Reflexões ao léu: o poder absoluto e as
grandes catástrofes nacionais
Paulo Roberto de Almeida
A história humana, pelo menos a
história política (mas também a militar, a história social, e a econômica, a
cultural, enfim, a história humana), está repleta de exemplos de desastres
nacionais, por vezes verdadeiras catástrofes, que se abatem sobre todo um povo,
não poupando até mesmo inocentes criaturas que não têm sequer uma vaga ideia sobre
o que pode estar se passando na cabeça dos dirigentes que provocaram tais
calamidades. Sim, estou me referindo a “man-made calamities”, desastres provocados
pelo próprio homem, que, à diferença de certas calamidades naturais –
provocadas por forças incontroláveis pela vontade humana, e até mesmo não
evitáveis pela tecnologia social – não existiriam sem a intervenção de fatores
contingentes que se devem inteiramente à ação humana, geralmente por parte de
algum déspota (pouco) iluminado, quando não vulgarmente estúpido.
A história, a vida humana na verdade,
ou toda a vida biológica, como ensinava um eminente cientista francês – Jacques
Monod – é feita de acaso e de necessidade. Este, aliás, é o título de seu mais
belo livro, publicado em meados dos anos 1970, se não me engano, e que
constitui uma das primeiras vacinas intelectuais com que fui brindado e que ajudaram
a diminuir progressivamente as altas doses de determinismo marxista que eu ainda
carregava em minhas veias acadêmicas. A necessidade corresponde às forças da
natureza, justamente, ou seja, os fatores imanentes, ligados à genética, à
geologia, à gravidade, enfim, aos princípios darwinianos e newtonianos bem
conhecidos. O acaso, por sua vez, ocorre também na natureza, pois não são raros
os acidentes naturais ou genéticos que provocam irrupções vulcânicas, que conduzem
às mutações de espécies, ou a uma série imensa de transformações repentinas, por
vezes infinitamente lentas, que moldam a vida no planeta e até o itinerários de
elementos não vivos, mas cambiantes pela ação dessas forças da natureza. O
acaso, contudo, é bem mais presente na vida animal, especialmente na vida
daqueles primatas que se acreditam superiores, mas que também respondem a
certas pulsões que por vezes podem aproximá-los das mais terríveis bestas feras
da fauna existente.
Por acaso (mas isso não tem a ver com
Jacques Monod) lembrei-me agora da frase do tio do garoto que se converteu em
“homem aranha”, absolutamente simples e, no entanto, cheia de sabedoria: “maior
o poder, maior a responsabilidade” (ou algo aproximado a isso). Ela tem tudo a
ver com estas reflexões ao léu, que me subiram à cabeça (se ouso dizer) depois
de ler várias matérias, em revistas, jornais, na internet, sobre eventos
totalmente corriqueiros, ou grandes episódios históricos, que se encaixam
perfeitamente no título deste pequeno artigo: o poder absoluto pode conduzir a
grandes catástrofes sociais, com enormes sofrimentos para os membros de uma
determinada comunidade (por vezes durante mais de uma geração).
A humanidade, como se sabe, é formada
por milhões de seres que foram se espalhando ao acaso pela superfície terrestre,
adaptando-se ao ambiente natural, e daí construindo mecanismos de defesa contra
os desafios e perigos naturais; mas eles também introduziram normas de controle
social para evitar os “espíritos animais” que ainda caracterizam a espécie
humana: o medo, a agressividade, o ódio, a conquista e a dominação, até
instintos assassinos (nem sempre por autodefesa), ao lado de sentimentos mais
nobres e altruístas, como o amor, a solidariedade, a fraternidade, o
desprendimento e a caridade.
Algumas sociedade evoluíram
satisfatoriamente e conseguiram criar certo equilíbrio (sempre instável, como é
da natureza das coisas), com o ambiente, com as demais sociedades e até dentro
da sua própria, ou seja, entre as várias categorias de seus membros; suas
respostas habilitaram-nas a construir certo quantum de felicidade humana, em
alguns casos até invejável. Quem desejar aprofundar seu conhecimento sobre como
se deu essa evolução social e cultural, ao longo de algumas dezenas de milhares
de anos, pode recorrer à leitura do livro do cientista americano Jared Diamond,
Armas, Germes e Aço (recomendo comprar
a edição americana na Abebooks, Guns,
Germs and Steel, onde se pode achar usados em excelentes condições por UM
dólar).
Nos últimos cinco ou dez mil anos, as
sociedades evoluíram e aperfeiçoaram o seu desempenho na arte da guerra, nas
transformações tecnológicas, na ocupação de mais territórios e na dominação de
outros povos, aumentando potencialmente a capacidade de alguns deles conquistar,
dominar e escravizar outros povos, o que não deixa de representar uma
catástrofe para os assim submetidos. Pensemos, por exemplo, na escravidão dos
judeus pelos babilônios, pelos egípcios, e no seu sofrido caminho para a autonomia,
se estabelecendo num território que já tinha sido o seu, até, de novo, sua
completa submissão pelos romanos, seguida de uma diáspora secular, na era
cristã.
Independentemente desses percalços,
que atingiram dezenas, centenas de povos ao longo da história – causando até
mesmo o desaparecimento físico de alguns deles –, o fato é que a humanidade
também progrediu num sentido humanístico, graças, entre outros fatores, às leis
da razão, aos preceitos religiosos (como os próprios judaicos, cristãos, budistas,
e vários outros) e ao simples reconhecimento prático de que a tolerância mútua
e a convivência pacífica fazem muito bem à saúde humana, melhor em todo caso do
que violência aberta e dominação brutal. De fato, a humanidade se tornou menos
cruel, com a disseminação das religiões da fraternidade e do amor, em
substituição àquelas que pregavam o sacrifício humano e a crueldade com os
estranhos.
Nos dois mil anos que se seguiram ao
aparecimento e expansão do cristianismo – tanto como religião “rebelde”,
clandestina, quanto como religião de Estado, de um império – alguns povos
progrediram enormemente, o que não quer dizer que os não cristãos também não
tenham avançado na construção de instituições mais efetivas de governança e de
uma prosperidade relativamente bem distribuída. A China, por exemplo, foi,
muito antes do Ocidente, um Estado avançado, dotado de uma burocracia
“weberiana” e de inovações científicas e de instituições sociais e políticas
que só apareceriam muito mais tarde na vida do Ocidente cristão. Mas ela sempre
constituiu um sistema imperial baseado na centralização absoluta do poder, um
despotismo de base agrária (hídrica) que tornou a vida de milhões de súditos apenas
um pouco acima da sobrevivência miserável, bem mais, em todo caso, do que no
Ocidente medieval.
Progressos econômicos se traduziram
em prosperidade – aumento da produtividade agrícola, desenvolvimento de
atividades comerciais, financeiras e até culturais – e no incremento da
capacidade militar, o que permitiu, justamente, o domínio e a subjugação de
outros povos. Poderia ter sido a China, por exemplo, a dominar e escravizar o
Ocidente – o que os mongóis fizeram parcialmente – mas acabou sendo os
ocidentais que partiram à conquista da China e do resto do mundo, mais ou menos
500 anos atrás. Quem quiser saber mais sobre os progressos econômicos e
tecnológicos da humanidade, recomendo ler os livros do historiador americano David
Landes, especialmente seu A Riqueza e a
Pobreza das Nações (também recomendo o site da Abebooks, onde se pode
encontrar exemplares usados por até 4 dólares).
Mas eu estou me desviando de minhas
reflexões, que não têm tanto a ver com a história da humanidade – e posso
recomendar excelentes livros de história universal, e até sobre a história das
guerras – quanto com a história nacional de alguns povos, como aliás
evidenciado no título: quero falar de catástrofes “nacionais”, não de
imperialismos ou de submissão de outros povos. Parto do mundo westfaliano como
ele é, ou seja, composto de unidades políticas territorial e politicamente
definidas e mutuamente respeitadoras da soberania alheia, pelo menos
formalmente. Observo que alguns povos puderam se desenvolver de modo
satisfatório, logrando prover altos patamares de prosperidade e de felicidade
humana para seus integrantes, enquanto outros estagnaram ou recuaram, quando
não foram vítimas de desastres incomensuráveis.
E por que isso ocorreu com esses
infelizes? Aí entra o primeiro componente de minha reflexão ao léu (mas
dirigida): o poder absoluto. Estou convencido de que todos os grandes desastres
nacionais – ou seja, aqueles que não tenham sido provocados por agressão
externa ou catástrofes naturais incontroláveis – foram essencialmente a obra de
alguns tiranos malucos, déspotas obcecados por alguma fixação mental, pequenos
e grandes ditadores que se alçaram ao comando de seus povos, e a partir daí
cometeram tantos erros e equívocos econômicos, militares, sociais, que ocorreu
seja um recuo relativo, seja um retrocesso absoluto na vida dos povos vitimados
por esses loucos.
Digo “loucos” ou “malucos” no sentido
metafórico, obviamente, pois alguns tiranos são perfeitamente metódicos e
“racionais” em sua sanha de dominação total. A compulsão do poder absoluto
representa, em todo caso, um tipo de desvio psicológico, que faz com que alguns
indivíduos não se contentem em dominar um determinado povo – geralmente o seu
mesmo – pelos mecanismos naturais do poder político, mas insistem em manter um
controle absoluto sobre a vida de cada indivíduo e sobre o curso de toda a
sociedade. Trata-se, provavelmente, de um deformação da personalidade, mas que
nem sempre transparece nas primeiras fases da ascensão social de indivíduos
doentios.
Rejeito terminantemente o uso de
conceitos afiliados ao maquiavelismo intelectual – ou seja, uma doutrina
vinculada à análise política pré-moderna – para caracterizar essas situações de
domínio despótico. Maquiavel – a quem já homenageei numa releitura de sua obra
mais famosa, O Moderno Príncipe
(Maquiavel revisitado) – era um patriota interessado em salvar a Itália dos
invasores estrangeiros, com seus exércitos de mercenários selvagens, e que por
isso, contrariando seus próprios instintos republicanos, consentiu em propor
uma solução despótica para assegurar a sobrevivência do Estado (na verdade, a
construção de um poder legítimo, podendo introduzir a lei e a ordem, para
permitir o desenvolvimento da cidadania).
Os tiranos a que me refiro, e que
estão na origem de tantos desastres nacionais, são totalitários no espírito e
na ação, concentrados unicamente em seu poder absoluto e que, por isso mesmo,
acabam levando suas sociedades e os povos que nelas habitam a desastres
incomensuráveis, quando menos a atrasos quase insuperáveis na escala
civilizatória. Eles são praticamente autistas, ou seja, voltados unicamente
para si mesmos, mas também costumam ser dirigentes hábeis, capazes de seduzir
os incautos, atrair o apoio de muitos cidadãos ingênuos – não falo dos
simplórios e dos idiotas, que estes existem em todas as partes – e até mesmo conseguem
capturar a estima de muitos, já que encarnando, supostamente, aspirações
nacionais (patriotismo, dignidade nacional, sentido da grandeza da nação,
autoestima legítima, às vezes necessidade de afirmação). Qualquer que seja a
razão, um tirano não ascende a essa posição apenas pelo exercício da força
bruta, ainda que tais extremos possam ocorrer excepcionalmente.
Em qualquer hipótese, como referido
na abusadíssima frase de Lord Acton, o poder absoluto corrompe absolutamente, e
são muito abundantes, e infelizes, os exemplos desse tipo de situação. A
comunidade dos Estados contemporâneos ainda é muito diversificada quanto à
natureza, conformação e tipo de governança existente na prática, havendo
sistemas bastante avançados de legitimidade democrática – não é difícil
distinguir certas sociedades escandinavas e as do mundo anglo-saxão, de modo
geral – e outros lamentavelmente detestáveis em seu despotismo mais evidente
(em vários países da África, na Ásia central e até mesmo na América Latina). Os
regimes políticos não se sustentam apenas burocraticamente, pelas instituições
criadas na modernidade westfaliana (e como tais reconhecidas no direito
internacional), mas também se impõem pela brutalidade pré-moderna de certas
tiranias de fato e de direito.
A história, como eu dizia ao início
deste pequeno texto, está repleta de exemplos de desastres nacionais, sempre provocados
por tiranos, ou candidatos a tal. Não me refiro necessariamente a Napoleão, e a
seu Império quase uniformemente continental, na Europa, pois o pequeno
imperador, e grande estrategista militar, parecia encarnar as virtudes da
administração burocrática moderna, na destruição do que era considerado como “restos
feudais” nos regimes absolutistas do continente. Megalomaníaco como era – sem
ser um tirano cruel ou despótico – ele também conduziu a França ao desastre,
mas numa escala ainda reduzida, se pensarmos nas destruições que vieram depois
dele. Afinal de contas, ele presidiu à passagem do exército de mercenários ao
recrutamento obrigatório, que também foi uma escola de cidadania – quando não
uma escola tout court – a milhares de
camponeses que de outra forma teriam vegetado naquilo que Marx chamava de idiotice
da vida rural. Os exércitos modernos ainda são napoleônicos nos seus processos
de conscrição, de socialização e de formação de soldados-cidadãos.
Depois dele, o primeiro grande
personagem da megalomania totalitária foi Lênin e seu projeto de criar o homem
novo, eliminando burgueses, camponeses ricos, padres e intelectuais
dissidentes, além de capitalistas em geral. Foi o primeiro regime despótico
moderno, e teve muito a ensinar a seus êmulos na própria Rússia ou em outros
países. O próprio Lênin se inspirou em Robespierre, e seu reinado de Terror,
que ele admirava sinceramente, e pretendia reproduzir usando a Tcheca como seu
instrumento.
Stalin, Mussolini, Hitler e Mao
aprenderam com Lênin tudo o que aplicaram de perversidades totalitárias, ainda
que Hitler não estivesse pronto a reconhecer essa sua dívida intelectual para
com o fundados do império soviético. Os imensos desastres humanos que essa
quadrilha de tiranos provocou, ao longo do século XX, se cifra na casa das
dezenas de milhões de vítimas, de morte matada e de morte morrida, mas sempre
por culpa de suas aventuras insanas em busca do poder absoluto. Observe-se que
nenhuma ameaça externa os obrigou a empreender a eliminação maciça de seus
supostos inimigos: tratou-se de uma decisão solitária, insana como soe
acontecer.
Alguns deles foram metódicos na
aplicação de seus propósitos tirânicos, e nisso os comunistas levaram uma
imensa vantagem sobre seus colegas fascistas: eles criaram uma máquina fria de
identificação e eliminação de aliados e inimigos, um sistema quase weberiano de
tirania semi-racional, já que contando com uma filosofia universalista, que
prometia um futuro radiante a todos os deserdados da terra (e eles eram muitos,
várias dezenas de milhões). Os nazistas atuaram com base na separação das raças
e num ódio irracional a determinadas categorias humanas, não conseguindo com
isso emitir um discurso universalista; eles não puderam legitimar o seu poder,
da mesma forma como os comunistas o fizeram (aliás até hoje, em alguns países).
Todos foram tiranos absolutos, em algum momento tragados pela loucura do poder,
o que os levou a cometer erros que redundaram em grandes tragédias humanas para
suas próprias sociedades. Pensemos, por exemplo, em Hitler, logo após ter
obtido o Anchluss da Áustria e ter absorvido boa parte da então República
Tchecoslovaca: o que o obrigava a invadir a Polônia, a entrar em guerra com as
potências ocidentais, e mais adiante invadir a União Soviética, que era
inclusive sua aliada? O que o obrigava a declarar a guerra aos Estados Unidos,
logo depois do ataque de Pearl Harbor? Insanidade completa, que se traduziu na
maior tragédia de toda a história dos povos germânicos.
Numa versão mais “amena”, mas
igualmente desastrosa para certos povos, tivemos alguns ditadores na Ásia e na
América Latina, ainda hoje cultuados como grandes homens, até heróis, em seus
países. Uma sociedade não muito distante de nós foi sequestrada por um fascista
populista, e convive até hoje nessa situação bizarra, que atinge inclusive
intelectuais, cuja inteligência (se existe) foi capturada por um cadáver. Uma
outra na mesma região ainda atravessou recentemente a mesma experiência, e se
afunda progressivamente na ditadura política e no caos econômico. Alguns outros
candidatos a tiranetes pululam aqui e ali, dispostos a subir aos extremos, se o
ambiente interno e externo assim lhes permitir. Num retrospecto histórico, não
é difícil constatar o imenso atraso a que foram conduzidas suas respectivas
sociedades: se eles não mataram como os tiranos absolutos acima referidos, eles
atrasaram de modo por vezes irremediável sociedades que já foram mais ricas, e
que tinham condições de conhecer patamares mais elevados de prosperidade
material e de riqueza cultural.
O Brasil não conheceu esses extremos
terríveis de tiranias fascistas, ou de domínio de caudilhos ridículos, ainda
que tenha passado por ditaduras bastante severas na aplicação do autoritarismo
“legal” a que sempre foram obedientes nossos militares de orientação
positivista ou castilhista. Mas eles foram adeptos do que eu chamo de nazismo
econômico e de stalinismo industrial, que ainda hoje seduzem certos espíritos
simplórios numa esquerda que se caracteriza sobretudo por seu atraso mental e
por sua indigência intelectual. Eles se disfarçam de keynesianos de botequim,
mas se aproximam bastante do que eu chamo de fascismo corporativo.
O Brasil não retrocedeu
absolutamente, ou não tanto quanto certos vizinhos e outros “aliados
estratégicos” em outros continentes, mas ele se atrasou certamente, ao não
perder oportunidades de perder oportunidades, como dizia Roberto Campos. Ele
continua se atrasando, a julgar pelos indicadores de crescimento econômico
comparado e pelo desempenho exibido nos exames internacionais de avaliação
estudantil. Esse último problema é certamente uma tragédia, relativa e
absolutamente, atual e potencial, e só posso lamentar que os companheiros
atualmente no poder tenham conduzido nossa educação a níveis tão baixos de qualificação
didática, sob qualquer perspectiva histórica que se conheça. A educação
brasileira, aliás, já é um grande desastre nacional: imaginem se ainda
estivéssemos vivendo sob um regime totalitário, como certamente gostariam
alguns companheiros aloprados. Mas não só eles: alguns que se consideram
geniais também...
Hartford, 23 de Novembro de 2013.