Cristiano Romero entrevista Rubens Barbosa: não é apenas chumbo grosso que vem dos EUA de Trump contra o Brasil: são diversas bombas de muitos megatons:
EUA: não há mais liberalismo, mas lei da selva - Rubens Barbosa
Por Cristiano Romero
Vero Notícias, 25/07/2025
Com a acidez e o pragmatismo que lhe são peculiares, o embaixador Rubens Barbosa não poupa palavras para descrever o cenário atual das relações entre o Brasil e os Estados Unidos, especialmente diante do controverso governo de Donald Trump. Em entrevista exclusiva ao portal Vero Notícias, Barbosa desvenda as camadas desse embate, que classifica sem rodeios como a “lei da selva” nas relações internacionais.
É importante ressaltar que a visão de Rubens Barbosa sobre as relações bilaterais não é a de um mero observador, mas de um diplomata com profunda experiência. Tendo atuado como embaixador do Brasil nos Estados Unidos entre 1999 e 2004, período particularmente turbulento da vida americana — marcada pelo questionamento da eleição de George W. Bush, pelos ataques de 11 de setembro e pela invasão do Iraque pelos EUA a partir de informações falsas —, Barbosa demonstrou ser um hábil negociador de questões complexas envolvendo os dois países. Trabalhou intensamente na preparação do governo americano para a posse de um presidente brasileiro de esquerda (Lula, em seu primeiro mandato). Sua compreensão da dinâmica de Washington, forjada em momentos de alta tensão, confere ainda mais peso às suas análises.
A crítica inicial vem ao classificar a gestão de Trump. Para Barbosa, o que se vê é um unilateralismo sem freios, um abandono do multilateralismo que pavimentou a ordem global pós-Segunda Guerra. Em outras palavras, a diplomacia deu lugar à imposição, e o Brasil, como outros países, se vê enredado nessa teia de decisões tomadas à revelia dos acordos coletivos. A verdade nua e crua é que Washington agora dita as regras, e quem não se ajusta, arca com as consequências.
E não se deve ter ilusões: o legado de Trump, por mais errático que pareça, não é efêmero. Barbosa, com a sua habitual perspicácia, adverte que muitas das bandeiras levantadas pelo presidente americano tendem a permanecer, independentemente de quem ocupe a Casa Branca. A razão é simples e brutal: os EUA estão rachados ao meio, com 50% da população chancelando as ações de Trump. Isso significa que as tarifas, as pressões comerciais e a postura isolacionista não são meros caprichos, mas reflexos da visão de uma parcela significativa do eleitorado americano.
Diante desse quadro, o embaixador é categórico: o Brasil precisa acordar para a nova realidade. Deixar a ideologia de lado e abrir canais de comunicação efetivos com Washington é mais do que uma necessidade, é uma questão de sobrevivência econômica. Enquanto os americanos jogam duro, explica Barbosa, o Brasil, infelizmente, parece ainda patinar, perdendo tempo precioso e a chance de negociar em um ambiente que, querendo ou não, se tornou mais hostil do que nunca. A bola está com Brasília, e o tempo, como sempre, não perdoa.
Leia a entrevista completa:
Vero Notícias: O Brasil é aliado histórico dos EUA. Apesar disso, neste momento é o país mais castigado pelas tarifas aplicadas às importações pelo governo norte-americano. Estamos vivendo o pior momento da relação bilateral?
Embaixador Rubens Barbosa: O que está acontecendo nos Estados Unidos também é único. Não existiu nenhum presidente antes de (Donald) Trump que tenha feito o que ele está fazendo. Todas essas ideias de anexar o Canadá, a Groenlândia, ninguém jamais falou nisso. A primeira coisa, então, é saber que a gente está lidando com uma situação nova e sobre a qual não se tem controle. Não é uma relação tradicional, política, diplomática. Do lado brasileiro tem um problema.
Qual?
Barbosa: Um lado ideológico muito forte. Do lado americano, o Trump é ideológico, da extrema-direita, enquanto, aqui, tem o Lula e o PT da esquerda. Então, eles não se falam. O governo não estabeleceu, desde a eleição, um canal de comunicação. Veio em abril o tarifaço e o governo estabeleceu um canal de comunicação comercial, entre o vice-presidente Geraldo Alckmin, o secretário de comércio dos EUA e o USTR (sigla de representante comercial dos EUA).
Isso não é suficiente?
Ora, é preciso ter um canal político, diplomático. “O Globo” fez editorial dizendo que Lula tem que mandar o chanceler Mauro Vieira aos EUA antes do dia 1º de agosto, quando as novas tarifas entram em vigor. Não adianta nada.
Por quê?
Porque eles não têm um canal aberto, de diálogo. O que interessa é a tarifa, não é a relação diplomática.
O senhor acha que Trump está fazendo em todas as áreas é um desvio na história americana ou é uma tendência, afinal, ele foi eleito pela segunda vez?
Vai ter eleição ano que vem [para o Congresso americano]. Acho que ele vai perder a maioria de uma das casas, a Câmara ou o Senado.
Quando o senhor olha tudo o que está acontecendo lá, o que considera de caráter permanente?
O país está dividido, 50% de cada lado. Ele (Trump) tem 50% do eleitorado que aprova tudo o que está fazendo. Na visão dele, o que está fazendo é para defender os interesses americanos. É uma posição nacionalista, radical, ideológica, cristã. O que ele está fazendo com as universidades, com os imigrantes, é tudo novo na política americana. Na área internacional e no comércio, houve uma revolução. Quer dizer, todo aquele cenário criado depois da Segunda Guerra Mundial, sob a liderança dos EUA, nas áreas comercial, econômica e política desapareceu.
O que efetivamente acabou?
Não há mais liberalismo. Hoje, o que prevalece é o protecionismo, é a lei da selva, a vontade pessoal de cada dirigente dos países. Acabou a OMC (Organização Mundial do Comércio). No caso das tarifas, não há mais a quem recorrer. Então, tem que negociar diretamente com os EUA. E o Brasil, apesar das diferenças ideológicas, não criou canais de negociação. O Vietnã, que é um país comunista, já negociou um acordo. As Filipinas, o Japão, a Indonésia, também negociaram. Como a gente não manda ninguém para conversar no alto nível, não há negociação.
O desrespeito dos EUA ao multilateralismo não teve impulso durante o governo de George W. Bush (2001-2009)?
Sim, com as mentiras contadas para justificar a invasão ilegal do Iraque. Bush começou a destruir a imagem americana ali, e isso foi se agudizando desde então.
O problema todo dos Estados Unidos é que, a partir de 2001, quando a China entrou para a OMC, a tensão que havia entre EUA e Rússia foi substituída pela tensão entre EUA e China. Gradualmente, os americanos começaram a defender o interesse deles em primeiro lugar. Isso chegou ao paroxismo com a ascensão de Trump, com o MAGA, etc. A visão de Trump é nacionalista, de extrema-direita, e vale para tudo. Agora, por exemplo, eles saíram da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), acusando-a de antissemitismo. Disseram que a instituição promovia temas que não são do interesse americano. Trump disse que a União Europeia foi criada para prejudicar os Estados Unidos! Agora, pior é o que ele está fazendo na área internacional.
O que, exatamente?
Uma coisa é o comércio, a economia. A outra é a ordem internacional. Na ordem internacional, Trump está dando apoio à Rússia e se colocando contra a União Europeia. O establishment americano tinha essa questão da Guerra Fria desde o fim da Segunda Guerra. Isso acabou com o fim da União Soviética. Agora, os EUA estabeleceram uma Guerra Fria contra a China. Quem não entender isso fica tratando o Trump como o Brasil está fazendo. A União Europeia, por exemplo, está negociando as tarifas com Trump.
Na entrevista do presidente Lula à CNN Internacional, ele disse que o Brasil está negociando com os EUA desde abril.
O que eles estão negociando é o tarifaço anunciado em abril. Alckmin esteve lá duas ou três vezes. O pessoal técnico esteve lá, Brasil mandou uma proposta em relação à tarifa de 10% aplicada a todos os países. Os americanos não responderam. Agora, quando apareceu a carta de Trump a Lula, no dia 9 de julho, sobre o tarifaço de 50%, Alckmin mandou uma carta pedindo resposta à carta enviada pelo Brasil em maio. Já em relação à tarifa de 50% não fizemos nada, simplesmente devolvemos a carta.
Ao devolver, o governo brasileiro quis dizer que não reconhece a carta de Trump recebida em 9 de julho?
É isso. Agora, o Lula respondeu do mesmo jeito. Em pronunciamento à nação e pela mídia, disse que vai taxar as “big techs” e retaliar. Ora, se isso acontecer, os americanos vão retaliar de novo. O Brasil precisa ter um canal de comunicação com o governo Trump para negociar o que interessa ao Brasil, que é o tarifaço sobre nossas exportações.
O Itamaraty não está cumprindo seu papel?
Não! Isso se deve ao esvaziamento do Itamaraty. Não adianta mandar o Mauro Vieira, tem que ir o vice-presidente. Mas já é tarde porque as tarifas entram em vigor no dia 1º de agosto. A crítica que eu faço é que, oito meses desde a vitória eleitoral de Trump, não houve nenhum contato oficial do governo brasileiro com a Casa Branca e o Departamento de Estado. Houve apenas com a área comercial. Celso Amorim, assessor de Lula, chamou o encarregado de negócios da embaixada americana [já há alguns anos, os EUA não designam um embaixador para sua representação no Brasil]. Porém, não houve contato oficial entre o Palácio do Planalto e a Casa Branca.
E por que o governo Lula não o fez? Nos dois mandatos anteriores, ele desenvolveu boa relação com os presidentes Bush e Obama.
Por questões ideológicas. Durante a campanha eleitoral americana, Lula disse que Trump é o “nazismo com outra cara”. Disse também que seria melhor a vitória de Kamala Harris.
O que o senhor acha dos termos da última carta de Trump a Lula, em que ele condiciona a negociação ao fim do processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro?
O que está por trás dessa carta não é o Bolsonaro, mas, sim, os interesses das big techs. Se você olhar a carta, verá que o primeiro parágrafo é sobre a questão de Bolsonaro, mas não tem nada a ver com o restante da carta. O segundo parágrafo é sobre as big techs e o Supremo Tribunal Federal (STF). O Brasil reagiu bem. Chamou o encarregado de negócios para fazer esclarecimentos, devolveu a carta ao governo americano e criticou a ingerência externa no Brasil, deveria ter parado aí.
Por quê?
Porque já tinha respondido a parte política e, aí, a parte comercial, que é a que mais interessa ao Brasil, eles não fizeram nada.
Ao impor condição que exigiria interferência do presidente Lula em outro poder da República, Trump não inviabiliza qualquer possibilidade de negociação?
Não há essa condição. Isso é uma interpretação que está sendo dada, mas não tem. Uma coisa é a parte política da carta de Trump, que já foi respondida. Outra é a parte técnica da big tech e do tarifaço. A gente tem que mandar alguém lá para negociar essas duas coisas.
Foi uma bravata, então?
Não. A carta tinha um lado político e foi respondida adequadamente. O Brasil não vai discutir essa parte. Os americanos sabem disso. Na minha visão, é uma narrativa para fins de política interna nos Estados Unidos. O que interessa nisso tudo é o tratamento do Brasil para as big techs e as tarifas. Mas não dá mais tempo para negociar antes de 1º de agosto.
O que o Brasil deve fazer, então?
Tem que preparar uma missão governamental de alto nível para ir aos Estados Unidos, com o objetivo de discutir com a Casa Branca. No caso das Filipinas, quem negociou e fechou um acordo foi o primeiro-ministro. A questão envolvendo Bolsonaro não é impedimento para a negociação técnica. Esta é a minha posição.
Quem deve integrar essa missão de alto nível?
Deveria ser o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, para falar com o vice-presidente americano J. D. Vance.
Mesmo que a questão política não seja a mais importante, já que o Brasil nada pode fazer em relação ao governo Trump, não há o risco de os americanos rejeitarem uma negociação?
Se eles não quiserem receber o vice-presidente do Brasil, aí, não sei o que poderia acontecer. O chanceler pode ir junto, integrar a missão, mas a liderança tem de ser do vice-presidente. Veja, o chanceler não está negociando com o setor privado. Quem está fazendo isso é o vice-presidente, que é também o ministro da Indústria e Comércio. O chanceler pode fazer uma visita ao Departamento de Estado para estabelecer uma comunicação que foi não feita até agora. Isso é outra história.
O que lhe faz pensar assim?
O último parágrafo da carta que diz que o governo americano está disposto a negociar os 50%. Está escrito lá. E eu te falei que o Secretário de Comércio declarou algo na mesma direção. Mas, antes de 1º de agosto não vai ter suspensão do tarifaço, adiamento, nada.
Este é o pior momento da relação do Brasil com os Estados Unidos?
Não. Já houve momentos tão sérios quanto este de agora. No Império, o Brasil suspendeu as relações duas vezes com os EUA. Agora, não se está suspendendo a relação. Durante o governo Geisel, por causa da tentativa de ingerência dos EUA na questão dos direitos humanos, o Brasil suspendeu o acordo que tinha com Washington. A presidente Dilma Rousseff, quando foi espionada, cancelou viagem que faria aos Estados Unidos, uma visita de Estado. Isso é forte. Tinha que dar uma resposta e ela deu.
Quem mais deve participar do esforço para reduzir o tarifaço?
Os empresários têm que ajudar. Têm que ir a Washington conversar com o lado empresarial americano e pedir que eles pressionem Trump a reduzir as tarifas.
Alguém está fazendo isso?
Sim. Alckmin está falando com os empresários aqui, agora. E os empresários aqui têm que ir aos Estados Unidos para falar com seus pares. Eles já começaram a fazer isso. Alckmin se reuniu também com empresas americanas que atuam no Brasil. Estão fazendo o trabalho certo. A Embraer, por exemplo, fabrica aviões com partes feitas nos EUA e vende muitas unidades ao mercado americano. Já está conversando com empresas americanas. O setor de agronegócio contratou um grande escritório de advocacia. A decisão será da Casa Branca e não do Departamento de Comércio ou do USTR. Por isso, é necessário ter um canal com a Casa Branca.
