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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Relembrando alguns posts de 2013 (4): Poder absoluto e grandes catastrofes nacionais (PRA)

sábado, 23 de novembro de 2013

Reflexões ao léu: o poder absoluto e as grandes catástrofes nacionais

Paulo Roberto de Almeida

A história humana, pelo menos a história política (mas também a militar, a história social, e a econômica, a cultural, enfim, a história humana), está repleta de exemplos de desastres nacionais, por vezes verdadeiras catástrofes, que se abatem sobre todo um povo, não poupando até mesmo inocentes criaturas que não têm sequer uma vaga ideia sobre o que pode estar se passando na cabeça dos dirigentes que provocaram tais calamidades. Sim, estou me referindo a “man-made calamities”, desastres provocados pelo próprio homem, que, à diferença de certas calamidades naturais – provocadas por forças incontroláveis pela vontade humana, e até mesmo não evitáveis pela tecnologia social – não existiriam sem a intervenção de fatores contingentes que se devem inteiramente à ação humana, geralmente por parte de algum déspota (pouco) iluminado, quando não vulgarmente estúpido.
A história, a vida humana na verdade, ou toda a vida biológica, como ensinava um eminente cientista francês – Jacques Monod – é feita de acaso e de necessidade. Este, aliás, é o título de seu mais belo livro, publicado em meados dos anos 1970, se não me engano, e que constitui uma das primeiras vacinas intelectuais com que fui brindado e que ajudaram a diminuir progressivamente as altas doses de determinismo marxista que eu ainda carregava em minhas veias acadêmicas. A necessidade corresponde às forças da natureza, justamente, ou seja, os fatores imanentes, ligados à genética, à geologia, à gravidade, enfim, aos princípios darwinianos e newtonianos bem conhecidos. O acaso, por sua vez, ocorre também na natureza, pois não são raros os acidentes naturais ou genéticos que provocam irrupções vulcânicas, que conduzem às mutações de espécies, ou a uma série imensa de transformações repentinas, por vezes infinitamente lentas, que moldam a vida no planeta e até o itinerários de elementos não vivos, mas cambiantes pela ação dessas forças da natureza. O acaso, contudo, é bem mais presente na vida animal, especialmente na vida daqueles primatas que se acreditam superiores, mas que também respondem a certas pulsões que por vezes podem aproximá-los das mais terríveis bestas feras da fauna existente.
Por acaso (mas isso não tem a ver com Jacques Monod) lembrei-me agora da frase do tio do garoto que se converteu em “homem aranha”, absolutamente simples e, no entanto, cheia de sabedoria: “maior o poder, maior a responsabilidade” (ou algo aproximado a isso). Ela tem tudo a ver com estas reflexões ao léu, que me subiram à cabeça (se ouso dizer) depois de ler várias matérias, em revistas, jornais, na internet, sobre eventos totalmente corriqueiros, ou grandes episódios históricos, que se encaixam perfeitamente no título deste pequeno artigo: o poder absoluto pode conduzir a grandes catástrofes sociais, com enormes sofrimentos para os membros de uma determinada comunidade (por vezes durante mais de uma geração).
A humanidade, como se sabe, é formada por milhões de seres que foram se espalhando ao acaso pela superfície terrestre, adaptando-se ao ambiente natural, e daí construindo mecanismos de defesa contra os desafios e perigos naturais; mas eles também introduziram normas de controle social para evitar os “espíritos animais” que ainda caracterizam a espécie humana: o medo, a agressividade, o ódio, a conquista e a dominação, até instintos assassinos (nem sempre por autodefesa), ao lado de sentimentos mais nobres e altruístas, como o amor, a solidariedade, a fraternidade, o desprendimento e a caridade.
Algumas sociedade evoluíram satisfatoriamente e conseguiram criar certo equilíbrio (sempre instável, como é da natureza das coisas), com o ambiente, com as demais sociedades e até dentro da sua própria, ou seja, entre as várias categorias de seus membros; suas respostas habilitaram-nas a construir certo quantum de felicidade humana, em alguns casos até invejável. Quem desejar aprofundar seu conhecimento sobre como se deu essa evolução social e cultural, ao longo de algumas dezenas de milhares de anos, pode recorrer à leitura do livro do cientista americano Jared Diamond, Armas, Germes e Aço (recomendo comprar a edição americana na Abebooks, Guns, Germs and Steel, onde se pode achar usados em excelentes condições por UM dólar).
Nos últimos cinco ou dez mil anos, as sociedades evoluíram e aperfeiçoaram o seu desempenho na arte da guerra, nas transformações tecnológicas, na ocupação de mais territórios e na dominação de outros povos, aumentando potencialmente a capacidade de alguns deles conquistar, dominar e escravizar outros povos, o que não deixa de representar uma catástrofe para os assim submetidos. Pensemos, por exemplo, na escravidão dos judeus pelos babilônios, pelos egípcios, e no seu sofrido caminho para a autonomia, se estabelecendo num território que já tinha sido o seu, até, de novo, sua completa submissão pelos romanos, seguida de uma diáspora secular, na era cristã.
Independentemente desses percalços, que atingiram dezenas, centenas de povos ao longo da história – causando até mesmo o desaparecimento físico de alguns deles –, o fato é que a humanidade também progrediu num sentido humanístico, graças, entre outros fatores, às leis da razão, aos preceitos religiosos (como os próprios judaicos, cristãos, budistas, e vários outros) e ao simples reconhecimento prático de que a tolerância mútua e a convivência pacífica fazem muito bem à saúde humana, melhor em todo caso do que violência aberta e dominação brutal. De fato, a humanidade se tornou menos cruel, com a disseminação das religiões da fraternidade e do amor, em substituição àquelas que pregavam o sacrifício humano e a crueldade com os estranhos.
Nos dois mil anos que se seguiram ao aparecimento e expansão do cristianismo – tanto como religião “rebelde”, clandestina, quanto como religião de Estado, de um império – alguns povos progrediram enormemente, o que não quer dizer que os não cristãos também não tenham avançado na construção de instituições mais efetivas de governança e de uma prosperidade relativamente bem distribuída. A China, por exemplo, foi, muito antes do Ocidente, um Estado avançado, dotado de uma burocracia “weberiana” e de inovações científicas e de instituições sociais e políticas que só apareceriam muito mais tarde na vida do Ocidente cristão. Mas ela sempre constituiu um sistema imperial baseado na centralização absoluta do poder, um despotismo de base agrária (hídrica) que tornou a vida de milhões de súditos apenas um pouco acima da sobrevivência miserável, bem mais, em todo caso, do que no Ocidente medieval.
Progressos econômicos se traduziram em prosperidade – aumento da produtividade agrícola, desenvolvimento de atividades comerciais, financeiras e até culturais – e no incremento da capacidade militar, o que permitiu, justamente, o domínio e a subjugação de outros povos. Poderia ter sido a China, por exemplo, a dominar e escravizar o Ocidente – o que os mongóis fizeram parcialmente – mas acabou sendo os ocidentais que partiram à conquista da China e do resto do mundo, mais ou menos 500 anos atrás. Quem quiser saber mais sobre os progressos econômicos e tecnológicos da humanidade, recomendo ler os livros do historiador americano David Landes, especialmente seu A Riqueza e a Pobreza das Nações (também recomendo o site da Abebooks, onde se pode encontrar exemplares usados por até 4 dólares).

Mas eu estou me desviando de minhas reflexões, que não têm tanto a ver com a história da humanidade – e posso recomendar excelentes livros de história universal, e até sobre a história das guerras – quanto com a história nacional de alguns povos, como aliás evidenciado no título: quero falar de catástrofes “nacionais”, não de imperialismos ou de submissão de outros povos. Parto do mundo westfaliano como ele é, ou seja, composto de unidades políticas territorial e politicamente definidas e mutuamente respeitadoras da soberania alheia, pelo menos formalmente. Observo que alguns povos puderam se desenvolver de modo satisfatório, logrando prover altos patamares de prosperidade e de felicidade humana para seus integrantes, enquanto outros estagnaram ou recuaram, quando não foram vítimas de desastres incomensuráveis.
E por que isso ocorreu com esses infelizes? Aí entra o primeiro componente de minha reflexão ao léu (mas dirigida): o poder absoluto. Estou convencido de que todos os grandes desastres nacionais – ou seja, aqueles que não tenham sido provocados por agressão externa ou catástrofes naturais incontroláveis – foram essencialmente a obra de alguns tiranos malucos, déspotas obcecados por alguma fixação mental, pequenos e grandes ditadores que se alçaram ao comando de seus povos, e a partir daí cometeram tantos erros e equívocos econômicos, militares, sociais, que ocorreu seja um recuo relativo, seja um retrocesso absoluto na vida dos povos vitimados por esses loucos.
Digo “loucos” ou “malucos” no sentido metafórico, obviamente, pois alguns tiranos são perfeitamente metódicos e “racionais” em sua sanha de dominação total. A compulsão do poder absoluto representa, em todo caso, um tipo de desvio psicológico, que faz com que alguns indivíduos não se contentem em dominar um determinado povo – geralmente o seu mesmo – pelos mecanismos naturais do poder político, mas insistem em manter um controle absoluto sobre a vida de cada indivíduo e sobre o curso de toda a sociedade. Trata-se, provavelmente, de um deformação da personalidade, mas que nem sempre transparece nas primeiras fases da ascensão social de indivíduos doentios.
Rejeito terminantemente o uso de conceitos afiliados ao maquiavelismo intelectual – ou seja, uma doutrina vinculada à análise política pré-moderna – para caracterizar essas situações de domínio despótico. Maquiavel – a quem já homenageei numa releitura de sua obra mais famosa, O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) – era um patriota interessado em salvar a Itália dos invasores estrangeiros, com seus exércitos de mercenários selvagens, e que por isso, contrariando seus próprios instintos republicanos, consentiu em propor uma solução despótica para assegurar a sobrevivência do Estado (na verdade, a construção de um poder legítimo, podendo introduzir a lei e a ordem, para permitir o desenvolvimento da cidadania).
Os tiranos a que me refiro, e que estão na origem de tantos desastres nacionais, são totalitários no espírito e na ação, concentrados unicamente em seu poder absoluto e que, por isso mesmo, acabam levando suas sociedades e os povos que nelas habitam a desastres incomensuráveis, quando menos a atrasos quase insuperáveis na escala civilizatória. Eles são praticamente autistas, ou seja, voltados unicamente para si mesmos, mas também costumam ser dirigentes hábeis, capazes de seduzir os incautos, atrair o apoio de muitos cidadãos ingênuos – não falo dos simplórios e dos idiotas, que estes existem em todas as partes – e até mesmo conseguem capturar a estima de muitos, já que encarnando, supostamente, aspirações nacionais (patriotismo, dignidade nacional, sentido da grandeza da nação, autoestima legítima, às vezes necessidade de afirmação). Qualquer que seja a razão, um tirano não ascende a essa posição apenas pelo exercício da força bruta, ainda que tais extremos possam ocorrer excepcionalmente.
Em qualquer hipótese, como referido na abusadíssima frase de Lord Acton, o poder absoluto corrompe absolutamente, e são muito abundantes, e infelizes, os exemplos desse tipo de situação. A comunidade dos Estados contemporâneos ainda é muito diversificada quanto à natureza, conformação e tipo de governança existente na prática, havendo sistemas bastante avançados de legitimidade democrática – não é difícil distinguir certas sociedades escandinavas e as do mundo anglo-saxão, de modo geral – e outros lamentavelmente detestáveis em seu despotismo mais evidente (em vários países da África, na Ásia central e até mesmo na América Latina). Os regimes políticos não se sustentam apenas burocraticamente, pelas instituições criadas na modernidade westfaliana (e como tais reconhecidas no direito internacional), mas também se impõem pela brutalidade pré-moderna de certas tiranias de fato e de direito.
A história, como eu dizia ao início deste pequeno texto, está repleta de exemplos de desastres nacionais, sempre provocados por tiranos, ou candidatos a tal. Não me refiro necessariamente a Napoleão, e a seu Império quase uniformemente continental, na Europa, pois o pequeno imperador, e grande estrategista militar, parecia encarnar as virtudes da administração burocrática moderna, na destruição do que era considerado como “restos feudais” nos regimes absolutistas do continente. Megalomaníaco como era – sem ser um tirano cruel ou despótico – ele também conduziu a França ao desastre, mas numa escala ainda reduzida, se pensarmos nas destruições que vieram depois dele. Afinal de contas, ele presidiu à passagem do exército de mercenários ao recrutamento obrigatório, que também foi uma escola de cidadania – quando não uma escola tout court – a milhares de camponeses que de outra forma teriam vegetado naquilo que Marx chamava de idiotice da vida rural. Os exércitos modernos ainda são napoleônicos nos seus processos de conscrição, de socialização e de formação de soldados-cidadãos.
Depois dele, o primeiro grande personagem da megalomania totalitária foi Lênin e seu projeto de criar o homem novo, eliminando burgueses, camponeses ricos, padres e intelectuais dissidentes, além de capitalistas em geral. Foi o primeiro regime despótico moderno, e teve muito a ensinar a seus êmulos na própria Rússia ou em outros países. O próprio Lênin se inspirou em Robespierre, e seu reinado de Terror, que ele admirava sinceramente, e pretendia reproduzir usando a Tcheca como seu instrumento.
Stalin, Mussolini, Hitler e Mao aprenderam com Lênin tudo o que aplicaram de perversidades totalitárias, ainda que Hitler não estivesse pronto a reconhecer essa sua dívida intelectual para com o fundados do império soviético. Os imensos desastres humanos que essa quadrilha de tiranos provocou, ao longo do século XX, se cifra na casa das dezenas de milhões de vítimas, de morte matada e de morte morrida, mas sempre por culpa de suas aventuras insanas em busca do poder absoluto. Observe-se que nenhuma ameaça externa os obrigou a empreender a eliminação maciça de seus supostos inimigos: tratou-se de uma decisão solitária, insana como soe acontecer.
Alguns deles foram metódicos na aplicação de seus propósitos tirânicos, e nisso os comunistas levaram uma imensa vantagem sobre seus colegas fascistas: eles criaram uma máquina fria de identificação e eliminação de aliados e inimigos, um sistema quase weberiano de tirania semi-racional, já que contando com uma filosofia universalista, que prometia um futuro radiante a todos os deserdados da terra (e eles eram muitos, várias dezenas de milhões). Os nazistas atuaram com base na separação das raças e num ódio irracional a determinadas categorias humanas, não conseguindo com isso emitir um discurso universalista; eles não puderam legitimar o seu poder, da mesma forma como os comunistas o fizeram (aliás até hoje, em alguns países). Todos foram tiranos absolutos, em algum momento tragados pela loucura do poder, o que os levou a cometer erros que redundaram em grandes tragédias humanas para suas próprias sociedades. Pensemos, por exemplo, em Hitler, logo após ter obtido o Anchluss da Áustria e ter absorvido boa parte da então República Tchecoslovaca: o que o obrigava a invadir a Polônia, a entrar em guerra com as potências ocidentais, e mais adiante invadir a União Soviética, que era inclusive sua aliada? O que o obrigava a declarar a guerra aos Estados Unidos, logo depois do ataque de Pearl Harbor? Insanidade completa, que se traduziu na maior tragédia de toda a história dos povos germânicos.
Numa versão mais “amena”, mas igualmente desastrosa para certos povos, tivemos alguns ditadores na Ásia e na América Latina, ainda hoje cultuados como grandes homens, até heróis, em seus países. Uma sociedade não muito distante de nós foi sequestrada por um fascista populista, e convive até hoje nessa situação bizarra, que atinge inclusive intelectuais, cuja inteligência (se existe) foi capturada por um cadáver. Uma outra na mesma região ainda atravessou recentemente a mesma experiência, e se afunda progressivamente na ditadura política e no caos econômico. Alguns outros candidatos a tiranetes pululam aqui e ali, dispostos a subir aos extremos, se o ambiente interno e externo assim lhes permitir. Num retrospecto histórico, não é difícil constatar o imenso atraso a que foram conduzidas suas respectivas sociedades: se eles não mataram como os tiranos absolutos acima referidos, eles atrasaram de modo por vezes irremediável sociedades que já foram mais ricas, e que tinham condições de conhecer patamares mais elevados de prosperidade material e de riqueza cultural.
O Brasil não conheceu esses extremos terríveis de tiranias fascistas, ou de domínio de caudilhos ridículos, ainda que tenha passado por ditaduras bastante severas na aplicação do autoritarismo “legal” a que sempre foram obedientes nossos militares de orientação positivista ou castilhista. Mas eles foram adeptos do que eu chamo de nazismo econômico e de stalinismo industrial, que ainda hoje seduzem certos espíritos simplórios numa esquerda que se caracteriza sobretudo por seu atraso mental e por sua indigência intelectual. Eles se disfarçam de keynesianos de botequim, mas se aproximam bastante do que eu chamo de fascismo corporativo.
O Brasil não retrocedeu absolutamente, ou não tanto quanto certos vizinhos e outros “aliados estratégicos” em outros continentes, mas ele se atrasou certamente, ao não perder oportunidades de perder oportunidades, como dizia Roberto Campos. Ele continua se atrasando, a julgar pelos indicadores de crescimento econômico comparado e pelo desempenho exibido nos exames internacionais de avaliação estudantil. Esse último problema é certamente uma tragédia, relativa e absolutamente, atual e potencial, e só posso lamentar que os companheiros atualmente no poder tenham conduzido nossa educação a níveis tão baixos de qualificação didática, sob qualquer perspectiva histórica que se conheça. A educação brasileira, aliás, já é um grande desastre nacional: imaginem se ainda estivéssemos vivendo sob um regime totalitário, como certamente gostariam alguns companheiros aloprados. Mas não só eles: alguns que se consideram geniais também...

Hartford, 23 de Novembro de 2013.

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