Fausto e a Liberdade de Espírito
Paulo Roberto de Almeida
Interrompi a leitura que
fazia, no voo que me trouxe de volta de Curitiba a Brasília, de um romance de
Carlos Ruiz Zafón, O Jogo do Anjo (em
uma versão francesa), para refletir sobre uma passagem, ao final do primeiro
sexto do livro, quando o “herói” da história, David Martin, encontra aquele que
eu identifiquei imediatamente como sendo um personagem faustiano. Não tenho
certeza quanto a isso, pois justamente interrompi no ato a leitura, para tomar
do meu Moleskine e escrever este pequeno texto; mas tudo leva a crer que o
jovem escritor de Barcelona, do início do século XX, está no limiar de concluir
um pacto faustiano, enredo bastante conhecido na literatura clássica, desde
antes de Goethe, e bastante imitado no teatro e no cinema.
Retomarei o livro depois,
mas a reflexão que quero fazer tem a ver com a liberdade de espírito, o
contrário, portanto, do contrato mefistofélico que alguns fazem em busca da
glória, do poder, do dinheiro, do amor, ou de qualquer outra coisa que possa
ser valorizada além e acima da própria liberdade, inclusive a vida eterna. O
pacto faustiano é suficientemente conhecido para que eu necessite explicá-lo
neste pequeno texto, tanto porque a intenção, como dito, é tratar do outro lado
da questão, ou seja, a preservação da plena liberdade de espírito e do total
controle sobre si mesmo, a despeito e em face de tentações externas e de
desejos internos para alcançar objetivos ou situações de conforto e prazer
individual, desde que se proceda à cessão de direitos sobre o próprio destino.
Mas o que o pacto
faustiano, uma imagem puramente literária, tem a ver com esta minha reflexão a
partir da leitura incompleta de um romance, ou de apenas uma sugestão retirada
do citado livro de Zafón? Acredito que existam muitos elementos para reflexão,
sobretudo porque, no decurso de uma vida qualquer, sem que algum diabo apareça,
somos todos levados, mais cedo ou mais tarde, a concluir pequenos (ou grandes,
segundo os casos) pactos faustianos, quase todos os dias, e isso sem nenhuma
glória literária. Estamos sempre entrando em compromissos duvidosos, no
trabalho, na escola, em família ou até com nós mesmos. Parece exagerado dizer
isso, mas existem muitas probabilidades de que isso ocorra, inclusive para
pessoas que sonham ou creem ser livres.
Esses compromissos são
pequenas concessões que fazemos para uma boa convivência social, gestos ou
palavras anódinos, não necessariamente hipócritas, mas sempre acomodatícios;
são também todas as mesuras e cuidados que tomamos para melhorar uma existência
que já pode ser boa, mas que poderia ser “perfeita” se pudéssemos dispor do
acordo de ocasião, ou a combinação permanente que parece aproximar essa vida do
ideal sonhado por quase todos nós: a situação de equilíbrio estável entre o
prazer e o conforto, que desejamos constante, a partir de algum “contrato”
dessa espécie.
A liberdade de espírito se
encontra, precisamente, na recusa dos compromissos que vão além dos pequenos
gestos da vida cotidiana, de ces petits
riens dos quais falava um chansonnier
francês. Ela significa manter uma integridade moral, em face de apelos
(ocasionais ou frequentes) em prol de alguma causa ou de objetivos que não são
os nossos, mas os de algum capeta “virtual”; este (pode acontecer) somos nós
mesmos e nosso eterno desejo de superar barreiras e dificuldades que se
interpõem na busca da glória, poder e riqueza, e que encontramos, quase todos
os dias, em nossa caminhada existencial.
O que pode tolher nossa
liberdade de espírito? A lista é enorme: o se mostrar condescendente com as
pequenas trapaças da vida; o concordar com uma opinião ou argumento
manifestamente absurdo, mas com os quais assentimos em função de quem os
expede; a leniência em face das mentiras dos poderosos e a complacência com as
hipocrisias dos nossos iguais. A renúncia a ter um pensamento próprio, numa
situação corporativa qualquer, também pode configurar um inaceitável
cerceamento da liberdade de espírito, ou, se quiser,
do livre arbítrio.
Mas, existe livre arbítrio
em sociedade? É possível preservar sua total liberdade de espírito quando se é
empregado, assalariado ou dependente, quando se assume uma relação contratual,
enfim, quando não possuímos os atributos dos divinos e poderosos? De fato, é
difícil falar em liberdade de espírito quando não se nasceu ungido pelo sopro
da divindade e quando precisamos disputar nosso pão cotidiano numa situação
qualquer de trabalho para outrem. E, aparentemente, mesmo os ricos e poderosos
– um empresário de sucesso, por exemplo – não possuem total liberdade de
espírito, pois muitas vezes precisam se dobrar à “ditadura dos consumidores” ou
de sua clientela de serviços; ou quando temos de nos conformar a normas
impositivas – uma Constituição intrusiva, por exemplo – que parecem totalmente
ridículas ou singularmente inadequadas para assegurar o quantum de liberdade que nos achamos em direito de exigir, mesmo
quando vivemos plenamente integrados a uma comunidade nacional.
Não é preciso referir-se,
todavia, a essa renúncias à liberdade que todos temos de fazer para tornar mais
suportável a vida em sociedade. A “minha” liberdade de espírito é aquela que
deve ser exercida contra as renúncias voluntárias à nossa própria dignidade em
troca de algum pacto sub-faustiano, qualquer que seja o seu objeto precípuo.
Ela é, ou deveria ser, consubstancial à tranquilidade de espírito com a qual
gostaríamos de viver, se não enfrentássemos compulsões internas e injunções
externas.
Uma coisa é certa: todos
temos de fazer escolhas na vida. Melhor, assim, que essas escolhas não
contrariem muito nossa consciência.
Paulo Roberto de Almeida
Em voo Curitiba-Brasília, 19/07/2012.