Os companheiros precisam estudar mais economia, ou então, simplesmente olhar para o que acontece na realidade, ver os dados, e refletir, mas sem viseiras ideológicas, e sem preconceitos políticos (eu sei que para eles é difícil, pois estão acostumados a resolver tudo na base da confrontação entre o capital e o trabalho e na tal falta de vontade política).
Pois o economista Samuel Pessoa coloca um deles no seu devido lugar. Um dos mais respeitados aliás, o que não o impede de ser despreparado.
Samuel Pessoa restabelece a verdade dos fatos sem precisar chamá-lo de incompetente, o que de fato ele é.
Paulo Roberto de Almeida
André Singer e a carga tributária
Samuel Pessoa
Folha de S.Paulo, 13/04/2014
Na coluna do dia 5 neste jornal, meu colega André
Singer, conhecido como um dos cientistas políticos mais originais de nossa
academia, elencou quatro temas, entre tantos outros, que confrontarão o capital
e o trabalho nas eleições deste ano.
Segundo André, os trabalhadores defenderão a
política de valorização do salário mínimo, a manutenção dos critérios de
elegibilidade aos diversos benefícios previdenciários, incluindo pensão por
morte, criticarão a política do Banco Central de elevar os juros e, finalmente,
lutarão por 10% do Orçamento da União para a saúde, 10% do PIB para educação e
por aumentos dos investimentos em mobilidade urbana. Invertam-se todos os
sinais das demandas acima e temos a agenda do capital.
Penso haver diversos reparos à coluna. Primeiro é
que não parece haver no elenco de André o conflito entre capital e trabalho.
Tradicionalmente o conflito ocorre no interior das empresas em que os dois
grupos disputam parcela da renda gerada pela produção. Esse não é o caso em
nenhum dos quatro exemplos mencionados por André.
O conflito que há nos exemplos de André ocorre
entre os contribuintes e os grupos que se beneficiam das diversas políticas
públicas. Como temos capital e trabalho nos dois lados do balcão —tanto
trabalhadores e capitalistas pagam impostos como são beneficiários de políticas
públicas específica—, tenho dificuldade de entender o recorte da coluna.
O segundo reparo aos exemplos refere-se à elevação
dos juros. Parece-me que André adere a uma leitura de que a Selic sobe no
Brasil porque há uma conspiração do mercado financeiro para elevar a renda dos
bancos.
De fato, muitos pensam dessa forma. De sorte que a
atual diretoria do Copom (Comitê de Política Monetária) do BC não tem em seus
quadros nenhum diretor oriundo do setor financeiro. E, de fato, procedeu-se
entre 2011 e 2012 a um forte processo de redução dos juros exatamente por se
acreditar nessa leitura conspiratória da história.
Ocorre que a política deu errado, a inflação voltou
com força e a Selic está subindo porque o IPCA, o índice da meta, está próximo
do limite superior do intervalo de tolerância. Não há conspiração. Há somente
inflação.
A insistência em uma política de tolerância com a
inflação somente aumentaria seus custos e nos colocaria no caminho da Venezuela
ou da Argentina.
O terceiro reparo é que muitos programas sociais
apresentam injustiças tão flagrantes que é muito difícil imaginar que algum
trabalhador os defenda. Por exemplo, considere um funcionário público que
receba R$ 25 mil por mês e aos 70 anos casa-se com uma mulher de 30 anos. Ao
morrer com 80 anos, deixa para a mulher, que terá 40 anos, pensão por morte
integral e vitalícia de R$ 25 mil. Não importa se ela tem filhos para criar, se
tem outro trabalho ou outro benefício.
Nenhum país da OCDE, o grupo das nações mais
avançadas e de alguns emergentes importantes, apresenta critérios de
elegibilidade ao benefício de pensão por morte como o brasileiro.
É por esse motivo que nós gastamos 3% do PIB com
esse benefício e países como o Canadá, por exemplo, gastam menos de 1%. Se
fôssemos iguais ao Canadá em termos da pensão por morte, seria possível dobrar
o investimento público, com impactos nada triviais, na melhora da mobilidade
urbana ou na expansão do saneamento. Não me parece que seja o capital que perde
com os excessos das pensões por morte.
O quarto reparo é que o pacote total de bandeiras
defendido por André, incluindo 10% do Orçamento da União para a saúde e 10% do
PIB para a educação, significa elevar a carga tributária brasileira de 37% do
PIB para algo próximo a 50% do PIB.
Para que a coluna de André não seja percebida como
mais um exemplo de populismo inconsequente, seria oportuno que ele apontasse
como um país no estágio de desenvolvimento do Brasil consegue tal arrecadação.
Quais impostos deveriam ser criados e/ou quais alíquotas de impostos existentes
teriam que ser majoradas para alcançarmos tal nível de carga tributária?
Sempre que embarcamos no discurso da "falta de
vontade política" acabamos colhendo inflação. Não me parece que os
trabalhadores são os ganhadores da aceleração inflacionária.
SAMUEL PESSÔA, formado em física e doutor em
economia pela USP, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.
Escreve aos domingos nesta coluna.