Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
A Praia do Flamengo vista da varanda do Pen Clube do Brasil
Tomei posse, em 27 de junho, no Rio de Janeiro, como sócio do Pen Clube do Brasil. Na ocasião, fiz este discurso sobre a tradição literária do Rio:
Sr. presidente do Pen Clube do Brasil, professor Ricardo Cravo Albim,
Caros amigos, caros colegas do Itamaraty,
Quero antes de mais nada agradecer ao nosso presidente, Ricardo Cravo Albim, por esta cerimônia. Como sou Embaixador do Brasil na Malásia, eu não pudera ainda tomar posse como membro do Pen Clube do Brasil. Nosso Presidente acolheu favoravelmente que a cerimônia se desse esta semana, a única que passarei no Rio de Janeiro nestes poucos dias de férias no Brasil.
Quero também agradecer ao editor Carlos Leal, meu amigo, pelas palavras generosas com que me saudou.
Há muitos amigos e primos presentes aqui hoje. Quero registrar, em especial, a presença de minha mãe, Embaixadora Thereza Quintella. Minha mulher, Eugênia Barthelmess, por ser Embaixadora do Brasil em Singapura, não pôde estar presente. Por intermédio da minha mãe e da minha mulher, quero homenagear todas as mulheres profissionais do Brasil, e não somente as diplomatas, que enfrentam toda série de dificuldades para o bom êxito de suas carreiras.
Quero, desde já, prestar homenagem a uma personalidade ímpar, meu pai, Ary Quintella, que pertenceu ele também a esta instituição. Em setembro, serão 25 anos desde seu falecimento.
Não é à toa que começo este discurso mencionando meu pai e minha mãe. Eles foram, sem dúvida, e como seria natural, as maiores influências na minha formação. Minha formação emocional, psicológica e também intelectual.
Criança e adolescente, minha maior alegria, meus melhores momentos eram passados lendo os volumes que eu retirava da biblioteca familiar. Havia, naturalmente, os livros infantis e juvenis que meus pais ofereciam a mim e aos meus irmãos. Este ano, em abril, vimos partir o Ziraldo. Guardo com carinho a primeira edição de Flicts, que ganheiaos seis anos de idade. Ou melhor, Eugênia o guarda com carinho, pois o livro está em Singapura. Essa separação involuntária da biblioteca conjugal é, desde 2020, um dos elementos da nossa realidade de casal de diplomatas.
Havia portanto os livros oferecidos pelos pais, mas havia os livros pertencentes aos pais, em suas estantes no Rio, em Bruxelas, em Montevidéu, em Brasília, em Londres. Há algo de mágico no fato de uma biblioteca viajar. Ao nos acompanhar, ela torna nossa vida nômade mais estável, mais aceitável. A casa da gente é onde nossos livros estão. Filho de diplomata, desde sempre tive de aceitar que tudo seria impermanente: os amigos, a escola, o idioma, a cultura e os hábitos locais.
Mas a biblioteca dos meus pais era um dado permanente, era algo sólido, em que eu podia confiar. Era um refúgio. Um refúgio contra as impermanências da vida, as incertezas que eu percebia ao meu redor, inclusive as incertezas quanto à durabilidade do casamento dos meus pais.
Em dezembro de 2023, na qualidade de Embaixador na Malásia, participei do Festival Literário de George Town, na ilha de Penang, na costa ocidental da Malásia. É um celebrado evento anual. A edição de 2023 contou com a presença de famosos autores europeus, entre outros Geoff Dyer e Édouard Louis. E também, e sobretudo, com a presença de Clarice Lispector. Graças a recursos fornecidos pelo Instituto Guimarães Rosa, que é o departamento cultural do Itamaraty, a Embaixada em Kuala Lumpur montou, para o Festival de George Town, uma exposição sobre a vida e a obra de Clarice
O material nos foi cedido gratuitamente pelo Instituto Moreira Salles, e a exposição em Penang era uma versão reduzida da mostra realizada pelo Instituto Moreira Salles, “Constelação Clarice”, em São Paulo e no Rio, entre 2021 e 2022. Em Penang, o espaço era apenas um ambiente, transformado pelo curador malásio como se fosse uma sala no apartamento de Clarice. Era um espaço intimista. Visitantes me disseram que, ao tomar conhecimento pela primeira vez da existência de Clarice naquela exposição, haviam se sentido estimulados a ler sua obra. Seus livros, aliás, em traduções para o inglês, estavam à venda na livraria oficial do Festival, e saíram rapidamente.
Ao abrir a exposição, eu disse algumas palavras sobre Clarice Lispector e citei uma carta sua muito famosa a Olga Borelli, que muitos dos aqui presentes já conhecem. É a primeira carta; Clarice e Olga Borelli acabavam de se conhecer, por isso o tom pessoal e franco usado por Clarice causa ainda mais impacto. A carta diz: “Sou uma pessoa sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade não sei o que fazer comigo. Não tenho qualidades, só tenho fragilidades. Mas às vezes, tenho esperança”.
Eu gosto muito dessa carta. Frequentemente penso nela. A meu ver, ela sintetiza a razão pela qual lemos e escrevemos. Lemos e escrevemos para ter um rumo na vida, um leme que nos guie. Lemos e escrevemos para descobrir o que queremos fazer de nós mesmos.
Ler e escrever são duas facetas da mesma atividade, a busca de si mesmo. Ajuda no processo que um bonito poema de Jorge Luis Borges, “Tríada”, define como la triste costumbre de ser alguien. E eu vejo que essa é a grande aventura de todo ser humano, descobrir como somos, como ser alguém. E é isso que ler e escrever nos permitem fazer.
O Rio de Janeiro é um lugar privilegiado. Não só por causa da sua inigualável beleza natural, mas por ser um celeiro da escrita. Terra natal ou de moradia de escritores. Podemos acompanhar sua evolução ao longo do tempo por meio da literatura, a que serve de fonte de inspiração. O Rio iguala-se então a outras cidades literárias, como Paris, Londres, São Petersburgo. Quando, em posto no exterior, leio a descrição que Machado de Assis faz, em Quincas Borba, da praia de Botafogo ao luar, o coração se aquece. Escreve Machado: “A lua estava então brilhante; a enseada, vista pelas janelas, apresentava aquele aspecto sedutor que nenhum carioca pode crer que exista em outra parte do mundo”.
Estrangeiros citam o Rio em suas obras. Há três anos, escrevi um ensaio intitulado “Joseph Brodsky no Corcovado”. Pois Brodsky aqui esteve, em 1979, justamente para participar de um congresso do Pen Clube Internacional, então presidido por Mario Vargas Llosa. O texto de Brodsky é ambíguo e até preconceituoso; ele não entendeu o Rio de Janeiro. Achou mesmo haver aqui um rio chamado Janeiro. Mas mesmo ele ficou boquiaberto com a nossa paisagem. Vendo a cidade do alto do Corcovado, estima que: “Em um dia claro, você sente que tudo o que seu olhar já viu antes são apenas as sobras miseráveis e sem brio de uma imaginação interrompida”. O Rio, assim, embora visto com ressalvas por Brodsky, e sem muita compreensão, e, como eu disse, com preconceito, causou um impacto pela sua beleza. É uma das três cidades sobre as quais se detém em sua obra, junto com sua cidade natal, São Petersburgo, e sua cidade preferida, Veneza.
Mas o Rio não é apenas um celeiro de escritores. É também o depositário de instituições literárias. Temos aqui na cidade o Pen Clube do Brasil, e também a Academia Brasileira de Letras e a Biblioteca Nacional. Visitei esta semana o presidente da Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi, que é aliás membro do Pen Clube do Brasil, para fazer doação à Biblioteca de um exemplar do livro que a Embaixada do Brasil na Malásia publicou, em janeiro, sobre a obra realizada por um gênio brasileiro, Roberto Burle Marx, em Kuala Lumpur. A capital malásia tem a distinção de ser a única cidade asiática a conter um parque projetado por Burle Marx.
A Biblioteca Nacional impressiona. Na juventude, passei muitas horas em seu salão de leitura. O prédio está em perfeito estado de conservação, é um tesouro nacional, depositário de muitos outros tesouros.
Há outra instituição literária no Rio, além das que já citei. Existe, na Casa de Ruy Barbosa, o Arquivo- Museu de Literatura Brasileira. Vou ao AMLB com frequência, quando estou no Rio, e já escrevi mais de uma vez sobre essa instituição. O arquivo do meu pai está lá. É algo estranho para mim que as cartas bastante francas, transparentes que escrevi ao meu pai não estejam comigo, mas sim no AMLB. Ele assim quis. Hoje mesmo, de manhã, fui à rua São Clemente, para visitar a nova diretora do Arquivo-Museu, Maria de Andrade, cuja presença nesta cerimônia agradeço. Rever no AMBL a poltrona de Manuel Bandeira, os óculos de Carlos Drummond de Andrade é também uma forma de pensar na tradição literária do Rio de Janeiro e, por extensão, do Brasil. Uma vez, há alguns anos, foi-me lá mostrado o manuscrito de Menino de engenho, de José Lins do Rego. Esse livro, cuja ação se passa no Nordeste, marcou minha adolescência de menino meio carioca e meio mineiro. Esse é o poder da literatura. José Lins do Rego, paraibano, escreve um romance sobre um menino nordestino, com o qual um adolescente no Sul do país pode se identificar. Ver o manuscrito no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira foi por isso uma experiência cativante para mim.
Ao agradecer uma vez mais esta cerimônia, senhor presidente, quero cumprimentá-lo pela iniciativa de organizar também esta semana um evento comemorativo de Guimarães Rosa. É por meio de iniciativas como essa que o Pen Clube do Brasil se equipara às outras instituições literárias. Contribui a fazer do Rio de Janeiro, terra lúdica, também um palco literário.
Visitando um pequeno museu em Kuching, cidade à beira do Rio Sarawak, na Malásia, deparei-me com o sobrenome Rastignac. Para o leitor apaixonado por Balzac, foi como ser atingido por um raio. Eu me via confrontado, em plena ilha de Bornéu, com a existência bem real de uma família com o mesmo sobrenome de um dos personagens mais famosos do escritor, Eugène de Rastignac, símbolo do jovem ingênuo transformado em ambicioso calculista. Ler aos quatorze ou quinze anos Le Père Goriot(1835), obra cruel até para os padrões de Balzac, gerou em mim uma impressão permanente.
Despertada minha curiosidade sobre como o nome – tão francês – de Rastignac fora aparecer na parede de um museu em Bornéu, acabei mergulhado em uma história muito inglesa – a de Charles e Margaret Brooke. Passei quase um ano lendo e pesquisando com estupefação biografias, memórias, volumes de história e genealogias em busca de explicação sobre como uma família de classe média do interior da Inglaterra chegara a se transformar em dinastia de rajás à frente de um vasto entreposto do império britânico na Ásia.
Margaret nos conta ela própria a sua vida. Casada com seu parente Charles Brooke, o segundo “Rajá Branco” de Sarawak, perdeu em seis dias os três filhos, mortos de cólera no navio, em viagem de Kuching à Inglaterra via Singapura. Os corpos foram atirados ao Mar Vermelho. Uma quarta criança havia nascido morta, uns meses antes. Era 1873 e ela tinha 24 anos. Estava casada desde 1869 apenas. Décadas depois, Margaret Brooke se tornaria amiga da escritora inglesa Marie Belloc Lowndes. Em suas memórias, The Merry Wives of Westminster (1946), esta conta que apenas uma vez ouviu Margaret referir-se à morte dos filhos, e mesmo assim de forma vaga, "de uma maneira tal que, se eu já não tivesse sabido a respeito, não teria entendido a alusão". Três filhos adicionais viriam a nascer, chegariam à idade adulta, e o mais velho, Vyner, reinaria em Sarawak depois do pai.
Charles Brooke era o administrador colonial de Sarawak, que governava como chefe de Estado hereditário. Sucedeu ao tio, James Brooke, o primeiro Rajá Branco, e legou por sua vez o território ao filho. Metodicamente, em detrimento do sultão de Brunei, foi acrescentando terras ao seu domínio, que acabou ficando tão extenso quanto a própria Inglaterra. Margaret Brooke era a Rani de Sarawak, a mulher do Rajá. O casamento não era feliz. Em seu livro de memórias My Life in Sarawak (1913), e na autobiografia Good Morning and Good Night (1934), Margaret descreve o marido como homem silencioso e metódico, totalmente voltado para a administração do território que comandava em Bornéu, e quite incapable of showing sympathy or feeling about anything that did not touch Sarawak.
Charles Brooke em meados de 1860
Good Morning and Good Night revela-nos a falta de opções à disposição da autora quando solteira, apesar do dinheiro da mãe. Nascera em Paris, crescera até os dez anos no castelo da avó na França, em Épinay, e desde a morte do pai de uma queda de cavalo, que a deixara órfã aos quatorze anos, levava uma vida errante pela Europa, com a mãe, Elizabeth Sarah de Windt, conhecida como Lily, os dois irmãos e umas amigas antigas de Lily, parasitical spinsters, como Margaret as classifica: From Paris to Florence – from Florence to Rome – Switzerland – the Tyrol, on we would move, always living in hotels.
Charles Brooke era primo-irmão de sua mãe. Um dia, aos 42 anos, solteiro, ele aparece na casa de campo da família, na Inglaterra, em busca de uma noiva rica cuja fortuna pudesse saldar as dívidas de Sarawak. Ele próprio não tinha conhecidos na Europa, pois desde os 13 anos estivera na Marinha britânica, e a partir dos 23 vivera em Sarawak, a serviço do tio, de quem herdara o poder em 1868.
Não é impossível que Margaret tenha tido alguma noção romântica da figura de Charles. Antes de conhecê-lo, ela lera já o livro, publicado em 1866, em que ele relata sua vida em Sarawak, onde morara dez anos em fortes à beira de algum rio, na floresta, controlando etnias inimigas entre si e jogando uns contra os outros os caçadores de cabeças. O aparecimento do primo mais velho, soberano em uma terra distante, sobrinho de uma figura mítica como fora James Brooke, deve ter sido acompanhado de uma aura de mistério e aventura.
Não faltam certos trechos de algum valor literário no livro de Charles, como este, inserido no meio da descrição de um ataque que ele organiza e lidera à terra dos Kayans, que estavam depredando bens dos Dayaks e prejudicando o comércio: the only sounds to be heard were those of nature alone, – the murmuring of the jungle insects, the low rumbling of the distant rapids, and the stream pouring over the pebbles close to us. Charles sentia-se inteiramente adaptado à vida em Sarawak e pouco à vontade no país onde nascera. Na floresta, costumava andar descalço como os Dayaks. Tendo de viajar à Inglaterra, após dez anos ininterruptos na Malásia, ele comenta: little did I care for the prospect of European pleasures, so much thought of and sought after as an Elysium by many living so far away. They are invariably found disappointing when England is reached.
Nas memórias e biografias dos diferentes atores envolvidos, há frequentes referências ao fato de que Charles pode ter primeiro pensado em se casar com a mãe de Margaret, Lily de Windt, então com 43 anos. A escolha acaba recaindo sobre a filha, que, aos 19 anos, lhe permitiria o mesmo nível de acesso aos recursos financeiros da família. A oferta de casamento e sua aceitação não refletiam sentimentos amorosos. No hotel em Innsbruck, aonde acompanhara os primos, Charles atira sobre as teclas do piano, no qual a moça supostamente teria estado tocando um noturno de Chopin, um poema sobre casamento – mas não sobre amor. I do not imagine the poor dear man could ever have been madly in love with me, admite ela; on my side, although I respected him and admired his achievements, I was never in love with him.
Desde o início, o marido foi parcimonioso com dinheiro, inclusive o da mulher. Com o tempo, o casamento torna-se uma ficção. Margaret vive na Europa, sob o pretexto de cuidar da educação dos filhos. A partir de 1880, os períodos que ela passa na Malásia são cada vez mais raros e curtos. Em 1887, esteve em Sarawak por poucos meses. A viagem seguinte a Bornéu aconteceria somente em 1896. Seria a última. Quando My Life in Sarawak foi publicado, fazia dezessete anos que a Rani não via sua terra de adoção. Ela morreria em 1936, sem ter voltado a Bornéu nos últimos quarenta anos de vida. Durante alguns anos, em Londres, morou com os filhos ainda pequenos em Cornwall Gardens. Minha mãe, minha irmã e eu moraríamos na mesma pequena rua cem anos depois. Entre os dois períodos, lá viveu também Joaquim Nabuco.
A história contada em My Life in Sarawak é a de uma jovem vitoriana que descobre aos vinte anos, com fascinação, a realidade tropical de Bornéu. Ela se adapta às suas novas circunstâncias, faz amizades locais. Viaja no iate do marido e em pequenas embarcações fluviais, acompanhando o Rajá Branco em seus roteiros de inspeção. Enfrenta sem o marido, sozinha em um forte longe da capital, querreiros Kayans, que teria conseguido apaziguar. Passa a usar trajes típicos de Sarawak. Aprende a língua malaia. Descobre que o canto do bulbul é mais bonito que o do rouxinol.
A primeira frase resume o espírito de todo o volume: When I remember Sarawak, its remoteness, the dreamy loveliness of its landscape, the childlike confidence its people have in their rulers, I long to take the first ship back to it, never to leave it again. Por um lado, a declaração de amor pela terra que não verá mais chega a ser tocante. Por outro, a referência à "confiança infantil que seu povo deposita nos governantes" irrita e nos faz lembrar estarmos diante de um casal inglês, representante do espírito colonialista britânico, transformado em rei e rainha nos trópicos asiáticos. Desde o início, em 1841, quando James Brooke passara a governar Sarawak, esta fora a ambiguidade da curiosa dinastia: reinavam na Ásia do Sudeste, mas não abandonavam a nacionalidade inglesa. Eram simultaneamente senhores e súditos.
O segundo livro, Good Morning and Good Night, é mais pessoal e revelador – e ainda assim de maneira relativa, como veremos. No texto de 1934, Margaret atribui o insucesso matrimonial aos ciúmes que o marido teria da sua popularidade em Sarawak: he wished to remain alone and supreme in the love and affection of his subjects. Ao mesmo tempo, depreende-se que, em Bornéu, ela estava sempre adoentada, talvez com depressão, talvez com malária. Há uma contradição entre o amor professado por Sarawak e suas constantes doenças. O médico britânico em Kuching entende que ela sofre de histeria, clássico “diagnóstico” do século XIX para deslegitimizar mulheres. Ela própria nos diz: Hysteria! – that blessed refuge of somewhat unskilful doctors who find themselves unable to diagnose a disease!.
Nos dois livros, Kuching, onde viviam 30 mil habitantes quando Margaret lá aportou pela primeira vez, é simultaneamente apresentada como uma espécie de paraíso, mas também com outras cores, como aldeia insalubre infestada de malária, mosquitos e ratos. No rio Sarawak, nadavam crocodilos. Se é verdade que a Rani teria sido acordada uma noite, como relata, por migração de “milhares” de ratos que atravessavam seu quarto, não sei. Mas posso testemunhar que na ilha de Bornéu a questão dos ratos não pode ser minimizada. O maior que vi em minha vida cruzou frente aos meus pés, em fevereiro de 2023, no mercado noturno de Kota Kinabalu, capital de Sabá, o outro estado malásio da ilha. Eu me preparava para acomodar-me em uma cadeira de plástico e jantar um peixe que vira ser preparado. A aparição do rato, grande como um gato e com sinais de doença na pelagem, me fez desistir.
Margaret de Windt passou proporcionalmente pouco tempo em Sarawak. Era porém seu título de Rani que lhe conferia prestígio na Europa. Frequentava a corte inglesa, junto à qual conseguiu diversas vantagens cerimoniais para Sarawak e o marido – para desgosto dele, que não apreciava suas interferências. Em 1901, obteve do novo rei, Eduardo VII, uma definição protocolar do status de Charles e, portanto, dela própria. O Rajá nascido na paróquia provinciana de Berrow, no interior de Somerset, ficava formalmente reconhecido como soberano de um Estado independente sob proteção britânica; os dois recebiam o título de altezas e eram inscritos, na ordem de precedência, logo após os príncipes reinantes indianos.
A facilidade com que Margaret, e, antes dela, o marido, construíam para si, por meio de suas memórias, uma imagem de exotismo e heroísmo tampouco atrapalhava sua popularidade. Próxima do príncipe Alberto I de Mônaco e sua mulher, a “soberana” de Sarawak frequentava artistas e escritores na França e na Inglaterra. Good Morning and Good Night narra episódios de sua amizade com Henry James, iniciada na década de 1890 e que durou até a morte do romancista. No primeiro encontro entre os dois, em Londres, na casa de uma conhecida comum, o escritor é descrito como um homem condescendente. A Rani afirma já haver então lido Roderick Hudson, Daisy Miller e The Princess Casamassima e elogia essas obras. Henry James levanta a mão ao ar e afirma: No, my dear lady, no, I can do better – I can do better than that. Margaret retruca: Oh, how can you say so? Surely they are quite perfect? A mão do escritor desce. Henry James olha para Margaret Brooke com sorriso de comiseração e responde: Well, as you will! But why are you here? You come from a land where the bulbul sings.
O livro menciona Pierre Loti – que dedicou um conto a Margaret – Maupassant, Rudyard Kipling, Swinburne, o pintor Edward Burne-Jones, a atriz Sarah Bernhardt. Parece haver consenso de que a Rani de Sarawak chegou a viver um romance, na década de 1890, com o jornalista americano William Morton Fullerton, quinze anos mais jovem, que não é mencionado em seus livros. Fullerton é hoje lembrado sobretudo pelo relacionamento amoroso com a escritora Edith Wharton e a amizade intensa que despertou em Henry James. Foi um desses personagens, como de uma certa forma a própria Margaret Brooke, que existem em toda parte, atraídos por escritores mais talentosos do que eles próprios. Ao fazerem parte da biografia alheia, preservam alguma fama após a morte.
Oscar Wilde, que lhe dedicou o primeiro conto de seu livro A House of Pomegranates(1891) – “To Margaret, Lady Brooke” – tampouco é mencionado, o que pode parecer estranho para nós, leitores do século XXI, cientes da perenidade de algumas de suas obras. Ocorre que quando Margaret escreveu seus livros de memórias, Wilde já morrera em desgraça, após o escândalo do seu processo e prisão. A mulher dele, Constance, precisara adotar outro sobrenome para si e os filhos, tal o constrangimento que passara a ser associado ao nome de Wilde. A Rani não viveu o suficiente para presenciar sua reabilitação.
Elemento constante na vida mutável de Margaret de Windt parece ter sido a busca por respeitabilidade, por afirmação de uma posição social. Não deixou, apesar disso, de prestar apoio a Constance, durante a prisão do escritor. Vyvyan Holland, filho de Wilde, escreve com gratidão a seu respeito, rememorando os dias passados perto de Gênova ao seu lado, e contando como sua mãe reencontrou alguma felicidade in the companionship of the Ranee, who was a comfort and a consolation to her until the time of her death three years later. Marie Belloc Lowndes afirma que o político trabalhista Richard Haldane visitou Oscar Wilde na prisão a pedido de Margaret. Foi graças a essa visita, é sabido, que o prisioneiro pôde receber livros e, mais tarde, caneta e papel, o que lhe permitiu escrever De Profundis, a longa carta da prisão de Reading.
É no afã de procurar demonstrar respeitabilidade que tem início Good Morning and Good Night. O castelo da avó em Épinay, onde Margaret crescera, é apresentado, nas primeiras páginas, como the home of the Rastignacs for generations. O “Reino do Terror” da Revolução Francesa, wreaking its hatred on the aristocrats, teria confiscado a propriedade e guilhotinado o marquês e a marquesa de Rastignac, "junto com tantos de seus amigos". A única prole do casal, Elisabeth, bisavó de Margaret, teria sido “escondida pelos aldeões, que amavam os Rastignac", e enviada à Holanda, para ser criada em segurança por um casal amigo, que a teria adotado. Mais tarde um filho do casal, Peter de Witt, casou-se com Elisabeth. Peter e Elisabeth de Witt teriam recuperado o castelo na França, onde foram viver, e o nome de Witt teria sido deturpado – pelos camponeses, afirma Margaret – em de Windt.
É um inteiro conto de fadas. Existem dois museus em Kuching celebrando o reinado de cem anos – de 1841 a 1946 – da dinastia Brooke. Ambos são administrados, com apoio do governo estadual, por uma entidade inglesa, Brooke Heritage Trust, presidida por Jason Brooke, descendente da família. Um dos museus, sediado no antigo Forte Marguerita, construído por Charles e nomeado em homenagem à mulher, é dedicado aos três Rajás Brancos. O outro, instalado no antigo Tribunal de Justiça, à vida de Margaret. O percurso pelas suas poucas salas começa com a reprodução de um quadro a óleo que representaria "o Marquês e a Marquesa de Rastignac, trisavós de Marguerite, por volta de 1780".
As explicações do museu repetem, de forma acrítica, a versão fantasiosa oferecida por Margaret de suas origens. O tom esnobe da narrativa, com sua ingênua redução da Revolução Francesa ao "Reino do Terror", ao "ódio pelos aristocratas" e à guilhotina é reproduzido pelo museu. Curiosamente, Margaret de Windt lembra nessa hora Lady Bracknell, personagem cômico de The Importance of Being Earnest, porta-voz assertivo, na peça, de valores sociais conservadores.
A realidade é diferente do seu conto. Margaret fala da "bisavó Rastignac adotada pela família de Witt" como se a tivesse conhecido: "ela morreu quando eu tinha quatro anos". Cita até, entre aspas, uma frase que a bisavó costumava dizer, falando dos casamentos da filha e da neta com ingleses: Ces Anglais, ces Anglais, toujours ces Anglais. Denomina-a "baronesa de Windt". Essa pessoa, porém, nunca existiu. Ninguém usando o título de marquês ou marquesa de Rastignac jamais morreu guilhotinado. A avó materna de Margaret, Elisabeth, era uma de Windt adotada e transformada em herdeira pela tia, Judith de Windt. Esta, sim, enviuvara em 1817 de Jacques Gabriel Chapt, visconde de Rastignac. Os de Windt estavam instalados desde o início do século XVIII no Caribe – onde terão feito fortuna com lavoura de açúcar à base de trabalho escravo – e escreviam seu nome com essa grafia desde pelo menos o século XVII. A avó de Margaret, Elisabeth de Windt, casou-se com um inglês, que adotou seu sobrenome, e não com um holandês chamado Peter de Witt. Margaret não teve nem avô nem bisavô com esse nome. A sua bisavó de Windt, nascida Sarah Roosevelt, no Caribe — e não Elisabeth de Rastignac, na França —, morreu em Paris, em 1850, um ano após o nascimento da bisneta. Essas informações encontram-se em diferentes estudos genealógicos, todos de acesso público.
A história da família Chapt de Rastignac foi publicada em 1858 por sua última representante, Zénaïde, duquesa de La Rochefoucauld. Os Chapt de Rastignac são consistentemente descritos como de nobreza antiga. Pode-se deduzir a satisfação de Margaret de Windt em conseguir fazer crer, por meio das suas alegações, que descendia da família.
Terá Margaret sabido que na verdade não descendia dos Rastignac? Inventou ela própria essa fábula ou herdou-a da mãe ou da avó? A resposta pode estar em livro autobiográfico de seu irmão caçula, Harry de Windt, célebre em sua época como viajante incansável e também ele autor prolífico de narrativas de viagens. Vyvyan Holland é quem, mais uma vez, nos conta que Harry de Windt was a famous explorer at the end of the last century, his most remarkable feat being to travel from Pekin to Paris overland in 1887. É sobriamente, sem fantasias, que o irmão mais novo explica, em My Restless Life (1909), que o castelo em Épinay "tinha sido herdado de um parente, o visconde de Rastignac".
O museu em Kuching perpetua no entanto as invencionices de Good Morning and Good Night. De um museu, mesmo um museu familiar, espera-se algum apego à realidade. Mais extraordinário ainda é que o mito dos antepassados aristocráticos franceses seja recolhido na obra da historiadora australiana Cassandra Pybus, que estudou as vidas de Charles e Margaret em The White Rajahs of Sarawak (1996) e compra, sem crivo, a versão de que Margaret de Windt descendia de "aristocratas franceses" e era por isso socialmente superior aos Brooke.
Viúva desde 1917, Margaret morreu em 1936, aos 87 anos. Foi poupada de ver o filho Vyner ter de renunciar, em 1946, ao reino de Sarawak, que se tornou formalmente apenas mais uma entre as colônias de um império britânico em declínio.
Em uma família onde cada um parece haver deixado seu próprio livro de memórias, sua nora, Sylvia Brett, mulher do terceiro e último Rajá Branco, também publicou as suas, com um título sensacionalista, Queen of the Headhunters (1970). Sylvia Brooke visitou a sogra poucos dias antes de sua morte e não foi por ela reconhecida. She had been a woman of note, escreve a nora, the friend of Henry James, H. G. Wells and Elgar. Now there was nobody; and she was just a lonely woman, living in a small flat, and already separated from life. There was something regal and tragic in her isolation.
Oscar Wilde não é a única omissão notável em Good Morning and Good Night. Quando Margaret descreve a morte de seus três filhos pequenos a bordo do navio – “aquelas flores belas e encantadoras cortadas em poucas horas, arrancadas de nós e jogadas ao mar” – e lista todos os presentes no seu grupo, "marido, irmão, os três bebês, a babá inglesa, a empregada doméstica", deixa de lado uma pessoa.
Viajando com eles, ia uma outra criança, um menino de seis anos. Ele se chamava Esca Brooke e era filho de Charles Brooke com uma mulher malaia, de origem nobre, Dayang Mastiah. Charles e a mãe da criança podem ter se casado em um rito muçulmano. O garoto passou a ser criado no Astana, como é chamado o palácio em Kuching, e sua existência em Sarawak nunca foi um mistério.
Pode-se imaginar a reação de Margaret ao ver seus três filhos morrerem e serem atirados ao mar, enquanto o outro menino, que também adoeceu, sobrevivia. Cassandra Pybus especula ser possível que Esca, nascido na terra de Sarawak, filho mais velho do Rajá, fruto talvez de um casamento que as populações locais considerariam legítimo, viesse a ser um candidato sólido a suceder ao pai, em detrimento dos filhos da Rani. Cita uma frase de Margaret a um sobrinho, em carta de 1927: "Tive o bom senso de perceber que ele seria um problema se ficasse em Sarawak".
Deixado na Inglaterra, em 1873, para ser criado por um reverendo anglicano, Esca Brooke emigrou com sua família adotiva para o Canadá. Ele nunca mais veria o pai; nunca receberia um bilhete sequer dele, apenas uma pequena pensão; nunca retornaria a Sarawak. Morreu em Toronto em 1953.
Quantas facetas cabem em um único personagem? Ao longo da história de Margaret de Windt, como ela a quis contar, vemos sucessivamente a jovem vitoriana ingênua, isolada embora de família rica; a soberana corajosa de uma terra tropical, distante do seu país de origem; a mulher infeliz no casamento e enlutada pela morte de vários filhos; a alteza detentora de um título espetacularmente insólito, amiga, na Europa, de príncipes e artistas; a personalidade pública ciosa de estabelecer uma posição de brilho para si, o marido e os filhos.
O que não vemos em momento algum, ao longo das suas memórias, é uma dimensão importante – que talvez seja o seu aspecto mais fascinante. Margaret entrou na vida do pequeno Esca Brooke, possível herdeiro de Sarawak, como presença nefasta, a clássica madrasta má. Com isso, conseguiu tornar-se, de fato, não uma Rastignac real, como fantasiou ser, mas uma personagem digna de Balzac.
O convite partiu do embaixador da Espanha. Perguntou-me se eu aceitaria ser incluído no grupo. Concordei sem hesitar. A ideia era celebrar em Kuala Lumpur o "Dia do Idioma Espanhol". O cenário seria o pequeno palco da livraria Eslite Spectrum, inaugurada há pouco tempo e pertencente a uma cadeia de Taiwan. Cada participante leria um texto em espanhol, de sua escolha, por não mais do que cinco minutos.
Fiquei pensando sobre o que selecionar. Lembrei de um soneto de Jorge Luis Borges que é, de certo modo, um tributo à língua portuguesa, cuja data se celebraria dois dias depois da leitura na Eslite.
O embaixador da Argentina leu o prefácio de Ernesto Sabato (1911-2011) para seu livro de recordações, seu “testamento”, Antes del fin, publicado em 1998. A frase este complejo, contradictorio e inexplicable viaje hacia la muerte que es la vida de cualquiera, foi dita no tom certo, sem entonação melodramática.
O embaixador do México optou por “Hombres necios que acusáis”, de Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695), cuja primeira estrofe é:
Hombres necios que acusáis a la mujer sin razón, sin ver que sois la ocasión de lo mismo que culpáis
Chile escolheu o poema de Nicanor Parra (1914-2018) em homenagem à sua irmã, “Defensa de Violeta Parra”; Colômbia, parágrafos de uma das novelas de Empresas y tribulaciones de Maqroll el Gaviero, de Álvaro Mutis (1923-2013). Cuba leu o conto “Francisca y la muerte”, de Onelio Jorge Cardoso (1914-1986); Peru, o poema “Hallazgo de la vida”, de César Vallejo (1892-1938).
A embaixadora do Uruguai selecionou parágrafos de La insumisa, autobiografia romanceada, publicada em 2020, de Cristina Peri Rossi (1941- ), único autor vivo escolhido. Teria sido uma felicidade poder escutar a obra por mais do que cinco minutos.
Nascida em Montevidéu, Cristina Peri Rossi exilou-se em 1972 na Espanha. Autora prolífica, é também tradutora, inclusive de literatura brasileira: Clarice Lispector, Osman Lins, Ignácio de Loyola Brandão, Graciliano Ramos e Fernando Gabeira. Ganhou o Prêmio Miguel de Cervantes em 2021. Havia, aliás, concentração de ganhadores do prêmio entre os autores selecionados: Borges o recebeu em 1979, Sabato em 1984, Álvaro Mutis em 2001, Nicanor Parra em 2011.
O trecho lido pela embaixadora uruguaia incluía a seguinte frase: Al exiliarnos juntas, fue, en realidad, como si no nos hubiéramos exiliado, como si transportáramos con nosotras todo aquello que amábamos hasta entonces. Na lista das coisas amadas em comum estavam las canciones de María Bethânia. Sobre a ruptura dessa relação amorosa, um ano depois, a autora diz: comprendí que el exilio no era solo cambiar de espacio, el exilio era separarse de la persona amada.
Assim vivi eu entre 2020 e 2022, por causa da pandemia e o fechamento das fronteiras no Sudeste asiático, sem nunca poder ver a mulher amada, eu morando na Malásia, ela em Singapura. No dia seguinte, telefonei para minha colega uruguaia e pedi emprestado seu exemplar do livro.
La insumisa já começa de maneira surpreendente, com a frase: La primera vez que me declaré a mi madre, tenía tres años. É a história de uma infância e uma adolescência anticonformistas. Com ironia, Cristina Peri Rossi descreve um mundo soturno. Um hospital é palco de um estupro. O pai mantém com ela uma relação conflitiva; ele é agressivo, e sua vida, nos diz a autora, foi una larga, única y sostenida depresión. Um capítulo quase nos ilude, parecendo ser a poética descrição de uma estação de trem provinciana, no campo, chefiada por um tio-avô. A narradora tem agora quatro anos e atravessa um período feliz, correndo livre entre animais domésticos e avestruzes: El pueblo se llamaba Casupá, en honor a un cacique indio especialmente resistente a la Conquista.
Pesquiso e vejo que o povoado fica em terras que pertenceram ao avô do General Artigas. Chego a lamentar, a essa altura do livro, que, tendo vivido três anos em Montevidéu na infância, nunca tenha ido a Casupá, não tenha conhecido aquele cenário idílico.
Mas o tom logo muda. As vias ferroviárias são fechadas, os vagões abandonados no campo, alejados de cualquier camino y sin destino. Na ditadura militar uruguaia, serviram de campos de concentração, pois las cárceles y los cuarteles no fueron suficientes para encerrar a todos los presos políticos. Lemos detalhes do que significava viver trancado, amontoado, sem luz, sem banheiro, no ar rarefeito dos vagões. A narrativa, encantadora e bucólica poucos parágrafos atrás, torna-se agora terrível. Afinal, como observa a autora, los seres humanos tenemos una capacidad extraordinaria para hacer sufrir a los demás.
O príncipe Segismundo, esse Hamlet espanhol, teria também algo a nos contar sobre o sofrimento de viver, e na verdade contou-nos, aos ouvintes na livraria em Kuala Lumpur. Personagem principal da peça mais conhecida de Calderón de la Barca (1600-1681), La vida es sueño, ele foi interpretado pelo Embaixador da Espanha. Versos de suas duas falas mais famosas, habilmente mesclados, foram declamados, no pódio, com verdadeiro talento teatral.
Herdeiro do trono da Polônia, Segismundo cresce, por ordem do rei Basilio, seu pai, preso em uma torre nas montanhas. O rei é também astrólogo; os astros lhe comunicaram, ao nascer seu filho, que este — víbora humana del siglo — causaria grandes dores ao país e a ele próprio, o pai. O nascimento, de fato, dá-se sob algum signo infeliz: a rainha morre no parto, e isto coincide com um eclipse apocalíptico, descrito por Basilio em versos que me fazem pensar mais em outro fenômeno natural, as erupções vulcânicas que testemunhei em Quito:
Los cielos se oscurecieron, temblaron los edificios, llovieron piedras las nubes, corrieron sangre los ríos.
Com a consciência inquieta diante da longa prisão a que submeteu o filho, o rei decide um dia testar se os astros estavam certos. Manda trazerem Segismundo ao palácio real. Ao descobrir-se príncipe, e que apesar disso fora criado de maneira solitária, como um animal capturado, Segismundo torna-se violento, o que parece confirmar a profecia. É enviado de volta à torre. Convencem-no de que a ida ao palácio, o encontro com o rei, a revelação de sua verdadeira condição foram apenas cenas de um sonho.
Uma revolta de soldados, que querem aclamá-lo, liberta-o, no entanto, do enclausuramento. No final, pai e filho se reconciliam, Basilio abandona o trono, Segismundo se torna rei, deduzimos que governará com moderação, e seu casamento com a prima Estrella é anunciado.
La vida es sueño causou-me impacto quando a li pela primeira vez, aos 21 anos. Meu objetivo era familiarizar-me com o texto antes de assistir, em Londres, a uma produção da Royal Shakespeare Company, no The Pit, sala menor do Barbican Centre, teatro onde a companhia naquela época se apresentava na capital, em alternância com Stratford-upon-Avon. No meu programa da peça, anotei ter gostado das atuações e da produção, mas considerei o texto em inglês mais uma adaptação do que uma tradução. Nunca esqueci essa montagem.
Este ano, em abril, outra companhia de teatro, a fenomenal Cheek by Jowl, fez quatro apresentações da peça, em espanhol, e com atores espanhóis, na sala grande do Barbican. Essa produção, muito comentada, fora primeiro mostrada na Espanha, em turnê, nos últimos meses de 2022, e terminou no Festival de Edimburgo, em agosto. Uma das resenhas menciona que, na torre, o único consolo de Segismundo é ouvir Carmen Miranda cantando “Cuanto le gusta”, em uma gravação com as Andrews Sisters.
Se eu não tivesse, no começo de junho, rompido dois ligamentos no tornozelo direito, teria sonhado em tirar férias e viajar a Edimburgo em agosto. Fundada por Declan Donnellan e Nick Ormerod, Cheek by Jowl é uma companhia que apresenta peças em diversos idiomas, em diferentes países. Há muitos anos, assistimos à sua produção de Macbeth, em inglês, em Namur, e a Andromaque, em francês, em Bruxelas. A montagem da peça de Racine era particularmente notável.
Mas voltemos a Kuala Lumpur, onde o embaixador da Espanha declama versos do primeiro solilóquio de Segismundo na torre, no início de La vida es sueño:
Apurar, cielos, pretendo, ya que me tratáis así qué delito cometí contra vosotros, naciendo; aunque si nací, ya entiendo qué delito he cometido; bastante causa ha tenido vuestra justicia y rigor, pues el delito mayor del hombre es haber nacido.
Para emendar, em seguida, com as igualmente célebres linhas do regresso à prisão. Convencido por Clotaldo, seu tutor e cortesão do rei, de que as experiências que viveu no palácio foram apenas uma miragem, Segismundo conclui:
Es verdad, pues: reprimamos esta fiera condición, esta furia, esta ambición, por si alguna vez soñamos. Y sí haremos, pues estamos en mundo tan singular, que el vivir sólo es soñar; y la experiencia me enseña, que el hombre que vive, sueña lo que es, hasta despertar. Yo sueño que estoy aquí, de estas prisiones cargado; y soñé que en otro estado más lisonjero me vi. ¿Qué es la vida? Un frenesí. ¿Qué es la vida? Una ilusión, una sombra, una ficción, y el mayor bien es pequeño; que toda la vida es sueño, Y los sueños sueños son.
Borges menciona Calderón com alguma frequência em suas obras, e até Segismundo uma ou outra vez. É, porém, em uma entrevista concedida a Fernando Sorrentino e publicada por este em 1974 no livro Siete conversaciones con Jorge Luis Borges que encontro a opinião mais contundente, e surpreendentemente negativa: En cuanto a la versificación de Calderón, la encuentro excesivamente pobre y será, quizá, porque no lo he leído bien. Quem sou eu para condenar Borges? E no entanto, eu o faço.
La vida es sueño é uma peça filosoficamente complexa, e a qualidade poética do texto não é menos sofisticada. Relendo-a no amarelado exemplar comprado em Londres há tantos anos, duas ideias me capturam. Primeiro, a beleza estética que encontro na linguagem:
que hoy he de dar la batalla, antes que las negras sombras sepulten los rayos de oro entre verdinegras ondas.
Parece-me extraordinário que a língua espanhola possa acomodar um vocábulo específico, verdinegro, para definir uma cor indefinida, aquela tonalidade verde, quase negra que, de fato, o mar adquire, em um entardecer ensolarado, logo antes de ficar completamente escuro.
A segunda ideia é o dilema metafísico vivido por Segismundo. É curioso que Borges, cuja obra ilumina nossa leitura atual de Calderón, minimize o dramaturgo espanhol.
Mesmo Manuel Bandeira, em geral tão clarividente, oferece em Noções de História das Literaturas (1942) uma interpretação meramente moralista, ou talvez cristã, de La vida es sueño. Considera uma fala de Clotaldo a Segismundo — aun en sueños no se pierde el hacer bien — a síntese da peça, e comenta: “realidade ou sonho que seja a vida, o que importa é voltarmo-nos para o que é eterno”. Essa visão se aproxima daquela de Borges sobre a peça. Na entrevista de 1974, o escritor argentino afirma que, para Calderón, a frase la vida es sueño possui um sentido teológico, e não metafísico. Estima que, para o dramaturgo espanhol, a vida é apenas una breve parte de la realidad, pois lo verdadero son el cielo y el infierno. La idea de Calderón es una idea cristiana. Creo que Calderón le daba el énfasis a la idea de lo transitorio de la vida, comparado con lo transitorio de un sueño.
Na verdade, a peça do "Siglo de Oro", montada pela primeira vez por volta de 1635, coloca em questão, de uma maneira muito borgiana, a própria realidade da realidade. Segismundo é um prisioneiro que sonha em ser príncipe? É um príncipe resgatado do pesadelo de uma prisão? A vida é real? Ou é um sonho? “Uma sombra”? “Uma ficção”?
O que significa estar vivo, existir? Os versos pues el delito mayor / del hombre es haber nacido são citados com reverência por Arthur Schopenhauer, que por sua vez foi uma forte influência intelectual sobre Borges. Este aliás opina, na entrevista supracitada, que Calderón es una invención de los alemanes. A resolução edificante do enredo — Segismundo vira um bom rei, pai e filho se reconciliam — era apropriada para a Espanha do século XVII, e em nada diminui a profundidade das questões metafísicas suscitadas.
Se Jorge Luis Borges tinha reticências em relação a Pedro Calderón de la Barca, eu nenhuma tenho quanto a seu soneto “A Luis de Camoens”, da coleção El hacedor (1960). É esse o poema que decidi ler, em 3 de maio, ao público presente na livraria em Kuala Lumpur.
Expliquei à plateia que o "Dia da Língua Portuguesa" seria logo em seguida, em 5 de maio. Mencionei ser Camões o poeta nacional de Portugal, e um dos pilares das literaturas de língua portuguesa. Comentei que a colonização do Brasil começara simultaneamente à derrocada pelos portugueses do Sultanato de Malaca (1511), quando Portugal se instalara naquela área da Península Malaia, primeira potência europeia a fazê-lo. Como consequência, o malaio contém vários vocábulos derivados do português. O próprio Luís de Camões vivera em Malaca. Apontei os versos em que Borges lembra ter o poeta voltado à patria nostálgica para morir en ella y con ella, já que em 1580, mesmo ano de sua morte, Portugal e suas colônias passaram sob o domínio espanhol.
É este o soneto:
Sin lástima y sin ira el tiempo mella las heroicas espadas. Pobre y triste a tu patria nostálgica volviste, oh capitán, para morir en ella y con ella. En el mágico desierto la flor de Portugal se había perdido y el áspero español, antes vencido, amenazaba su costado abierto. Quiero saber si aquende la ribera última comprendiste humildemente que todo lo perdido, el Occidente y el Oriente, el acero y la bandera, perduraría (ajeno a toda humana mutación) en tu Eneida lusitana.
Os últimos versos são uma celebração do ofício poético e, por extensão, da literatura como um todo, e da arte. Os grandes autores e artistas fazem perdurar, em nossas mentes, a experiência humana ao longo da história, e dão sentido ao que, sem eles, talvez não tenha sentido algum. Essa é uma constatação sempre presente para mim. Em 1580, Portugal perdeu el Occidente y el Oriente, a glória da espada e da bandeira. Mas tudo isso é resgatado, e magicamente sobrevive, em Os Lusíadas.
O evento na livraria chegava ao fim. Faltava contudo algo. Seria inconcebível que Dom Quixote, no "Dia do Idioma Espanhol", não fosse lembrado. Uma aluna universitária malásia levantou-se, subiu ao pódio e leu parágrafos da obra de Cervantes, primeiro em castelhano, depois em malaio. Como convinha, um dos grandes mitos da literatura universal, o leitor de romances medievais que resolveu atacar moinhos de vento, surgira para encerrar a sessão.
Este texto foi primeiro publicado, em 5 de agosto de 2023, no jornal de literatura Rascunho
A foto da atriz Goizalde Núñez no papel de Clarín, na produção do Cheek by Jowl de La vida es sueño, é de Javier Naval