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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sexta-feira, 24 de abril de 2020

O casamento inevitável entre Brasil e China no agronegócio - Marcos Jank (Valor)

O casamento inevitável entre Brasil e China no agronegócio

Jornal “Valor Econômico”, Suplemento Eu & Fim de Semana, 24/04/2020.

Marcos Sawaya Jank*

Ao atacar os chineses com falácias e teorias conspiratórias, o país pode alvejar um dos setores centrais para a saída da recessão que se apresenta.

“Para cruzar um rio, é preciso sentir cada pedra” - Deng Xiaoping

O magnífico ensaio “O que o Brasil quer da China?” de Philip Yang, publicado no Valor, mostra com precisão e incrível profundidade porque em apenas quatro décadas a China deslanchou, enquanto o Brasil manteve um crescimento pífio. Na sequência, Rubens RicuperoTiago CavalcantiRoberto Giannetti e Marcos Caramuru trouxeram diferentes facetas que complementam a explicação sobre o desenvolvimento desigual dos dois países.

O Brasil se tornou globalmente competitivo em agricultura e alimentos em boa parte graças à demanda chinesa. Se o Brasil não sabe bem o que quer da China, o setor privado do agronegócio entende perfeitamente que o seu futuro está umbilicalmente ligado ao gigante asiático.

Essa relação tem grande importância num momento em que figuras importantes do Executivo e do Legislativo brasileiro, em vez de se esforçarem para reduzir os efeitos econômicos e viróticos da pandemia, optam por criar um pandemônio desnecessário com a China. Ao atacarem a China com falácias e teorias conspiratórias, essas pessoas podem estar alvejando um dos setores mais centrais para que o país saia da recessão que se avizinha.

Brasil e China estão entre os quatro maiores produtores e exportadores mundiais de produtos agropecuários e alimentos. China e Hong Kong ocupam, juntos, a primeira posição no ranking das importações mundiais do agronegócio. São, também, o destino principal das nossas exportações neste setor (US$ 34 bilhões ao ano, ou 33% do total exportado), com um volume de exportações quatro vezes superior ao dirigido para os Estados Unidos.

O Brasil é o principal fornecedor de produtos agroalimentares para a China, respondendo por quase 20% das importações daquele país. A China responderá por um quarto do aumento do consumo de proteínas animais do mundo até 2030. Por isso, não é para menos que a China se tornou uma das principais fontes de investimento estrangeiro no agronegócio brasileiro.

A recente guerra comercial levou a China a elevar as suas tarifas de importação sobre produtos americanos. Em 2018/19 houve ainda a eclosão de uma terrível epidemia de peste suína africana, que dizimou quase metade do rebanho suíno chinês. Tais fatores fizeram com que as exportações brasileiras de algodão e carnes avícolas e bovinas disparassem, tornando o Brasil o principal supridor da China nesses produtos, além de liderar as exportações de soja em grãos.

O fato é que uma parcela significativa da oferta brasileira de produtos agropecuários e alimentos está “casada” com a demanda chinesa, sendo que não há cônjuge alternativo no mercado. Trata-se de um “casamento inevitável”, queiramos ou não, e ainda mais em tempos de Coronavirus, que desestabilizou o abastecimento doméstico chinês.

Para ficar bem claro aos sinofóbicos: os Estados Unidos não são alternativa de casamento para o agro brasileiro, mas sim um “noivo” concorrente e poderoso, turbinado por subsídios na veia de quase US$ 50 bilhões, se somarmos os dois pacotes de apoio que os agricultores americanos receberam para compensar a guerra comercial e a crise da Covid-19.

É interessante notar que o Brasil e a China reformaram profundamente os seus setores de agricultura e alimentos a partir dos anos 1970. Deng Xiaoping liderou o maior movimento de migração da história, no qual cerca de 300 milhões de chineses deixaram o campo para atender a imensa demanda de mão-de-obra da sua indústria manufatureira, que se integrava às cadeias globais de valor.

Esse movimento do governo chinês permitiu a modernização de parte da agricultura chinesa, com destaque para os setores de frutas, legumes e verduras e, mais recentemente, a explosão da chamada Agricultura 5.0, com seus drones, estufas, tecnologias digitais etc. Ao mesmo tempo, a China identifica a impossibilidade de atingir a autossuficiência em alguns setores e abre, de forma pontual e pragmática, o seu mercado doméstico para importações de grãos de soja, celulose, algodão e carnes.

Em paralelo, os anos 1970 no Brasil marcam o início do movimento de “tropicalização da agricultura” em direção aos cerrados do centro-oeste. Do lado da tecnologia, vieram novas variedades, correção de solos, plantio direto, duas safras no mesmo ano agrícola e o incrível fenômeno da integração lavoura-pecuária. Do lado das pessoas, uma nova geração de agricultores jovens, dinâmicos, motivados e tomadores de risco migra para as novas fronteiras com ganhos de gestão, escala e sustentabilidade.

Esses dois movimentos sacramentam o casamento entre o Brasil e a China no agronegócio, que prosperou a despeito das falhas de infraestrutura do primeiro e das dificuldades de acesso aos mercados do segundo. Trata-se de um movimento que se origina da demanda exponencial chinesa por alimentos e da alta produtividade alcançada pela tecnologia agrícola tropical. Definitivamente, ela não nasce de “visão estratégica” dos governos e da sua capacidade de planejamento.

Neste momento um novo desafio se apresenta para os dois países: o risco das zoonoses e seus impactos na qualidade e sanidade dos alimentos. Nos últimos 30 anos nos acostumamos a qualificar o aquecimento global, a desigualdade e o desemprego como os maiores problemas da humanidade. Não nos demos conta de que um inimigo invisível, que esteve sempre à espreita, ganhou enorme musculatura com a globalização: as pandemias originadas de zoonoses.

A Covid-19 não foi a primeira, e tampouco será a última epidemia que vem de animais domésticos e silvestres. Antes dela tivemos Aids, Ebola, Sars, Mers, gripe aviária e gripe suína. Nenhuma, porém, com capacidade de frear bruscamente a economia mundial.

Se a mudança do clima prometia matar paulatinamente o ser humano pela sua inação em relação ao planeta, a Covid-19 chega, sem aviso, para matar pessoas em hospitais despreparados para lidar com pandemias e na depressão causada pela parada da economia.

Estou convencido que segurança do alimento pode ser um dos principais itens de cooperação Brasil-China, países que sempre estiveram entre os líderes da produção, do consumo e do comércio de proteínas de origem animal e vegetal no mundo.

Comércio e investimentos dominam a pauta Brasil-China. Contudo, outros temas vêm ganhando importância na agenda bilateral do agronegócio, como por exemplo inovação, infraestrutura e sustentabilidade. A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e a China Agricultural University (CAU), classificadas entre as cinco melhores escolas de agricultura do mundo, lançarão em junho o livro “China-Brazil partnership in agriculture and food security”, uma obra que reúne artigos de duas dezenas de especialistas chineses e brasileiros sobre os temas apontados neste artigo.

Para finalizar, precisamos reconhecer que no casamento Brasil-China os noivos sempre serão muito diferentes. A China tem uma homogeneidade socioeconômica e cultural milenar, construída em torno da ética do confucionismo, que gerou um governo único e estável. O Brasil tem uma imensa diversidade étnica e cultural e órgãos de governo fragmentados e desorganizados, onde a insegurança jurídica torna até o passado incerto.

A China tem uma visão estratégica de longo prazo sobre o seu futuro, tendo realizado investimentos coletivos em educação e infraestrutura. O Brasil não consegue olhar além das emergências de curto prazo, campo que, no entanto, demonstramos uma combinação única de criatividade, improvisação e resiliência.

No campo comercial a China promoveu as suas exportações injetando doses cavalares de competitividade e inovação na sua indústria. Já o Brasil optou por proteger a sua indústria e substituir importações, isolando-se das cadeias globais de valor, exceto no agronegócio.

Finalizo afirmando que as relações Brasil-China no agronegócio sobreviveram apesar das visões preconcebidas e ideológicas dos sucessivos governos. Lula e Dilma privilegiaram a África e os países bolivarianos. Bolsonaro quer privilegiar o mundo rico ocidental, e principalmente os Estados Unidos.

Enquanto isso, seguimos ignorando que o mundo voltou a ser asiacêntrico, e particularmente sinocêntrico, do ponto de vista demográfico, econômico e de segurança alimentar. A relação Brasil-China no agronegócio não foi planejada ou construída. Mas se tornou um fato inexorável. E não adianta lutar contra os fatos. É melhor aceitá-los com objetividade e estratégia, como fazem os chineses, há milênios.

A frase de Deng Xiaoping que abre esse texto ilustra a essência do pragmatismo chinês. De nada serve alimentar ataques insanos a uma potência global que quer se aliar ao Brasil para garantir a sua segurança alimentar. De nada serve atacar pessoas que estão construindo as nossas pontes com o mundo, como a Ministra da Agricultura Tereza Cristina.

A resposta para a pergunta “o que a agricultura brasileira quer da China” é simples: queremos construir confiança e cooperação para atravessarmos juntos o rio turbulento da segurança alimentar, sem posições apriorísticas ou ideológicas.

(*) Marcos Sawaya Jank é professor de agronegócio global do Insper e titular da Cátedra Luiz de Queiroz da Esalq-USP.

sexta-feira, 27 de março de 2020

O mundo global e a Covid-19 - Marcos S. Jank (OESP)

O mundo global e a Covid-19

Jornal “O Estado de S. Paulo”, Opinião, 27/03/2020.

Marcos S. Jank*

A globalização será fortemente impactada pelos dois tsunamis da pandemia.

A imagem mais dura e realista da crise que vivemos são as duas ondas que nos vão atingir em cheio. A primeira é uma onda de menor tamanho, que já recebe todas as atenções neste momento: a pandemia do coronavírus. A segunda, ainda desconhecida e muito mais avassaladora, é a recessão mundial que vem logo atrás da covid-19. Dois tsunamis sucessivos, porém de diferentes natureza e impacto.

O dilema é que quanto melhor forem a contenção e o isolamento das pessoas, maior será a vitória contra a primeira onda e mais desastroso será o impacto da segunda. Como diz o ditado, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Neste caso, se corrermos para fora de casa o bicho da covid pega todo mundo, se ficarmos confinados em casa o bicho da recessão nos come mais à frente.

A tragédia é que, enquanto a covid-19 ataca os mais velhos, a recessão atingirá principalmente os mais pobres, o mercado informal e as pequenas empresas, que têm pouco acesso a crédito e capital de giro, afetando milhões de empregos.

A crise atual origina-se na área sanitária, que determinou o isolamento social, e avança na área econômica, com a paralisação da oferta de bens e serviços. Esta crise exige, portanto, políticas públicas que consigam administrar o difícil trade-off entre riscos sanitários e riscos socioeconômicos, com suas respectivas medidas e ajustes.

No cenário otimista teremos um impacto momentâneo, com a doença causando poucas mortes e uma recessão moderada e administrável, compensada pelo inevitável surto de crescimento quando a vida se normalizar.

No cenário pessimista, a pandemia demora muito tempo para ser solucionada e a recessão resultante deixa pesadas sequelas em termos de desemprego, quebra de empresas, desorganização de cadeias produtivas, desespero e mesmo violência.

As fronteiras do mundo haviam desaparecido com a facilidade de se conectar, viajar, conversar e trabalhar online. Pessoas se integraram por meio de aviões, internet e redes sociais. Empresas e produtos que se tornaram globais. Mas esta crise está revelando aspectos até aqui inimagináveis, como a incapacidade dos países de prever e lidar com crises sanitárias. Com tanta riqueza acumulada, a humanidade da era digital foi abalroada pela falta de testes, máscaras e respiradores.

Isso sem contar a visível fragilidade das cadeias de suprimento e a inoperância de organizações multilaterais como ONU e G-20 para atuarem de forma coordenada e contundente num momento em que elas são mais necessárias.

O fato é que a crise do coronavírus traz o Estado-nação e as fronteiras nacionais de volta à cena e vai aumentar as pressões por controles de fronteira, protecionismo e favorecimento de produtores e produtos locais.

O mundo global pode sangrar se o nacionalismo pós-coronavírus levar à deterioração das relações EUA-China, ao colapso da arquitetura integrada da União Europeia e à redução do comércio e dos investimentos globais. Isolamento e quarentenas, xenofobia, movimentos antiglobalistas e antimigração podem produzir uma aversão a produtos importados, atingindo em cheio a crescente presença e competitividade do agronegócio brasileiro.

Um dos elos mais sensíveis no ambiente altamente tumultuado desta pandemia é o abastecimento de alimentos e bebidas. Pelo menos aqui, no Brasil, não vai faltar comida, já que produzimos muito mais do que consumimos. Mas dois problemas podem impactar o esforço de produção: a distribuição de produtos e a recessão global.

No médio e no longo prazos, temos de entender melhor qual será o impacto de uma recessão global nas nossas exportações. Conceitualmente, o agronegócio deveria ser um dos setores menos afetados, pois as pessoas não vão deixar de comer e o mundo depende do Brasil para sua segurança alimentar em diversas commodities. Mas uma recessão longa e penosa pode criar alta volatilidade e derrubar preços e margens, a exemplo da Grande Depressão de 1929.

No curto prazo, as medidas de contenção têm criado travas importantes no fluxo físico das cadeias de suprimento de produtos agropecuários e alimentos, que são longas e complexas, principalmente na área de produtos perecíveis, como frutas, verduras, carnes e lácteos, e de atividades cuja produção depende de mão de obra intensiva e aglomerada. 

Isso sem contar o impacto das restrições impostas sobre importantes canais de distribuição, como bares, restaurantes, hotéis e serviços de alimentação. Tenho ouvido relatos de arbitrariedades absurdas, fechamento de cidades, falta de serviços de apoio, atrasos e quebra de contratos nas cadeias do agro. A demanda de alimentos básicos é geralmente inelástica e seus efeito sobre o consumo total são limitados, mas os padrões de consumo podem mudar em função de restrições localizadas e preços relativos.

Em toda a minha vida, nunca vi um momento tão crítico como este, que exige estratégia sólida e coordenação firme de autoridades em diferentes níveis do governo e imenso esforço coletivo e cooperativo de empresas e pessoas. Os países que melhor lidaram até aqui com a mitigação da doença e da recessão foram os que implementaram estratégias firmes e focadas para lidar com problemas concretos (isolamento de doentes, por exemplo), ao lado de campanhas de ampla informação e conscientização da sociedade.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Agronegócio e meio ambiente: uma interação incontornável - Marcos Sawaya Jank

O diálogo necessário entre agricultura e meio ambiente 

Marcos S. Jank (*)

Jornal “O Estado de S. Paulo”, Opinião, 28/02/2020.


Em vez do ‘nós contra eles’, é preciso compatibilizar as agendas globais do clima e da alimentação.

Os dois setores da economia brasileira com maior visibilidade global são a agricultura e o meio ambiente.

O protagonismo da agricultura brasileira se dá no comércio global de commodities agropecuárias. Nossa oferta agrícola é concentrada em produtos (cerca de uma dezena), mas diversificada em destinos, atingindo mais de 200 países e cumprindo papel crucial na segurança alimentar do planeta. Porém, fora do universo da oferta agrícola, pouca gente conhece o agro brasileiro e, no geral, o vê com desconfiança.

Já o meio ambiente brasileiro tem ampla visibilidade no mundo, principalmente por conta das preocupações com biomas sensíveis como a Amazônia e o Pantanal. Aqui o Brasil é reconhecido como potência ambiental, mas atacado pela elevada quantidade de queimadas e desmatamentos – e seu impacto na mudança do clima –, além de invasões de terras indígenas e devolutas, do crescimento de monoculturas como soja e outros supostos males.

Enquanto a opinião global sobre o agro brasileiro é restrita e localizada, no caso do meio ambiente ela é ampla e generalizada. Sabemos que boa parte das críticas negativas tem mais que ver com “percepções” do que com “fatos”, a exemplo do cenário apocalíptico que foi disseminado após as queimadas do ano passado. Mas é fato que o assunto tomou conta da opinião pública internacional e hoje está solidamente presente nos organismos multilaterais, no discurso de governos e no curriculum das escolas de ensino fundamental e médio de todo o mundo.

Nos últimos tempos o tema ambiental também entrou de vez na agenda das grandes empresas e do sistema financeiro internacional, como vimos na última reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos. E o Brasil perdeu protagonismo na agenda da sustentabilidade, após décadas de avanços importantes na redução do desmatamento, de compromissos com o clima e de diversificação para energias renováveis.

Infelizmente, o que temos realmente visto no nosso mundo hiperconectado é um debate de surdos do tipo “nós contra eles”, decorrente de hoje participarmos de redes sociais formadas por pessoas que basicamente pensam como a gente. Nesse sentido me parece um equívoco insistir no autoelogio para plateias limitadas e catequizadas. Ou, ainda, insistir em afirmações do tipo “somos os mais sustentáveis do mundo”, mesmo que isso fosse verdade. Eu prefiro o caminho de assumir nossos avanços e os nossos problemas com mais modéstia, encarando, sem subterfúgios, o diálogo com quem pensa de forma diferente, principalmente no exterior.

Aliás, pensar diferente não deveria ser um problema. Empresas que atuam junto aos produtores entendem melhor a realidade agrícola do que as que atuam na ponta do consumidor. No universo heterogêneo das ONGs, há várias delas que trabalham há anos com produtores rurais brasileiros e têm feito defesas impecáveis da sustentabilidade da nossa agricultura no exterior. Governos europeus criticam o Brasil nessa área muito mais do que governos asiáticos, mas são estes últimos que respondem por dois terços do que exportamos hoje e com quem mais temos de dialogar.

Em suma, o Brasil não deveria tomar posição contra o restante do mundo no tema ambiental. Ao contrário, é preciso formar alianças estratégicas em diversos níveis, reconhecer os problemas existentes, enfrentar as perguntas difíceis, ampliar o diálogo e receber elogios dos outros, e não próprios.

Ao mesmo tempo, o setor privado do agro brasileiro precisa abraçar o combate ao desmatamento ilegal no Brasil, atacando a necessidade de regularização fundiária com critérios sólidos, condição básica para a punição dos abusos.

Na agenda internacional, o Brasil deveria liderar um esforço global para discutir como alimentar quase 10 bilhões de pessoas em 2050, metade delas vivendo na África e no subcontinente indiano. O modelo agrícola atual desses países claramente não permite solucionar o seu gap potencial entre oferta e demanda agrícola.

A melhor solução de longo prazo para mitigar as mudanças do clima é o menor uso de recursos naturais, que em última instância se traduz por aumento da produtividade. Os ambientalistas afirmam que o agro não enxerga que o desmatamento vai prejudicar a própria agricultura no longo prazo. Os agricultores dizem que os ambientalistas não entendem que o Brasil é um dos únicos lugares do mundo capazes de produzir duas a três safras por ano e que o mundo precisará do nosso modelo produtivo tropical para se alimentar. Ambos estão corretos, mas faltam confiança e cooperação.

Hoje sobram observatórios do clima e do uso da terra no mundo. Mas faltam observatórios da agricultura, que tragam respostas concretas para o gap potencial entre oferta e demanda de alimentos no longo prazo. Essa é uma questão que certamente envolve a agenda do clima, mas também envolve demografia, renda per capita, urbanização, modelos de produção e organização de cadeias de suprimentos. Envolve, portanto, o conceito de sustentabilidade nos seus pilares econômico, ambiental e social. Se houvesse maior diálogo entre esses observatórios, com certeza diminuiríamos a intolerância e a surdez que imperam no nosso mundo hiperconectado.


sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Os desafios globais do agronegócio - Marcos Jank

Amigos,
Segue abaixo artigo publicado hoje no jornal Valor Econômico.

Aproveito para informá-los sobre o lançamento do Insper Agro Global, o novo centro de estudos estratégicos, desenho de políticas e formação de pessoas que vai analisar os grandes vetores de transformação e a dinâmica da inserção internacional do Brasil no agronegócio mundial.
Para saber mais:

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Os desafios globais do agronegócio

Jornal “Valor Econômico”, Opinião, 13/09/2019

Marcos S. Jank (*)

Temas relacionados com saúde, sanidade, sustentabilidade e geopolítica vão dominar a demanda global por alimentos.

Crescimento da produtividade, tecnologias tropicais, competição em escala global, produtores motivados e migração interna explicam o indiscutível êxito do agronegócio brasileiro. Sem grandes esforços ou apoio de acordos internacionais de relevância para o setor, em menos de 20 anos quintuplicamos as nossas exportações nesse setor, atingindo US$ 102 bilhões para mais de 200 países.

Mas a moleza acabou. No passado, importadores vinham buscar nossas commodities nos portos brasileiros porque oferecíamos volumes crescentes a preços competitivos. Mas os próximos 20 anos não serão tão fáceis. A guerra hegemônica EUA-China vai ser longa e penosa para o mundo, podendo ajudar ou prejudicar o Brasil em função dos dois elefantes estarem brigando ou dançando.

Nesses tempos turbulentos, tudo indica que a demanda será dirigida pela geopolítica do “comércio administrado”, e não pelas vantagens comparativas à la David Ricardo. Ocorre que a demanda potencial do mundo é praticamente infinita, mas apenas uma pequena parte dela é acessível para as nossas exportações por conta de inúmeras barreiras tarifárias e não-tarifárias - técnicas, sanitárias, burocráticas, etc.

Em um momento que a geopolítica retorna com vigor, nosso primeiro desafio será construir demandas consistentes para nossos produtos. Temos de mapear nossos interesses de curto e longo prazo nas principais macrorregiões do mundo emergente. O holofote de hoje está no Leste e Sudeste da Ásia e no Oriente Médio, regiões que somam 2,6 bilhões de habitantes e 54% das exportações brasileiras no agro. Porém o nosso futuro está depositado no Sul da Ásia (leia-se o subcontinente indiano) e na África - na soma, 3 bilhões de habitantes em rápido crescimento demográfico, mas que hoje respondem por apenas 12% das nossas exportações.

Temos de aprender a lidar com a China, esse nosso casamento inevitável de longo prazo, que demanda um relacionamento estratégico e equilibrado que gere maior diversificação e valor adicionado no comércio. Os chineses já respondem por um terço das nossas exportações do agro, porém altamente concentradas na soja em grãos.

Ao mesmo tempo, com prudência e equidistância, temos de intensificar e dar um novo rumo para as relações com os Estados Unidos, perdidas após duas décadas de desconfianças mútuas. No agro, os EUA são nosso maior concorrente, mas também um dos importadores mais promissores e sofisticados do planeta (mais de US$ 180 bilhões em importações agro, crescendo cerca de 7% ao ano), ao lado da China (US$ 178 bilhões em importações, crescendo cerca de 12% ao ano) e da União Europeia, com crescimento de 4% ao ano. Mas para os EUA exportamos apenas US$ 7 bilhões no agronegócio, quatro vezes menos que a nossa exportação de soja em grão para a China. Há muito por fazer!

Finalmente temos de avançar com o projeto de abertura comercial brasileira, ao mesmo tempo que retomamos as negociações comerciais que ampliariam, mesmo que tardiamente, a nossa integração das cadeias de valor do planeta.

Nosso segundo grande desafio global decorre das ações e repercussões das nossas políticas em três grandes áreas do agro: Saúde, Sanidade e Sustentabilidade, que chamaremos de 3S. Os maiores problemas de saúde e nutrição são a combinação perversa da falta de alimentos (820 milhões passam fome no mundo) com a má nutrição - 2,1 bilhões de pessoas com obesidade e doenças crônicas. Na sanidade vemos a eclosão de graves doenças e o desafio da eficiência do sistema sanitário. Na sustentabilidade os temas mais importantes para o Brasil são uso da terra e de insumos, desmatamento, clima e biodiversidade.

Nas últimas semanas o mundo inteiro comenta as queimadas que estão ocorrendo na região amazônica. Queimadas ilegais nessa época seca do ano não são fato novo e decorrem basicamente de pobreza e da ilegalidade, numa região que abriga imensas florestas e 20 milhões de habitantes com baixa renda e pouco controle. Mas a percepção de quem lê o mundo por meio de redes sociais é que o Brasil perdeu o controle e o maior culpado seria a agricultura moderna, o que é falso. Décadas de esforço de redução de desmatamento, ganhos de produtividade e a vigência de uma das leis florestais mais rigorosas do mundo não impediram a rápida destruição de imagem que está ocorrendo neste momento, com riscos de afetar o comércio e as negociações internacionais do agro.

Ao mesmo tempo, o açúcar é atacado pelos seus danos potenciais à saúde, gerando uma discussão em escala global que propõe de rotulagens a taxações explícitas. A pecuária bovina é apontada entre as principais causadoras das mudanças climáticas, em função do uso da terra e da eructação dos ruminantes. Doenças como gripe aviária e peste suína africana afetaram vastas regiões do hemisfério oriental e da América do Norte, provocando queda de consumo. Críticas ao uso de defensivos, antibióticos e transgênicos tornaram-se lugar-comum nos países mais ricos.

Não cabe neste texto discutir o quanto de verdade, inverdade ou exagero existe em cada exemplo acima. Num mundo digital e profundamente interconectado, o país que ocupa a terceira posição entre os maiores exportadores agrícolas do planeta precisa gerenciar as percepções que se formam sobre a sua pauta exportadora, sejam elas verdadeiras ou não.

No tema da geopolítica dos alimentos é fundamental construir visões estratégicas de longo prazo com base em estudos detalhados e montar uma estrutura de negociação em cada frente relevante.

Quanto à percepção sobre os 3S (Saúde, Sanidade e Sustentabilidade) é necessário contar com bons dados, presença qualificada e uma sólida estratégia de representação e diálogo no exterior.

Esses foram os principais fatores que motivaram a criação do Insper Agro Global, um centro que analisará temas complexos da agenda internacional do agronegócio desenvolvendo estudos estratégicos, debates qualificados, apoio no desenho de políticas e formação de pessoas.

Alguns dizem que o Brasil é o melhor produtor do planeta. Outros dizem que é o mais injustiçado, porque fez muito e pouca gente acredita. Certamente somos mais temidos do que admirados. Mas reputação não é o que achamos de nós mesmos, mas sim o que nossos parceiros e interlocutores pensam da gente, mesmo que altamente influenciados por mídias sociais.

Comparando com outros grandes exportadores, nossa maior falha não está nas políticas e ações de campo, mas sim na nossa incapacidade de se fazer presente no exterior, ouvindo, entendendo e dialogando com nossos clientes e consumidores nas diferentes regiões que atuamos.

O ponto de partida é uma melhor capacidade de coordenação do governo, setor privado, pesquisa e sociedade civil no Brasil. Se antes falávamos em oferta e produtividade, hoje é preciso pensar em demanda dirigida pela geopolítica e pelas múltiplas percepções dos nossos clientes, sejam elas verídicas ou não.

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Protecionismo comercial e agricultura global - Marcos S. Jank

Alimentos e globalização no Império Britânico

Jornal “Folha de São Paulo”, Caderno Mercado, 02/02/2019

Marcos Sawaya Jank (*)

Busca por comida criou império militar, comercial e gerador de migrações

O Brexit, processo que levou o Reino Unido a sair da União Europeia, transformou-se numa decisão caótica e autodestrutiva para os ingleses. O Reino Unido se isola sem saber para onde vai. Movimentos anti-integração e anti-imigração ganham força nos EUA e na Europa. Medidas protecionistas tendem a reduzir ou a “administrar” o comércio internacional, os órgãos e acordos multilaterais estão sendo repensados, surgem guerras comerciais, tecnológicas e, agora, perseguições pontuais a empresas estrangeiras. Em suma, o mundo parece querer frear o processo de globalização.

Mas a história é feita de ciclos que vão e vem, de forma pendular. Curiosamente a mesma nação que hoje não sabe o que fazer com o Brexit, conseguiu, há 200 anos, tomar medidas radicais que formataram o mundo moderno, produzindo o primeiro movimento de globalização em escala mundial.

Esse é o tema de “The Hungry Empire: How Britain’s Quest for Food Shaped the Modern World” (O Império esfomeado: como a busca dos britânicos por alimentos formatou o mundo moderno), escrito pela professora Lizzie Collingham em 2017.

A obra defende a tese de que a força motriz do poderoso Império Britânico no século 19 foi a busca por comida, que se traduziu em um império militar, comercial e gerador de grandes migrações.

Na Revolução Industrial, a Grã-Bretanha tornou-se uma fervorosa defensora do livre-comércio, apoiada nas teses de Adam Smith e David Ricardo. De um lado, a abertura da importação de cereais e o cercamento das propriedades privadas (enclosures) forçou os camponeses a deixar o campo para trabalhar nas manufaturas. Do outro, os territórios britânicos se expandiram na África, na Índia e na Oceania, e a sua influência militar e econômica chegou à China e à América do Sul.

As estradas de ferro e os navios a vapor aumentaram exponencialmente o fluxo de pessoas e mercadorias. Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Índia e Argentina são exemplos de países que passaram a exportar elevados volumes de cereais e/ou carnes para a Grã-Bretanha, criando o primeiro grande movimento de interdependência agroalimentar entre os cinco continentes, especializando países e remodelando os hábitos alimentares.

O livro defende que a migração maciça tinha essencialmente a ver com “colocar comida na mesa”. Por volta de 1850, cerca de um quarto da população da Irlanda (2 milhões de pessoas) morreu ou migrou por causa da contaminação da batata por um fungo. Não é diferente do que ocorre hoje com migrantes de países destroçados por guerras e fome, só que agora em direção ao Velho Mundo.

A Grã-Bretanha montou um império marítimo que a permitiu exportar não só a população agrícola mas todo o setor agrícola, que foi produzir em outros partes do império e além dele. À época, mais que deter a posse de territórios, o termo “império” tinha a ver com domínio dos mares e do comércio.
                                                                                                        
O Brasil foi um dos primeiros países que se beneficiaram desse movimento de globalização do Reino Unido. O “decreto de abertura dos portos às nações amigas”, assinado por d. João 6º, em 1808, libertou-nos de Portugal como comprador único de nossos produtos.

Infelizmente o protecionismo renasceu com força no período entreguerras do século 20. Na década de 1920 o Reino Unido restringiu seu comércio às nações do Commonwealth britânico, destruindo riqueza em países como a Argentina, que se tornara uma das 12 nações mais ricas do planeta exportando trigo e carne.

As bases da expansão do império britânico no século 19 e a freada brusca nos anos 1920 deveriam nos servir de lição um século depois, quando uma nova onda protecionista se faz presente no próprio Reino Unido e em outras geografias do planeta.

(*) Marcos Sawaya Jank é especialista em questões globais do agronegócio. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.

sábado, 10 de novembro de 2018

Desafios da Politica Comercial de Bolsonaro - Marcos Sawaya Jank (FSP)

Desafios da Política Comercial de Bolsonaro

Jornal “Folha de São Paulo”, Caderno Mercado, 10/11/2018

Marcos Sawaya Jank (*)

Precisamos de uma política comercial que amplie significativamente a nossa inserção no mundo.

Com Paulo Guedes, Tereza Cristina e um diplomata experiente do Itamaraty, o governo Bolsonaro tem todas as condições para construir uma política comercial consistente e ambiciosa para o Brasil.

Nas duas últimas décadas, os resultados da política comercial brasileira foram sofríveis: acordos irrelevantes, imobilismo ou regressão no Mercosul, resultados parcos da prioridade Sul-Sul e deterioração das condições de acesso a mercados afetando principalmente as exportações agropecuárias. Até mesmo o acordo UE-Mercosul, há duas décadas em negociação, corre o risco de não ver a luz do dia.

No momento, o mais importante é priorizar temas relevantes em países estratégicos (eu diria no máximo 15) com base em metas factíveis de aumento de comércio e investimentos. Resultados palpáveis poderiam ser obtidos no cotidiano das relações bilaterais com acordos específicos —por exemplo, nas áreas de sanidade, investimentos e tecnologia—, protocolos para abertura de determinados segmentos de mercado (caso dos miúdos de carnes) e trade-offs que levem à abertura recíproca de setores protegidos.

O que falta é uma melhor coordenação intragoverno e com o setor privado, que leve a uma presença internacional semelhante à de nossos concorrentes.

Na área de negociações comerciais mais amplas, creio que o foco deveria estar na Ásia - Japão, Coreia, ASEAN (nações do Sudeste Asiático) e na Parceria Transpacífico -, se possível com o Mercosul, se não, sozinhos. 

Valeria também dar um ultimato à União Europeia, abrindo ao mesmo tempo conversas sérias para um acordo bilateral com os EUA. Apesar de o mundo caminhar hoje via acordos bilaterais, em tempos de guerras comerciais é do nosso interesse preservar a OMC e o seu mecanismo de solução de controvérsias, de modo a impedir que as relações de poder interfiram no comércio.

É preciso atentar para que a política externa não prejudique a política comercial. A transferência da Embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém pode efetivamente prejudicar os crescentes volumes de exportações para o mundo islâmico. Nossa venda de carnes para esses países atingiu US$ 4,25 bilhões em 2017, com incrível crescimento de 16% ao ano desde 2000.

Na guerra comercial EUA-China, que já está se transformando em uma segunda Guerra Fria, parece-me que ganharemos mais ficando equidistantes e oscilando de forma pragmática entre os dois rivais, que aliás, são os países mais importantes para solidificarmos parcerias estratégicas globais.

Os EUA são a maior economia de mercado do mundo, um país com imensa capacidade de se reinventar graças à concorrência e à inovação. Mas por razões ideológicas foi deixado de lado na área comercial a partir de 2003, quando o PT enterrou a Alca e apostou nos países bolivarianos. É hora de reverter o jogo e construir uma parceria mais efetiva com os americanos.

Mas isso não deveria ser feito em detrimento da relação com a China, que é o principal parceiro comercial desde 2009 e hoje o maior investidor no Brasil. Precisamos sim de visão estratégica e mão forte para negociar os chineses. Não tem cabimento que apenas soja, minério de ferro e petróleo respondam por 80% das exportações para aquele país. Restrições de toda ordem impedem ou dificultam as nossas vendas de óleos, farelo, milho, arroz, açúcar, etanol, carnes e frutas

Já vimos muita coisa ser anunciada com grande estardalhaço na área da política comercial e terminarmos de mãos abanando, isolados e queixosos.

O Brasil perdeu peso específico e confiança. Agora precisa dar passos firmes na direção de uma política comercial que amplie significativamente a nossa inserção no mundo.


(*) Marcos Sawaya Jank é especialista em questões globais do agronegócio. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Agro Global 3: diferenciacao e imagem das exportacoes brasileiras do agronegócio - Marcos Sawaya Jank

Agro Global 3: diferenciação e imagem

Jornal “Folha de São Paulo”, Caderno Mercado, 29/09/2018

Marcos Sawaya Jank (*)

Dentre os grandes exportadores do agro mundial, o Brasil é o menos conhecido. Diferenciação e imagem precisam ser construídas em cada país-chave.

No terceiro artigo da série sobre a inserção global do agro brasileiro vamos tratar de um desafio ainda distante: diferenciação e imagem.

Dentre os grandes exportadores do agro mundial, o Brasil é o menos conhecido. Raras são as pessoas no exterior que já ouviram falar da revolução tropical brasileira que fez com que a produtividade total da agricultura crescesse o dobro das taxas observadas na Europa, América do Norte e Oceania.

No geral, o Brasil é associado com imagens de desmatamentos, uso excessivo de insumos e conflitos sociais. As conquistas brasileiras na área da sustentabilidade não são reconhecidas —o Código Florestal, a vasta cobertura vegetal mantida em propriedades privadas, os instrumentos da agricultura de baixo carbono, a baixa pegada hídrica e a matriz energética limpa e renovável.

Apesar da reorientação da Apex-Brasil para cobrir essa lacuna nos últimos anos e da bem-vinda estratégia de internacionalização, marca institucional e promoção anunciada pelo ministro Blairo Maggi e sua equipe, as características únicas do agro brasileiro ainda são apresentadas de forma esporádica e condensada no exterior. 

Fora de eventos setoriais e missões oficiais, raras são as ocasiões em que falamos com força e propriedade no exterior.

Se na Europa o debate sobre sustentabilidade é intenso e quase sempre crítico ao Brasil, em outras regiões do planeta pecamos pela ausência de mensagens fortes. Na Ásia, por exemplo, o tema da sustentabilidade é menos relevante do que preocupações ligadas a sanidade, rastreabilidade e qualidade dos alimentos, uma área que nossos concorrentes investiram pesadamente na sua imagem. São esses os temas que mais demandam a construção de reputação e imagem do Brasil, junto com sustentabilidade.

Nosso contato no exterior se dá basicamente com tradings e importadores, e não com os demais elos da cadeia de valor: canais de distribuição, serviços de alimentação, varejo e consumidores, que no geral não conhecem a origem brasileira dos produtos que consomem. No universo do agro brasileiro, raras são as empresas brasileiras que de fato exportam. Mais raras ainda são as que têm presença, estratégias de comunicação e marcas no exterior.

A primeira condição para diferenciar nossos produtos e marcas é ampliar a presença física do setor privado brasileiro no exterior. Não podemos (nem é bom) depender unicamente da ação do governo. Ações coordenadas do Itamaraty, Mapa, MDIC e Apex são fundamentais, mas as associações e as empresas precisam estar mais presentes, entendendo a cultura e a regulamentação local, o jogo político e as percepções e exigências dos mercados e consumidores, ponto de partida para qualquer esforço de imagem.

Se não conseguimos atingir os consumidores finais, precisamos ao menos nos relacionar de forma consistente e duradoura com aliados da cadeia de valor, formadores de opinião, autoridades e com a mídia especializada em cada mercado.

Algumas lições aprendidas observando a ação dos nossos concorrentes são:
- coleta de percepções sobre os produtos no mercado destino, e não na origem;
- participação ativa em debates locais com uso de dados sólidos, em vez de apresentações unilaterais e frases de efeito;
- reconhecimento das nossas imperfeições, em vez do autoelogio ufanista;
- construção de agendas bilaterais sólidas, substituindo conversas esporádicas;
- convites para conhecer a realidade brasileira in loco.

Diferenciação e imagem são elementos a serem construídos em cada país-chave, com consistência, regularidade e estratégia de longo prazo.

(*) Marcos Sawaya Jank é especialista em questões globais do agronegócio. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.

sábado, 4 de agosto de 2018

O Brasil na guerra comercial EUA-China - Marcos Jank

O Brasil na guerra comercial EUA-China

Jornal “Folha de São Paulo”, Caderno Mercado, 04/08/2018

Marcos Sawaya Jank (*)

Está oficialmente aberta a primeira guerra hegemônica do século 21. Até aqui os problemas tem sido bem maiores que as oportunidades.

A disputa EUA-China se agravou no mês de julho. Cada país decidiu impor sobre o outro tarifas adicionais sobre volumes de comércio da ordem de US$ 34 bilhões, acompanhadas de contenciosos na OMC e ameaças em outras áreas, como investimentos, alta tecnologia e propriedade intelectual.
Está oficialmente aberta a primeira guerra hegemônica do século 21. Resta saber em que mundo viveremos daqui para a frente e como o Brasil se sairá nessa confusão.
Sabemos que uma guerra comercial generalizada não terá vencedores. O problema não está no aumento das tarifas entre EUA e China, mas na ruptura potencial de várias cadeias de suprimento pelo mundo, que resultaria na quebra de confiança no processo de globalização que vem desde o pós-guerra.
O FMI já estima uma queda de 0,5 ponto percentual no PIB mundial em razão da guerra comercial. Bancos falam em até dois pontos, se a guerra se estender a outros países.
Para o Brasil o único ganho até aqui apontado, erroneamente, na minha opinião, seria o aumento das exportações de soja em grãos, produto que responde por incríveis 43% das nossas exportações totais para a China (US$ 21 bilhões em 2017). Se a China se fechar para os EUA, certamente ganharemos mercado naquele país, mas perderemos espaço em outros destinos. É por isso que Trump já colocou a soja no centro das conversas sobre os impasses dos Estados Unidos com a União Europeia.
Nossa pauta com a China ficaria ainda mais "primarizada" e dependente de apenas três produtos: soja, minério de ferro e petróleo.
Muito antes dessa guerra comercial, a China já impunha ao Brasil elevadas barreiras para a diversificação da nossa pauta no agro. Não conseguimos vender farelo e óleo, que são os principais derivados da soja em grãos. Enfrentamos barreiras sanitárias e burocráticas para exportar carnes de aves, suínos e bovinos —apenas 62 unidades industriais, num universo de 4.800 unidades, estão habilitadas a exportar para a China. Somem-se a isso restrições inadmissíveis para exportar genética animal, lácteos, milho, arroz, frutas, açúcar e etanol.
Pior, se o prêmio pago pela soja brasileira (Paranaguá) subir ainda mais em relação ao preço da Bolsa de Chicago, o Brasil ganhará mercado nos grãos, mas perderá competitividade nos derivados (farelo e óleo) e na exportação de carnes de aves e suínos. Não há nada de errado em ser fornecedor de matéria-prima para ração animal, mas não podemos aceitar que a estrutura tarifária dos países discrimine frontalmente contra a diversificação e a adição de valor das nossas exportações.
Em carnes e açúcar, já ficamos para trás dos nossos concorrentes —EUA, UE, Austrália, Canadá e Tailândia—, que negociaram dezenas de acordos que lhes garantem acesso privilegiado com tarifas mais baixas. Seria um erro deixar que a guerra comercial EUA-China gere ainda mais discriminação.
Para complicar, a China impôs uma salvaguarda sobre o açúcar em 2017 e direitos antidumping sobre a carne de frango do Brasil em junho último, processos que já dificultam bastante as nossas exportações. Por isso, a Camex agiu corretamente ao autorizar consultas à China na OMC em relação às medidas de defesa comercial impostas sobre frangos e açúcar. Os dois casos são fracos e não se sustentam sob as regras da OMC. Além disso, Michel Temer fez bem em colocar esses dois temas na reunião que teve com o Presidente Xi Jinping durante o encontro do Brics na África do Sul.
Nosso peso específico é pequeno diante do confronto aberto dos grandes. Mas em setores como o agronegócio tornamo-nos grandes e temos agora de lutar duramente para não perder o espaço conquistado.

(*) Marcos Sawaya Jank é especialista em questões globais do agronegócio. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.

sábado, 21 de julho de 2018

Licoes da Australia para o agro brasileiro - Marcos Sawaya Jank

Lições da Austrália para o agro brasileiro

Jornal “Folha de São Paulo”, Caderno Mercado, 21/07/2018

Marcos Sawaya Jank (*)

Temos muito a aprender em organização, regulação, comunicação e presença internacional.

Estive recentemente na Austrália, um dos países com os quais mais temos a aprender na área de organização de cadeias produtivas, regulação adequada e política comercial competente.

Apesar de ser o sexto maior país em área do mundo, logo atrás do Brasil, a Austrália padece de um imenso déficit hídrico. Ela se posiciona entre os países mais áridos do planeta, além de ser vítima frequente das mudanças do clima e de eventos extremos. 

Sem água para expandir a produção agropecuária e com um mercado interno bastante limitado (o país possui apenas 25 milhões de habitantes), a Austrália decidiu investir na organização das suas cadeias de commodities, buscando adição de valor e diferenciação no exterior.

Para começar, o país assinou dezenas de acordos comerciais que cobrem virtualmente toda a sua pauta exportadora, principalmente na Ásia, garantindo acesso privilegiado e menores problemas e surpresas.

A Austrade, agência de promoção de comércio e investimentos semelhante à nossa Apex, tem 83 escritórios no exterior, dos quais 48 apenas na Ásia.

No agronegócio, chama a atenção a sólida cultura enraizada no governo e no setor privado em temas como qualidade e segurança do alimento, rastreabilidade, inovação e capacitação. São notáveis o sistema de classificação e tipificação de produtos e o trabalho subsequente de marketing e fixação da marca-país. Isso dá à Austrália uma alta reputação e credibilidade principalmente na Ásia, traduzida em maiores preços dos produtos vendidos.

No setor privado, a organização da cadeia das carnes vermelhas é um bom exemplo. A principal organização do setor —a Meat and Livestock Australia (MLA)— tem um orçamento anual de US$ 154 milhões (R$ 585 milhões), dos quais US$ 40 milhões (R$ 152 milhões) bancados pelo governo, para serem gastos basicamente com programa de inovação tecnológica no país e de comunicação no exterior. A entidade já montou sete escritórios no exterior.

Sem poder contar com a opção confortável de um grande mercado doméstico e tendo de encarar custos mais elevados em razão da carência de água e de mão-de-obra do país, a Austrália não pode falhar na consistência das suas exportações.

O sistema de vigilância para evitar a entrada de doenças no país é sofisticado e eficaz, visível para qualquer um que desembarca nos aeroportos do país.

A legislação sanitária é simples e objetiva, focada nas necessidades dos reguladores e dos clientes do exterior. No Brasil, a legislação sanitária é ultrapassada (data dos anos 1930!), complicada e engessada, sendo que muitos agentes e empresas não conhecem o ambiente regulatório e as exigências do mercado externo. Não são raros os casos em que as respostas que são dadas não atendem ao que foi pedido no exterior.

É quase um milagre termos chegado a quase US$ 100 bilhões em exportações no agronegócio brasileiro, sem contar com o suporte de acordos comerciais, sem logística adequada, com legislações anacrônicas e presença ínfima no exterior. O que nos salvou foi a disponibilidade de recursos naturais do Brasil, aliada ao desenvolvimento tecnológico e, principalmente, à bravura dos agricultores e das agroindústrias que desbravaram os nossos trópicos. 

Mas nos quesitos organização, regulação, comunicação e presença internacional temos muito a aprender com países como a Austrália.

(*) Marcos Sawaya Jank é especialista em questões globais do agronegócio. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.

sábado, 26 de maio de 2018

Greve dos caminhoneiros: descontrole total - Marcos Sawaya Jank (OESP)

Uma greve dramática e descontrolada

Jornal “Folha de São Paulo”, Caderno Mercado, 26/05/2018

Marcos Sawaya Jank (*)

Países minimamente sérios jamais permitem paralisações que bloqueiam estradas vitais.

Foi chocante ver cenas de animais morrendo de fome ou se canibalizando por falta de ração nas granjas. Uma imensa crueldade num país que tem as melhores condições para produzir alimentos e uma das matrizes energéticas mais diversificadas: petróleo, gás natural, água, sol, ventos e biomassa.

Mas num país tão rico em recursos naturais não precisamos mais do que três dias para começar a faltar combustível e comida, num processo autofágico no qual um setor faz uma greve para tentar solucionar o seu problema e, ao fechar estradas, canibaliza todos os demais, com lances de extremo prejuízo e crueldade.

Estonteado, o governo recorre a medidas paliativas para remendar os equívocos do passado.

Incentivos excessivos para vender veículos no início da década fazem com que a sobra de caminhões nas estradas, após anos de recessão, gere margens negativas nos fretes.

O Estado pesado e ineficiente, incapaz de avançar nas reformas fiscal e previdenciária, tem de recorrer a aumentos sistemáticos dos impostos. Quatro impostos incidem nos combustíveis. É por isso que nossa gasolina e nosso diesel estão entre os mais caros do planeta.

O congelamento populista do preço dos combustíveis no governo petista causou forte prejuízo à Petrobras e detonou o setor sucroenergético. A exemplo da maioria dos países, a variação de preços dos derivados de petróleo seguindo o mercado externo é a escolha correta, que causa menos distorções. 

Mas talvez deveria estar acoplada a uma política tributária contracíclica nos combustíveis: aumentos expressivos do petróleo gerariam reduções automáticas dos tributos incidentes e vice-versa. Pesos e contrapesos são fundamentais para o funcionamento da economia.

É imprescindível estimular a produção e a concorrência dos combustíveis, dos fósseis aos renováveis, acabando com o monopólio da Petrobras no refino de petróleo, setor em que o país carece de investimentos. Aliás, passou da hora de privatizar esse paquiderme. Nos anos 1990, Roberto Campos foi nosso Nostradamus falando sobre a Petrossauro, mas ninguém ouviu. Vale resgatar cada um de seus magníficos augúrios.

A greve dos caminhoneiros é mais uma crise que nocauteia a economia, mas que deveria servir para colocar a política pública no rumo certo, em vez de retroceder.

Primeiro, congelar ou administrar artificialmente preços dos combustíveis nunca foi ou será solução. Mas é fundamental encontrar mecanismos transparentes para lidar com flutuações abruptas do petróleo, para cima ou para baixo.

Segundo, não é possível que greves ou protestos, por mais legítimos que sejam, levem a uma baderna generalizada, uma terra sem lei, que para fábricas, afeta a vida dos doentes, mata animais de fome e nos obriga a jogar toneladas de produtos perecíveis no lixo.

Países minimamente sérios jamais permitem greves que bloqueiam estradas vitais, paralisando a economia. Isso é inadmissível e mostra por que Bolsonaro cresce tanto nas intenções de voto, com o seu discurso de uma nota só: “Ordem é progresso”. Não é só isso, mas é o que ele repete, e repete.

Terceiro, é um equívoco achar que a solução do problema está apenas nas mãos falidas e cambaleantes do Estado. Não há dúvida de que a greve tem relação direta com políticas públicas equivocadas. Mas ela já estava anunciada havia tempos, e os interessados do setor privado poderiam tê-la evitado. O frete dos caminhoneiros não deveria ser um problema de Estado, que agora cai nas costas já lanhadas do contribuinte.

A sociedade brasileira continua depositando a solução dos seus problemas no governo, materializado na figura de algum “salvador da pátria” sempre improvisado e imediatista.

(*) Marcos Sawaya Jank é engenheiro-agrônomo e especialista em questões globais do agronegócio. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.