Quando alguém lê Isaiah
Berlin, sente-se em boas mãos: uma conversa com Henry Hardy
Principal editor das obras de Isaiah Berlin, Henry
Hardy analisa a atualidade do pensamento do filósofo.
Estado
da Arte
O
Estado de S. Paulo, 17/02/2019
Henry
Hardy, um dos principais editores da obra de Isaiah Berlin (© The Baltic Times)
por Rodrigo Coppe Caldeira e Jonathan Goudinho
Isaiah
Berlin (1909-1997) foi um dos maiores intelectuais do século XX. De origem
judaica, nasceu em Riga, atual Letônia, à época pertencente ao Império Russo,
emigrando com a família para o Reino Unido ainda jovem. A mistura fina
entre as culturas judaica, russa e britânica moldaram seu espírito e suas
formulações intelectuais. Como filósofo e historiador das ideias, tornou-se
célebre por duas contribuições em particular: o significado e a aplicação do
conceito de liberdade, com a icônica distinção entre as liberdades negativa e
positiva, e a noção de pluralismo dos valores morais e culturais, com a
igualmente representativa metáfora do ouriço e da raposa. Presenciou a
Revolução Russa, a Primeira e a Segunda Grandes Guerras, a Guerra Fria e os
horrores do nazismo e do comunismo. Morreu aos 88 anos, em Londres, celebrado
como um dos principais pensadores liberais do século.
Berlin
era um grande orador, “o maior falador do mundo”, como muitas vezes foi
nomeado. Milhares de pessoas compuseram sua audiência em aulas, palestras,
discursos, entrevistas e participações em programas de rádio e televisão. Ele
também era um exímio ensaísta, com linguagem tão compreensível que poderia
enganar incautos com a ilusão de que interpretar pensadores como Giambattista Vico, Johann G. Herder e Aleksandr Herzen fosse
tarefa fácil. O que nem todos sabem é que este polímata judeu-russo não era
muito afeito a sistematizar seu pensamento em textos bem organizados. O
conjunto de sua obra permaneceria esparso e desconhecido se não fosse a
persistência de um então entusiasmado estudante de doutorado, o filósofo Henry
Hardy (1949).
Hardy
conheceu Isaiah Berlin em 1972 na Universidade de Oxford, instituição na qual
Berlin construiu toda a sua carreira acadêmica (como estudante, professor,
pesquisador e gestor). As primeiras conversas nos espaços comuns do Wolfson
College logo despertaram em Hardy o interesse em se aprofundar no pensamento de
Berlin, surgindo a proposta da publicação de um volume com alguns de seus
ensaios. A primeira coletânea foi Russian Thinkers, publicada em
1978. De lá para cá, Henry Hardy não parou mais: editou ou coeditou 18
livros com textos de Berlin, preparou a publicação de quatro volumes com
correspondências do filósofo (que percorrem os anos de 1946 a 1997), e
recorrentemente colabora com outros estudiosos do pensamento de Isaiah Berlin.
Desde
2000, Henry Hardy mantém a The Isaiah Berlin Virtual Library (http://berlin.wolf.ox.ac.uk/),
um acervo do trabalho de Berlin e outras referências importantes para
compreender sua reflexão. Recentemente, em outubro de 2018, lançou In
Search of Isaiah Berlin: A Literary Adventure, um precioso livro de
memórias que envolve tanto sua atuação como editor quanto a de intérprete do pensamento
berliniano. A nova edição de The Sense of Reality: Studies in Ideias
and Their History, uma coletânea de ensaios de Berlin, acaba de ser
publicada pela Princeton University Press. Atualmente, Henry Hardy é
pesquisador honorário do Wolfson College, do qual Berlin foi entusiasta
e
primeiro presidente.
Hardy
conheceu Isaiah Berlin em 1972 na Universidade de Oxford, instituição na qual
Berlin construiu toda a sua carreira acadêmica
Profundo conhecedor não somente das formulações intelectuais, mas também
do próprio Isaiah Berlin, Hardy concedeu esta entrevista ao Estado da
Arte por e-mail, abordando temas caros a Berlin que permanecem
presentes no debate público contemporâneo. Como principal curador literário de
Berlin, Henry Hardy dá razões suficientes para a atualidade do pensamento desse
intelectual que tornou as ideias políticas tão fascinantes quanto possível.
Rodrigo Coppe e Jonathan Goudinho: Em “Uma Mensagem para o Século XXI”
(Âyiné, 2016), o “credo breve” de Isaiah Berlin, ele tece notas de otimismo em
relação ao “futuro brilhante” que projetava para o novo século, afirmando haver
razões suficientes para tal. Curiosamente, ele não deixa tão claro quais seriam
essas razões. Você, que o conhecia tão bem, saberia apontar quais eram suas
esperanças?
Henry Hardy: A passagem final desse texto
é estranhamente otimista, e os eventos subsequentes fazem com que
pareça excessiva. Devemos nos lembrar que o texto foi escrito para uma
cerimônia de graduação [doutorado honorário em Direito] em Toronto, e talvez
ele quisesse encorajar seu público a ser esperançoso com a humanidade. Contudo,
há uma tendência em todo o trabalho de Berlin de ‘acentuar o positivo’ na
natureza humana e subestimar o negativo. É claro que ele reconheceu o quão
espantosamente podemos nos comportar, como fez no começo desse discurso, e ele
não era um panglossiano simplista. Mas seu temperamento era caloroso e
positivo, e ele preferiu se concentrar em nossas potencialidades benéficas.
Elas existem, é claro, e embora haja retrocessos e avanços na nossa luta para
melhorar o estado político do mundo, acho que no geral Berlin acreditava que o
bem prevaleceria sobre o mal, ainda que a luta nunca terminasse e fosse
renovada em cada geração. Aqui ele fala do poder da racionalidade, da tolerância
e da democracia liberal para melhorar o nosso mundo. Ele acreditava, em geral,
no poder das ideias, considerando ser dever dos pensadores profissionais
promover as boas e desacreditar as más, para que estas não ganhassem
influência. No discurso, ele está cumprindo esse dever e, ao fazê-lo, fornece
motivos para a esperança.
RC e JG: Quase 25 anos depois de “Uma Mensagem para o Século XXI”, que
avaliação é possível ser feita sobre as esperanças de Berlin em relação ao que
a realidade tem mostrado?
HH: Deve-se admitir que, em retrospecto, podemos ver que o otimismo de
Berlin foi até certo ponto prematuro. Se isso é um revés temporário ou um caso
de “reculer pour mieux sauter”, ainda não se tem certeza. Mas se não buscarmos
melhorias, mesmo a um nível irreal, nunca conseguiremos alcançá-lo. Portanto, o
erro de Berlin, se for isso mesmo, é certamente um erro na direção certa.
Isaiah Berlin
RC e JG: Berlin repetidamente criticava o “sacrifício humano nos altares
das abstrações” (em uma referência à Aleksandr Herzen), isto é, a entrega total
a grandes causas morais e políticas, como o comunismo, o nazismo e o
nacionalismo. Quais seriam os novos altares do nosso tempo? O que
Berlin teria a dizer, por exemplo, sobre as controversas causas identitárias de
hoje?
HH: O principal altar do nosso tempo me parece ser a crença religiosa
fundamentalista, especialmente como visto entre muçulmanos fanáticos. Em minha
opinião, esse sempre foi um dos principais altares em que os humanos foram
sacrificados, e lamento que Berlin não tenha insistido mais nisso. O
fundamentalismo religioso é um exemplo perfeito da excessiva certeza monista
totalitária à qual ele se opunha terminantemente, mas que por alguma razão não
viu dessa maneira. Quanto à política de identidade, não há nada de errado com
isso em princípio. Na verdade, é outra maneira de descrever a necessidade de
pertencer que Berlin, seguindo J. G. Herder, acreditava ser fundamental e
permanente na natureza humana, e não uma aberração temporária que deveríamos
aspirar a transcender. Contudo, isso pode sair do controle, como foi com o
nacionalismo, e se tornar agressivo e maligno. Uma identidade não deve ser
promovida às custas de outra igualmente legítima, e não devemos nos tornar
fanáticos por questões de identidade, vendo tudo como algo que apoie ou seja
hostil a esse propósito primordial. Mantida sob controle, a identidade (ou um
grupo de identidades sobrepostas) faz parte de uma vida humana normal e
saudável.
RC e JG: O nacionalismo foi outro tópico recorrente no pensamento de
Isaiah Berlin, que já demonstrava preocupação com o fenômeno em textos da
década de 1990. O que temos visto atualmente, com a explosão de novos
nacionalismos ao redor do mundo, fazia parte do diagnóstico de Berlin? Como
você avalia, por exemplo, fenômenos como o Brexit, no seu Reino Unido?
HH: Sim, o relato de Berlin sobre o nacionalismo em termos de uma
reação à humilhação nacional se encaixa em muitos desenvolvimentos modernos.
Ele aprovou a consciência nacional benigna, que é parte da identidade aceitável
e necessária mencionada na minha resposta anterior. Mas quando isso saiu do
controle, tornando-se autoafirmativo às custas de outras instâncias de pertença
nacional, ele viu como algo injustificável e destrutivo a ser preterido. Quanto
ao Brexit, não me parece ser necessariamente um caso de nacionalismo maligno.
Há uma questão real sobre qual é o melhor tamanho para as unidades políticas e
quantas culturas diferentes podem ser efetivamente administradas a partir de um
único centro. Imagine uma democracia mundial: isso seria uma receita para o
caos. Parte do apoio ao Brexit se deve à Europa ser vista como uma unidade política
muito grande para funcionar bem para todos os seus povos constituintes, cujas
necessidades e identidades diferem, às vezes profundamente. Outra razão é que,
em algum grau, [a Europa] é antidemocrática, e se a pessoa acredita na
democracia em princípio, essa é uma lacuna grave. É claro que existem outros
casos, como os EUA, onde unidades ainda maiores operam com uma medida de
sucesso, mas o contexto histórico é completamente diferente.
RC e JG: Embora Isaiah Berlin seja muito conhecido pela discussão sobre
os conceitos de liberdade, sua principal contribuição intelectual é a doutrina
do pluralismo, que à época de sua formulação já era uma noção desafiadora. Qual
é a relevância do pluralismo de Berlin nos nossos dias, em que parece haver um
acirramento de grupos disputando a hegemonia cultural?
HH: O pluralismo, se verdadeiro (e certamente eu acho que é), está na
raiz de uma compreensão adequada da situação humana, e se aplica em todos os
níveis, individual e coletivo, de choques dentro da consciência de uma pessoa à
incompatibilidades entre culturas e nações. Nesta época de globalização, na
qual culturas diferentes não vivem mais isoladas umas das outras, precisamos
mais do que nunca de uma compreensão verdadeira da relação entre bens e
objetivos diferentes, entre uma ampla variedade de aspirações culturais
incompatíveis, para que as diferenças não levem a conflitos desnecessários.
O pluralismo gera tolerância e compreensão mútua entre indivíduos e
grupos de todos os tamanhos. Monismos rivais derramam sangue. O próprio termo
“hegemonia cultural” reflete um entendimento errado das relações das culturas
entre si. Não é a questão de uma cultura dominar outra, mas de coexistir com
ela de forma pacífica. Berlin acreditava que uma cultura deveria ser preponderante
em uma dada entidade política em favor de um mínimo de coesão e ordem
necessários, mas esse papel não é sensivelmente descrito como “hegemonia”,
termo que tem reflexos indesejados de supressão e superioridade. O pluralismo é
uma maneira de compreender conflitos de valores, identidades e culturas que
torna possível vê-los como aspectos positivos de uma humanidade saudável, não
como batalhas que devem ser vencidas por um dos competidores em detrimento dos
outros. Nós vivemos em um jardim de muitas flores.
RC e JG: Há décadas existe uma disputa sobre as posições ideológicas de
Isaiah Berlin: foi admirado pela direita, visto com desconfiança pela esquerda
e simpático à social democracia. No cenário político atual, com tamanha
polarização e radicalização, qual seria o posicionamento de Berlin, o filósofo
do conflito e do diálogo?
HH: Berlin escreveu “Se alguma vez houve um liberal de centro,
extrema-esquerda da direita e extrema-direita da esquerda, sou eu mesmo”. Ele
acreditava em uma quantidade generosa de liberdade negativa, mas também apoiava
o New Deal e o Welfare State. Ele se identificou com Turgenev, que estava
aflito com a capacidade enlouquecedora de ver todos os lados de uma questão com
igual convicção. Isso é o que ele chamou de “a situação liberal”, e não me
parece um motivo de disputa, exceto entre aqueles que anseiam por soluções
excessivamente simples. Como Turgenev, ele não conseguiu se simplificar. Suas
visões e vida refletem seu reconhecimento do pluralismo, que é complicado, mas
realista.
RC e JG: Nos últimos anos, o Brasil está experimentando uma “onda
liberal”, com grupos que se fortaleceram à medida que os governos de esquerda
fracassaram. Que lição Berlin deixaria para aqueles que estão sendo iniciados
na doutrina política liberal?
HH: “Neither a be-all nor an end-all be” (um lema outrora sonhado pelo
filósofo J. L. Austin). Reconheça o múltiplo, não entre em conflito por uma
única perspectiva. Tolere a diferença, não a enfrente, a menos que seja
maligna. Entenda a natureza humana da melhor maneira possível e use essa
compreensão como base para decidir o que deve ser aceito e o que deve ser
resistido; o que deve ser reforçado e o que deve ser corrigido.
RC e JG: Em ‘In Search of Isaiah Berlin’, seu novo livro, você dedica
parte considerável para tratar de pluralismo e religião. Atualmente, vários
países experimentam um novo vigor das disputas entre grupos religiosos e
não-religiosos (ou seculares) no debate público. Que lições as ideias
pluralistas podem oferecer nesse cenário?
HH: Um bom pluralista tolerará as crenças religiosas mesmo que não
concorde com elas, desde que elas próprias não conduzam à intolerância a outras
crenças desse tipo. No entanto, eu próprio acredito que o pluralismo é
incompatível com as principais religiões do mundo, que me parecem
inevitavelmente monistas e, portanto, propensas à intolerância e ao
autoritarismo. Portanto, sou a favor de um estado secular; sou um oponente da
religião organizada, e defendo que é dado à religião muito espaço no discurso
público. (Berlin, devo acrescentar, provavelmente não compartilhava plenamente
dessa visão, pelo menos na forma em que a sustento.)
RC e JG: Nos últimos anos, houve um considerável interesse no conjunto
da obra de Isaiah Berlin ao redor do mundo. A que você atribui isso? Que tipo
de sinal essa busca pelo trabalho de Berlin parece indicar?
HH: Berlin me parece ser um pensador de grande humanidade e sabedoria,
que aborda os problemas humanos centrais em prosa acessível e elegante. Sua
compreensão da natureza humana, seu “senso de realidade”, é raro e profundo, e
qualquer pessoa inteligente que queira fazer perguntas sondando sobre a
situação humana, encontrará em seus escritos uma rica mina de insights
satisfatórios. Quando alguém o lê, sente-se em boas mãos.
Rodrigo Coppe Caldeira é Historiador e
professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais.
Jonathan Goudinho é jornalista
e mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais