Mais um dos textos que eu produzi em homenagem a Roberto Campos, no ano de seu centenário.
Fundando um banco de desenvolvimento: o BNDE
Paulo Roberto de Almeida
Publicado in: Ives Gandra
da Silva Martins e Paulo Rabello de Castro (orgs.), Lanterna na Proa: Roberto Campos ano 100 (São Luís, MA: Resistência
Cultural Editora, 2017, 344 p; ISBN: 978-85-66418-13-2), p. 71-74. Relação de
Publicados n. 1258.
O Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico é o resultado de um longo e exitoso processo de
cooperação econômica bilateral, entre os Estados Unidos e o Brasil, que vinha
sendo implementado praticamente desde a conferência extraordinária de
chanceleres das repúblicas americanas, realizada no Rio de Janeiro em janeiro
de 1942, imediatamente após o ataque traiçoeiro do Japão à frota americana
sediada no Pacífico, em Pearl Harbor (Havaí), em 7 de dezembro de 1941, o qual recebeu
a também imediata condenação do Brasil, que estendeu total solidariedade ao
grande irmão do hemisfério. Um dos parágrafos da declaração final do Rio de
Janeiro já trazia embutida, aliás, a ideia da criação de uma entidade dedicada
ao restabelecimento dos pagamentos correntes – que seria materializada, dois
anos depois, na instituição do FMI – e do apelo à retomada dos financiamentos
ao desenvolvimento, o que era parcialmente suprido pelo Eximbank (criado em
1934) e que seria depois atendido pela fundação do Banco Mundial. As
conferências de Chapultepec, no México, em janeiro de 1945, e de Bogotá, que
instituiu a OEA, em 1948, também fazem parte desse mesmo impulso à cooperação
econômica hemisférica, esta última, por sinal, introduzindo a demanda
latino-americana de um “Plano Marshall para a América Latina”.
Um acordo concluído entre
o ministro das Relações Exteriores Raul Fernandes e o embaixador americano no
Rio de Janeiro, em dezembro de 1950, ao final do governo Dutra, criou uma
comissão bilateral voltada para as demandas brasileiras de assistência em seu processo
de desenvolvimento. Roberto Campos, que havia retornado pouco mais de um ano antes
de sua estada de seis anos nos EUA, teve a chance de participar de mais um
exercício de planejamento econômico estatal, essencial na sua formação ulterior
de grande tecnocrata do desenvolvimento brasileiro. Como ele mesmo relatou em
suas memórias: “Uma das mais gratificantes experiências de minha vida foi a
participação, como conselheiro econômico, na Comissão Mista Brasil-Estados
Unidos. Experiência gratificante pela contribuição que a Comissão trouxe sob
dois aspectos. Primeiro, a implantação no Brasil de técnicas de análise de
projetos e de rentabilidade e, segundo, sua contribuição essencial para a
criação do BNDE, encarregado de provar a contrapartida em cruzeiros, para os
financiamentos estrangeiros obtidos através da Comissão.” (A lanterna na popa, 1994, p. 151).
O relatório final da
Comissão, de 31 de dezembro de 1953, resume os 41 projetos examinados por
técnicos dos dois países, e sua redação traz a marca de Roberto Campos que,
junto com mais dois técnicos brasileiros (Glycon de Paiva e o coronel Mario
Poppe de Figueiredo) e dois americanos, desempenhou a função de assessor
econômico da seção brasileira, ao lado do mesmo Glycon de Paiva, Valentim
Bouças e Lucas Lopes, sob a liderança do presidente brasileiro Ary Frederico
Torres (ver The Development of Brazil;
report of the Joint Brazil-United States Economic Development Commission;
Washington: Institute of Inter-American Affairs, 1953). O prefácio tocava no aspecto
do financiamento: “A necessidade de capital privado foi reconhecida por ambos
os governos, mas ficou claro que capital de empréstimo de fontes públicas
também era necessário para superar os ‘estrangulamentos’ em setores básicos,
como transporte e energia, sem o qual as oportunidades para investimentos de
capitais privados poderiam ser seriamente prejudicadas.” (p. vi).
Mais adiante, o BNDE, que
tinha sido criado no curso da assistência prestada, é expressamente mencionado:
“Com respeito ao financiamento potencial dos projetos, a principal
responsabilidade pela atribuição de empréstimos e créditos em cruzeiros,
particularmente no setor ferroviário, ficaria com o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico, que tinha sido organizado durante a vigência da
Comissão Mista para essa finalidade.” (p. vii). O BNDE passaria a trabalhar
conjuntamente com o BIRD e o Eximbank para o componente em divisas desses
financiamentos, que foi confirmado como “a agência primordialmente responsável
pela implementação dos projetos de investimentos nos campos fundamentais
recomendados pela Comissão Mista.” (idem).
De fato, o BNDE foi criado
pela lei 1658, de 20 de junho de 1952, e passou imediatamente a trabalhar.
Roberto Campos foi designado, logo no dia 2 de agosto, diretor superintendente,
encarregado da organização do Departamento Econômico, ao lado de Glycon de
Paiva, que chefiava o Departamento Técnico. Pouco depois, no entanto, com o
afastamento do diretor-superintendente Ari Torres, o presidente Vargas resolveu
nomear “um homem de sua confiança pessoal [o jornalista José Soares Maciel
Filho], infelizmente com total despreparo econômico e, curiosamente, também sem
peso político específico”. (1994, p. 193). Menos de um ano depois de ter
assumido o cargo no BNDE, o primeiro secretário Roberto Campos apresentou, com
Glycon de Paiva, em 22 de julho de 1953, “nossa carta conjunta de renúncia a
Getúlio Vargas, uma vez que Maciel Filho insistia na politização” do BNDE (p.
206). Campos obteve sua remoção como cônsul em Los Angeles, de onde retornou em
1955, já no governo Café Filho, quando seu amigo Eugênio Gudin tinha sido
nomeado ministro da Fazenda e Glycon de Paiva foi convidado para presidir o
BNDE: seu primeiro ato foi convocar Roberto Campos para trabalhar novamente no
Banco.
Ao tomar posse como
diretor-superintendente do BNDE, em 14 de março de 1955, Roberto Campos
declararia: “Alguém já disse que a tarefa do estadista é, essencialmente, explodir mitos antes que os mitos
explodam o Estado. (...) O primeiro [mito] é a noção de que o combate à
inflação (...) é incompatível com a preservação do desenvolvimento econômico.
Ora, a verdade é que uma inflação persistente e aguda, como a da recente
conjuntura brasileira, estrangula fatalmente o desenvolvimento econômico, mais
cedo ou mais tarde... (...) A segunda das ilusões... (...) reside em julgar-se
que é possível esperar prestação e ampliação de serviços pelo Governo, com
desatenção ao custo econômico real desses serviços. (...) O terceiro mito é
pensar que o bem-estar e a elevação do padrão de vida podem ser atingidos
diretamente por medidas legislativas ou imposições redistributivas, por melhor
concebidas que pareçam. É que o bem-estar é um subproduto do desenvolvimento
econômico e não um artigo de destilação direta.” (Campos, Economia, Planejamento e Nacionalismo. Rio de Janeiro: Apec, 1963,
p. 158-160).
Convertido mais adiante em
presidente do BNDE, pelo presidente Juscelino Kubitschek, Roberto Campos
confirmou, em seu discurso de despedida, em 29 de julho de 1957, que “logrou o
BNDE [ou seja, ele mesmo] escapar ao tríplice escolho em que não raro se
machucam e espedaçam as nossas empresas do Estado: a politização, o empreguismo
e a descontinuidade”. (idem, p. 255).
A verdade é que, como ele
relatou em suas memórias, as suas “relações com Juscelino se haviam
gradualmente esfriado. Eram fatores cumulativos. Juscelino sentia minha latente
hostilidade pela sua dileta pirâmide ‘Brasília’.” Os resultados da política
econômica de JK foram duas: “aceleração da inflação e derrocada cambial” (1994,
p. 376).
Ele informa ainda: “Esse
interregno de ostracismo permitiu-me dedicar um pouco mais de tempo à docência
da cadeira de Moeda e de Crédito na Faculdade de Economia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, então Universidade do Brasil, cadeira em que havia
sucedido ao professor Gudin. (...) Na saída do BNDE, acompanharam-me vários
colegas do Itamaraty – Miguel Osório de Almeida, Geraldo Holanda Cavalcanti e
Lindenbergh Sette – que eu havia atraído para o banco e para o Conselho de
Desenvolvimento, pelo interesse que tinham em planejamento econômico. Passaram
a enfrentar problemas de sobrevivência, ao perderem as gratificações que
suplementavam os magros salários do Itamaraty.” (1994, p. 379).
Paulo Roberto de Almeida é diplomata
de carreira e diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais,
IPRI-Funag/MRE.
[Brasília, 8 fevereiro
2017]