível irreal, nunca conseguiremos alcançá-lo. Portanto, o erro de Berlin, se for isso mesmo, é certamente um erro na direção certa.


Isaiah Berlin

RC e JG: Berlin repetidamente criticava o “sacrifício humano nos altares das abstrações” (em uma referência à Aleksandr Herzen), isto é, a entrega total a grandes causas morais e políticas, como o comunismo, o nazismo e o nacionalismo.   Quais seriam os novos altares do nosso tempo? O que Berlin teria a dizer, por exemplo, sobre as controversas causas identitárias de hoje?
HH: O principal altar do nosso tempo me parece ser a crença religiosa fundamentalista, especialmente como visto entre muçulmanos fanáticos. Em minha opinião, esse sempre foi um dos principais altares em que os humanos foram sacrificados, e lamento que Berlin não tenha insistido mais nisso. O fundamentalismo religioso é um exemplo perfeito da excessiva certeza monista totalitária à qual ele se opunha terminantemente, mas que por alguma razão não viu dessa maneira. Quanto à política de identidade, não há nada de errado com isso em princípio. Na verdade, é outra maneira de descrever a necessidade de pertencer que Berlin, seguindo J. G. Herder, acreditava ser fundamental e permanente na natureza humana, e não uma aberração temporária que deveríamos aspirar a transcender. Contudo, isso pode sair do controle, como foi com o nacionalismo, e se tornar agressivo e maligno. Uma identidade não deve ser promovida às custas de outra igualmente legítima, e não devemos nos tornar fanáticos por questões de identidade, vendo tudo como algo que apoie ou seja hostil a esse propósito primordial. Mantida sob controle, a identidade (ou um grupo de identidades sobrepostas) faz parte de uma vida humana normal e saudável.
RC e JG: O nacionalismo foi outro tópico recorrente no pensamento de Isaiah Berlin, que já demonstrava preocupação com o fenômeno em textos da década de 1990. O que temos visto atualmente, com a explosão de novos nacionalismos ao redor do mundo, fazia parte do diagnóstico de Berlin? Como você avalia, por exemplo, fenômenos como o Brexit, no seu Reino Unido?
HH: Sim, o relato de Berlin sobre o nacionalismo em termos de uma reação à humilhação nacional se encaixa em muitos desenvolvimentos modernos. Ele aprovou a consciência nacional benigna, que é parte da identidade aceitável e necessária mencionada na minha resposta anterior. Mas quando isso saiu do controle, tornando-se autoafirmativo às custas de outras instâncias de pertença nacional, ele viu como algo injustificável e destrutivo a ser preterido. Quanto ao Brexit, não me parece ser necessariamente um caso de nacionalismo maligno. Há uma questão real sobre qual é o melhor tamanho para as unidades políticas e quantas culturas diferentes podem ser efetivamente administradas a partir de um único centro. Imagine uma democracia mundial: isso seria uma receita para o caos. Parte do apoio ao Brexit se deve à Europa ser vista como uma unidade política muito grande para funcionar bem para todos os seus povos constituintes, cujas necessidades e identidades diferem, às vezes profundamente. Outra razão é que, em algum grau, [a Europa] é antidemocrática, e se a pessoa acredita na democracia em princípio, essa é uma lacuna grave. É claro que existem outros casos, como os EUA, onde unidades ainda maiores operam com uma medida de sucesso, mas o contexto histórico é completamente diferente.
RC e JG: Embora Isaiah Berlin seja muito conhecido pela discussão sobre os conceitos de liberdade, sua principal contribuição intelectual é a doutrina do pluralismo, que à época de sua formulação já era uma noção desafiadora. Qual é a relevância do pluralismo de Berlin nos nossos dias, em que parece haver um acirramento de grupos disputando a hegemonia cultural?
HH: O pluralismo, se verdadeiro (e certamente eu acho que é), está na raiz de uma compreensão adequada da situação humana, e se aplica em todos os níveis, individual e coletivo, de choques dentro da consciência de uma pessoa à incompatibilidades entre culturas e nações. Nesta época de globalização, na qual culturas diferentes não vivem mais isoladas umas das outras, precisamos mais do que nunca de uma compreensão verdadeira da relação entre bens e objetivos diferentes, entre uma ampla variedade de aspirações culturais incompatíveis, para que as diferenças não levem a conflitos desnecessários.  O pluralismo gera tolerância e compreensão mútua entre indivíduos e grupos de todos os tamanhos. Monismos rivais derramam sangue. O próprio termo “hegemonia cultural” reflete um entendimento errado das relações das culturas entre si. Não é a questão de uma cultura dominar outra, mas de coexistir com ela de forma pacífica. Berlin acreditava que uma cultura deveria ser preponderante em uma dada entidade política em favor de um mínimo de coesão e ordem necessários, mas esse papel não é sensivelmente descrito como “hegemonia”, termo que tem reflexos indesejados de supressão e superioridade. O pluralismo é uma maneira de compreender conflitos de valores, identidades e culturas que torna possível vê-los como aspectos positivos de uma humanidade saudável, não como batalhas que devem ser vencidas por um dos competidores em detrimento dos outros. Nós vivemos em um jardim de muitas flores.
RC e JG: Há décadas existe uma disputa sobre as posições ideológicas de Isaiah Berlin: foi admirado pela direita, visto com desconfiança pela esquerda e simpático à social democracia. No cenário político atual, com tamanha polarização e radicalização, qual seria o posicionamento de Berlin, o filósofo do conflito e do diálogo?
HH: Berlin escreveu “Se alguma vez houve um liberal de centro, extrema-esquerda da direita e extrema-direita da esquerda, sou eu mesmo”. Ele acreditava em uma quantidade generosa de liberdade negativa, mas também apoiava o New Deal e o Welfare State. Ele se identificou com Turgenev, que estava aflito com a capacidade enlouquecedora de ver todos os lados de uma questão com igual convicção. Isso é o que ele chamou de “a situação liberal”, e não me parece um motivo de disputa, exceto entre aqueles que anseiam por soluções excessivamente simples. Como Turgenev, ele não conseguiu se simplificar. Suas visões e vida refletem seu reconhecimento do pluralismo, que é complicado, mas realista.
RC e JG: Nos últimos anos, o Brasil está experimentando uma “onda liberal”, com grupos que se fortaleceram à medida que os governos de esquerda fracassaram. Que lição Berlin deixaria para aqueles que estão sendo iniciados na doutrina política liberal?
HH: “Neither a be-all nor an end-all be” (um lema outrora sonhado pelo filósofo J. L. Austin). Reconheça o múltiplo, não entre em conflito por uma única perspectiva. Tolere a diferença, não a enfrente, a menos que seja maligna. Entenda a natureza humana da melhor maneira possível e use essa compreensão como base para decidir o que deve ser aceito e o que deve ser resistido; o que deve ser reforçado e o que deve ser corrigido.
RC e JG: Em ‘In Search of Isaiah Berlin’, seu novo livro, você dedica parte considerável para tratar de pluralismo e religião. Atualmente, vários países experimentam um novo vigor das disputas entre grupos religiosos e não-religiosos (ou seculares) no debate público. Que lições as ideias pluralistas podem oferecer nesse cenário?
HH: Um bom pluralista tolerará as crenças religiosas mesmo que não concorde com elas, desde que elas próprias não conduzam à intolerância a outras crenças desse tipo. No entanto, eu próprio acredito que o pluralismo é incompatível com as principais religiões do mundo, que me parecem inevitavelmente monistas e, portanto, propensas à intolerância e ao autoritarismo. Portanto, sou a favor de um estado secular; sou um oponente da religião organizada, e defendo que é dado à religião muito espaço no discurso público. (Berlin, devo acrescentar, provavelmente não compartilhava plenamente dessa visão, pelo menos na forma em que a sustento.)
RC e JG: Nos últimos anos, houve um considerável interesse no conjunto da obra de Isaiah Berlin ao redor do mundo. A que você atribui isso? Que tipo de sinal essa busca pelo trabalho de Berlin parece indicar?
HH: Berlin me parece ser um pensador de grande humanidade e sabedoria, que aborda os problemas humanos centrais em prosa acessível e elegante. Sua compreensão da natureza humana, seu “senso de realidade”, é raro e profundo, e qualquer pessoa inteligente que queira fazer perguntas sondando sobre a situação humana, encontrará em seus escritos uma rica mina de insights satisfatórios. Quando alguém o lê, sente-se em boas mãos.

Rodrigo Coppe Caldeira é Historiador e professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Jonathan Goudinho é jornalista e mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Vargas Llosa sobre Isaac Deutscher e Isaiah Berlin, em livro de David Caute

Isaac e Isaiah
Mario Vargas Llosa
O Estado de S.Paulo, 30/11/2013

Num livro que acaba de publicar, Isaac & Isaiah: The Cover Punishment of a Cold War Heretic, ("Isaac e Isaiah: a punição oculta de um herege da Guerra Fria", em tradução livre), David Caute compara as vidas, ideias e destinos de Isaac Deutscher e Isaiah Berlin, dois ensaístas que, nos anos 50 e 60 do século passado, tiveram muito prestígio e influenciaram muitos intelectuais da Europa e da América do Norte. Eles eram muito semelhantes em vários aspectos, mas suas ideias representavam dois polos irreconciliáveis: Deutscher, o marxismo revolucionário; Berlin, a democracia liberal.
Ambos eram judeus não praticantes, da mesma geração, e precisaram fugir dos seus respectivos países em razão do totalitarismo (soviético no caso de Berlin, nascido na Letônia; e Deutscher, que era polonês, do nazismo). Ambos acabaram se exilando em Londres e se naturalizaram britânicos. A única coincidência, em termos de ideologia, entre eles, e só por alguns anos, foi seu apoio ao sionismo, que mais tarde Deutscher atacou duramente, chamando Israel de lacaio do imperialismo americano durante a Guerra Fria.
Berlin foi muito reconhecido no âmbito acadêmico. Passou quase toda a sua vida em Oxford, chegou a presidir a Royal Academy e ser condecorado pela rainha. Ao passo que Deutscher, apesar de ter participado de seminários e trabalhado como professor convidado em importantes universidades, foi sobretudo jornalista e um escritor independente.
Seu único desejo, ser contratado por uma universidade britânica, de Sussex, foi frustrado por culpa de Berlin, afirma o autor, e daí o subtítulo um tanto enganador do livro: "A punição oculta a um herege da Guerra Fria". Enganador porque, embora haja indícios de que a opinião hostil de Berlin sobre a obra e a posição política de Deutscher influiu na decisão da Universidade de Sussex de não contratá-lo, o caso não está nada claro. E, de qualquer modo, Berlin sempre rejeitou a acusação, inclusive em duas cartas explicando sua intervenção no caso à viúva do autor das célebres biografias de Stalin e de Trotsky.
O livro é interessante, muito documentado, mas não é agradável, diante da antipatia que Caute nutre por Berlin, sentimento que transparece com frequência, sobretudo quando se empenha em ressaltar suas frivolidades, sua tendência a cultivar a amizade dos poderosos e dos milionários, e a mostrar-se, às vezes, presunçoso e arrogante com as pessoas. E ainda, o que é muito mais grave, dando a entender, de maneira sub-reptícia, que algumas das maiores contribuições de Berlin à cultura da liberdade, como sua teoria sobre a liberdade "negativa" e a "positiva", a divisão dos intelectuais em "ouriços" e "raposas" e a clara demarcação entre um liberal e um conservador, não foram nem originais nem importantes.
A verdade é outra: Berlin é um dos mais importantes pensadores políticos do nosso tempo e um dos poucos cuja obra define com uma coerência sistemática e perfeita o liberalismo limitado e sectário dos que o entendem como sendo uma doutrina exclusivamente econômica de defesa do mercado, e os que, como ele próprio, veem no liberalismo uma doutrina em que a tolerância, a coexistência política, os direitos humanos, o espírito crítico, a cultura e a fiscalização do poder são tão importantes quanto a propriedade privada e a economia de mercado para estimular o progresso social.
Isaiah Berlin e Isaac Deutscher viram-se apenas duas vezes na vida e nunca se enfrentaram diretamente. Mas, como diz o autor, as coisas que defendiam e criticavam eram quase sempre incompatíveis e, ao mesmo tempo, de grande solidez intelectual e elegância expositiva. No decorrer dos anos e diante de tudo o que ocorreu na vida deles, sabemos que o debate foi vencido por Berlin, como prova o desaparecimento da União Soviética e a conversão da China ao capitalismo autoritário.
Agora, o fato de todas as profecias e anseios políticos de Deutscher terem malogrado não desvaloriza sua obra nem diminui o mérito, a coragem e a honestidade com que sempre defendeu suas ideias. Ele foi um marxista contrário ao totalitarismo, uma exceção. Foi a razão pela qual o Partido Comunista polonês o expulsou das suas fileiras e porque sempre foi o pesadelo dos stalinistas da União Soviética e do Ocidente.
Nunca negou os terríveis crimes cometidos à época de Stalin e, nos livros e ensaios que dedicou ao ditador soviético e a Trotsky, ele os documentou rigorosamente. No entanto, estava convencido de que, apesar de tudo, o comunismo se reformaria no curto ou no longo prazo e um retorno às fontes primitivas do marxismo criaria sociedades mais justas, mais humanas, mais decentes do que o capitalismo, cujo êxito exigia a exploração da maioria pela minoria e era inerentemente injusto, por isso, condenado, cedo ou tarde, a perecer. A famosa reforma interna da União Soviética, pela qual Deutscher tanto esperou, jamais tornou-se realidade. Afinal, foi o comunismo que deixou de existir, pelo menos como uma alternativa concreta às democracias liberais.
Mas, em sua condenação ao colonialismo, à corrupção e aos abusos que o poder econômico podia chegar a cometer nos países capitalistas, na ênfase na necessidade de não condicionar o progresso exclusivamente ao crescimento econômico, conferir à democracia um conteúdo criativo e constantemente renovado por um ideal de justiça e solidariedade com os pobres, os discriminados, os marginalizados, as ideias de Deutscher têm valor perene.
E é verdade também, afirma Caute, que sua vida foi um modelo de coerência, o que lhe exigiu sacrifícios enormes. Mas também se equivocou muitas vezes. Por exemplo, acreditou que o movimento contra a guerra do Vietnã, nos EUA, seria a gestação de um socialismo que uniria os estudantes e os trabalhadores americanos numa revolução contra o capitalismo.
Por que Berlin sempre manifestou uma antipatia tão profunda com relação a Deutscher a ponto de, em sua correspondência, usar contra ele termos tão insólitos como "repelente" e "desprezível"? Certamente, não era a divergência de ideias que os separava. Berlin dedicou mais tempo tentando entender os inimigos da liberdade do que seus defensores e consagrou ensaios escrupulosamente honestos a Marx, Comte, Herder, Hobbes e Sorel, e muitos outros dessa corrente.
Assim, a razão da antipatia não era ideológica. E também não era pessoal, pois eles apenas se viram em duas ocasiões. O autor do livro dá a entender que a razão poderia estar numa crítica negativa escrita por Deutscher contra o ensaio de Berlin sobre a "inevitabilidade histórica". No entanto, esse parece um episódio muito pequeno para despertar tanto ódio pessoal.
Não menos surpreendente é o desprezo que Berlin manifestou sempre por Hannah Arendt, uma amante da liberdade não menos comprometida do que ele na luta contra o comunismo e o fascismo (que conheceu na carne, pois foi torturada durante nove dias e nove noites pela Gestapo antes de conseguir fugir da Alemanha) e quase toda a sua obra é dedicada a estudar as raízes do totalitarismo, suas origens culturais e históricas e as iniquidades que causou. Em suas cartas, Berlin refere-se a ela de uma maneira profundamente depreciativa, negando-lhe competência filosófica e acusando-a, injustamente, de escrever calhamaços incompreensíveis.
Talvez não haja respostas para essas perguntas. Ou talvez sim, mas não são satisfatórias em razão de sua imprecisão. Os grandes nomes - e Isaiah é um deles - são também seres humanos e não super-homens e, por isso, sujeitos às pequenezes e misérias que, por exemplo, nos deixam consternados quando revolvemos a vida íntima de um Picasso, um Victor Hugo ou qualquer outro gênio. Eram grandes quando escreviam, compunham, filosofavam ou pintavam. Entretanto, quanto ao resto, eram feitos do mesmo barro que nós, pobres mortais.

 TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

* É ESCRITOR E PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA