Primeiras impressões revolucionárias: Chateaubriand, Tocqueville, Isaiah Berlin
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Nota sobre o impacto de duas revoluções separadas por mais de cem anos, exerceram sobre grandes intelectuais, e sobre a minha própria.
Reconhecidamente adepto de livros, num grau extremo de dependência intelectual, sou levado a divagar, em momentos de reflexões reminiscentes, sobre alguns temas que ficaram imbricados em minhas memórias em torno de passagens lidas nas memórias de alguns escritores relevantes, em algum registro fugidio de antigas leituras.
O tema é o do impacto que eventos revolucionários de grande monta exerceram sobre a trajetória intelectual posterior de alguns autores que pertenceram ao universo mental de minha própria formação intelectual. Esses autores são François-René de Chateaubriand, em suas Mémoires d’Outre Tombe, Alexis de Tocqueville, em suas recordações de juventude (reportadas nas biografias), ambos no contexto da Revolução francesa de 1789 e da fase do Diretório sob o Terror robespierreano, e Isaiah Berlin, nos seus primeiros escritos, ainda pré-adolescente, sobre a revolução russa de 1917, mas não a de fevereiro, e sim o frenesi violento produzido pelo putsch bolchevique, de outubro-novembro do mesmo ano.
Todos os três reportaram e vivenciaram episódios de violência, pessoal ou familiar, que impactaram suas personalidades ainda em formação e que depois foram refletidos em suas respectivas carreiras profissionais e intelectuais, em fases ulteriores de suas vidas adultas. De fato, certas cenas vistas e testemunhadas pelos três em cada um dos dois torvelinhos revolucionários vivenciados — 1789-1793 e 1917 —, como a cabeça ensanguentada de algum inimigo reacionário, decepada ou guilhotinada, ou a turba fanatizada de Petrogrado marchando contra os representantes do odiado regime czarista já derrotado, podem ter impactado as mentes dos três futuros escritores, tendo sido, como tais, formadoras de alguma consciência filosófica sobre aspectos contingentes da História que acabam se refletindo no percurso politico posterior de seus respectivos países: França e Rússia. Não há como negar a trajetória trágica dessas nações, na transição politica para dois impérios de excepcional importância geopolítica no século XIX e no século XX, o império napoleônico, de um lado, com as enormes transformações que acarretou no mundo europeu e extraeuropeu, e o império soviético, de outro lado, este prolongado no império neoczarista de mais recente aparição na cena mundial, já no século XXI, mas sobretudo ainda mais decisivo no “breve século XX”, a partir do desafio comunista à ordem liberal ocidental.
Existe uma vasta literatura, não apenas vinculada à trajetória individual dos três autores por mim referidos — Chateaubriand, Tocqueville e Berlin —, sobre o impacto formidável que a grande Revolução francesa e a Revolução bolchevique exerceram na história do mundo, do século XVIII até os nossos dias. Não preciso retomar esse impacto, pois pretendo, na verdade, referir-me a um outro episódio “revolucionário” que impactou, talvez como farsa, minha própria trajetória intelectual: quero mencionar o golpe militar de 1964 e o regime ditatorial que se instalou no Brasil por duas décadas, como um componente decisivo nas reflexões, leituras e ações, naqueles anos formadores (dos 14 a 34) de minha consciência política e atividades correlatas.
Recebida inicialmente (na pequena confusão mental dos 14 anos) como uma bem-vinda escapada da confusão política dos anos Jânio-Goulart, a Revolução cívico-militar de 1964, logo revelou-se o que finalmente apareceu em 1965: uma reles ditadura, como constatei a partir de precoces leituras dos materiais de oposição, vários obviamente de esquerda, que passei a fazer logo depois. Lembro-me, por exemplo, de alguns artigos de Carlos Heitor Cony, na revista Manchete (leituras de cadeira de barbeiro), logo depois enfeixados em sua coletânea O Ato e o Fato), assim como as crônicas de jornalistas lidas nos grandes veículos nacionais (leituras de bibliotecas ou compradas em bancas de jornais, o que passei a fazer desde os 14 anos).
Posso claramente dizer que, ao me politizar precocemente, logo em 1965, tornei-me um inimigo da “Revolução de 1964”, e como tal permaneci até o seu final (incluindo um autoexílio europeu entre 1970 e 1977, para escapar de uma possível prisão), um percurso que inicialmente me levou a ser um “amigo” de outros processos revolucionários, como o cubano, por exemplo, desvio oportunamente corrigido em meus anos de educação política e intelectual durante os anos de estudo na Europa, num triplo sentido democrático, de liberalismo econômico, de social-democracia politica e de anarquismo cultural (como bem mais tarde vim a descobrir pela leitura dos trabalhos de José Guilherme Merquior).
Eu me permito formular estas reflexões a partir de minhas leituras pregressas no último dia do ano de 2024, e possivelmente o último trabalho escrito neste ano de intensas leituras e contínuos registros de uma atividade intelectual ainda em curso de aperfeiçoamento, talvez acabamento, ao desejar caminhar para uma síntese de mais de 60 anos de escritos diversos, vários livros publicados e algumas centenas de artigos divulgados em revistas acadêmicas ou aqui mesmo neste espaço de resistência intelectual que é o blog Diplomatizzando.
Não tenho uma obra intelectual comparável à dos três autores referidos nesta crônica rememorativa, mas posso orgulhar-me de ter contribuído, embora modestamente, para a formação intelectual de outros jovens que, como eu, possam ter saído de origens socialmente subalternas para alçar-se ao domínio de um conhecimento prático e livresco suscetível de também exercer algum impacto, por pequeno que seja, sobre a existência de alguns de meus concidadãos.
Boas leituras a todos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4820, 31 dezembro 2024, 3 p.