Tratado Geral da
Máfia
treze rápidos registros
sobre um fenômeno persistente
Paulo Roberto de Almeida
1. A Máfia é uma associação entre iguais, sendo
que alguns desses iguais são mais iguais que os demais.
2. Os mais iguais da Máfia são inimputáveis e,
nessa condição, não reconhecem leis ou regras de não membros, ou de quaisquer outras
origens, que pretendam torná-los imputáveis, o que retiraria, na visão deles, o
prefixo deste último conceito. Os mais iguais ficam particularmente irritáveis com
as limitações legais que os comuns tentam implementar e que possam contrariar
os objetivos gerais da Máfia.
3. A Máfia é uma associação voltada exclusivamente
para o seu interesse próprio. O interesse próprio da Máfia e dos mafiosos é o poder,
de preferência absoluto, sua conquista e sua manutenção. Eventualmente, eles
contam com aliados subordinados, contra quaisquer outras forças ou fatores que possam
resistir aos seus objetivos.
4. A defesa do interesse próprio da Máfia é o
dever principal e primordial dos iguais e dos mais iguais, sobre quaisquer
outros objetivos gerais ou particulares de todos e cada um. Os mais iguais é
que dispõem sobre o interesse da Máfia; os demais têm o direito e o dever de
segui-los, mais o segundo do que o primeiro.
5. O objetivo geral da Máfia prima sobre os
interesses individuais dos mafiosos, que, em nome da obediência estrita a esse objetivo
primordial, a ele sacrificarão seus interesses pessoais em favor desse objetivo
geral. Tal código de disciplina não é exclusivo da Máfia, sendo comum a
determinadas associações corporativas, mas é nela implementado de maneira
particularmente eficaz (por vezes hedionda, mas não destinada a ser do
conhecimento de almas sensíveis ou de menores de idade).
6. Em contrapartida à fidelidade absoluta e obediência
cega às suas principais regras, os membros da Máfia dela recebem total
solidariedade, em quaisquer circunstâncias, mesmo quando temporariamente
ausentes – geralmente contra a sua vontade – das atividades concebidas e implementadas
em favor do objetivo geral da corporação.
7. Os mais iguais constituem uma família
original ou forjam laços similares aos de uma família, havendo solidariedade
implícita entre os seus membros, que respondem pelo comportamento de qualquer
um dos demais integrantes da família. Os menos iguais terão de ter seu estatuto
aprovado por alguma família, antes de poderem ser reconhecidos como membros não
originais da família maior, mas a ela deverão solidariedade e obediência, como igualmente
exigido de qualquer membro original. Uma vez consolidado esse vínculo, ele se
torna indelével e indestrutível.
8. Como em outras corporações da espécie, os
membros da Máfia devem observar as normas de silêncio obsequioso e de estrito
cumprimento às ordens dos mais iguais, observadas as regras de disciplina e de
hierarquia que costumam imperar nesses meios. A não observância dessas regras pode
submeter o inadimplente às sanções habituais em vigor na Máfia, eventualmente
de forma definitiva.
9. A Máfia não professa qualquer religião que
não a sua própria, que é estritamente confessional e baseada nas regras gerais
e nos princípios da Máfia. Os mais iguais são os altos sacerdotes dessa
religião laica, que não possui textos sagrados nem ritos particulares, apenas
aqueles que são fixados aleatoriamente pelos mais iguais. A Máfia só deve
obediência a um deus: o seu próprio interesse totalitário de manter, ampliar,
preservar e eternizar o seu poder. Esse deus é particularmente vingativo.
10. A Máfia tampouco adere a um culto humano
qualquer, a não ser ao da seleção determinista dos mais iguais, que devem ser
preservados a despeito de quaisquer acidentes naturais e contra quaisquer
imponderáveis da fortuna e da sorte. Os demais iguais, como formigas ou abelhas
da comunidade, estão ali para preservar o poder dos mais iguais, e assegurar
que a espécie tenha continuidade e expansão.
11. A Máfia não se vincula a qualquer ideologia
política, a não ser a do seu interesse próprio, que pode conviver com diversas
orientações no campo dos regimes políticos e dos sistemas econômicos. Numa
analogia superficial, a Máfia se coaduna bem mais com regimes corporativos,
fascistas, autoritários, ou mesmo totalitários, e menos com sistemas abertos e
transparentes. A Máfia e os mais iguais não pretendem prestar contas de suas
atividades e iniciativas a qualquer autoridade que não a dela.
12. Os membros da Máfia têm o dever de
contribuir para o fortalecimento, sobretudo financeiro, da corporação, que
assume várias formas associativas e identidades. Se algum membro da Máfia
enfrentar dificuldades no mundo dos comuns, a corporação lhe presta total solidariedade
em quaisquer circunstâncias, determinação ainda mais enfática no caso dos mais
iguais, que podem contar com todos os recursos da Máfia. A contrapartida, seguida
invariavelmente por todos os membros, é o silêncio e a proteção dos interesses
da corporação, de seus negócios e de suas atividades.
13. A Máfia sempre tem razão, e essa razão é exclusivamente
aquela expressa pelos mais iguais. Eventuais opiniões em contrário devem ser confrontadas,
e seus emissores devem ser convencidos de que a verdade da Máfia é sempre a
melhor, independentemente de quaisquer fatos contrários ou provas
circunstanciais. Na ausência de convencimento, ou de reconhecimento explícito, a
corporação e seus membros têm o dever de corrigir os recalcitrantes e os obstrutores
da verdade da Máfia. Perdas colaterais, por vezes até internas, são admitidas
nesse processo, que é estritamente controlado pelos mais iguais. A decisão última
sobre a verdade da Máfia pertence aos mais iguais, mas, em última instância,
quem decide sobre a melhor verdade é o mais igual dentre os mais iguais.
Pela exegese da organização:
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 2542: 7 de Dezembro de 2013