- O sr. busca separar o impacto da Minustah sobre as Força Armadas e para o conceito de operações de paz. Qual sua avaliação?
- A operação era uma novidade na ONU, e demandou um forte aspecto de adaptabilidade. Havia a necessidade de empregar técnicas táticas, e havia uma correlação entre os componentes civil e militar da missão, um quadro bastante complexo de atores. O contingente militar era muito grande [passou de 12 mil, encerrou com quase 5.000 soldados, um quinto deles do Brasil] e navegou em águas não muito claras, se a missão era de manutenção de paz ou de construção da paz. Ao fim, ele obrigou a ONU a repensar suas operações. A Minustah se tornou uma grande escola para as Nações Unidas compreenderem a realidade em ambiente nos quais as forças oponentes não são muito claras. O Brasil teve papel bastante relevante nisso. Foi uma experiência, não direi nem positiva, nem negativa.
- É importante lembrar que antes da Minustah já havia doutrina para isso. A Constituição de 1988 deixa claro que parte do treinamento das Forças Armadas era para garantia da lei e da ordem. O grande ganho para elas foi a exposição a outras doutrinas e práticas. Ela não era uma operação brasileira, apesar de que o componente militar maior sempre foi o brasileiro e o comandante era um general daqui. Outro grande ganho que não é lembrado foi o aprendizado de operação entre agências. Isso é mais importante do que os ganhos táticos no Haiti. A Minustah não foi um laboratório para operar nas favelas. Foi uma feliz coincidência haver a necessidade de operações no Brasil, mas aqui era outro contexto. Era muito diferente do que ocorria no Rio, do ponto de vista tático e político.
- A Minustah era multinacional com mandato da ONU, com regras de engajamento escritas. Ela era muito mais ampla. As GLOs são requisitadas por governos de Estado para segurança pública. Aqui, o emprego de tropas precisava de um claro amparo legal para evitar violações, um arcabouço.
- Isso é curioso, sempre se diz que outros países limpam a sujeira das grandes potências. Os EUA usualmente não mandam tropas.
A aprovação pelo Conselho de Segurança, em particular pelos cinco membros com poder de veto, mostra que isso transcende a ingerência americana. E o Brasil teve pela primeira vez uma atitude ativa, não apenas reativa.
- Ela foi longa demais, e parte disso se deveu ao terremoto de 2010. Em certo momento, ela diluiu-se em seus objetivos. No Timor-Leste, a ONU tutelou a criação do Estado por dois anos. No caso do Haiti, ela ficou como uma missão de estabilização que durou 13 anos. Nesse período todo, muito do que seria necessário para uma transição para uma democracia não aconteceu. Hoje nós vemos os conflitos retornarem às ruas de Porto Príncipe, e temos lá a Missão de Transição. Aqui, é importante dizer que não se tratava apenas de uma questão do componente militar, mas ela virou um para-Estado dentro do Haiti. Quando ele saiu, o Haiti se viu novamente sem estabilização.
- Sim. Ramos-Horta esteve aqui no King´s College semana retrasada e deixou isso claro. A primazia sempre deve ser do aspecto político. Não será um robusto componente militar que vai conseguir fazer o país ser bem-sucedido. Ficou clara também a questão da proteção de civis. A página mais sinistra da Minustah foi a introdução do cólera na ilha por meio das tropas [no caso, provavelmente de soldados nepaleses; doença matou mais de 10 mil pessoas].
- Foi o maior desastre humano da ONU. Apenas Floriano, que era o comandante militar, sobreviveu na cúpula da missão. Em 2009, a estabilização já estava em nível muito desejável, com Judiciário e modelos de eleição funcionando. As maiores gangues estavam neutralizadas. Aí veio o terremoto, que danifica completamente qualquer estrutura de Estado, além de ser uma catástrofe. O influxo de auxílio humanitário causou um desafio logístico incrível. Afeta a moral de todos.
- Sim, mas é bom lembrar que nos primeiros dias depois do terremoto quem mandava era Floriano. Ele manejou de maneira exímia a cooperação militar americana, a ponto de que os soldados dos EUA não andavam armados. Os brasileiros responderam rapidamente com a instalação de um segundo batalhão, com muitos voluntários que já conheciam a realidade local. A resposta imediata foi muito boa, mas a missão teve de ser reconfigurada, o que causou a falta de orientação a seguir. Ela ficou sem direção.
- Ele precisa ter claras orientações. Ele não pode fazer como bem entender. Assim, não dá para responsabilizar os comandantes militares pelo que aconteceu depois. Eu acho que deveriam ter aumentado o componente policial após o terremoto, que pudesse fazer a Polícia Nacional Haitiana ser efetiva.
Isso era um dos objetivos, e ficou muito abaixo do que deveria ter sido.
- A proporção de oficiais superiores e generais que serviram no Haiti é muito grande. Isso os forjou com capacidade de trabalho internacional e de compreensão de contexto políticos. Para ficar em dois ministros egressos de lá, Carlos Alberto dos Santos Cruz implementou a brigada de intervenção da ONU depois no Congo. Floriano Peixoto participou do painel de operações de paz. Obviamente isso os coloca em destaque dentro do Brasil, até porque a decisão política que recai sobre o comandante de força numa missão é relevante. É interessante essa experiência, e espero que sigam úteis. O mesmo vale para o envio de um general brasileiro para o Comando Sul dos Estados Unidos.
- Tem de ser uma decisão ativa, não reativa. Que a gente tenha a capacidade de fazer proposições. A escolha não pode ser conveniente. Tem de haver mais civis nas operações de paz também.
- Acho que não. Isso começa em 1988, quando a Constituição reajusta o papel que o Exército vai ocupar. Nas Forças Armadas em geral, e no Exército em particular, surgem programas de modernização tanto tecnológicos quanto doutrinários. Com isso, há um Exército mais moderno, grande atividade de circulação de militares em escolas no exterior, há um intercâmbio muito maior. Isso marcou toda uma geração, que sabe ser necessário entender sobre geopolítica, falar línguas. O Haiti é uma consequência disso, não a causa. Isso se aplica à Marinha, que desde 2011 comanda a força naval da Unifil (Líbano), a única do tipo da ONU hoje.
- Temos três meses de governo, e surgiram situações que demandaram diplomacia de defesa muito grande, como é o caso da Venezuela. O que me parece é que as Forças Armadas e o próprio vice-presidente [general Hamilton Mourão, que assumiu negociações na reunião do Grupo de Lima sobre a crise venezuelana na semana retrasada] têm deixado clara a implicação de decisões diplomáticas na área de defesa. Espero que as tomadas de decisões de uma grande estratégia nacional não sejam apenas dos ministros ou do vice, mas por parte de uma confluência de atores. Não pode ser decisão de um ou outro, para não haver equívocos.