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domingo, 7 de abril de 2024

Legado econômico da ditadura: desempenho da economia brasileira no período militar foi mediano - Samuel Pessoa (FSP)

Samuel Pessôa

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP. 

Legado econômico da ditadura

Com ajustes necessários, desempenho da economia brasileira no período militar foi mediano 

Folha de S. Paulo,  07abr24

É fato que houve piora do desempenho econômico no período democrático medido pelo crescimento do PIB per capita. Nesta coluna, avaliarei qual teria sido o custo, na forma de perda de desempenho econômico, que tivemos com a democracia.

Análises como esta servem para aquelas pessoas que argumentam que a redemocratização foi ruim pois a economia tinha um desempenho melhor na ditadura.

Se a pessoa pensa dessa forma, para ela, a democracia não é um valor fundamental. Para essa pessoa, a escolha do tipo de governo tem que ser feita de acordo com as consequências práticas deste ou daquele tipo de governo. Não é a minha visão, mas vou aceitar essa premissa e analisar os números com esse olhar. 

Segundo os dados do Ipea, o crescimento brasileiro do produto per capita entre 1964 e 1984, considerando 1963 como base de comparação, foi de 3,9% ao ano. Para o período de 1985 até 2019 —deixei a fase da pandemia de fora—, foi de 1,2% ao ano. Houve, portanto, uma vantagem de 2,8 pontos percentuais por ano para a ditadura.

Note que mantive na conta a década perdida da ditadura, os anos 1980, e a década perdida da democracia, os anos de 2013 até 2022. Ambas tiveram uma componente internacional. Nos anos 1980, a elevação dos juros nos EUA; na última década perdida, a queda dos preços das commodities que ocorreu em duas etapas, em 2011 e 2014.

No entanto, o elevado grau de vulnerabilidade que demonstramos aos choques externos foi fruto de escolhas que fizemos internamente nos dois períodos. Com os militares, a decisão de endividar o país por meio de dívida em moeda estrangeira com juros flutuantes; no episódio mais recente, uma série de medidas —a mais importante delas

foi a mudança do marco regulatório do petróleo— que aumentaram muito a exposição da economia brasileira à queda dos preços internacionais das commodities.

Recentemente, em artigo publicado no terceiro fascículo de 2023 da Revista Brasileira de Economia, Edmar Bacha, Guilherme Tombolo e Flávio Versiani revisam os números da economia brasileira de 1900 até 1980. Com os novos números, o crescimento brasileiro ao longo do período ditatorial foi 1 ponto percentual menor do que a estatística que consta no Ipea. A vantagem da ditadura cai para 1,8 ponto percentual por ano.

A dificuldade de pararmos com o exercício por aqui é que a ditadura ocorreu em um período distinto daquele em que transcorreu a democracia. A economia mundial teve desempenho distinto.

Isto é, se imaginarmos um contrafactual em que a ditadura continuasse até agora, o crescimento não teria sido o mesmo. Qual teria sido o crescimento na ditadura se ela continuasse conosco?

Minha proposta é avaliarmos pela diferença entre o crescimento que tivemos na ditadura e a média do crescimento dos países na mesma época. Ou seja, a hipótese de meu exercício é que a diferença entre o comportamento do Brasil na ditadura em relação aos demais países naquele período se manteria até hoje. Considerarei como comportamento médio dos demais países o crescimento mediano de um conjunto de países que usarei como grupo de controle para a análise consequencialista do período ditatorial.

Considerei todos os países com informações disponíveis de PIB per capita de 1963 até hoje da base de dados de Maddison. Ajustei os números de Maddison para o Brasil à correção de Bacha, Tombolo e Versiani. O crescimento per capita brasileiro entre 1964 e 1984 foi de 2,4% ao ano, e o da mediana dos países da base de dados foi de 2,4%. Não houve uma clara vantagem da ditadura sobre a mediana das taxas de crescimento da base de Maddison.

Para o período democrático, o crescimento do Brasil foi de 1,9% ao ano, e o crescimento da mediana foi de 2,1%, uma diferença de 0,2 ponto percentual para pior.

Ou seja, a diferença da ditadura sobre o grupo de controle foi de 0,2 ponto percentual (0,2 + 0) maior que a diferença da democracia brasileira sobre o grupo de controle. Acumulada de 1985 até hoje, essa diferença gera um ganho de renda de 8%.

Parece muito pouco se levarmos em conta que o bem-estar de uma sociedade não depende só do ganho de renda, mas também da desigualdade, que certamente seria maior se a ditadura tivesse continuado até os dias de hoje.

Ou seja, nem o consequencialismo salva nossa experiência ditatorial.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Samuel Pessoa analisa criticamente Celso Furtado - Conjuntura Econômica

 Samuel Pessoa demorou para chegar a esses argumentos críticos: Douglas North, no início dos anos 1960, e Carlos Manuel Pelaez, logo em seguida, detectaram erros fundamentais na “economia literária” de Celso Furtado. Sua tolerância com a inflação e o prebischianismo exacerbado causaram enormes equívocos nas políticas econômicas do Brasil, dos anos 1950 à era Lula. Já era sem tempo.

Paulo Roberto de Almeida 

"Celso Furtado é nosso melhor e nosso pior"

Samuel Pessôa, pesquisador associado do FGV IBRE

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Um dos projetos recentes de Samuel Pessôa, pesquisador associado do FGV IBRE, autor da coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica, é transformar suas décadas de leitura da obra de Celso Furtado em uma contribuição à literatura dedicada ao autor de Formação Econômica do Brasil, desta vez, sob o olhar ortodoxo. Na Conjuntura de julho, Pessôa contou de seu projeto, avaliando que os principais erros de Furtado foram “achar que microeconomia não tem papel, que eficiência alocativa é desimportante; e não tratar a educação de qualidade com a ênfase que deveria”. Leia, abaixo, trechos dessa entrevista:

O que o levou a escrever sobre Celso Furtado?

Leio Celso Furtado há mais de 20 anos. De três anos para cá, comecei a fazer isso de forma sistemática: reli toda a obra dele, fazendo anotações, buscando produzir uma construção de seu pensamento. Por que Furtado? Celso Furtado é o economista mais influente que a gente tem. Não tenho aqui números precisos, mas acho que Formação Econômica do Brasil ainda vende mais de 10 mil cópias por ano. O livro foi publicado há 63 anos e a vitalidade do texto impressiona muito.

Mas quem escreve sobre Furtado em geral é de seu campo ideológico, compartilha sua visão de mundo, e naturalmente o festeja muito. Minha avaliação é de que faltava alguém de fora de sua área, mas que se dedicasse à sua obra, dando a importância que ela merece, para fazer uma análise à luz da teoria econômica padrão. E fizesse uma crítica respeitando sua grandeza, sem caricaturas. Esse é o meu objetivo: construir, a partir de um ponto de vista ortodoxo, um retrato intelectual de nosso economista maior, que é o pai de toda uma tradição gigantesca do pensamento econômico brasileiro, que é o pensamento econômico heterodoxo.

Deu trabalho. Tive que me dedicar para ter empatia e buscar entendê-lo a partir do mundo em que foi criado, tentar reconstruir seu pensamento para então fazer minha crítica. Se eu começasse pela crítica, não ia entender por que foi tão vitorioso. Formação Econômica do Brasil é um livro lindo mesmo. E estava na fronteira do conhecimento, no sentido do uso da teoria econômica moderna para entender fenômenos históricos. Roberto Fogel, que foi Prêmio Nobel, estava fazendo isso para os Estados Unidos na mesma época. Arthur Lewis, que é o grande macroeconômico básico que Furtado usou para estudar o subdesenvolvimento do Brasil, ganhou Nobel por seu estudo de desenvolvimento econômico, e Furtado chegou a alegar que o modelo de Lewis tinha sido criado por ele também. Será que Furtado não deveria ter compartilhado esse prêmio? Acho que a alegação procede.

O fato é que não há outro economista que tenha pensado o Brasil como ele. Há sociólogos, historiadores, mas não economistas que o tenham feito e tenham ganhado os debates nos quais Furtado se envolveu. O diagnóstico que fez do subdesenvolvimento econômico brasileiro foi adotado por todas as nossas elites, seja de direita, seja de esquerda. Mas acho que esse diagnóstico estava errado. Minha avaliação é que Celso Furtado não entendeu o fenômeno do subdesenvolvimento. Agora, o fato de Furtado ser nosso profissional de economia mais importante de todos os tempos significa que não foi ele quem entendeu errado. Fomos todos nós. Não sabemos o que é o subdesenvolvimento, e não sabemos qual o caminho para gerar desenvolvimento econômico. Costumo chamar o erro de Furtado como o erro da sociedade brasileira toda.

Por que discorda do diagnóstico de subdesenvolvimento, entre outros pontos da obra de Furtado? 

Furtado tinha uma visão do desenvolvimento econômico que considero mecânica. Para ele, desenvolvimento econômico era essencialmente acumulação de capital e transposição de trabalhadores desqualificados do setor tradicional para o setor moderno da economia. Ele achava que isso bastava para o trânsito de uma economia de subdesenvolvimento para a de desenvolvimento. O que faltou aí? Eficiência econômica. Furtado tinha uma desconfiança imensa com a microeconomia, e acho que esse é o grande pecado dele. 

No texto que estou escrevendo, elenco ao menos cinco citações – entre Formação Econômica do Brasil e Um Projeto para o Brasil (1968) –, em que Furtado mostra acreditar que o Brasil está a um passo de ter as condições dadas para que o desenvolvimento seja uma questão de tempo e acumulação. Mas se observarmos, por exemplo, que naquela época metade das crianças estava fora da escola, é estranho achar que é possível haver desenvolvimento econômico sem educação. Claro que essa visão não era só dele, era do momento. Mas veja o exemplo de Eugênio Gudin. Mesmo nos anos dourados de 1950, em que toda a elite brasileira achava que estávamos a caminho do desenvolvimento, Gudin olhava para aquilo e dava risada, pois sempre teve a certeza de que isso não aconteceria facilmente. Porque Gudin tinha cabeça de microeconomista, que via o crescimento como uma questão de produtividade e eficiência alocativa, e não uma questão quantitativa. E, em questão de desenvolvimento econômico, ter qualidade é mais importante que ter quantidade. Não faz muito tempo, vimos o exemplo do esforço imenso para se reconstruir uma indústria naval, acumular capital num setor moderno, mas com incentivos todos errados, regras mal desenhadas, sem eficiência. Dessa forma, o setor moderno não é moderno; é fonte de desperdício, de perda de dinheiro público. 

O que Furtado fez foi olhar o desenvolvimento econômico, que é algo mais complicado, com os óculos da macroeconomia de Keynes. Nem tenho certeza se Keynes aprovaria a transposição que foi feita de sua visão de mundo, construída para discutir ciclo econômico de curto prazo, para o debate de crescimento de longo prazo. Mas Furtado pertencia a essa tradição, portanto, olhou o desenvolvimento econômico a partir dela. Furtado nasceu em 1920. O trabalho clássico de Keynes que revolucionou a economia é de 1936, quando Furtado tinha 16 anos. Então, a formação dele como economista aconteceu na cheia keynesiana, que vai do final dos anos 1960 até meados dos anos 1970. E parte das limitações dele é por não conseguir transcender esse universo em que ele se formou. Pois, como disse, acho que sua ideia de subdesenvolvimento está totalmente equivocada.

Em resumo, diria que os dois grandes erros de Furtado foram achar que microeconomia não tem papel, que eficiência alocativa é desimportante, com uma visão mecânica do crescimento. E nessa visão mecânica, não tratar a educação de qualidade com a ênfase que deveria. Costumo dizer que Furtado é nosso melhor e nosso pior.

Sua avaliação é de que Furtado não dava o braço a torcer. Acha que essa característica prejudicou o debate em torno de suas teorias?

Eugenio Gudin foi o principal contraponto a Furtado, mas em um debate surdo que ocorreu nos anos 1950 e início dos anos 1960, pois Furtado desconsiderava olimpicamente qualquer crítica contra ele. Gudin era 36 anos mais velho que Furtado, e foi o polo do pensamento ortodoxo brasileiro até pelo menos meados dos anos 1960. Furtado e Gudin chegaram inclusive a trabalhar na FGV na mesma época, na breve passagem de Furtado pelo IBRE, entre 1948 e 1949. Gudin escreveu várias colunas, publicadas no jornal O Globo, criticando os posicionamentos de Furtado quando este foi ministro do Planejamento do governo João Goulart (1961-64). Lendo-as, considero-as bem fundamentadas, com números. Uma das críticas de Gudin era de que Furtado era mais literato que técnico. E Furtado nunca se preocupou em responder. Ele era uma pessoa educada, fina, absolutamente correta com a coisa pública, mas nunca dialogou com a divergência. Acho isso ruim, e acho que Furtado estabeleceu um padrão que é seguido pela heterodoxia brasileira. Ele não só não dialogava com a divergência como não testava as próprias teorias. Para Furtado, o simples fato de haver um argumento racionalmente lógico que ia ao encontro de seus pontos de vista era suficiente para ser uma teoria aceita. Nunca passava pela cabeça dele que deveria buscar, a partir da teoria, alguns experimentos que pudessem colocar à prova sua visão de mundo.

Como seu empenho de revisita ao pensamento de Furtado com um olhar ortodoxo pode contribuir para o debate econômico de hoje? 

Acho, como disse, que é preciso ter claro que desenvolvimento econômico não é uma questão quantitativa, mas qualitativa, associada à governança, à qualidade das instituições do país, e que escolarização da população é o item mais importante de todos. Falamos de capital, e o capital mais importante e mais escasso no Brasil é o capital humano. Disparado, mais que o físico. 

Leia a íntegra desta entrevista na Conjuntura Econômica de julho. O acesso é gratuito.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

domingo, 4 de agosto de 2019

Uma homenagem a Rubens Ricupero - Samuel Pessoa (FSP)

A importância de Rubens Ricupero

Além do aprendizado, em momentos críticos os indivíduos fazem a diferença

O movimento político Livres, coordenado por minha amiga Elena Landau, divulgou na semana passada documentário comemorativo dos 25 anos do Plano Real.
A grande surpresa do documentário foi o depoimento do ministro da Fazenda do governo Itamar, de março a setembro de 1994, Rubens Ricupero.
Sempre achei que o papel de Ricupero para a difícil construção da estabilidade monetária tivesse sido subsidiário. Estava enganado. Ricupero foi fundamental.
Quando FHC deixou o Ministério da Fazenda do governo Itamar para candidatar-se à Presidência, Itamar chamou Ricupero, à época ministro do Meio Ambiente, e convidou-o para o cargo. Ricupero ponderou que era mais oportuno que um membro sênior da equipe do ministério —Edmar Bacha ou Pedro Malan, por exemplo— assumisse a posição.
Na conversa, ficou claro para Ricupero que Itamar não queria ninguém da equipe de FHC à frente do ministério. Antes de aceitar, Ricupero tomou o cuidado de estabelecer precisamente a sua atribuição:
“Tocar o Plano Real com esta equipe”. Este foi o combinado. O discreto diplomata nascido e criado no Brás, figura de proa do Itamaraty, com livros publicados, tendo ocupado inúmeros cargos, entre eles a secretaria-geral da Unctad e a Embaixada do Brasil em Washington, negocia à mineira com o presidente mineiro: o que é combinado não sai caro.
Inúmeras vezes Itamar chamava Ricupero no Planalto. Este sugeria que um técnico o acompanhasse, o que era imediatamente recusado. A conversa tinha que ser entre eles.
Nesses difíceis encontros no Planalto, Itamar compartilhava com Ricupero sua preocupação com o sucesso do plano e tentava convencer o ministro de que ele tinha que adotar um formato mais próximo ao dos cinco planos anteriores, que tinham dado com os burros n’água: congelar os preços.
Inúmeras vezes pleiteou aumentos de salários para servidores e do salário mínimo.
Na véspera do lançamento da nova moeda, em 30 de junho de 1994, no início da noite, o ministro da Justiça de Itamar, Alexandre Dupeyrat Martins, do círculo íntimo do presidente, foi ao Ministério da Fazenda conversar com Ricupero. Persio Arida participou da conversa.
O presidente Itamar ainda não assinara a medida provisória, apesar de toda a logística para o lançamento físico da nova moeda estar pronta.
A pedido de Itamar, o ministro da Justiça inicia meticulosa inquirição sobre a consistência econômica do plano.
Após longo tempo de conversa em que Persio repassou com o ministro da Justiça os fundamentos do Plano Real, Ricupero perde a paciência, liga para a secretária particular de Itamar e diz: “Transmita o seguinte recado ao presidente. Mas faça-o desta forma: se o presidente não me receber em duas horas, algo muito ruim acontecerá”.
O ministro da Justiça, indignado com os termos do telefonema de Ricupero, pergunta se ele não é bem-vindo à Fazenda. Ricupero responde que sempre será. E, se Itamar assim o desejasse, Dupeyrat poderia assumir a Fazenda.
Itamar chamou Ricupero, assinou a medida provisória, e o resto é história.
A construção de uma sociedade é um processo coletivo em que o aprendizado é um elemento importantíssimo. Parece, por exemplo, que a sociedade brasileira aprendeu que não se trava conflito distributivo com inflação. A Argentina ainda não aprendeu essa lição.
Mas além do aprendizado, em momentos críticos os indivíduos fazem a diferença. Ricupero fez. Eu, minhas duas filhas e a sociedade inteira agradecem.

domingo, 2 de junho de 2019

Brasil: no limiar de um longo ciclo de estagnação? - Samuel Pessoa (FSP)

O Pibinho e o conflito distributivo

Não há pirotecnia; só o ajuste fiscal estrutural abre o caminho para renda e emprego

A economia brasileira recuou 0,2% no primeiro trimestre, em comparação ao quarto trimestre do ano passado.
O péssimo desempenho da economia faz com que vozes se levantem em defesa de medidas de estímulo à demanda agregada.
Considero que não há espaço para política fiscal e parafiscal (crédito de bancos públicos, basicamente) ativas. A inexistência de consenso com relação à solução do conflito distributivo, conosco há muito tempo, impede que o investimento se recupere. Somente com consumo não há espaço para a retomada da economia. Vamos à narrativa.
Vivemos um conflito distributivo desde novembro de 2005, quando a então ministra da Casa Civil disse que “gasto público é vida” e o presidente Lula desistiu do ajuste fiscal estrutural.
Em 2014, o conflito distributivo explicitou-se: o gasto público passou a ser estruturalmente superior à receita.
Em 2015 e 2016, a presidente Dilma não teve apoio do Congresso Nacional para arrumar as contas públicas.
Michel Temer, após o fatídico evento de 17 de maio de 2017 —a divulgação da conversa do presidente com o empresário Joesley Batista em condições muito pouco republicanas—, também perdeu a capacidade de aprovar no Congresso as medidas necessárias para ajustar as contas públicas.
Em 2004, o Congresso não aceitou elevar a tributação sobre os fornecedores de serviços por meio de empresas que operam no regime de lucro presumido. Rejeitou a medida provisória 232, que Palocci enviara. Em 2009, o Congresso não renovou a CPMF. O Congresso dá claros sinais de que não pretende elevar a carga tributária.
O Congresso também dá claros sinais de que não pretende reduzir o gasto público.
Após cinco anos e meio com déficits fiscais seguidos e com a dívida pública em trajetória explosiva, o Congresso Nacional se recusa a arrumar a política fiscal. A reforma da Previdência não anda. Novos impostos não são criados. Enquanto essa questão básica não for atendida, o investimento não voltará.
É possível afirmar que, nos anos 1980, a economia crescia mesmo com inflação. Além de ser um crescimento de péssima qualidade, e muito regressivo do ponto de vista da distribuição de renda, havia um “contrato social”: vigorava a lei do mais forte em se proteger da inflação.
É possível que retornemos a esse contrato social perverso. É possível crescer algum tempo com inflação. Não me parece que hoje teria fôlego longo. A Argentina dos Kirchners cresceu algum tempo com inflação crescente. Em uma década, o fôlego acabou.
De qualquer forma, esse ainda não é o nosso contrato. Hoje não sabemos qual será a solução do conflito distributivo: será resolvido com mais impostos, com menos gastos ou com inflação? Enquanto essa dúvida essencial não for resolvida, o investimento não retornará.
Aumento do gasto público ou algum aumento do gasto parafiscal somente agravam o problema: geram um pequeno alívio na demanda com deterioração permanente na dívida pública e, portanto, com aumento dos prêmios de riscos.
É possível que haja espaço para baixar os juros. Estamos no meio de um choque cambial e de um choque de preços de alimentos. Se houver devolução desses choques, haverá espaço para queda adicional da taxa Selic no segundo semestre. A normal operação do regime de metas de inflação produzirá essa queda.
Assim, não há como nos desviarmos do tema básico. Não há pirotecnia. Somente o ajuste fiscal estrutural abre o caminho para a volta de algum crescimento e geração de renda e emprego.

domingo, 19 de agosto de 2018

Ciro Gomes atribui altos salarios a legislação, nao produtivididade - Samuel Pessoa

Ciro Gomes e a Alemanha

Não ocorre a Ciro que o salário na Alemanha é alto porque a produtividade é alta

Ciro Gomes tem criticado muito a reforma trabalhista do governo Temer. Também tem citado a Alemanha como a economia com boas práticas no mercado de trabalho.

Todo o argumento surpreende. A reforma não foi feita pelo governo Temer, mas resulta de esforço do Congresso Nacional. A partir de um projeto tímido enviado pelo presidente Temer, o Congresso desenhou uma lei muito mais abrangente.

Adicionalmente, Ciro confunde totalmente a causalidade. Parece que considera que foi a legislação trabalhista da Alemanha que produziu os elevados salários do país. Não lhe ocorre que a produtividade no país é alta —bom ambiente institucional e escolaridade de excelente qualidade, entre tantos outros motivos— e que essa é a causa dos elevados salários. 

De fato, o produto por hora trabalhada na Alemanha em 2017, segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), foi de US$ 60 (R$ 236), US$ 3 (R$ 11,8) a menos do que o mesmo indicador para os EUA.

Ou seja, salários altos ou baixos resultam do fato de a produtividade do trabalho ser alta ou baixa. A legislação trabalhista ajuda (ou atrapalha) à medida que estimula (ou desestimula) a elevação da produtividade.

Surpreende também Ciro utilizar a Alemanha para criticar a reforma brasileira de 2016. Entre 2003 e 2005, a Alemanha implementou a reforma Hartz —Peter Hartz, diretor de recursos humanos da Volkswagen, foi chefe da comissão que desenhou as medidas— com inúmeras medidas que liberalizaram o mercado de trabalho alemão.

A natureza da reforma Hartz foi a mesma de nossa reforma de 2016: criaram-se outras figuras de contrato de trabalho assemelhadas ao contrato intermitente e temporário introduzido na reforma de 2016, além de a reforma alemã ter restringido os critérios de elegibilidade ao benefício do seguro-desemprego em prazo, valor e contrapartidas para o beneficiário.

Em reportagem de 1999, a revista The Economist se referia à Alemanha como a economia doente da Europa: baixo crescimento com elevado desemprego. O desemprego, após o pico de 11% em 2005, atingiu a mínima de 4% recentemente. 

No mesmo período, Itália, Espanha e França vêm lutando para reduzir suas taxas, que, apesar da queda recente, encontram-se em níveis muito superiores aos observados na Alemanha.

Estudo recente de meus colegas Bruno Ottoni (Ibre/FGV e Idados) e Tiago Barreira (Ibre/FGV) sugere que três reformas trabalhistas, que liberalizaram o mercado de trabalho em moldes semelhantes ao de nossa reforma de 2016, tiveram impactos significativos sobre a queda do desemprego, a elevação da população ocupada (PO) e o aumento da população economicamente ativa (PEA), isto é, ampliação da oferta de trabalhadores.

Bruno e Tiago estudaram a reforma Hartz na Alemanha, a reforma de Menem na Argentina, entre 1989 e 1990, e a reforma australiana de 1994. Compararam o ocorrido 12 anos após as reformas com um cenário contrafactual no qual elas não teriam sido implantadas. 

Os resultados indicaram que as reformas levaram a expressivas quedas das taxas de desemprego: de 3,4, 1,2 e 2,9 pontos percentuais, respectivamente, para Alemanha, Argentina e Austrália, a aumentos expressivos da PEA, de 6, 3 e 7 pontos percentuais, e da PO, de 10, 5 e 9 pontos percentuais.

Tudo indica que a nossa reforma de 2016 deixará saldo positivo, como foi o caso das outras. 

Ajustes podem ser necessários, mas o sentido geral da reforma de 2016 é amplamente positivo.

domingo, 6 de setembro de 2015

Debate fiscal: Samuel Pessoa, Mansueto Almeida, Marcos Coimbra (OESP)


‘MEU MEDO NÃO É O BRASIL VIRAR GRÉCIA, É VIRAR UMA GRANDE ARGENTINA
Em debate no ‘Estado’, economistas discutem explosão da dívida e dos gastos
Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum
O Estado de S.Paulo, 29 Agosto 2015 | 15h 13

Os pesquisadores Marcos Lisboa, Mansueto Almeida e Samuel Pessôa produziram um estudo que virou referência no debate econômico: mostram que o gasto público, desde 1991, cresce num ritmo maior que o da renda nacional. Para eles, é preciso um ajuste estrutural capaz de deter a explosão das despesas e da dívida. Mantida a tendência, os gastos serão R$ 300 bilhões maiores em 2030, puxados por “benefícios sociais”. A dívida bruta, que equivalia a 59% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2015, pode ir a 72% do PIB em 2018, transformando o Brasil numa espécie de nova Grécia. Na sequência, trechos da entrevista à TV Estado.

Vocês atribuem os gastos com educação, saúde e previdência como os maiores responsáveis pelos aumentos dos gastos públicos. Eles totalizariam um aumento de 6% do PIB até 2030. Acabou o sonho do bem-estar nacional? Como que se resolve isso? 
Samuel Pessôa Eu acho que não porque muito dos benefícios do nosso Estado do bem-estar social, são ineficientes. Custam muito em geral e dão pouco retorno para a população. O que eu acho que acabou é o sonho desse gasto desenfreado, sem medir resultado, sem critério. Isso acabou.
Marcos Lisboa Tem uma agenda que o Brasil precisa enfrentar. Não estou falando de aposentadoria de idosos - este é um ponto importante a ressaltar. A idade média de aposentadoria de uma mulher por tempo de contribuição no Brasil hoje é 52 anos. A de um homem, 54 anos. Isso destoa de qualquer país desenvolvido. Países admirados, como os nórdicos europeus, que construíram um Estado de bem-estar social, que realmente protegem às suas sociedades, não têm esse tipo de prática. Não é viável numa sociedade em que se vive cada vez mais. Todos os países que não fizeram esse ajuste estão tendo que fazer em meio a uma severa crise, como a Grécia. Países desenvolvidos fizeram isso há algum tempo. O Chile, nosso vizinho, fez isso há mais de 20 anos. E o Brasil se recusa a enfrentar o drama de que a aposentadoria, para ser preservada, para ser garantida, deve ser concedida a idosos, não a jovens de 52 anos. A segunda parte do problema é a falta de avaliação. Vamos comparar o Brasil com países semelhantes. A Coreia o Chile conseguem, com gastos equivalentes, em alguns casos menores, indicadores de educação incomparavelmente melhores. Por que o nosso gasto é tão ineficaz? 
Mansueto Almeida Eu complementaria falando que a discussão orçamentária no Brasil tem um pouco de anomalia. Quando se discute tudo isso fora do orçamento, em áreas separadas, educação, saúde, tudo é prioridade. Quando você junta tudo, não cabe no PIB (Produto Interno Bruto). Um bom exemplo é o da educação. O Brasil gasta com educação hoje 6% do PIB. Tem uma meta, pelo Plano Nacional de Educação, desse gasto crescer, até 2024, para 10% do PIB. Isso é uma loucura. A gente perde a percepção que essa vinculação do gasto torna quase impossível um ajuste fiscal sem aumento carga tributária. Nos Estados e municípios, gasto com saúde é vinculado à receita. Você tem ideia do que é isso? De 2004 a 2014, a receita real de Estados e municípios cresceu mais ou menos 70% - isso implica que o gasto com saúde e educação cresceu na mesma proporção. 
Só para entender: é para não vincular ou para vincular diferente?
Lisboa Deixa eu polemizar um pouco com o Mansur. Eu acho que pode ser razoável que um País como o Brasil gaste 10% do PIB com educação, desde que esse gasto seja eficaz, produtivo. Seria fantástico que o Brasil superasse o seu atraso educacional. O que falta é a avaliação integrada do orçamento público. Colocar todos os gastos na mesma cesta e entender. Será que não tem outros gastos que a gente pode cortar. Qual é a prioridade do Estado brasileiro? Para isso eu preciso saber onde mais estamos gastando. Qual é a avaliação de impacto? 
Pessôa Entendo o ponto do Marcos. Faz todo o sentido a agenda de avaliação, de olhar o orçamento como um todo. Mas parece que vinculação, como exercício ou instrumento orçamentário, é um instrumento ruim. As demandas do país mudam ao longo do tempo. A gente está envelhecendo. Está reduzindo a quantidade de crianças. Acho que a origem das vinculações fez sentido. Os governadores, às vezes, cortavam algumas rubricas. Criavam oscilações muito grande nos gastos para a educação, para a saúde lá nos anos 80. Mas eu acho que a gente melhorou muito. As nossas instituições avançaram muito. A sofisticação do debate aumentou muito. Com a estabilização da economia, a transparência dos dados aumentou muito também. A gente tem total condição de reduzir brutalmente essa vinculação. 
O que deveria ser cortado para fazer o Estado caber no orçamento?
Mansueto O que cortar? Esse é o problema. Quando você olha o gasto do Estado, o que você pode cortar, a curto prazo, é muito pouco. No ano passado, no governo central - governo federal, Previdência e Banco Central -, o primário, sem incluir juros, foi de R$ 1,031 trilhão. Quando você tira o que é gasto obrigatório - benefício de prestação continuada para idosos, benefícios do Bolsa Família, aposentadorias e pensões, gastos com saúde e educação que são baseados em regras, quando você tira tudo isso - no ano passado foi, mais ou menos, sei lá: uns R$ 77 bilhões de investimento e uns R$ 60 bilhões de reis de custeio, quando tira todos os gastos sociais. Investimento o governo está cortando. A maior economia do governo este ano vai ser um corte de investimento. No ritmo que está, vai cortar uns R$ 30 bilhões de investimentos e levar o investimento ao nível que era em 2007. Em pouco mais de 8 meses, o investimento em relação ao PIB, vai voltar ao que era em 2007.
Pessôa Investimento do Estado brasileiro, do governo federal. 
Mansueto No caso de despesas de custeio, que a gente chama de custeio mesmo - gasolina, xerox - se fechar metade dos ministérios, economiza R$ 25 bilhões, R$ 30 bilhões. Todo resto são gastos baseados em regras. E essa questão da vinculação é importante. Na verdade, a gente desvinculou parte do orçamento sem uma discussão política, com mecanismos como a DRU, que é a desvinculação de receitas da União. Agora o governo está querendo aumentar o porcentual da desvinculação...
Pessoa ... para 30, né?
Mansueto A gente não quis fazer um debate aberto sobre a desvinculação e ficou criando subterfúgios. Ninguém discute que o gasto com saúde pública na Inglaterra é muito importante. É um modelo para o mundo todo. Gasto com saúde na Inglaterra não é vinculado. Não tem regra indicando que o orçamento do setor de saúde para o próximo ano tem que crescer tantos por cento. A desvinculação é um debate bom. Como o Samuel falou, hoje a gente tem instituições e dados para acompanhar, para mostrar o que é prioritário ou não. Todo mundo quer ajuste fiscal. Mas ajuste fiscal no Brasil se faz com corte de investimento. Você corta investimento num ano. No outro, não. Então, ajuste fiscal acaba sempre recaindo sobre aumento de carga tributária.
Lisboa Não tem saída. O ajuste fiscal vai ser feito. Pode ser feito de uma maneira democrática, transparente, com uma discussão sobre o que vamos manter, o que vamos empenhar, o que vamos cortar. Ou ele vai ser feito em meio a uma grave crise - que foi aliás o que o Brasil teve de fazer nos anos 80. 
Mas como é que mexe nisso? Mexer em previdência, desvincular saúde, desvincular educação, a esta altura do campeonato, vai ser uma grita. Desvincular significa poder reduzir os gastos...
Lisboa ...de algumas áreas. 
Pessôa Exatamente.
Lisboa É definir prioridades. Nós temos que rediscutir o Estado brasileiro. A gente fala muito de previdência, de saúde, educação. Mas tem concessão de benefícios para todo lado no Brasil. Todo mundo tem um pedaço do que a gente costuma chamar de “meia entrada”. Todo mundo tem. Está espalhado. Disseminado. A gente saiu concedendo benefícios de forma disseminada pela sociedade. Bom, acabou. Acabou o dinheiro. Se queremos crescer com qualidade, temos que resgatar uma agenda diferente. Uma agenda de tratar os iguais como iguais. Que não tem privilégios. Uma agenda que seja de fato para proteger os mais frágeis. Não proteger os mais ricos. 
A gente viu os protestos em 2013, que a maioria dos analistas atribuiu a maior desejo da população por mais serviços, mais gastos. Como é que se concilia politicamente essa pressão da população e esta necessidade de ajustar as contas?
Pessôa Esse é um problemão. Eu tive esta leitura daquelas manifestações. A sociedade tem uma miopia. A sociedade, as pessoas, evidentemente, querem uma saída fácil. 
Mansueto A miopia que você fala é mais qualidade com mais gastos?
Pessôa Acho que tem duas miopias. A miopia maior é a questão da meia entrada. A sociedade não percebe que este Estado grandão desfavorece ela mesma com um monte de ineficiências. Todos nós de alguma forma temos a nossa meia entrada, o nosso benefício, que a soma de tudo isso está cada vez mais disfuncional. A sociedade acha que não. Isto ficou claro lá na ruas. A sociedade acha que tem uma coisa chamada corrupção, tubarões não sei de onde, alguém, que é responsável pelos males, que está roubando, está se locupletando, e produz todos os males. E se eu conseguir eliminar todos os males dessa engrenagem, vai sobrar um monte de dinheiro no orçamento para gente ter metrô legal e um monte de coisas. A gente não pode ter metrô porque a gente tem aposentadoria aos 52 anos. Então, as pessoas, evidentemente, todo mundo, gostaria que existisse alguém, um ser fora da gente, quer sejam os políticos corruptos, que tivessem produzido todos os nossos males, e se eu eliminar essa cara, estão resolvidos todos os problemas.
Mansueto Eu escuto muito isso de profissionais liberais: se a corrupção se reduzisse, teria dinheiro para tudo. O que não é verdade. Isso me impressiona. O caso da Petrobrás é bom exemplo. Teve muita corrupção. Mas a estimativa da perda com a corrupção foi R$ 10 bilhões. A ineficiência com o congelamento dos combustíveis, com gasolina, foi uma perda de R$ 80 bilhões. 
Lisboa Sem contar as refinarias que foram construídas: caríssimas.
Mansueto Dinheiro jogado fora. Má gestão, intervenções micro, essas maluquices - tudo isso causou um prejuízo muito maior do que corrupção. Corrupção é um mal que todo mundo deve combater. Mas esse ponto do Samuel é importante. Até na universidade, às vezes, a gente vê colegas nossos, a procura de uma saída fácil. E muitas vezes - eu vou deixar para o Marco comentar - as pessoas falam: se o Brasil passar a crescer mais, resolvem-se todos os problemas. E não. O Marcos tem uma explicação para isso...
Lisboa. Não, não há uma explicação para isso (risos). Até porque é inexplicável. É saída fácil: “olha, eu tenho uma dieta ótima para a perda de peso: come doce, doce emagrece.” É a saída fácil. A saída que não tem custo. O inimigo é outro. Tem um inimigo lá fora. Parte do que o Samuel descreveu, o Mansueto descreveu, vem um pouco dessa obscuridade da concessão de benefícios. Todo mundo trata o seu benefício como justo: “Eu não quero pegar esta fila aqui.” “Não quero pagar universidade”. “Não quero pagar ônibus”. As pessoas acham razoável. Mas não tem ônibus de graça. Tem ônibus de Antônio pago por João. Alguém está pagando a conta.
E se taxar os mais ricos para pagar a conta dos benefícios sociais?
Lisboa As estimativas dos impostos sobre os mais ricos não fazem cócegas no tamanho do déficit. A gente tem sempre a ilusão de que alguém muito rico vai poder dar uma contribuição. Os ricos somos nós. Quem tem que fazer isso é o Brasil. A gente tem que sair um pouco da fantasia. A gente tem no Brasil o problema das distorções tributárias. Temos. Por exemplo: as famosas pejotinhas (profissionais que prestam serviços como pessoas jurídica) que faturam R$ 2 milhões, R$ 3 milhões de reais: quase não pagam impostos no Brasil. Em alguns casos, a renda de um proprietário nem é muito alta. Em alguns casos, os R$ 3 milhões, R$ 4 milhões são inteiramente renda de proprietário e a taxação é mínima. São distorções tributárias que nós temos. De novo: o Brasil tem essas distorções espalhadas e eu acho que a gente ganharia muito suprimindo esse tipo de coisa.
Pessôa Classe média é o porteiro do nosso prédio. O imposto sobre o rico é sobre nós.
Lisboa Samuel tem razão. A renda média brasileira é de US$ 12 mil por ano. Se pegasse toda a riqueza do Brasil - se o País fosse justíssimo - e todo mundo ganhasse igual, cada brasileiro teria US$ 1 mil dólares por mês para viver. 
Mas não temos taxação progressiva, temos isenção para distribuição de lucros e dividendos (parcela do lucro distribuída aos acionistas): essas coisas não precisam mudar?
Lisboa A Receita produziu um relatório sobre benefícios tributários de pessoas que não pagam pelas regras estabelecidas. É um número astronômico. O advogado que está no Simples não vai pagar 27,5% de imposto. Ele paga 4,5% de imposto. O corretor de seguros está no Simples. Serviço está no Simples. Tem um vazadouro de recursos nas exceções tributárias e nos benefícios tributários. “Olha, tem o IPI (Imposto sobre produto Industrializado), mas o IPI vale para Ricardo, mas não vale para Samuel”. “Tem o ICMS. É, mas depende: ICMS para quem? É para o Mansueto ou para o Marcos?” Proposta. Primeiro: isonomia. Tratar os iguais como iguais. Todo mundo é que parecido tem alíquota de imposto parecida. Quer fazer exceção? Separa, faz um protocolo de política pública, para garantir aquela exceção, que ela de fato é justificável, meritória, e se ela não tiver sucesso, ela se extingue. Terceiro: vamos ver os grupos sociais que são beneficiados pelas transferências do governo. Que grupo são meritórios? O que é razoável? 
Pessôa Mas na verdade o Estado perguntou se a gente não tem uma estrutura tributária muito pouco progressiva. Acho que a gente até tem. Acho que pode pensar em aumentar outras alíquotas de imposto de renda. Acho que a PJ pega todo mundo, na nossa classe social. A gente tem que repensar isso. É um debate legal. Merece. Mas a gente tem que ter consciência é que isto pode dar mais justiça para a estrutura tributária, porém, não vai gerar muitos pontos porcentuais do PIB de arrecadação para resolver os nossos problemas. 
A gente consegue escapar de virar uma nova Grécia?
Lisboa Eu não consigo pensar em outro caminho que não abrir os dados e trazer o debate. Saber porque os gastos com educação são tão ineficazes. Ter transparência nas políticas setoriais, nas regras de conteúdo nacional, e botar tudo isso em discussão no Congresso. 
Mansueto Em relação a outros emergentes, a gente tem instituições que funcionam. Tem Ministério Público, tem Justiça. Tem um setor público que é muito mais eficiente do que o de outros países emergentes. Temos uma democracia vibrante. Eventualmente, se pode, com um agravamento da crise, sem chegar a uma crise grega, a gente pode criar o consenso para fazer mudanças. Isso, claro, não consigo responder se a gente vai conseguir fazer as mudanças antes de bater com a cabeça na parede.
Pessôa Se vai ter uma crise aguda ou não, eu não sei. Gostaria que não tivesse. Ehá o risco real de ter. A comparação com a Grécia, numa certa dimensão, é um pouco infeliz. A Grécia é uma país com uma renda per capita mais alta que a nossa. Grego vive muito melhor que brasileiro com crise, sem crise. Além disso, em alguma dimensão, nós já somos Grécia. A dívida grega é muito maior do que a nossa. Mas ela têm a união monetária (moeda única, que é defendida por todos os países da União Europeia).
O custo de financiamento é muito mais barato. O que importa é quanto custa rolar a dívida. Na rolagem da dívida, a gente gasta mais ou menos o que eles gastam. Do ponto de vista financeiro, o nosso Tesouro está numa situação tão dramática quanto o grego. 
O meu pesadelo não é Grécia. O meu pesadelo é a gente entrar numa dinâmica política disfuncional, e virarmos uma grande Argentina. A Argentina é o caso mais dramático, provavelmente, de decadência de um país que não passou por guerras desde a revolução industrial. Um país que estava entre as 10 economias mais ricas nos anos 30, 20. E desde os anos 40, todo ano, ela está um pouco pior que no ano anterior. Sistematicamente. A distinção, a diferença, é que eles partiram de uma renda per capita tão alta que, após 60 anos de bobagens, ainda têm uma renda 40% maior que a nossa. 

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Economia politica do futebol: a Lei do Passe (extinta com a Lei Pele) era como uma patente

Ou seja, ela dava direitos monopólicos ao clube durante certo tempo, o que o estimulava a investir no jogador. Sua eliminação pela Lei Pelé, a pretexto de "libertar" os jogadores da "ditadura" dos clubes, diminuiu o incentivo para sua formação.
O mesmo ocorre no mercado de trabalho com a formação de recursos humanos -- tanto no setor privado quanto no público -- e sua "exploração" ulterior: se esses recursos podem ser roubados facilmente por outras empresas, por head hunters, diminui o interesse das empresas em investir muito no seu próprio pessoal, preferindo ir à caça no mercado por mão-de-obra já formada, oferecendo um pouco mais de salário, mas não tendo de investir muito na preparação.
De fato, hoje, pelas deficiências da escolarização e do ensino, as empresas são obrigadas a treinar o seu pessoal, o que elas fazem de forma mínima, pois eles podem partir para outras empresas depois.
Algo similar ocorreria com a imposição de salários iguais para as mulheres em relação aos homens, por parte do poder público "contra" os empregadores privados: em vista do diferencial de produtividade entre homens e mulheres, o mercado, ou seja, as empresas vão descontar esse fator empregando menos mulheres, o que seria uma pensa.
É o que se chama lei das consequências involuntárias, válida no caso dos craques também, objeto deste artigo do economista Samuel Pessoa.
Paulo Roberto de Almeida

LEI PELÉ REDUZIU MUITO O ESTÍMULO DOS CLUBES EM FORMAR JOGADORES!
Samuel Pessôa*
Folha de S.Paulo, 13/07/2014

A capacidade do futebol brasileiro de gerar talentos reduziu-se muito.  Penso que a Lei Pelé reduziu muito o estímulo dos clubes em formar jogadores. O fim da Lei de Passe faz com que o ganho que um clube tem em formar um jogador fora de série seja muito menor que no passado. A Lei do Passe funcionava da mesma forma que uma patente. O custo de desenvolver uma nova tecnologia é muito elevado. Se o custo de imitação for muito baixo, ninguém irá investir em pesquisa e desenvolvimento. A patente garante poder de monopólio por alguns anos, suficientes para que a empresa recupere o investimento.
            No futebol a Lei do Passe funcionava como esse monopólio. No caso da formação de jogadores de futebol, o desenvolvimento da tecnologia está associado ao processo de "achar" o craque e de desenvolver sua potencialidade. Achar o craque é mais difícil do que parece. O problema é que o craque não sabe que é craque, o olheiro não sabe e o técnico da escolinha não sabe. É impossível saber. Ser craque significa a pessoa ter um conjunto de características. Se uma delas falha, não temos mais o craque.
            O talento é importante, mas não é a única característica. É necessário, por exemplo, ter uma rápida capacidade de recuperação. Candidatos a craque, como Pedrinho, ex-Vasco e Palmeiras, não se desenvolvem, pois se contundem com frequência e têm recuperação muito lenta. Simplesmente não conseguem desenvolver o potencial, pois estão o tempo todo de molho.  Ou seja, em uma escolinha de um clube de futebol há vários candidatos a Neymar que não vingam. E simplesmente não temos uma tecnologia que diga quem vingará e quem não vingará.
            O clube tem que investir em centenas de candidatos a Neymar para produzir um Neymar. Assim, quando acha um Neymar, tem que ser remunerado não somente pelo custo de formação do Neymar mas também pelo custo de formação da centena que não vingou.  Esse é o problema. A Lei do Passe, com todos os seus problemas, era uma forma de abordar essa questão. Precisamos encontrar um substituto para a Lei do Passe. Aparentemente a legislação atual não estimula suficientemente o esforço de formação.

* Formado em física e doutor em economia pela USP, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

domingo, 13 de abril de 2014

A economia politica torta dos companheiros, corrigida por Samuel Pessoa

Os companheiros precisam estudar mais economia, ou então, simplesmente olhar para o que acontece na realidade, ver os dados, e refletir, mas sem viseiras ideológicas, e sem preconceitos políticos (eu sei que para eles é difícil, pois estão acostumados a resolver tudo na base da confrontação entre o capital e o trabalho e na tal falta de vontade política).
Pois o economista Samuel Pessoa coloca um deles no seu devido lugar. Um dos mais respeitados aliás, o que não o impede de ser despreparado.
Samuel Pessoa restabelece a verdade dos fatos sem precisar chamá-lo de incompetente, o que de fato ele é.
Paulo Roberto de Almeida

André Singer e a carga tributária
Samuel Pessoa
 Folha de S.Paulo, 13/04/2014 

Na coluna do dia 5 neste jornal, meu colega André Singer, conhecido como um dos cientistas políticos mais originais de nossa academia, elencou quatro temas, entre tantos outros, que confrontarão o capital e o trabalho nas eleições deste ano.
Segundo André, os trabalhadores defenderão a política de valorização do salário mínimo, a manutenção dos critérios de elegibilidade aos diversos benefícios previdenciários, incluindo pensão por morte, criticarão a política do Banco Central de elevar os juros e, finalmente, lutarão por 10% do Orçamento da União para a saúde, 10% do PIB para educação e por aumentos dos investimentos em mobilidade urbana. Invertam-se todos os sinais das demandas acima e temos a agenda do capital.
Penso haver diversos reparos à coluna. Primeiro é que não parece haver no elenco de André o conflito entre capital e trabalho. Tradicionalmente o conflito ocorre no interior das empresas em que os dois grupos disputam parcela da renda gerada pela produção. Esse não é o caso em nenhum dos quatro exemplos mencionados por André.
O conflito que há nos exemplos de André ocorre entre os contribuintes e os grupos que se beneficiam das diversas políticas públicas. Como temos capital e trabalho nos dois lados do balcão —tanto trabalhadores e capitalistas pagam impostos como são beneficiários de políticas públicas específica—, tenho dificuldade de entender o recorte da coluna.
O segundo reparo aos exemplos refere-se à elevação dos juros. Parece-me que André adere a uma leitura de que a Selic sobe no Brasil porque há uma conspiração do mercado financeiro para elevar a renda dos bancos.
De fato, muitos pensam dessa forma. De sorte que a atual diretoria do Copom (Comitê de Política Monetária) do BC não tem em seus quadros nenhum diretor oriundo do setor financeiro. E, de fato, procedeu-se entre 2011 e 2012 a um forte processo de redução dos juros exatamente por se acreditar nessa leitura conspiratória da história.
Ocorre que a política deu errado, a inflação voltou com força e a Selic está subindo porque o IPCA, o índice da meta, está próximo do limite superior do intervalo de tolerância. Não há conspiração. Há somente inflação.
A insistência em uma política de tolerância com a inflação somente aumentaria seus custos e nos colocaria no caminho da Venezuela ou da Argentina.
O terceiro reparo é que muitos programas sociais apresentam injustiças tão flagrantes que é muito difícil imaginar que algum trabalhador os defenda. Por exemplo, considere um funcionário público que receba R$ 25 mil por mês e aos 70 anos casa-se com uma mulher de 30 anos. Ao morrer com 80 anos, deixa para a mulher, que terá 40 anos, pensão por morte integral e vitalícia de R$ 25 mil. Não importa se ela tem filhos para criar, se tem outro trabalho ou outro benefício.
Nenhum país da OCDE, o grupo das nações mais avançadas e de alguns emergentes importantes, apresenta critérios de elegibilidade ao benefício de pensão por morte como o brasileiro.
É por esse motivo que nós gastamos 3% do PIB com esse benefício e países como o Canadá, por exemplo, gastam menos de 1%. Se fôssemos iguais ao Canadá em termos da pensão por morte, seria possível dobrar o investimento público, com impactos nada triviais, na melhora da mobilidade urbana ou na expansão do saneamento. Não me parece que seja o capital que perde com os excessos das pensões por morte.
O quarto reparo é que o pacote total de bandeiras defendido por André, incluindo 10% do Orçamento da União para a saúde e 10% do PIB para a educação, significa elevar a carga tributária brasileira de 37% do PIB para algo próximo a 50% do PIB.
Para que a coluna de André não seja percebida como mais um exemplo de populismo inconsequente, seria oportuno que ele apontasse como um país no estágio de desenvolvimento do Brasil consegue tal arrecadação. Quais impostos deveriam ser criados e/ou quais alíquotas de impostos existentes teriam que ser majoradas para alcançarmos tal nível de carga tributária?
Sempre que embarcamos no discurso da "falta de vontade política" acabamos colhendo inflação. Não me parece que os trabalhadores são os ganhadores da aceleração inflacionária.

SAMUEL PESSÔA, formado em física e doutor em economia pela USP, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV. Escreve aos domingos nesta coluna.