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domingo, 4 de agosto de 2019

Uma homenagem a Rubens Ricupero - Samuel Pessoa (FSP)

A importância de Rubens Ricupero

Além do aprendizado, em momentos críticos os indivíduos fazem a diferença

O movimento político Livres, coordenado por minha amiga Elena Landau, divulgou na semana passada documentário comemorativo dos 25 anos do Plano Real.
A grande surpresa do documentário foi o depoimento do ministro da Fazenda do governo Itamar, de março a setembro de 1994, Rubens Ricupero.
Sempre achei que o papel de Ricupero para a difícil construção da estabilidade monetária tivesse sido subsidiário. Estava enganado. Ricupero foi fundamental.
Quando FHC deixou o Ministério da Fazenda do governo Itamar para candidatar-se à Presidência, Itamar chamou Ricupero, à época ministro do Meio Ambiente, e convidou-o para o cargo. Ricupero ponderou que era mais oportuno que um membro sênior da equipe do ministério —Edmar Bacha ou Pedro Malan, por exemplo— assumisse a posição.
Na conversa, ficou claro para Ricupero que Itamar não queria ninguém da equipe de FHC à frente do ministério. Antes de aceitar, Ricupero tomou o cuidado de estabelecer precisamente a sua atribuição:
“Tocar o Plano Real com esta equipe”. Este foi o combinado. O discreto diplomata nascido e criado no Brás, figura de proa do Itamaraty, com livros publicados, tendo ocupado inúmeros cargos, entre eles a secretaria-geral da Unctad e a Embaixada do Brasil em Washington, negocia à mineira com o presidente mineiro: o que é combinado não sai caro.
Inúmeras vezes Itamar chamava Ricupero no Planalto. Este sugeria que um técnico o acompanhasse, o que era imediatamente recusado. A conversa tinha que ser entre eles.
Nesses difíceis encontros no Planalto, Itamar compartilhava com Ricupero sua preocupação com o sucesso do plano e tentava convencer o ministro de que ele tinha que adotar um formato mais próximo ao dos cinco planos anteriores, que tinham dado com os burros n’água: congelar os preços.
Inúmeras vezes pleiteou aumentos de salários para servidores e do salário mínimo.
Na véspera do lançamento da nova moeda, em 30 de junho de 1994, no início da noite, o ministro da Justiça de Itamar, Alexandre Dupeyrat Martins, do círculo íntimo do presidente, foi ao Ministério da Fazenda conversar com Ricupero. Persio Arida participou da conversa.
O presidente Itamar ainda não assinara a medida provisória, apesar de toda a logística para o lançamento físico da nova moeda estar pronta.
A pedido de Itamar, o ministro da Justiça inicia meticulosa inquirição sobre a consistência econômica do plano.
Após longo tempo de conversa em que Persio repassou com o ministro da Justiça os fundamentos do Plano Real, Ricupero perde a paciência, liga para a secretária particular de Itamar e diz: “Transmita o seguinte recado ao presidente. Mas faça-o desta forma: se o presidente não me receber em duas horas, algo muito ruim acontecerá”.
O ministro da Justiça, indignado com os termos do telefonema de Ricupero, pergunta se ele não é bem-vindo à Fazenda. Ricupero responde que sempre será. E, se Itamar assim o desejasse, Dupeyrat poderia assumir a Fazenda.
Itamar chamou Ricupero, assinou a medida provisória, e o resto é história.
A construção de uma sociedade é um processo coletivo em que o aprendizado é um elemento importantíssimo. Parece, por exemplo, que a sociedade brasileira aprendeu que não se trava conflito distributivo com inflação. A Argentina ainda não aprendeu essa lição.
Mas além do aprendizado, em momentos críticos os indivíduos fazem a diferença. Ricupero fez. Eu, minhas duas filhas e a sociedade inteira agradecem.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

O Plano Real e os ajustes ainda por fazer atualmente - Gustavo Franco no Roda Viva

Assisti, finalmente, à entrevista-sabatina do ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco ao programa Roda Viva da TV Cultura, transmitida na última segunda-feira 27/11/2017, disponível neste link: https://www.youtube.com/watch?v=epUAnK1iLPw&feature=push-u&attr_tag=oEY3mLPaNYI-rCEj-6

Dei uma aula sobre essa entrevista aos meus alunos de doutoramento esta manhã, intercambiando perguntas de jornalistas e respostas do entrevistado com meus comentários, contextualizando certas passagens, comentando políticas econômicas e explicando determinadas medidas de política econômica na sua dimensão própria. Como o próprio entrevistado referiu-se ao filme (Real) e ao livro que lhe deu origem, lembrei-me de antiga resenha que fiz desse livro, que já anunciava um possível filme.
Aqui vai, novamente:


88) Resenha: 3.000 dias no bunker, de Guilherme Fiuza

O bunker voador: a aventura eletrizante do Plano Real

Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.comhttp://www.pralmeida.org/)

Guilherme Fiuza:
3.000 dias no bunker: um plano na cabeça e um país na mão
Rio de Janeiro: Record, 2006, 331 p.; ISBN: 85-01-07342-3

Como o antigo refrigerante Grapette ou o atual achocolatado Nescau, este livro tem sabor de aventura. Uma aventura que se prolonga no tempo e que ainda não acabou. Marcos Sá Corrêa, na orelha, resume a trajetória do Plano Real: “Começa num governo desmiolado e sem rumo, o do presidente Itamar Franco. E não acabou ainda em outro governo desmiolado e sem rumo, o do presidente Lula”. O mesmo jornalista também registra que se trata de um livro de repórter, com nenhuma fórmula e muita intriga: “Tem pouco mercado e muito ringue de luta livre. Nenhuma tabela e rasteira de ponta a ponta”. Da maneira como está construído e redigido, o livro daria um bom filme, se planos de estabilização fornecessem roteiros interessantes para a sétima arte.
De fato, a reportagem de Guilherme Fiuza se aproxima mais de um roman à clefs do que de uma história linear do Plano Real, ao estilo, por exemplo, da Real História do Real, de Maria Clara do Prado. O jovem jornalista carioca do NoMínimo retraça, em estilo cinematográfico, as diferentes etapas da concepção, implementação e defesa da nova moeda, sem fazer, em nenhum momento, história monetária. São incursões propriamente teatrais aos episódios mais relevantes de um processo que transcendeu, na verdade, a simples introdução de um novo meio circulante no Brasil, para expor, de maneira viva, toda a trajetória macroeconômica do Brasil nas últimas décadas. Trata-se de uma inside story, que se insere numa great history, cujo cenário principal é dado pelo próprio substantivo que fornece o título ao livro: um bunker.
O conceito militar de bunker é, obviamente, o de uma posição ou posto defensivo, não necessariamente fortificado, mas isolado ou protegido dos ataques inimigos pela sua estrutura de aço e concreto, geralmente escondido ou subterrâneo. Meu adjetivo “voador” se deve a que a capa do livro é a de uma planície desolada com o perfil de Brasília ao fundo e um avião solitário num imenso céu em tonalidade ocre. O bunker a que se refere Fiuza foi de fato voador, ou móvel, e é aplicado à pequena equipe de valorosos combatentes da estabilidade macroeconômica que tomou forma a partir da assunção de FHC como ministro da Fazenda, em maio de 1993. “Como era uma metáfora”, explica o autor, “o bunker podia ser em qualquer lugar. E durante um bom tempo a equipe de Fernando Henrique trabalhou de forma totalmente subterrânea...” (p. 44).
O grupo se decompôs ao longo do tempo, mas seu legado, inegavelmente positivo, está conosco ainda hoje, sob a forma de uma economia menos esquizofrênica do que aquela que conhecemos ao longo das últimas décadas do século passado. Os economistas Pedro Malan, Gustavo Franco, Winston Fritsch, Edmar Bacha, André Lara Resende e Persio Arida, mais o administrador Clovis Carvalho foram os integrantes mais intimamente ligados ao poder político do novo ministro da Fazenda. Eles conceberam, implementaram e defenderam o novo plano de estabilização contra os ataques de vários exércitos inimigos, geralmente políticos fisiológicos, economistas românticos, sindicalistas corporativistas (mas isso é uma redundância) e industriais protecionistas.
Existem vários outros personagens, evidentemente, que interagiram a diversos títulos e em diferentes momentos com o bunker, dentre os quais poderiam ser citados: Sérgio Besserman Vianna, o “comunista” do BNDES convertido às virtudes de uma economia competitiva; Marcelo de Paiva Abreu, que entrou e saiu do governo Collor logo no primeiro dia, ao descobrir que o seu chefe de gabinete, já designado, era um homem de PC Farias; David Zylbersztajn, outro antigo comunista que aprendeu que o socialismo não funcionava e montou o esquema paulista das privatizações e o modelo federal das agências reguladoras; Murilo “Mãos de Tesoura” Portugal, o homem que fechou o caixa do Tesouro ao apetite voraz de gastadores contumazes; José Serra, que chegou, viu, mas não se convenceu, sobretudo pelo lado cambial; além de vários outros, economistas de passagem ou funcionários da burocracia permanente do Estado.
Ator central nessa trama, além de Pedro Malan – o mais longo ministro econômico da história do Brasil, com exceção de Souza Costa, que serviu à ditadura Vargas –, foi o jovem economista da PUC Gustavo Franco, sucessivamente Secretário Adjunto de Política Econômica, diretor de Assuntos Internacionais e presidente do BC. Estrategista econômico, articulador das principais medidas que estiveram na base do lançamento da URV, operador prático – e defensor corajoso – da nova moeda, Gustavo Franco representou, por assim dizer, a verdadeira alma do Plano Real, o que está refletido em seus muitos livros de ensaios e crônicas, desde O Plano Real e Outros Ensaios (1995), até o mais recente Crônicas da Convergência (2006), passando por O Desafio Brasileiro: ensaios sobre desenvolvimento, globalização e moeda (1999), além de várias outras contribuições a livros coletivos ou artigos em periódicos de grande tiragem.
Ademais de um gosto incomum pela história, para um economista, Gustavo Franco tem um dom também incomum para a polêmica e o debate de idéias, este, infelizmente, muito pouco cultivado no Brasil, reduzindo-se, na maior parte das vezes, a uma troca ácida de acusações entre os contendores. Conhece-se, aliás, no Brasil, a ofensiva invulgar deslanchada pelos economistas ditos desenvolvimentistas contra os fundamentos do plano de estabilização, que foi por eles equiparado a nada menos do que uma operação de rendição ideológica e de submissão prática aos ditames de Washington, aos cânones de neoliberalismo e a não se sabe qual, exatamente, das regras do chamado Consenso de Washington, tão desprezado quanto desconhecido nessas hostes. Fiuza reproduz parte da crítica de uma conhecida professora da USP, marxista, a um artigo de Gustavo Franco sobre as virtudes da abertura comercial para o crescimento econômico: ela parte do “capital mundializado” para condenar o “absoluto domínio do credo liberal”, entre outras bobagens. Franco, em resposta, perguntou apenas por que a professora estava tão zangada: ela “fala da ‘atual etapa do sistema capitalista’ com um verdadeiro nojo, como se estivesse segurando um rato nas mãos” (p. 214). Em outros artigos, ele não deixava de fustigar os “parnasianos” da Unicamp, com sua prosa rebuscada, plena de fetichismos e de financeirização.
Mas, esse é o lado prosaico, digamos assim, do combate diário pela sobrevivência da nova moeda, atacada à direita e à esquerda com igual desenvoltura e inacreditável insensibilidade em relação aos cofres públicos. Havia outros aspectos, preocupantes, da sabotagem, consubstanciada, justamente, na gastança generalizada das estatais e das agências públicas de modo geral. Fiuza relata o caso ocorrido com David Zylbersztajn, levado à direção da Eletropaulo: encontrou um fabuloso contrato com uma empresa de vigilância no qual cada hora de trabalho de um vigilante representava o inacreditável valor de 28 dólares. “O responsável explicou-lhe que, infelizmente, não existiam no mercado seguranças confiáveis por um valor inferior àquele. Zylbersztajn não prolongou a conversa: ‘— Não tem mais barato? Ok, então rescinde todos os contratos. Acabou a segurança. Por esse preço, prefiro o ladrão’” (p. 170).
O essencial da reportagem de Fiuza está voltado aos ataques especulativos ao real, no bojo das crises financeiras internacionais. Esses ataques tinham pouco a ver, no entanto, com alienígenas de Wall Street, como gosta de acreditar a esquerda, e sim com os espertos capitalistas nacionais, sempre prontos a arbitrar as pequenas diferenças de cotação no valor da moeda, como resultado das suas próprias operações concertadas. Gustavo Franco, atento ao jogo pesado desses brokers, comandou pessoalmente, das mesas de câmbio do BC, operações defensivas e ofensivas, dobrando o mercado com lances ousados e algumas táticas inesperadas. O real sobreviveu a esses ataques especulativos “clássicos”, mas não foi capaz de resistir a uma operação mais singela, consistindo na suspensão do pagamento, em janeiro de 1999, da dívida estadual de Minas Gerais, determinada pelo então governador, e ex-presidente, Itamar Franco: no espaço de poucos dias as reservas se tinham volatilizado, resultando na saída de Gustavo Franco da direção do BC e na própria mudança do regime cambial. Vários lances dramáticos desses dias estão perfeitamente reconstituídos no livro de Fiuza, numa espécie de crônica dos eventos correntes em tempo real.
Ainda segundo a orelha, 3.000 dias no bunker foi escrito em três meses, quase sempre de madrugada, às vezes virando a noite. Acredito: eu também passei uma madrugada inteira lendo este livro, sem o largar um minuto, com a boca seca e os olhos piscando, impossível largar. A história é muito importante: ela fala do nosso país, como ele foi reconstruído em sua dignidade monetária, que há muito tinha deixado de existir. E não se trata de história documental, insossa, em economês ou juridiquês: é uma história real do real, feita por homens em carne e osso, idéias e sentimentos, conquistas e frustrações. Uma história que estava esperando ser contada.
Poucos sabem, por exemplo, que a inspiração para a URV foi retirada por Gustavo Franco da experiência do rentenmark, a moeda indexada com a qual o “mago das finanças” Hjalmar Schacht salvou a Alemanha da hiperinflação nos anos 1920. Fiuza conseguiu traduzir muito bem os sentimentos do enfant terrible do BC na concepção, montagem e defesa da nova moeda brasileira. Sua obra, o real, ainda está de pé. Seus inimigos de outrora devem a ele o atual sucesso eleitoral. Uma simples palavra de agradecimento, por essa obra de estadista, não seria descabida. Este livro dá todas as razões para esse beau geste...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 dezembro 2006

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Plano Real, 20 anos: seria o cambio o principal problema do Brasil? - Antonio Carlos Teixeira Álvares e Guilherme Renato Caldo Moreira

A despeito dos autores terem razão do ponto de vista formal, não acredito que eles tenham razão no fundo, pois uma moeda pode também se valorizar, se a economia se fortalece. Bem, esse não foi o caso do Brasil, mas o câmbio não me parece ser o principal problema da política econômica, como parecem pensar os keynesianos de carteirinho (que acrescentam os juros altos, ao pacote). Ou seja, eles acham que se colocar o câmbio no bom patamar, aqui entre 2,87 e 3,00 por dólar, e com juros a 6,5 ou 7%, tudo estaria perfeito e o Brasil poderia crescer.
Não acredito: não com esse custo Brasil, com a atributação onerosa e irracional, com essa infraestrutura deplorável, com esse governo protecionista, com todas essas maldades que ele pratica sob a forma de distorções econômicas.
O Brasil vai mal, e não existem só duas causas para isso. Existem muitas...
Paulo Roberto de Almeida

O câmbio após vinte anos de Plano Real
Antonio Carlos Teixeira Álvares e Guilherme Renato Caldo Moreira
Brasil Econômico, 13/08/2014

Antonio Carlos Teixeira Álvares e Guilherme Renato Caldo Moreira são, respectivamente, professor da FGV/EAESP e gerente do Departamento de Estudos e Pesquisas Econômicas da Fiesp e do Ciesp

A sobrevalorização do real é um fato concreto que está sacrificando barbaramente a indústria de transformação brasileira. De 2011 a 2014, o PIB total crescerá 7,4%, enquanto o PIB da indústria de transformação cairá 1%nesse período. E o mais grave é que muitos renomados economistas acreditam que a sobrevalorização do real seja proposital, pela disposição do governo federal em segurar os índices inflacionários. Proposital ou não, ao menos em um aspecto a maioria concorda: o câmbio está totalmente fora de lugar. A análise que aqui apresentamos demonstra que essa distorção está na raiz da crise, não somente da indústria de transformação, mas de toda a economia brasileira. Senão, vejamos: vinte anos atrás, em 1º de julho de 1994, foi instituído o Real, como moeda oficial do Brasil.
Entretanto, o Plano Real começou um pouco antes, em 1º de março de 1994, com a Unidade Real de Valor (URV). A moeda, na ocasião, era o Cruzeiro Real, sujeito à forte inflação. Registros da época mencionam que a URV teria sido inspirada no artigo escrito pelos economistas André Lara Resende e Pérsio Arida, intitulado Inertial Inflation and Monetary Reform, e apresentado em um seminário nos Estados Unidos, em 1984. O artigo, apelidado de proposta Larida, previa a implantação da reforma monetária pela indexação total da economia. Fundamentada nessa ideia foi concebida, dez anos depois, a URV, um indexador diário diretamente vinculado à taxa de câmbio. Em 1º de março de 1994, foi criada a Unidade Real de Valor, valendo 647,50 cruzeiros reais (CR$). Esse valor era correspondente à cotação do dólar americano em 1º de abril de 1994, e o valor da URV evoluiu diariamente, espelhando o câmbio.
Em 1º de abril de 1994, a URV valia CR$ 931,05; em 2 de maio, CR$1.323,92; em 1º de junho, CR$ 1908,08; e, finalmente, no histórico 1º de julho de 1994, foi posta em circulação a moeda real, convertendo cada cruzeiro real por 2.750,00, que seria o valor da URV na época e, consequentemente, como esse valor era baseado na cotação do dólar, quando nessa data o câmbio indicava: R$ 1,00 = US$ 1,00.O real foi consequência da indexação diária à cotação do dólar. A genialidade por trás da criação da URV foi ter implantado uma condição de dolarização praticamente total de preços na economia, sem uma verdadeira dolarização, com substituição da moeda, como aconteceu, por exemplo, no Equador. Isso posto, é razoável admitir que a cotação R$ 1,00 = US$ 1,00, em 1º de julho de 1994, espelhava a realidade econômica, pois fora conseguida pela indexação do câmbio diário durante quatro meses.A inflação acumulada em vinte anos,desde a criação do real, medida pelo Índice de Preço ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo IBGE, atingiu 361,72%.
Em última análise, isso significa que R$ 1,00, em 1º de julho de 1994, equivaleria a aproximadamente R$ 4,62 em 1º de julho de 2014. No mesmo período, a inflação americana foi de aproximadamente 61%. Isso significaria que US$ 1,00 em 1º de julho de 1994 equivaleria a US$ 1,61 em moeda de 1º de julho de 2014. Com base nesses dados, e por meio do cálculo matemático, chegamos à cotação cambial do dólar em 1º de julho de 2014, equivalente à da criação do real em 1º de julho de 1994: R$ 4,62 ÷ US$1,61= R$ 2,87. Ou seja, para ser equivalente ao câmbio paritário na data da criação do real, a taxa de câmbio hoje teria que ser muito superior ao patamar atual. Para vários especialistas, deveria ser da ordem de R$ 3,00. A história da criação do real parece lhes dar razão.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Plano Real, 20 anos: uma homenagem necessaria, mas nao muito correta -Carlos Alberto Sardenberg

O autor, jornalista competente e sempre muito preciso, desta vez cometeu alguns equívocos.
Metas de inflação e câmbio flutuante não faziam parte fo plano original e portanto não estão fazendo 20 anos.
Várias outras medidas, como a mudança da lei do petróleo, tampouco têm a ver, estrito senso, com a estabiluzação macroeconômica, e sim com a modernização do Estado. As privatizações começaram muito antes, com a fraude do Collor, que nisso fez certo, a despeito da incompetência em várias outras áreas.
O autor mistura muita coisa, de épocas muito diferentes, mas se são os 20 anos passados que ele quer projetar para a frente, melhor não: poderíamos continuar com bandidos e incompetentes, como já tivemos.

Paulo Roberto de Almeida 

Mais 20 anos

Primeiro de julho de 1994: pela primeira vez, os brasileiros estavam animadíssimos com seu dinheiro. Foi um lance genial a introdução das novas cédulas num único dia, em todo o país. Deu força psicológica para o Real. Mas o plano foi muito além disso: uma impressionante sequência de reformas macro e microeconômicas.
No macro: regime de metas de inflação com BC independente; responsabilidade fiscal e superávit primário; câmbio flutuante; e acerto da dívida dos estados. Aqui também um lance genial: regras com limites para o gasto e a norma proibindo que a União voltasse a financiar os estados e municípios.
As privatizações (telecomunicações, mineração, siderurgia, transportes, bancos e energia elétrica) foram cruciais para a infraestrutura. E mais os dois grandes programas de ajuste do sistema bancário, um para o setor privado, outro para o público.
Também foi crucial a quebra do monopólio da Petrobras. Abriu a exploração de petróleo ao capital privado, nacional e estrangeiro, trouxe os investimentos que resultaram na descoberta do pré-sal.
Na área de gestão pública, destaques: reforma administrativa, com a criação das agências reguladoras; reforma no INSS, com a introdução do fator previdenciário em 1999.
Transferência de renda completou o quadro, ao reduzir a desigualdade e favorecer a expansão das classes C e D
Para facilitar a vida econômica de pessoas e empresas, no micro, tivemos: o Simples e a regra de suspensão temporária do contrato de trabalho, importante flexibilização da legislação trabalhista. Tudo isso na era FH.
O primeiro governo Lula, com Antonio Palocci na Fazenda, reforçou o superávit primário e avançou muito na agenda micro. Destaques: conta bancária e poupança simplificadas; a portabilidade do crédito e o regime do Supersimples.
Mudanças na legislação permitiram a volta e a expansão do financiamento imobiliário e a criação do crédito consignado. Com o boom da economia mundial — uma grande sorte — houve abundância de financiamento externo barato. Em cima das mudanças locais, o resultado foi o crescimento vertiginoso do crédito.
Ainda na era Lula: a nova Lei das SAs (2007) e regras aperfeiçoando a área de seguros. Mais a aprovação, em 2004, da contribuição previdenciária de funcionários púbicos aposentados.
Com Dilma, ainda linha ortodoxa: o cadastro positivo de crédito e a criação do fundo de previdência complementar dos funcionários públicos. E, claro, a volta às privatizações, com a concessão de aeroportos.
O mundo ajudou. Do início deste século até a crise financeira de 2008, a economia global experimentou um período de forte crescimento. Consolidou-se o fenômeno China, cuja voracidade por commodities, alimentos, minérios, petróleo e tanta coisa mais abriu enorme espaço para os países emergentes exportadores.
O agronegócio brasileiro tornou-se grande produtor e exportador mundial. Não foi por acaso, nem obra da natureza, mas da inovação, tecnologia e eficiência de empreendedores que se espalharam pelo país todo.
Mais os minérios — e as exportações brasileiras saltaram de US$ 55 bilhões/ano, na virada do século, para os US$ 250 bi de hoje.
Com os investimentos externos que entraram para aproveitar o novo Brasil, completou-se a mudança estrutural: uma economia que sempre sofreu com a falta de dólares tornou-se credora internacional nessa moeda.
Na área social, o reajuste real do salário-mínimo, política iniciada logo após o Real, e os programas sociais de transferência de renda completaram o quadro, ao reduzir a pobreza, a desigualdade e favorecer a expansão das classes C e D.
Hoje, porém, parece que o efeito dessas mudanças já se esgotou. Por exemplo: o crédito não tem como dobrar de novo nos próximos anos. Também não será possível continuar dando aumentos expressivos para o mínimo sem ganhos de produtividade e sem mais uma reforma na Previdência. Sem isso, não será mais distribuição de renda, mas simplesmente mais inflação e déficit público.
Com a deterioração da política econômica, o Brasil não cresce mais que 2% ao ano, com inflação na casa dos 6%. Comparado com as décadas perdidas, está bom. Mas é menos do que fazem os demais emergentes importantes, que conseguem crescer mais com menos inflação.
Hoje, temos um governo que deve muito, arrecada muito, gasta muito e muito mal, com poucos recursos para investimentos. O setor privado é limitado pela carga tributária, juros altos, péssima infraestrutura, custos de produção elevados e um ambiente de negócios hostil, o tal custo Brasil.
Do que resulta a agenda: refazer os fundamentos (metas de inflação, superávit primário, reforma do setor público) e, sobretudo, abrir as portas para um surto de investimentos privados, em todos os setores. Ou seja, mais 20 anos de Real.
Fonte: O Globo, 3/7/2014

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Plano Real, 20 anos - materiais de imprensa

PLANO REAL – 20 ANOS

Correio Braziliense – Entrevista Fernando Henrique Cardoso

Vinte anos depois, como o senhor avalia os resultados do Plano Real? Foram plenamente alcançados?
O Plano Real visava à estabilidade ao longo do tempo, com melhoria contínua das condições de vida do povo, não só de renda. Ou seja, melhores serviços públicos. Conseguimos manter a inflação sob relativo controle, iniciou-se um processo de recuperação de salários e de redução da pobreza. Mas a restruturação do Estado para assegurar serviços de melhor qualidade ficou pela metade. De modo que os objetivos foram apenas parcialmente alcançados.

O que ainda precisa ser feito para consolidar a estabilidade e o dinamismo da nossa economia, de modo a acelerar o crescimento do PIB sem criar desequilíbrios?
O principal para consolidar a economia é retomar o aumento das taxas de produtividade, olhando para o longo prazo. Não se precisa de um “arrocho”, mas de correção de rumos na política econômica (mais respeito às metas de inflação e maior controle nos gastos públicos). Mas, sobretudo, precisamos de mais e melhor investimento público e privado. Para isso, é conveniente restabelecer a confiança quebrada na continuidade de políticas sérias que favoreçam o crescimento, sem voluntarismos inúteis por parte dos governos.

O senhor acha que os governos posteriores ao seu trabalharam em direção a esses objetivos? Como?
Certamente os governos posteriores ao meu deram ainda maior impulso à melhoria de salários e à distribuição de renda. Verdade também é que, principalmente entre 2004 e 2008, beneficiaram-se enormemente da situação mundial favorável. Entretanto, paralisaram as reformas necessárias para assegurar o crescimento da produtividade e a oferta de bons serviços públicos, além da penetração de interesses partidários na máquina pública. Mais ainda, principalmente no governo atual, foi criado um clima de desconfiança em relação ao setor privado e foi levado ao máximo o lema lulista: para crescer, basta aumentar e o crédito público e o consumo. Resultado: estamos entrando em um período de estagflação, com baixo crescimento e um pouco de inflação. Se o rumo não for mudado, isso diminuirá os efeitos sociais positivos alcançados.

Fala-se na necessidade de um Plano Real 2, que envolveria as reformas que vêm sendo adiadas, como a da Previdência e a Tributária. Qual sua avaliação sobre isso?
Não creio que seja necessário um Real 2. Basta correção de rumos, o que será facilitado se o governo a ser eleito tiver uma visão adequada dos problemas do país e não se deixar levar por um intervencionismo errante.

Em algum momento o senhor achou que o Plano Real poderia não funcionar, seja durante a sua concepção, seja nos primeiros anos após sua implantação?
Sim. No começo, foi muito difícil convencer o Congresso e o país de que não se tratava de uma fraude eleitoreira. Em 1999, por outros motivos — crise internacional e irresponsabilidade da política nacional — temi que a estabilização naufragasse. Mas, como havíamos ajustado as contas públicas, acertando a situação de estados e prefeituras pré-falimentares, dinamizáramos a economia com algumas privatizações e com o funcionamento correto das empresas estatais, que deixaram de ser repartições públicas para funcionarem como empresas realmente públicas, e não apenas da burocracia estatal, o país pôde superar os momentos mais inquietantes para a estabilidade do Real.
"No começo, foi muito difícil convencer o Congresso e o país de que não se tratava de uma fraude eleitoreira”.

Correio Braziliense – Visão do Correio / Pela retomada do Plano Real

A passagem dos 20 anos da entrada em circulação do real, a primeira moeda brasileira digna de respeito em décadas, é motivo de comemoração, mas também de reflexão sobre a trajetória do plano que a criou. Emerge, então, a necessidade urgente de a sociedade exigir a retomada do processo de modernização do país, da qual a estabilização monetária foi apenas o primeiro passo.
E não foi um passo qualquer. Quando a nova moeda foi lançada, em 1º de julho de 1994, a alma do Plano Real já estava funcionando havia quatro meses, para espanto dos economistas da velha escola intervencionista, que falhara em pelo menos quatro tentativas de estancar a hiperinflação, incluindo a clássica trapalhada do tabelamento de preços.
Nada parecia capaz de derrotar o dragão inflacionário, até que vingou uma aposta na vontade da maioria das pessoas de se livrarem daquela doença. Elas tinham aprendido que a inflação corroía os salários, desequilibrava a economia e favorecia apenas os mais abastados, enquanto o governo permanecia praticamente imune a seus efeitos. A inflação era realimentada por um amplo sistema de correção monetária, que corrigia o preço das mercadorias, as aplicações financeiras e o valor dos tributos em velocidade bastante superior à dos reajustes salariais.
Enquanto isso, a inflação exibia índices escandalosos. Em 30 de junho de 1994, tinha acumulado, em 12 meses, aumento de 6.433%. O pulo do gato foi a criação de uma moeda virtual, a Unidade Real de Valor (URV), que conviveu com o combalido cruzeiro novo, mas não podia ser trocada por ele. Funcionou como referência. Encantou a todos não apenas a facilidade com que as pessoas comuns a compreenderam, mas também a rapidez com que a maioria da população aderiu ao plano.
A derrocada de uma inflação tão alta foi uma vitória da sociedade, que hoje não abre mão de preservá-la. Na esteira do real, vieram duros ajustes fiscais, o fim da moratória, o fim de alguns monopólios estatais e dos danosos bancos estaduais, a renegociação da dívida dos estados, o saneamento e a imposição de regras mais severas ao sistema bancário e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Na política econômica, foram adotados os modernos sistemas de metas anuais de inflação e de superavit primário, além do câmbio flutuante.
A lista parece longa, mas contém apenas o começo de um processo de modernização do Estado. A retomada dos investimentos em infraestrutura, com a participação da iniciativa privada, a redução da burocracia, profunda reforma tributária e atualização da legislação e do sistema previdenciário, além de uma revolução na educação pública seriam os passos seguintes.
Eles poderiam ter sido dados tão logo se colheram os primeiros frutos da estabilização da moeda e do fim da pressão da dívida externa. Não só não foram dados, como se descuidou demais do equilíbrio fiscal, tão crucial para a saúde e a competitividade da economia quanto o controle da inflação. O 20º aniversário do real é, portanto, bom momento para a sociedade decidir se vai ou não retomar sua implantação.

Folha de S. Paulo – Obsessão por aumentar preços sobrevive

Memória inflacionária e baixo crescimento crônico persistem após 20 anos de estabilização com o Plano Real
Problemas pioram em momentos como agora, quando a inflação está elevada e exportações perdem fôlego

MARIANA CARNEIRO DE SÃO PAULO
"Em janeiro, todo mundo coloca os preços para cima. Todo ano sobe". Morando há sete anos no Brasil, o inglês Barry Baker, 43, notou que há algo diferente no país, que faz com que os preços subam de uma forma quase autônoma.
Passados 20 anos de estabilização e governos de dois diferentes partidos políticos (PSDB e PT), a memória inflacionária persiste. A obsessão coletiva por aumentar os preços olhando a inflação passada é herança do período de descontrole pré-Plano Real.
Mas sobrevive graças a contratos e acordos, mesmo informais, que preveem reajustes anuais de mensalidades, pedágios, remédios, salários, aluguéis e de um sem número de serviços no país.
Em 2013, segundo o Banco Central, quase um ponto percentual da inflação (5,91%) foi resultado de recomposições de reajustes passados.
"Essa é uma grande agenda incompleta do Real e cria uma característica única da economia brasileira. Por que a inflação é tão resistente aqui e não é assim em outros países? Porque eles não tiveram indexação", diz Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio.
Por efeito desse fenômeno, altas repentinas de preços provocadas por uma quebra de safra, consumo na China, seca ou chuvas se incorporam aos demais preços, por força da correção que segue os índices de inflação.
O IGP-M, índice que reajusta os aluguéis, por exemplo, tem como um dos componentes o preço do minério de ferro, cujo preço é definido no mercado externo.
"A cada choque de preços a inflação se propaga e alcança patamares mais elevados", diz Heron do Carmo, professor da USP e um dos formuladores do IPC da Fipe. "O Plano Real não acabou com a indexação. Apenas ampliou o prazo de correção de mês em mês para a cada ano."
O problema piora quando a inflação estaciona em um patamar mais elevado, como agora (6,3%). E recuperar a perda do poder de compra fica mais relevante para consumidores e empresários. "Essa inflação vira piso para reajustes futuros", diz Cunha.
E quanto mais elevado é o patamar da inflação, como agora, diz Cunha, maior é a procura pela indexação.
Outra debilidade que resiste --e é reconhecida pelos formuladores do plano-- é que o crescimento econômico não se sustentou, mesmo com a inflação controlada.
"Acho que está óbvio agora, como já me parecia em 1997. Não conseguimos definir uma estratégia de estabilização consistente com crescimento econômico vigoroso e equilíbrio externo", afirma Edmar Bacha, que integrou a equipe de economistas que desenvolveu e lançou o Real.
Para ele, o período de expansão de 2004 a 2011 (o mais bem-sucedido desde os anos 1970) foi turbinado pelos preços externos das exportações, que hoje perdem fôlego.
"Acabou a bonança, revelou-se novamente nossa economia enferma, em que convivem PIBinhos', inflação alta, deficit em conta-corrente e a desindustrialização."
A vacina, na sua opinião, é ampliar a abertura comercial da economia, elevando a concorrência e a eficiência das empresas brasileiras.
Albert Fishlow, especialista em Brasil e professor emérito das universidades de Columbia e da Califórnia, ressalta que há algo positivo na memória inflacionária. "Isso estabelece um limite de ação aos governantes e faz com que todos os partidos defendam a inflação baixa", diz.
O inglês Barry Baker notou também que o antigo país exótico da hiperinflação é hoje peculiar por motivos não menos daninhos.
Dono de uma escola de inglês, ele tenta fechar a empresa e migrar para um sistema mais simples e flexível de tributação, para pequenos empreendedores. Mas já sabe a burocracia do processo. "Para um país que quer crescer rápido, não pode ser assim."


Folha de S. Paulo – Desafio hoje é fazer 2ª rodada de reformas / Artigo / Persio Arida

Retomar a agenda da modernização é factível e certamente menos difícil do que foi implementar o Plano Real
Persio Arida é economista e um dos criadores do Plano Real. Atualmente, é sócio do banco BTG Pactual e chairman da área de Asset Management da instituição
Em 1984, dez anos antes do Plano Real, participei de uma discussão no MIT sobre o Plano Larida, apelido de uma proposta de estabilização que André Lara Resende e eu havíamos delineado em um trabalho acadêmico.
O Larida, baseado na criação de uma moeda indexada --a ORTN pro-rata, que no Plano Real viria a ser rebatizada como URV--, era ousado. A promessa era fazer a inflação cair abruptamente sem recorrer a congelamentos de preços ou artificialismos.
No seminário, um dos comentadores, importante economista norte-americano, externou uma dúvida que, naquele momento, me pareceu despropositada, mas que hoje, tantos anos depois, tornou-se atual.
Ao contrário dos demais, a preocupação dele não era saber se o mecanismo da moeda indexada funcionaria ou não. O plano tem boas chances de dar certo, disse ele, mas assegurar a estabilidade da moeda ao longo do tempo é outra história. Depois de a inflação ter caído de 45% ao mês para, digamos, 0,5% ao mês, que incentivo teria o sistema político para continuar fazendo reformas estruturais e controlar o gasto público?
O Plano Real, mais do que uma reforma monetária, foi concebido como um projeto de modernização do país.
As reformas estruturais e o controle das finanças públicas infundiram confiança na nova moeda.
A lista do que foi feito nos anos seguintes ao lançamento do plano é impressionante: o fim do monopólio estatal em petróleo e telecomunicações; o saneamento do mercado financeiro e dos bancos estaduais; o programa de privatizações; a criação de agências reguladoras; a Lei de Responsabilidade Fiscal; o início da reforma previdenciária e o tripé macroeconômico, entre outros.
Foram reformas de implementação dificílima, mas criaram as bases que sustentam a economia brasileira até hoje. O povo brasileiro abraçou o Real e deu o respaldo político às reformas para evitar a volta da hiperinflação.
Vinte anos depois, o desafio é outro. Temos uma inflação por volta de 6% ao ano, que mais alta seria se não houvesse o represamento das tarifas públicas, além dos preços de energia e gasolina.
Mas o risco da volta da inflação galopante do passado, que no seu pior momento foi mais de 80% ao mês, parece remoto e 6% ainda está dentro do intervalo de tolerância do sistema de metas.
Por outro lado, ao analisarmos os últimos dez anos, o gasto público, excluindo o pagamento de juros, tem crescido quase 8% ao ano em termos reais. O superavit operacional, que estava em 3,7% do PIB há dez anos, hoje, propriamente medido, beira 0,8% do PIB.
O que levaria esse processo a ser revertido? Qual o incentivo para o sistema político retomar as reformas estruturais e controlar a expansão dos gastos?
No Chile, a meta do sistema de bandas é de 3%, com apenas um ponto percentual de tolerância para mais ou para menos. Por dois motivos 3% é melhor do que 6%. Primeiro, porque a inflação piora a distribuição de renda, penalizando os trabalhadores e aposentados. Segundo, porque, como os preços não sobem todos ao mesmo tempo, quanto maior a inflação, mais difícil fica julgar se um bem ou serviço está relativamente caro ou barato.
Em outras palavras, a inflação atrapalha o funcionamento do sistema de preços relativos, o mecanismo fundamental de uma economia de mercado. Quanto mais alta a inflação, menos eficiente tende a ser a economia e, portanto, menor a taxa de crescimento.
Esses dois motivos são sempre verdadeiros.
Mas, na inflação brasileira de 6%, há um fator extra de distorção. O que segura a inflação em 6% são juros reais muito elevados.
Moeda estável de verdade não precisa de juros altos. Uma coisa é o Banco Central implementar uma política monetária restritiva por um motivo circunstancial, momentâneo; outra é ter que manter juros reais elevados permanentemente para conseguir estabilizar a inflação.
O real será uma moeda estável de verdade quando pudermos ter uma inflação de 3%, digamos, com taxas reais de juros muito mais baixas do que as que temos hoje.
Tivemos uma primeira rodada de reformas, fundamental para infundir confiança no novo padrão monetário e afastar o fantasma da volta da hiperinflação.
É chegada a hora de implementar a segunda rodada de reformas e controlar o gasto público visando a reduzir a inflação para, digamos, 3% ao ano e destravar a economia brasileira com juros reais baixos.
Muitas das distorções da economia brasileira --pouco investimento, deficiência de infraestrutura, falta de competividade, baixa alavancagem financeira, elevados spreads bancários, escassez de financiamento para projetos de longo prazo-- resultam de termos tido taxas de juros reais elevadas por décadas a fio. Com menos inflação e menores juros reais, o Brasil poderá escapar da armadilha do baixo crescimento em que se encontra.
Apesar do pessimismo que vigora hoje em dia, retomar a agenda da modernização é factível e certamente menos difícil do que foi implementar o Plano Real. Mas será que os nossos políticos saberão responder aos desafios do Brasil de hoje?

Folha de S. Paulo – Filhos do real

Geração que cresceu após a estabilização econômica, há 20 anos, chega ao mercado de trabalho com mais possibilidades de planejar sua carreira e seu futuro

INGRID FAGUNDEZ DOUGLAS GAVRAS DE SÃO PAULO

Geraldo Santos, 54, viveu dias difíceis nos corredores do supermercado Casa Santa Luzia, nos Jardins, em São Paulo. Remarcador de preços nos anos 1980, ele trocava etiquetas dos produtos várias vezes ao dia, enquanto se esquivava de clientes furiosos.
A cena era comum em mercados durante o período da hiperinflação, que fazia os preços variarem a toda hora.
Hoje, um dos filhos de Geraldo, Anderson, 29, é analista de importação na mesma loja e nunca precisou explicar a um cliente por que a comida estava mais cara.
Entre esses dois cenários está o lançamento do real, que ocorreu em 1º de julho de 1994, e conduziu a economia brasileira à estabilidade.
Anderson faz parte de uma geração que era criança nos anos 1980 e tem poucas lembranças das várias moedas que o país teve (cruzeiro, cruzado, cruzado novo"¦).
No dia 1º, outra geração, que não teve contato com essa realidade, faz 20 anos.

'GERAÇÃO REAL'

Diferentemente de seus pais, esse jovens entram no mercado de trabalho em um ambiente econômico mais favorável. Não é preciso gastar o dinheiro imediatamente para evitar que ele desvalorize, e a renda aumentou.
"Do ponto de vista econômico, o real foi um mundo novo. Havia períodos, no começo dos anos 1990, de 4% de inflação ao dia. Ficar com o dinheiro parado era perder", diz o professor de economia da UFRJ André Modenesi.
Com a necessidade de viver no curto prazo, era difícil planejar o orçamento doméstico, ainda mais a carreira ou a compra de um imóvel.
As trajetórias de Geraldo e Anderson expressam essa diferenças. O primeiro não fez faculdade, teve quatro filhos e ainda pagava a casa própria quando a caçula nasceu.
Já Anderson se formou, ainda mora com os pais e paga o apartamento onde vai viver depois de se casar.
Nos anos 1980, além de lidar com clientes irritados, Geraldo tinha que preencher a vitrine do açougue com abóboras, já que faltava carne.
Em casa, a situação também era preocupante. As contas apertavam o orçamento, enquanto a família crescia.
"Perdi noites de sono por causa das prestações. As crianças pediam coisas e não podia comprar. Era uma dor no coração", lembra Geraldo, hoje gerente da Santa Luzia.
Com 20 anos, o estudante Danilo Cardoso lembra do descontrole econômico apenas pelos registros na carteira de trabalho de sua avó. Ao ver o reajuste do salário para compensar a inflação, ele achava que o valor dobrava.
Do armário usado para estocar alimentos em casa, ficaram só as histórias. "Na minha infância tinha sumido."
De Mogi das Cruzes, Cardoso veio estudar em São Paulo bancado pela família. Em julho, fará intercâmbio na Colômbia. O estudante considera que tem mais liberdade para ousar em seus planos.
"Pude me mudar, estudar inglês, tive acesso a oportunidades que meus pais não tiveram. Me sinto tranquilo, mais do que imagino que eles se sentiam na minha idade."
Para o professor do departamento de Economia da PUC-Rio, Luiz Cunha, o Plano Real foi a condição fundamental para os jovens saírem da "corrida infindável" de viver em função da inflação.
"O ambiente no qual toma decisões é muito mais tranquilo. Ele tem mais informação, o amparo financeiro dos pais, pode escolher melhor."
Marcela Pacífico, 19, é a primeira em três gerações de sua família que pôde definir o começo de sua carreira. Neta de Lúcia Pacífico, presidente do Movimento das Donas de Casa e Consumidores de Minas Gerais, que fiscaliza preços, ela cresceu ouvindo as dificuldades da época.
"Minha mãe foi trabalhar aos 17 anos. Só depois fez graduação. Ela se arrepende."

Folha de S. Paulo – Inflação era pior para as famílias com renda baixa

DE SÃO PAULO
Há exatos 20 anos, em 29 de junho de 1994, um exemplar da Folha como este custava CR$ 1.530,00 (cruzeiros reais) em uma banca de São Paulo --quase o dobro do que era cobrado dois meses antes.
Nos tempos da inflação galopante de antes do real, a vida era assim: preços descontrolados que variavam constantemente e moedas que perdiam valor nas mãos do consumidor.
O cenário era sentido por todos os brasileiros, mas especialmente por aqueles com menor renda, que naquele tempo tinham menos acesso a bancos.
A inflação elevada funcionava como um imposto cobrado de quem carregava dinheiro no bolso.
Economistas ouvidos pela reportagem lembram que a fatia da população de renda elevada ao menos tinha à sua disposição "proteções financeiras" e vivia mais despreocupada.
Esses brasileiros se beneficiavam de opções de investimento criadas pelos bancos à época para ajudar a amortecer as perdas causadas pela inflação, como contas remuneradas e aplicações com rendimento de um dia para o outro.
Para não ver o salário "derreter", a maioria da população corria ao mercado assim que recebia e comprava tudo que pudesse estocar, transformando logo o dinheiro, que só perdia valor, em mercadorias.
"Quem não tinha conta em banco sofria. Para eles, a opção era gastar o mais rápido possível", explica Luiz Roberto Cunha, economista da PUC-Rio.
Mas a escalada dos preços e as trocas de moedas tornavam difícil até comparar valores, e o brasileiro médio ia às compras sem ter plena certeza do que estava caro ou barato.
Para o professor da Fundação Getulio Vargas e colunista da Folha Samy Dana, a inflação elevada agravava a desigualdade.
"Cenários de caos são injustos, não afetam a todos com a mesma força. Tinha até gente que lucrava com aquela incerteza toda, especulando. A conta, é claro, era paga por quem ganhava menos." (IF E DG)

O Globo – Placar invertido - Inflação 7 x 3 crescimento / Capa

Brasil teve expansão média de 3%, o 15º lugar numa lista de 32 países. alta de preços de 7% é a sétima maior

Passados 20 anos do Plano Real, os números da economia mostram o Brasil com inflação alta de Terceiro Mundo e crescimento baixo de país desenvolvido. Ao cruzar os dois indicadores com os de 32 países de América Latina, Brics (além do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), Tigres Asiáticos (Hong Kong, Coreia do Sul, Cingapura e Taiwan) e desenvolvidos, o economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini, encontrou a sétima maior inflação acumulada de 1995 a 2013, de 275,4%, mesmo com a estabilização - o que representou taxa média anual de 7,2%, pouco acima da expectativa de inflação do mercado para este ano, de 6,46%. Na América Latina, o Brasil só perde para Venezuela e Colômbia. No ranking de crescimento, o Brasil cai para o meio da lista. Está na 15ª posição, com média de expansão de 3%.
- O que essa tabela mostra é que, em termos de crescimento econômico, o Brasil tem característica de país desenvolvido (países maduros que crescem mais devagar). Já a inflação revela problema crônico de país de Terceiro Mundo. Podemos sintetizar o problema pelo custo Brasil, colocando no preço as nossas deficiências estruturais, como logística, mobilidade urbana caótica, burocracia, tributação complexa e excessivamente elevada.
O economista ainda cita problemas de ingerência política em decisões técnicas, o que provoca insegurança jurídica e baixo crescimento.
- Todo esse custo Brasil afugenta o crescimento. Os Tigres Asiáticos estão à frente do Brasil. Crescem quase o dobro, enfrentando adversidades externas maiores que o Brasil. Na comparação com os outros, é emblemática a nossa situação.
Essa situação não é à toa. O processo de estabilização do Brasil combateu 30 anos de indexação (repasse para os preços da inflação passada), afirma o decano da PUC e especialista em inflação Luiz Roberto Cunha:
- Ninguém teve 30 anos de indexação como nós tivemos. No crescimento, tivemos problemas sim, não evoluímos nas reformas como o Chile, a Colômbia e o Peru (todos tiveram expansão superior à do Brasil). Eles caminharam melhor do que nós. É claro que a complexidade da economia brasileira também é maior.
Para poder conviver com a inflação, foi criada a correção monetária no período militar, que embutia, na maioria dos preços, a inflação passada. A correção monetária foi extinta com o Plano Real.
Cunha afirma que a indexação ainda existe, atualmente causada por uma inflação renitente em 6%:
- A demanda por indexação cristalizada em 6% é muito grande, formal e informal. O aumento real do salário mínimo tem como contrapartida a inflação de serviços, que está comendo parte do ganho.
O professor da USP Heron de Carmo teme esse repasse da inflação passada aos preços de hoje. Para ele, o governo errou ao não reduzir para 3% a meta de inflação quando as taxas estavam perto de 4%, entre 2006 e 2007:
- A inflação começou a subir com os choques. Agora, vivemos administrando choques. Ainda temos o custo da taxa de juros entre as mais altas do mundo.
Há de se ter cuidado com as comparações, afirma Mônica de Bolle, da Galanto Consultoria, diante de estágios diferentes de desenvolvimento entre os países. Ela cita o exemplo da China, que deu um impulso no crescimento com a migração da população rural para as cidades, elevando a produtividade e o crescimento. O Brasil viveu este fenômeno com mais intensidade nas décadas de 1960 e 1970. A economista considera boa a média de 3% de crescimento anual, mas chama a atenção para o fato de esta performance ter piorado nos últimos anos. Para 2014, o Relatório de Inflação do Banco Central, divulgado semana passada, já prevê expansão da economia de apenas 1,6%. Mas a avaliação da economista não se repete para as taxas de inflação:
- Ficamos mal na foto na inflação. É alta a média de 7,2%. Muito longe da meta de 4,5%. Tem havido um enfraquecimento institucional no Brasil. Isso fica claro com a inflação muito alta. Se alguns preços não estivessem represados, poderia estar até acima de 7,2%. Deveríamos estar hoje bem abaixo desta média de 20 anos.
Cunha lembra que mesmo países que sofreram com inflação alta não tinham a tradição de indexação do Brasil, citando a quantidade de índices de preços aqui, com os da FGV, da Fipe e do IBGE.
Mônica afirma que Colômbia, Chile e Peru não tiveram o problema inflacionário do Brasil, mas conseguiram adotar políticas de abertura comercial e fazer reformas como a tributária e trabalhista:
- Quando se faz reforma estrutural, ganha-se eficiência. O crescimento sobe, e a inflação cai.
Para Lia Valls, especialista em América Latina da Fundação Getulio Vargas (FGV), o Brasil se saiu bem, na medida do possível, principalmente baixando o patamar da inflação:
- Dentro do possível, a gente se saiu bem. Conseguimos, principalmente, sair da âncora cambial de uma forma que não causou muito trauma na economia. Conseguimos fazer isso de uma maneira que não a inflação não acelerou. Depois se criou um consenso de que a inflação é algo que a gente não deve aceitar.
Cunha afirma que o sucesso do real veio da falta de surpresas. Num artigo em dezembro de 1993, o professor da PUC explica cada passo do plano, com base na divulgação oficial, ao contrário de planos anteriores, que a população só sabia o que ia acontecer na hora.
Na avaliação do diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Unicamp, Francisco Lopreato, foi a renegociação da dívida externa que viabilizou o sucesso do Plano Real. Segundo ele, a experiência brasileira seguiu a de outros países da América Latina, que conseguiram se livrar da hiperinflação após reestruturar a dívida dos países.
- Não é coincidência que o Plano Real só tenha ocorrido depois da renegociação. Sem querer tirar o mérito do real, que foi um plano inteligente, o acordo da dívida retomou o acesso ao crédito internacional, o que tornou viável o plano.


O Globo – 'Não tinha medo da inflação. Tinha receio de uma crise de confiança' / Entrevista / Pedro Malan

Pedro Malan, ex-ministro da fazenda, temia que país fosse visto como outros em turbulência
Cássia Almeida, Maria Fernanda Delmas e Maiá Menezes

Vinte anos depois do lançamento da moeda brasileira, o real, o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan revelou suas memórias sobre o momento crucial da economia, quando a inflação anual estava em quase 5.000%, em junho de 1994, e comentou a situação do país hoje, após duas décadas de estabilização. Um dos artífices do Plano Real avalia que as taxas de inflação "são civilizadas à luz de nossa experiência pretérita, mas continuam um pouquinho mais elevadas do que gostaríamos". A crise de confiança, que abalou o país entre 1998 e 1999, após o colapso dos Tigres Asiáticos, em 1997, e a moratória da Rússia, em 1998, levando o dólar a custar R$ 2 e as reservas internacionais a se esvaírem, foi um dos momentos mais difíceis para o economista. A crise levou o Brasil a mudar o regime cambial de bandas para flutuante em janeiro de 1999.
- Não tinha medo de inflação. Tinha receio de uma crise de confiança grande. (...) Havia generalização da ideia de que país subdesenvolvido e em desenvolvimento era tudo igual. A confiança foi recuperada, com custo obviamente (o PIB ficou estagnado nos dois anos da crise e o rendimento do trabalho caiu 7% em 1999), mas depois do início de 1999, conseguimos recuperar isso, após a turbulência.
Malan, que ficou no governo de maio de 1991 a dezembro de 2002, como negociador da dívida externa brasileira, na presidência do Banco Central (BC) e no Ministério da Fazenda, não vê descontrole na inflação atualmente:
- É importante que, passados 20 anos, as taxas de inflação sejam relativamente civilizadas.
Indagado sobre o que faria de diferente em relação à montagem e administração do Plano Real, fez piada:
- Presumo que eu não possa dizer não ter aceitado o Banco Central e o Ministério da Fazenda. Isso não vale como resposta (risos).
Para o ex-ministro, é natural a preocupação com a alta de preços, traduzida no movimento Rio $urreal, mas diz que "aquele tipo de inflação não volta".

1 - Brasil, recordista de inflação em três décadas
"As pessoas com menos de 40 anos não têm nenhuma experiência vivida da marcha de insensatez que foi a evolução da inflação no Brasil nas décadas que antecederam o lançamento do Real. O Brasil foi o recordista mundial de inflação do início do anos 1960 ao início dos anos 90. Entre 1980 e 1993, a inflação média foi superior a 600% ao ano, 100% na virada dos 1970 para 1980, 200% em 1985, 1.000% em 1988/1989 e 2.500% em 1993. Isso, felizmente, ficou para trás. É importante que, passados 20 anos, as taxas de inflação sejam relativamente civilizadas. São civilizadas à luz de nossa experiência pretérita, mas continuam ainda um pouquinho mais elevadas do que gostaríamos."

2 - Aprendizado com outros planos de estabilização
"Aprendemos com a experiência do Cruzado, em 1986, com Plano Bresser em 1987, Plano Verão em 1988, Collor 1 em 1990, Collor 2 em 1991. Tanto é que na equipe básica, sem a qual o Real não teria sido concebido e implementado, havia três veteranos do Cruzado, pessoas-chave: Pérsio (Arida), André (Lara Resende) e Edmar (Bacha), aos quais se juntou Gustavo Franco em 1993."

3 - O plano foi rapidamente aceito pela população
"Fernando Henrique conseguiu reunir pessoas que já o conheciam há muito tempo, que se respeitavam. Nenhuma estava disputando poder. Quando anunciamos, em 7 de dezembro de 1993, a direção que iríamos tomar, foi uma coisa importante, que diferenciou o Real de outras experiências. Não foi algo que surgiu após um fim de semana, um feriado bancário e que pegou a população de surpresa com tablitas e taxas de conversão, congelamentos, bloqueio de poupança. Lembro-me de uma pergunta de jornalista: 'O que vai acontecer amanhã ou na semana que vem com o câmbio?'. Falei: nada de diferente do que vocês estão vendo aqui. Foi uma das razões da aceitação do êxito, fundamentais naqueles quatro meses de recontratação em URV."

4 - Hiperinflação não volta mais
"A agenda para o Brasil pós-Real se confundia com a agenda do desenvolvimento econômico, social, político e institucional do Brasil. Ela envolvia não só a área fiscal, do regime monetário, cambial, mas mudanças para que o país pudesse, após aquela experiência histórica de convivência com a inflação alta, crônica e crescente, conviver com taxas de inflação civilizadas. Quando se olham os últimos 20 anos em perspectiva, isso aconteceu. Na experiência dos 50 anos anteriores é um sucesso, mas isso não quer dizer que a inflação baixa, sob controle, está definitivamente incorporada ao DNA da sociedade brasileira, que não é preciso mais preocupação. Tenho certeza absoluta de que ela não volta, a (inflação) passada. Espero que a população considere a responsabilidade de qualquer governo, qualquer que seja sua coloração político-partidária, preservar a inflação sob controle. Isso é o grande legado do Real. Não vejo o Brasil tendo aquele processo de inflação em que ela subia de 40% para 100% e para 1.000%."

5 - Custo político das medidas depois do plano
"O Real permitiu que pudéssemos começar a encarar questões que estavam mascaradas pela poeirada da inflação alta. Tínhamos 28, 29 bancos comerciais e estaduais que faziam empréstimos a seus governos e às empresas de seus governos, que representavam uma parcela grande de seus ativos. Hoje, devemos ter meia dúzia de bancos comerciais e estaduais, e todos sabem que estão sujeitos à fiscalização do BC, podem ser liquidados. Tivemos que intervir em grandes bancos, como Econômico, Nacional, Bamerindus, porque a inflação baixa faz com que problemas apareçam, problemas de geração de caixa vis-à-vis custos operacionais, o imposto inflacionário. Houve enorme dispêndio do capital político do governo Fernando Henrique Cardoso para lidar com problemas de banco. A dívida foi reestruturada em 30 anos. Reestruturamos as dívidas de 180 municípios. Outro exemplo foi a privatização. O que nos levou, não por qualquer consideração de natureza política ou ideológica, a mudar os capítulos da ordem econômica da Constituição. Houve interrupção (nas privatizações) por um período longo, mas está sendo retomado agora, com atraso. São evidentes as deficiências na infraestrutura, mas elas sinalizam oportunidades de investimento. É possível ter um processo de investimentos na área de infraestrutura que ajude a retomada do crescimento."

6 - Riscos para a estabilização
"A inflação exige cuidados. Não tem risco de descontrole, não vejo nenhum desastre no front da inflação, mas é importante manter as expectativas quanto ao curso futuro dos preços ancoradas num nível que seja percebido como não induzindo demandas por indexação. Quando as pessoas acham que a inflação está numa trajetória, ainda que muito lenta, mas ascendente ou que ela mudou de patamar, é natural que queiram se precaver nos dissídios, nas correções de preços. Isso pode virar algo que se alimenta mutuamente e leva à pressão. Exige atenção e não só da parte do BC. Após certo ponto, exige ação do governo no seu conjunto. Exige percepção de quão importante é aquilo para o conjunto da população."

7 - Renegociação da dívida externa
"Larry Summers (secretário do Tesouro americano na época) sempre me disse que se não tivesse acordo com o FMI não haveria emissão de títulos de 30 anos que os EUA emitiam para garantia. Iríamos pagar só juros durante 30 anos. Amortização do principal só em 2023. A garantia eram títulos de 30 anos que faziam numa edição especial, fizeram para México, Argentina. Sabia que era muito difícil ter um acordo com o fundo com inflação de 30% ao mês. Tínhamos um bônus internacional, cujo título era bônus de interesse devido e não pago. Era nosso interesse eliminar esse bônus. Fomos comprando discretamente títulos do Tesouro americano para não depender da emissão especial. Éramos vistos como um país meio bêbado, um adolescente meio destrambelhado no caminhar. O Real e a negociação da dívida se reforçaram na percepção por parte do resto do mundo sobre o país."

8 - Os bastidores da crise de 1998
"Foi a primeira vez que um presidente americano, Bill Clinton, pediu para ter uma conversa com alguns ministros da Fazenda e presidentes de Banco Central na reunião anual do FMI em Washington, em setembro de 1998. A decisão de criar o G-20 surgiu aí. Havia o receio de que pudesse ser uma crise mais sistêmica. Eu não tinha medo de inflação. Tinha receio de uma crise de confiança grande. Foi o que nos levou a buscar um apoio, que obtivemos: um programa de organizações multilaterais, BID, Banco Mundial, FMI e bancos centrais, o que foi uma expressão de confiança no Brasil. Confiança exige ação doméstica. Havia generalização da ideia de que país subdesenvolvido e em desenvolvimento era tudo igual. Todos os países asiáticos estavam em grande crise. Estávamos saindo da resolução do problema bancário, tentando resolver problemas fiscais, a privatização ainda não havia levado a seus efeitos e tínhamos acabado de mudar a Lei do Petróleo em 1997. A confiança foi recuperada, com custo obviamente, mas depois do início de 1999, conseguimos recuperar isso, após a turbulência."


Plano Real, 20 anos de bons servicos ao pais - O Globo

Real 20 anos: com 12 anos de PT, a volta da inflação
Na foto, a equipe do Plano: Malan, Arida, Franco e Bacha.
O jornal O Globo traz uma série de matérias sobre os 20 anos do Plano Real, que domou a inflação e assentou as bases do crescimento brasileiro. Inimigo do plano desde o primeiro momento, o lulopetismo não fez nenhum ajuste nos últimos 12 anos - e o que temos é a volta da inflação. Aliás, como diz o jornal, "temos crescimento baixo de nação rica e inflação de país pobre":

Passados 20 anos do Plano Real, os números da economia mostram o Brasil com inflação alta de Terceiro Mundo e crescimento baixo de país desenvolvido. Ao cruzar os dois indicadores com os de 32 países de América Latina, Brics (além do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), Tigres Asiáticos (Hong Kong, Coreia do Sul, Cingapura e Taiwan) e desenvolvidos, o economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini, encontrou a sétima maior inflação acumulada de 1995 a 2013, de 275,4%, mesmo com a estabilização — o que representou taxa média anual de 7,2%, pouco acima da expectativa de inflação do mercado para este ano, de 6,46%. Na América Latina, o Brasil só perde para Venezuela e Colômbia. No ranking de crescimento, o Brasil cai para o meio da lista. Está na 15ª posição, com média de expansão de 3%.

— O que essa tabela mostra é que, em termos de crescimento econômico, o Brasil tem característica de país desenvolvido (países maduros que crescem mais devagar). Já a inflação revela problema crônico de país de Terceiro Mundo. Podemos sintetizar o problema pelo custo Brasil, colocando no preço as nossas deficiências estruturais, como logística, mobilidade urbana caótica, burocracia, tributação complexa e excessivamente elevada.

‘CUSTO BRASIL AFUGENTA CRESCIMENTO’

O economista ainda cita problemas de ingerência política em decisões técnicas, o que provoca insegurança jurídica e baixo crescimento.

— Todo esse custo Brasil afugenta o crescimento. Os Tigres Asiáticos estão à frente do Brasil. Crescem quase o dobro, enfrentando adversidades externas maiores que o Brasil. Na comparação com os outros, é emblemática a nossa situação.

Essa situação não é à toa. O processo de estabilização do Brasil combateu 30 anos de indexação (repasse para os preços da inflação passada), afirma o decano da PUC e especialista em inflação Luiz Roberto Cunha:

— Ninguém teve 30 anos de indexação como nós tivemos. No crescimento, tivemos problemas sim, não evoluímos nas reformas como o Chile, a Colômbia e o Peru (todos tiveram expansão superior à do Brasil). Eles caminharam melhor do que nós. É claro que a complexidade da economia brasileira também é maior.

Para poder conviver com a inflação, foi criada a correção monetária no período militar, que embutia, na maioria dos preços, a inflação passada. A correção monetária foi extinta com o Plano Real.

Cunha afirma que a indexação ainda existe, atualmente causada por uma inflação renitente em 6%:

— A demanda por indexação cristalizada em 6% é muito grande, formal e informal. O aumento real do salário mínimo tem como contrapartida a inflação de serviços, que está comendo parte do ganho.

O professor da USP Heron de Carmo teme esse repasse da inflação passada aos preços de hoje. Para ele, o governo errou ao não reduzir para 3% a meta de inflação quando as taxas estavam perto de 4%, entre 2006 e 2007:

— A inflação começou a subir com os choques. Agora, vivemos administrando choques. Ainda temos o custo da taxa de juros entre as mais altas do mundo.

Há de se ter cuidado com as comparações, afirma Mônica de Bolle, da Galanto Consultoria, diante de estágios diferentes de desenvolvimento entre os países. Ela cita o exemplo da China, que deu um impulso no crescimento com a migração da população rural para as cidades, elevando a produtividade e o crescimento. O Brasil viveu este fenômeno com mais intensidade nas décadas de 1960 e 1970. A economista considera boa a média de 3% de crescimento anual, mas chama a atenção para o fato de esta performance ter piorado nos últimos anos. Para 2014, o Relatório de Inflação do Banco Central, divulgado semana passada, já prevê expansão da economia de apenas 1,6%. Mas a avaliação da economista não se repete para as taxas de inflação:

— Ficamos mal na foto na inflação. É alta a média de 7,2%. Muito longe da meta de 4,5%. Tem havido um enfraquecimento institucional no Brasil. Isso fica claro com a inflação muito alta. Se alguns preços não estivessem represados, poderia estar até acima de 7,2%. Deveríamos estar hoje bem abaixo desta média de 20 anos.

Cunha lembra que mesmo países que sofreram com inflação alta não tinham a tradição de indexação do Brasil, citando a quantidade de índices de preços aqui, com os da FGV, da Fipe e do IBGE.

Mônica afirma que Colômbia, Chile e Peru não tiveram o problema inflacionário do Brasil, mas conseguiram adotar políticas de abertura comercial e fazer reformas como a tributária e trabalhista:

— Quando se faz reforma estrutural, ganha-se eficiência. O crescimento sobe, e a inflação cai.

REAL: FALTA DE SURPRESA EXPLICA SUCESSO

Para Lia Valls, especialista em América Latina da Fundação Getulio Vargas (FGV), o Brasil se saiu bem, na medida do possível, principalmente baixando o patamar da inflação:

— Dentro do possível, a gente se saiu bem. Conseguimos, principalmente, sair da âncora cambial de uma forma que não causou muito trauma na economia. Conseguimos fazer isso de uma maneira que não a inflação não acelerou. Depois se criou um consenso de que a inflação é algo que a gente não deve aceitar.

Cunha afirma que o sucesso do real veio da falta de surpresas. Num artigo em dezembro de 1993, o professor da PUC explica cada passo do plano, com base na divulgação oficial, ao contrário de planos anteriores, que a população só sabia o que ia acontecer na hora.

Na avaliação do diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Unicamp, Francisco Lopreato, foi a renegociação da dívida externa que viabilizou o sucesso do Plano Real. Segundo ele, a experiência brasileira seguiu a de outros países da América Latina, que conseguiram se livrar da hiperinflação após reestruturar a dívida dos países.

— Não é coincidência que o Plano Real só tenha ocorrido depois da renegociação. Sem querer tirar o mérito do real, que foi um plano inteligente, o acordo da dívida retomou o acesso ao crédito internacional, o que tornou viável o plano.