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quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

O processo da África do Sul contra Israel perante a Corte Internacional de Justiça - Lucas Carlos Lima (Conjur)

 O processo da África do Sul contra Israel perante a Corte Internacional de Justiça

Conjur, 1/01/2024

https://www.conjur.com.br/2024-jan-01/o-processo-da-africa-do-sul-contra-israel-perante-a-corte-internacional-de-justica/

Lucas Carlos Lima é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cortes e Tribunais Internacionais UFMG/CNPq e co-organizador da obra A Jurisprudência da Corte Internacional de Justiça.


No dia 29 de dezembro de 2023 a República da África do Sul acionou a Corte Internacional de Justiça  trazendo o Estado de Israel à barra da Haia por alegações de violações à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948 (doravante “Convenção contra Genocídio” ou “convenção”). Em suma, a África do Sul inicia um procedimento judicial para (a) verificar as ações cometidas por Israel em Gaza configuram violações à distintas obrigações presentes na convenção e; (b) obter uma decisão em procedimento cautelar e suspender imediatamente as ações militares de Israel em Gaza e contra Gaza.

Sabendo que os processos perante a Corte da Haia podem levar anos, um pedido durante o decorrer do conflito tem também como intuito a obtenção de uma ordem cautelar para influenciar os acontecimentos presentes. Essa parece ser inclusive uma tendência dos últimos anos em matéria de direitos humanos, como recentemente observou na UFMG a professora Serena Forlati, da Universidade de Ferrara. Nesse sentido, é possível verificar que a corte foi acionada recentemente em dois casos envolvendo a mesma convenção: no caso Ucrânia v. Rússia e no caso Gâmbia v. Myanmar. Em ambos os casos a Corte Internacional emitiu ordens cautelares demandando específicas ações dos Estados requeridos para proteger os direitos presentes na convenção.

O presente ensaio analisa tecnicamente o processo movido pela África do Sul perante a Corte da Haia à luz das regras internacionais existentes e da jurisprudência da corte sobre a matéria com a finalidade de esclarecer o significado dessa ação judicial para o conflito. Num primeiro momento (1) foca-se nas alegações da África do Sul, esmerilhando assim sua petição inicial. Em seguida, revisita-se a jurisprudência da corte em matéria de genocídio e medidas cautelares (2) buscando similaridades com a presente demanda. Por fim, conjectura-se os potenciais caminhos que a corte pode tomar envolvendo o caso.

 1. As alegações da África do Sul e os requisitos procedimentais da corte
Em sua petição inicial (application), a África do Sul argumenta que Israel estaria violando a Convenção contra Genocídio, entre outras alegações, por não agir para impedir a realização de um genocídio, por conspirar para a realização de um genocídio e por impedir a investigação e a punição de um genocídio, nos termos dos artigos I, II, III, IV, V e VI da convenção [1]. Segundo o documento sul-africano, “os atos e omissões de Israel denunciados pela África do Sul são de caráter genocida porque têm a intenção de destruir uma parte substancial do grupo nacional, racial e étnico palestino, que é a parcela do grupo palestino situado na Faixa de Gaza”. Dentre as diferentes fontes que mobiliza para fundamentar seus argumentos, a África do Sul utiliza declarações de diferentes países e chefes de Estado (inclusive do Brasil) para configurar o genocídio. Contudo, na hipótese do caso proceder, cada ato precisará ser analisado isoladamente nos termos da Convenção de Genocídio para verificar uma violação, demandando um alto ônus probatório de ambas as partes.

Alguém poderá se questionar: por que a África do Sul moveu o processo e qual sua legitimidade processual para fazê-lo? Não seria mais óbvio um processo movido pelo Estado da Palestina contra Israel em que ambas as portes poderiam trocar as recíprocas acusações?

Embora esta última possibilidade exista, as obrigações jurídicas presentes na Convenção contra o Genocídio são obrigações de uma natureza única no direito internacional, qual seja, obrigações de caráter erga omnes partes. Em outras palavras, são obrigações devidas a todas as outras partes da convenção e cujos interesses jurídicos são de todos os membros da convenção em salvaguardar. Como a própria corte observou em 2022: são obrigações “no sentido de que cada Estado Parte [da Convenção] tem interesse em cumpri-las em qualquer caso” de modo que isso “implica que qualquer Estado Parte [da Convenção], sem distinção, tem o direito de invocar a responsabilidade de outro Estado parte por uma suposta violação de suas obrigações erga omnes partes” [2]. Desse modo, verificadas supostas violações à convenção, qualquer Estado que é parte na convenção — inclusive o Brasil — teria legitimidade para acionar um outro Estado, ou ainda, vir a intervir no procedimento por dela ser parte e ter interesses em sua interpretação.

O pedido da África do Sul não visa apenas a discussão das obrigações da convenção, mas requer também, a título de medidas cautelares, que uma série de atos sejam realizados por parte de Israel. Dentre eles, estão (1) que Israel suspenda suas atividades militares em Gaza; (2) que Israel garante que qualquer ação militar ou grupos militares irregulares cessem suas atividades; (3) que todas as medidas à disposição do Estado de Israel para prevenir um genocídio sejam tomadas. Ou seja, há uma clara intenção por parte da África do Sul em encerrar a ofensiva israelense com o objetivo que não danificar os direitos protegidos na convenção, confirmando portanto a dupla intenção da ação.

2. A jurisprudência da Corte Internacional em matéria de genocídio e medidas cautelares
Em virtude do Artigo IX da Convenção contra Genocídio, a Corte Internacional de Justiça é o órgão judicial responsável por dirimir controvérsias envolvendo sua aplicação e interpretação da convenção. A corte já emitiu uma importante opinião consultiva detalhando a importância da convenção e fez diversas pronúncias sobre a natureza das obrigações nela presentes. Ademais, dois casos contenciosos já chegaram à fase de mérito e obtiveram decisões finais: o caso Bósnia v. Sérvia, no qual a corte entendeu que a Sérvia falhou na prevenção do genocídio conduzido por milícias em seu território; e o caso Croácia v. Sérvia, no qual a Corte entendeu que um genocídio não ocorreu, apesar do importante voto dissidente do juiz e professor Antônio Augusto Cançado Trindade.

As lições de casos anteriores demonstram que não se pode perder de vista que os tempos da justiça internacional são tão morosos quanto o da justiça interna e um caso como este pode levar até mesmo a uma divisão no interior da corte (composta por 15 juízes de diferentes nacionalidades, origens e percepções do direito internacional). A petição sul-africana é o início de um longo processo. Nos dois casos em que terminou de julgar alegações da violação da convenção, a Corte Internacional de Justiça levou mais de dez anos para emitir uma decisão final, com diversos incidentes processuais no decorrer do processo.

Isto porque a configuração de jurídico ocorre quando um padrão probatório particularmente alto é atingido. Além de cometer atos de violência específicos contra um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, o genocídio enquanto figura jurídica exige uma vontade especial de eliminação, total ou parcial, do grupo em questão, nos termos do Artigo II da convenção. Como a própria corte já estabeleceu no passado, a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal “é a característica essencial do genocídio, que o distingue de outros crimes graves. Ele é considerado um dolus specialis, ou seja, uma intenção específica, que, que, para que o genocídio seja estabelecido, deve estar presente além da intenção exigida para cada um dos atos individuais envolvido”.

No último caso em que a corte julgou, envolvendo a Croácia v. Sérvia de 2015, a Corte Internacional foi particularmente exigente no momento de verificar o dolo especial. Por consequência, concluiu que a Croácia havia falhado na demonstração e prova do dolo especial, apesar dos atos cometidos estarem previstos na convenção, faltava o elemento volitivo de destruição do grupo, que não poderia ser meramente inferido dos atos. No caso Gâmbia v. Myanmar, ainda sem julgamento perante a corte, parece contribuir para o caso o fato de que existe relatórios de uma missão especial de fact-finding do Conselho de Direitos Humanos da ONU que já atestou o intento genocida pode ser particularmente relevante.

Contudo, a estratégia sul-africana parece estar em linha com outros processos recentes perante a corte em que a convenção foi invocada que buscaram uma ordem provisória para a cessação das violações da convenção em caráter de urgência. Nesses casos, como a Corte precisa apenas satisfazer que ela teria jurisdição prima facie, que existiria um risco de dano, urgência e que os direitos violados são plausíveis, a Corte Internacional poderia emitir uma ordem com requisitos processuais menos rigorosos que a prova de um genocídio no escopo de ordenar qualquer abstenções de ações que poderiam configurar violações da Convenção contra o Genocídio. Nesse sentido, precedente relevante parece ser também o caso da Ucrânia v. Rússia, cuja medida provisória foca menos na necessidade de intento genocida, mas sim no risco de violação aos direitos protegidos na convenção [3].

3. O que esperar do processo perante a Corte Internacional de Justiça?
Pode-se ler a ação sul-africana também como uma tentativa de uma rápida obtenção por parte da Corte da Haia de uma ordem de cessação de atos beligerantes por parte de Israel. Essa medida judicial poderia servir para exercer maior pressão internacional, também jurídica, para uma cessação das hostilidades, inclusive levando as partes para a mesa de negociação.

Obviamente são muitos requisitos processuais que precisam ser preenchidos e a urgência do caso levará à Haia nas próximas semanas uma série de argumentos jurídicos complexos na tentativa de conduzir o pedido sul-africano ao êxito.

Caso a corte verifique que tenha jurisdição sobre a controvérsia (algo que nem sempre é óbvio na jurisprudência da corte), iniciar-se-á um longo processo de discussão da existência ou não de um genocídio e de outras violações da convenção.

O procedimento na corte pode tomar uma série de caminhos e tentar prever com precisão o comportamento judicial em casos de alta complexidade nem sempre torna-se um exercício frutífero. Contudo, dada a jurisprudência recente de matéria, algumas questões emergem e outras situações podem ser conjecturadas.

Uma primeira questão que surge envolve a participação ou não de Israel nos procedimentos, que tende a fazer toda a diferença em matéria de defesas e justificativas. Israel teria ocasião de apresentar suas defesas processuais e substanciais, como, por exemplo, contestar a própria jurisdição da corte e contestar a existência de uma “controvérsia” entre África do Sul e Israel envolvendo a convenção. Outra questão mais complexa, envolve os limites da legítima defesa no direito internacional, que também poderia surgir.

Uma segunda questão procedimental seria se no presente caso também se verificará a tendência de intervenção de terceiros Estados, como aconteceu nos casos da Rússia e de Myanmar. Não é claro quais são os Estados que terão a vontade de participar processualmente no debate. Embora possa-se imaginar pelo menos uma participação da Palestina nos procedimentos, será interessante verificar quais Estados efetivamente irão participar do procedimento e quais serão os argumentos invocados, tanto no sentido de alegar a existência de violações quanto de manter o alto standard probatório para configuração de genocídio.

Ao mesmo tempo que a gravidade da situação em Gaza conclama ações internacionais, o devido processo legal deve ser respeitado em virtude da gravidade das acusações realizadas. Como mencionado, na jurisprudência da Corte Internacional um Estado jamais foi efetivamente condenado por conduzir ativamente um genocídio.

A corte é guiada pelo princípio do contraditório e pode-se supor que uma instituição judicial, norteada pela imparcialidade e independência pretorianas, não deseja ser percebida como dotada de predições. Isso significa que a participação de Israel e a oitiva de seus argumentos constitui um ponto fundamental para o processo diante da corte. Talvez possa-se esperar da corte algo similar aos casos anteriores: uma ordem em medida cautelar, ou seja, temporária enquanto durar o processo e buscando salvaguardar os direitos pendente lite, ordenando a abstenção de atos que possam lesionar os direitos protegidos na Convenção contra o Genocídio.

Embora existam críticas à mobilização da Corte Internacional meramente com finalidades cautelares em casos envolvendo violações de direitos humanos, esta tendência para se consolidar na jurisprudência da Haia — e o caso da África no Sul não parece ser exceção. Ademais, é importante a existência de um órgão judicial que possa decidir ou não sobre a existência de um genocídio, evitando a apropriação da expressão por discursos políticos. Se de algum modo contribuir para evitar o agravamento de conflitos e que os direitos das partes sejam preservados, a Corte Internacional de Justiça estará exercendo seu importante papel como principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas e, portanto, da própria proteção de direitos reconhecidos pela comunidade internacional.

 


[1] Sobre a Convenção contra o Genocídio existe ampla literatura a respeito. Nesse sentido ver o recente TAMS, Christian; BERSTER, Lars; SCHIFFBAUER, Bjorn. The Genocide Convention: Article-by-Article Commentary. Bloomsbury Publishing, 2023; GAETA, Paola. The UN Genocide Convention: A Commentary. Oxford University Press, 2009. Ver também CANEDO, Carlos. O Genocídio como Crime Internacional. Del Rey, 1999.

[2] Sobre o tema, ver ROCHA, A. L. O. A Legitimidade processual perante a Corte Internacional de Justiça: o caso do genocídio Rohingya e os efeitos processuais das obrigações erga omnes partes. In: LIMA, L. C. (Org.); ROCHA, A. L. O. (Org.). Cadernos de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2023. v. 2. pp. 71-118.

[3] Sobre essa decisão ver LIMA, Lucas Carlos. As medidas cautelares da Corte Internacional de Justiça no caso entre Ucrânia e Federação Russa. Revista de Direito Internacional, Vol. 19, 2022, pp.32-38.

    terça-feira, 12 de dezembro de 2023

    A obra de Tobias Barreto - Fábio Lucas de Albuquerque Lima (Conjur)

     

    OPINIÃO

    Dia dos Direitos Humanos: três razões para conhecer mais a obra de Tobias Barreto

    Conjur, 11 de dezembro de 2023, 7h06

    Editorias:  

    Por ocasião do dia 10 de dezembro, celebramos o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

    Para comemorar a importância desta data, descortinamos um texto inédito de Tobias Barreto, escondido num periódico da Província de Sergipe D’El Rey  para revelar um tesouro que já indicava o tamanho que aquele menino iria ter quando atingisse a maturidade intelectual.

    Reprodução

    Imagem de Tobias Barreto

    Tobias Barreto de Menezes nasceu em 7 junho de 1839 na província de Sergipe, na então Vila de Campos do Rio Real. Após os primeiros estudos, tornou-se professor de latim desde tenha idade na cidade de Itabaiana. Após estudar o latim com dom Quirino, depois nomeado bispo de Goiás, logrou ser designado foi professor substituto desta cadeira em Lagarto, quando travou intenso contado na Província com Padre Pitangueira.

    Fundador da Escola de Direito do Recife
    Após sua formação inicial, passou um período pelo seminário em Salvador,  decidindo-se enfim por cursar Direito, para isso foi morar na província de Pernambuco. Na Faculdade de Direito do Recife se formou no ano de 1860. Alguns anos depois fundou um movimento cultural da maior relevância na cultura nacional: a Escola do Recife.

    A Escola do Recife, um movimento cultural capitaneado por Tobias Barreto, mas tendo também como um segundo baluarte Silvio Romero, foi responsável pela nova intuição do Direito no Brasil, que Miguel Reale denominou culturalismo jurídico.

    O movimento foi além do Direito, fincando fortes alicerces para a sociologia e a filosofia no Brasil.

    Se analisarmos os escritos de crítica social e política de Tobias Barreto, lá estão os germes de um grande sociólogo nacional, em que pese o próprio Tobias, rejeitasse a palavra no seu sentido semântico e gramatical, de uma ciência sociológica que dominasse, nos moldes do positivismo, todas as disciplinas e todo o conhecimento humano. E, contra isso, ele parafraseou o termo, chamando-a de pantosofia.

    Da Escola do Recife saíram pensadores, filósofos e juristas, como Clóvis Bevilacqua, Fausto Cardoso, Gumercindo Bessa, Graça Aranha, Martins Júnior, Arthur Orlando e muitos outros, que tiveram participação importante na literatura, na filosofia, mas principalmente no Direito, sendo que seus membros fundaram grande parte dos cursos jurídicos no Brasil.

    A defesa da igualdade das mulheres no Brasil império
    A segunda razão pela qual devemos procurar estudar e  conhecer Tobias Barreto é que ele foi um grande defensor da igualdade da mulher na sociedade rurícola do século 19 e principalmente pelo direito à educação ampla, inclusive a educação de nível superior para as mulheres no Brasil.

    Assim, Tobias Barreto, quando então deputado provincial pela Assembleia de Pernambuco, defendeu em plenário, por diversas ocasiões, o direito de uma senhora a cursar faculdade de medicina no exterior. Nesses embates, diversas vezes, Tobias Barreto teve que convencer os parlamentares com argumentos jurídicos pela igualdade da mulher, demonstrando um cabedal de conhecimento para além do direito, envolvendo a fisiologia e biologia, para que fosse deferido o pedido de bolsa de estudos para uma brasileira estudar Medicina no exterior.

    Anos depois, a senhora Josefa volta ao Brasil, formada em medicina nos Estados Unidos. Em um segundo momento, na Assembleia Provincial de Pernambuco, Tobias Barreto, como deputado, apresenta um projeto de lei que criaria uma instituição de ensino superior para as mulheres em Pernambuco.

    Infelizmente, Tobias não foi reeleito e o projeto, após a sua saída do parlamento, foi esquecido. Em um terceiro momento, por ocasião do seu concurso para a Faculdade de Direito do Recife em 1882, Tobias Barreto apresenta, durante as suas teses, o direito à igualdade da mulher perante o marido. Essa sua tese foi posteriormente incorporada no Código Civil de 1916, cujo relator foi seu aluno Clóvis Bevilacqua.

    A defesa da abolição da escravatura
    A terceira razão para conhecermos melhor, a fundo, não só o Tobias Barreto, grande escritor, autor de vários livros escritos no idioma alemão, mas o Tobias Barreto como defensor do fim da escravidão. Embora não seja tão estudada a sua atuação, Tobias teve um papel importante na defesa da abolição da escravatura no Brasil, porquanto, em Pernambuco, foi orador da sociedade abolicionista.

    Somente essas três razões seriam suficientes pelo interesse e pela leitura do primeiro escrito inédito de Tobias Barreto, publicado em 1856, quando Tobias havia completado apenas 17 anos de idade. Ali estão todos os germens de uma inteligência aguda, vasta, universal, de um cientista político de escola.

    O artigo, datado de 3 de julho de 1856, mas publicado no Correio Sergipense, nº 40, de 2 de agosto de 1856, pp.3-4, parece ser uma resposta a artigo escrito pelo seu mentor Pe. Pitangueira por ocasião do 2 de julho. Tive acesso ao artigo, sob indicação de meu pai, o historiador Jackson da Silva Lima, e pude compulsar na Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Assim o digitalizamos e ofertamos ao conhecimento dos leitores desta ConJur.

    Este achado precioso lança luz sobre os primeiros passos de um pensador cujo impacto transcende gerações, revelando um talento precoce e o embrião de ideias que moldariam o panorama intelectual brasileiro.

    Tobias Barreto com seus meros 17 anos escreve como um cientista político humanista, de maneira que esse texto podia ser objeto de uma pesquisa para o enriquecimento, por exemplo, de uma tese de doutorado.

    Entretanto, pela sua importância histórica e por estarmos hoje no Dia Internacional dos Direitos Humanos, trazemos digitado esse texto inédito de Tobias Barreto, encontrado em um periódico da província do nosso pequenino Sergipe Del Rey:

    “Comunicado
    Entre os muitos predicados que formam a inteira felicidade de um povo, e exornam o Estado, sobressai a liberdade, atributo sublime, que nos conduz à sabedoria, à prosperidade e à glória. Ele deve emanar das mãos do Governo e ser acolhida nos braços do povo, porque ambos carecem dela, ambos vivem sob seu auxílio; o Governo para promover o bem daquele, o povo para abraçar o pensamento deste; para segui-lo, para fundamentar sua grandeza, para eleva-lo, e enfim eterniza-lo, como infalível apoio da — liberdade. — A liberdade do povo está posta nas mãos do Governo, e depende de sua sabedoria e complacência; a do Governo está colocada na dedicação e união do povo. Ela deve ser um dos adornos do Trono -, para haver a segurança deste, a glória da Nação e o progresso do País. Quando as coisas se reúnem de modo que o Governo e o povo mutuamente auxiliam-se para torna-la estável e respeitada, eis o a que chamamos garantida a liberdade. Quando um só fito está posto aos olhos deles, quando ambos pensam naquilo, que possa tender à felicidade de ambos, quando todos seguem um caminho reto, eis a ordem mantida, que é indubitavelmente um fruto da liberdade, a qual chegando àquele auge que merece, torna-se um todo composto de partes conducentes à maior prosperidade. Quando entre os Juízes e Magistrados se olham com indiferença as pessoas, mas com deferência os trâmites da lei, quando se obedece, como se deve, no fiel da consciência, quando se seguem suas claras veredas, eis a justiça administrada com igualdade, com que nada há de recear sobre a conservação de nossos direitos civis e políticos; tudo é seguro, e estável.

    A razão humana é qual uma lente poliedra, com que observam e distinguem-se os mais pequenos objetos; no princípio suas facetas estão obscurecidas pelas trevas da ignorância; o estado das letras porém vem sacudir-lhe esse pó que a entenebrece, vem esmalta-la de diversas cores, e com o clarão de sua luz torna mais espaçoso e visível o trilho verdadeiro, por onde se deve seguir no momentâneo decurso da transitória vida deste mundo, e assim é a razão o gérmen de toda ação humana. Mas assim como ela tem produções belas e importantes, que nos levam ao bem, e dão-nos uma vida alegre, assim também é muito natural que a fragilidade, de que somos suscetíveis, como que apagando-nos a luz do entendimento, dá-nos às vezes tal digressão, que incorremos em erros indesculpáveis e prejudiciais, que nos ocasionam males. Se nós tentamos exprimir nossos pensamentos na imprensa, assim o fazemos ora bem, ora mal; se pegamos na pena para escrevermos uma qualquer coisa, umas vezes apresentamos ideias agradáveis e de algum proveito; outras, como que conservados em profundo letargo, saímo-nos com pensamentos insulsos e desagradáveis. Ora a que se podem atribuir estes tresvarios de razão? Certamente a nossa frugalidade: logo tudo é digno de desculpa, quando porém não se vai de encontro aos preceitos da lei. Assim pois quando entre um povo há uma condescendência recíproca a certos desvarios, filhos da fraqueza, que não sejam todavia opostos à boa regularidade das coisas, eis a tolerância para as ideias, que muito contribui para a civilização.

    Assim definida, como é possível às nossas diminutas forças, os princípios hoje adotados no País, teremos de concluir que eles produzirão efeitos de felicidade, progresso e glória. A liberdade garantida eleva o País; a ordem mantida conserva-o em seu estado de grandeza; a justiça administrada com igualdade torna mais profundos e impenetráveis os alicerces, em que se firmam, as colunas de sua prosperidade; a tolerância para as ideias civiliza-o e cientifica-o a ponto de imitar a nações mais cultas do Orbe.

    Campos, 3 de julho de 1856
    (In Correio Sergipense, nº 40, de 2 de agosto de 1856, pp.3-4)”

    A importância da descoberta do texto por Jackson da Silva Lima reside no caráter histórico, mas é bastante simbólico para um rapaz de apenas 17 anos. As categorias discutidas nele estariam encaixadas no que se considera a primeira categoria dos direitos humanos, que seriam os direitos políticos e civis dos cidadãos.

    O texto fala por si só para um jovem de 17 anos, que seria um dos maiores representantes da intelectualidade brasileira no século 19, e é trazido em primeira mão para os pesquisadores brasileiros aqui nesta ConJur.

    domingo, 3 de dezembro de 2023

    Arnaldo Godoy examina a obra de Alberto da Costa e Silva sobre a Africa e a escravidão brasileira

     

    EMBARGOS CULTURAIS

    A manilha e o libambo, de Alberto da Costa e Silva

    Conjur, 3 de dezembro de 2023, 10h28

    Editorias:  Sem categoria

    Os títulos que os autores dão a seus livros compõem um universo fascinante para pesquisas interessantes. Há aspectos formais. Há dilemas psicanalíticos. Há razões mercadológicas. Há jogos de palavras. Há pistas (inclusive falsas), e há também uma chave interpretativa para o que espera o leitor.

    Spacca
    Caricatura: Prof. Arnaldo Godoy

    “O nome da Rosa”, de Umberto Eco, por exemplo, não é referência a personagem com esse nome, que não se encontra no livro, obviamente. Eco contava com um outro título, “A abadia do crime”; a opção, no entanto, “O nome da Rosa”, remete o leitor a um dos problemas centrais do romance: o tema do nominalismo.

    O próprio Eco lembrava-se de Dumas (que contou a história de D’Artagnan, que não era um dos “Três Mosqueteiros), além de outros títulos labirínticos (“O vermelho e o negro”, “Guerra e Paz”). Eu acrescentaria “Esaú e Jacó” (argumento bíblico que Machado de Assis transpôs para Pedro e Paulo, com a paisagem do Rio de Janeiro na passagem do Império para a República como pano de fundo) ou, ainda mais objetivamente, “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, no contexto da perturbadora tensão entre Uaqub e Omar.

    Uma lista de títulos intrigantes contaria também com “A manilha e o libambo”, de Alberto da Costa e Silva. Diplomata, poeta, africanólogo, memorialista, historiador, faleceu neste último 26 de novembro, aos 92 anos de idade. Uma rápida olhada sobre um de seus livros principais, cujo título também é prova inconteste de sua inventividade, é o tema dos embargos culturais dessa semana, que seguem em forma de homenagem a esse grande intelectual.

    “A manilha e o libambo” é um portentoso estudo sobre a escravidão e o comércio de escravos, sob uma inusitada perspectiva de historiador brasileiro que conhece profundamente a história africana, inclusive sob uma miragem local. Uma abordagem raramente enfrentada com sucesso na tradição historiográfica brasileira.

    Sobre o título. O autor (no prefácio) faz uma referência a um conto de Machado de Assis, “Pai contra Mãe”, cujo tema é a violência da escravidão. Machado de Assis registrava que a escravidão levara consigo ofícios, aparelhos e instituições sociais. Exemplificava com a máscara da folha de Flandres, símbolo dessa ignominia. O assunto — escravidão — é um dos temas do mencionado contopublicado em “Relíquias da Casa Velha”, na edição de 1906. Raimundo Faoro também comenta esse conto na parte 7 do capítulo III de “Machado de Assis, a pirâmide e o trapézio”.

    O problema da escravidão é um dos mais intricados na obra de Machado de Assis, além, evidentemente, de ser o mais vergonhoso de nossa história. Pode-se atribuir à ironia machadiana uma crítica à mais sórdida fórmula de exploração que o Brasil conheceu, que muito nos envergonha, e que nos choca, sempre e sempre; e que deixou reflexos que até hoje são assustadores. Condições desumanas de trabalho e exploração superlativa da força humana são desdobramentos modernizados dessa condição odiosa.

    A manilha, explica-nos Alberto da Costa e Silva, é um instrumento de metal, quase uma pulseira, em forma de C. O libambo evoca uma sequência de ferros que prendia escravos, comum nas caravanas de cativos. Manilha e libambo reportam-se, assim, à escravidão africana, que o autor identificou como forma de “iniquidade, violência, humilhação (e) sadismo”. Ainda que “toda história tenha um lado de sombra e um lado de sol”, o autor, após indicar várias contribuições africanas, registra que o livro enfatiza a escravidão e o comércio de escravos na África subsaariana, de 1500 e 1700.

    São quase 1.000 páginas. Um texto elegante, culto, manifestadamente preparado, estudado, esquadrinhado. Uma leitura que exige tempo, dedicação e interesse pelo assunto. O último capítulo “Escravo igual a negro” retoma que também houve escravidão de eslavos (e o nome da instituição vem daí), gregos, turcos, árabes, armênios, berberes, búlgaros, circassianos. O autor lembrou que Américo Vespúcio tinha em sua casa cinco escravos: “dois negros, um guancho e dois mestiços de canários”. O guancho, encontrei no Aurélio, era um habitante do Tenerife. Alberto da Costa e Silva refere-se também ao fato de que “(…) não era invulgar encontrar-se em cativeiro árabes, berberes e turcos (…) ainda que em número bem menor, indianos, malaios, chineses e ameríndios”.

    Nessa parte final do livro retoma o papel dos jesuítas no Brasil, quanto ao problema da escravidão, sob a luz da intrincada questão da oitiva de confissão, por parte dos inacianos, em relação a proprietários de escravos. A questão é intricada justamente porque à escravidão de indígenas (que os jesuítas abominavam) opunha-se a escravidão de africanos, o que teria provocado, segundo o autor, reprimendas do Papa II, que teria se insurgido contra a dominação de africanos convertidos ao catolicismo.

    Alberto da Costa e Silva, também na parte final, refere-se ao escravo como tema e argumento literário. Evoca Bernardo de Guimarães (Isaura) e Coelho Neto (Lúcia, de “Rei Negro”), a par do próprio Machado de Assis, que é o ponto de partida do livro. É só um estudo aprofundado dos porquês dessa opção (tema de crítica genética) que poderia esclarecer se não há na referência uma leitura radical sobre um problema que a historiografia literária ainda não resolveu. Remeto o leitor ao primeiro capítulo de “Machado de Assis Historiador”, de Sidney Chalhoub, e o problema pode ser melhor compreendido.

    Em “A manilha e o libambo” o leitor insere-se em uma viagem histórica pela Costa do Ouro, pelo reino do Congo, pela região dos Grandes Lagos, por Madagáscar, por Angola, pelo Chade, sobe e desce o Nilo, percebe a Etiópia, o Mali, o Benim. Um desfile de nomes diferentes e de regiões distantes e de personagens inesperadas. O autor trata desses assuntos com competência historiográfica, desarmado de qualquer apelo ao exótico, e no contexto de uma perspectiva humana e esforçadamente compreensiva.

    Ao mesmo tempo, o leitor interessado em Alberto da Costa e Silva deve correr para ler “Invenção do Desenho”, o segundo livro de memórias desse exuberante autor (o primeiro foi “O espelho do príncipe”). Conhecerá (ou revisitará) provavelmente um de nossos maiores intelectuais; um pensador de cultura enciclopédica (para usar um chavão) com a alma aberta para o inusitado, o que me parece uma imagem cheia de metafísica e, paradoxalmente, carregada de realismo, condições e circunstâncias que marcam escritores que, ao mesmo tempo, enxergam a pureza putativa do céu e consideram a realidade angustiante da terra.

    Alberto da Costa e Silva ocupava a cadeira número 9 da Academia Brasileira de Letras.

    sábado, 18 de novembro de 2023

    Conflito territorial entre Venezuela e Guiana: novidades à luz da convocação ao referendo - Lucas Carlos Lima (Conjur)

     

    OPINIÃO

    Conflito territorial entre Venezuela e Guiana: novidades à luz da convocação ao referendo

    17 de novembro de 2023, 17h14

    recente convocação de um referendo pelo governo da Venezuela em relação ao reivindicado território de Essequibo — disputado com a Guiana — adiciona uma nova camada de juridicidade à controvérsia territorial entre os dois estados latino-americanos. Trata-se de antiga disputa que surgiu como resultado da alegação venezuelana de nulidade do Laudo Arbitral de 3 de outubro de 1899, que determina a fronteira atual entre as duas partes em virtude de “uma transação política realizada às escondidas da Venezuela e sacrificando seus direitos legítimos”.

    À época, a arbitragem ocorreu entre a colônia da Guiana Britânica e a Venezuela,que disputavam uma larga porção de terra (rica em recursos naturais) entre os rios Oniroco e Essequibo. Um tribunal arbitral composto por cinco juristas (dois americanos, dois ingleses e um russo) foi composto para delimitar pacificamente a fronteira em questão. Na atualidade, uma modificação de tal fronteira poderia também ter impacto nos recursos marítimos e energéticos de ambos os países. O presente ensaio analisa o conflito territorial à luz dos procedimentos judiciais perante a Corte Internacional de Justiça, em particular diante do requerimento de medidas provisórias solicitado pela Guiana no fim de outubro diante da  convocação do referendo.

    Conflitos territoriais perante a Corte da Haia
    Conflitos resolvendo controvérsias territoriais e marítimas não são raros perante a Corte Internacional de Justiça [1]. Em verdade, existe uma longa e constante jurisprudência que assenta este tribunal como o órgão por excelência para resolver conflitos desta natureza que são, como se sabe, extremamente complexos, e não raramente envolvem profundos sentimentos nacionais de relação com o território. Apesar de pode se afirmar que nos últimos tempos a jurisprudência da Corte ter variado substancialmente, incorporando temáticas como direito ambiental internacional ou direitos humanos, é também possível notar que a Corte não deixou de ser o órgão judicial ao qual Estados recorrem para solucionar conflitos em relação à soberania sobre territórios disputados, também relativos a zonas marítimas.

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    Exemplos recentes nesse sentido são os casos da Delimitação da Plataforma Continental entre Nicarágua e Colômbia (2023), a Delimitação Marítima entre Somália e Quênia (2021), entre Peru e Chile (2014) ou entre Burkina Faso e Niger (2013). Desde que a Corte sedimentou a doutrina jurídica do uti possidetis iuris [2] em 1983 no célebre caso entre a Burkina Faso e a República do Mali há um profundo interesse dos Estados em utilizar meios judiciais para verificar quem possui as melhores teses jurídicas para comprovar a soberania sobre um determinado território.

    A tensão de fundo em todas essas controvérsias territoriais reside no fato de que as regras estabelecidas no direito internacional para resolvê-las são essencialmente frutos de pretensões contestadas e decisões arbitrais ou judiciais avaliando tais pretensões. Não existem, obviamente, tratados internacionais que determinam regras para delimitações territoriais. Estas se dão exatamente pelo fruto da troca e de negociações de Estados por suas fronteiras — muitas vezes definidas, no passad,o como resultado de conflitos armados. Se por um lado, o princípio da integridade territorial, decorrente da soberania dos Estados, parece ser um valor jurídico de grande força normativa que tende ao status quo e à inamovibilidade e à estabilidade das fronteiras, há também novas situações jurídicas que permitem, raramente, a contestação de fronteiras internacionais.

    A controvérsia entre Venezuela e Guiana não parece ser excepcional na abordagem caso a caso que o direito internacional adota para resolver essas questões. Suas origens são antigas e por mais que possam eventualmente ser aquecidas à luz de ações políticas, constitui um caso que merece entendimento exatamente porquanto possui implicações também na política interna e externa dos Estados — e seus vizinhos.

    As decisões da Corte Internacional de Justiça no caso Guiana e Venezuela
    Se o laudo arbitral emitido em 1899 pacificou temporariamente as relações entre a colônia da Guiana Britânica e a Venezuela, é possível verificar a existência de uma controvérsia entre os Estados durante o período de descolonização da Guiana. Em 1962, a Venezuela informou o então Secretário-Geral da ONU sobre a existência de uma controvérsia entre Reino Unido e Venezuela “referente à demarcação da fronteira entre a Venezuela e a Guiana Britânica”, alegando que o Laudo de 1899 havia sido fruto de um conluio,  e que, portanto, não poderia reconhecer o Laudo. Peritos de ambas as partes examinaram o laudo e chegaram a conclusões diferentes. Em 1966, após a independência da Guiana, a questão continuava pendente entre as partes e um tratado foi assinado reconhecendo a controvérsia — o Acordo de Genebra, que outorgava autoridade ao Secretário-Geral da ONU para auxiliar na solução da questão. Uma das perguntas do referendo convocado pela Venezuela diz respeito, justamente à legitimidade do Tratado de Genebra como fonte da resolução da controvérsia.

    As conversas entre os Estados sobre o tema continuaram sob os bons ofícios do Secretário-Geral da ONU até 2014. Em 2017, Antônio Guterres decidiu que, após ter “cuidadosamente analisado” os processos de bons ofícios em 2017, e não tendo as partes chegado a uma solução, ele optaria por conduzir a disputa “à Corte Internacional de Justiça como o meio a ser utilizado agora para utilizado para sua solução” com base no Acordo de Genebra de 1966. Em 29 de março de 2018 a República da Guiana iniciou um procedimento perante a Corte Internacional de Justiça buscando reconhecer a validade do Laudo Arbitral, e, portanto, a intangibilidade de sua fronteira e território.

    Até o momento, a Corte Internacional de Justiça emitiu duas decisões.

    A primeira delas diz respeito à própria jurisdição da Corte que, segundo as regras essenciais do direito internacional, deve ser baseada sobre o consentimento de ambas as partes para poder decidir uma disputa. Em decisão de dezembro de 2020, procedimento no qual a Venezuela decidiu não participar, a Corte Internacional de Justiça, por 12 votos a 4, entendeu possuir jurisdição sobre o caso em virtude do Acordo de Genebra de 1977 e pela decisão do Secretário-Geral.

    A Venezuela então mudou sua atitude em relação ao processo e resolveu apresentar suas defesas — isto é, objeções preliminares à jurisdição da Corte – afirmando ser o pedido da Guiana inadmissível em virtude da ausência de uma terceira parte diretamente interessada na controvérsia: o Reino Unido. Trata-se da assim chamada doutrina do Ouro Monetário pela primeira vez aplicado no caso Monetary Gold Removed from Rome in 1943 (Italy v. France, United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland and United States of America). A doutrina exige que a Corte se abstenha de decidir uma controvérsia quando os interesses jurídicos de um terceiro estado que não ofereceu seu consentimento e que constituem “o próprio objeto” do caso, ou quando o Tribunal não pode decidir o caso a ele submetido sem antes julgar a responsabilidade internacional (ou os direitos) de um terceiro Estado. No caso, e em síntese, a tese venezuelana seria de que

    a declaração de nulidade do laudo de 1899 acabaria por se manifestar sobre um eventual comportamento do Reino Unido, potência colonizadora à época, e, portanto, faltaria um elemento essencial à controvérsia, que deveria ser dispensada.

    Embora tenha declarado admissível a objeção da Venezuela, a Corte não deu a ela razão. Em decisão de abril de 2023, a Corte Internacional de Justiça entendeu que “a prática das partes do Acordo de Genebra demonstra sua concordância de que a disputa poderia ser resolvida sem o envolvimento do Reino Unido”. De uma maneira tangencial, a Corte da Haia entendeu que o princípio do ouro monetário não se aplicava ao caso porque os interesses do Reino Unido durante todo o processo da formulação da disputa não estavam em jogo. Embora aqui não seja o espaço, pode-se processualmente, duvidar desse entendimento limitado da aplicação do princípio e se questionar sobre as razões pelas quais a Corte preferiu adotá-lo. Fato é que, como conclusão, a decisão de 2023 fez com que a controvérsia entre Guiana e Venezuela avançasse rumo ao mérito, até que a convocação de um referendo adicionasse uma nova  fase processual à disputa.

    A convocação do referendo e as medidas cautelares
    A estratégia da Venezuela de convocar um referendo com cinco perguntas em relação à controvérsia da Guiana Essequiba é uma tentativa de inserir um novo elemento na complexa questão que envolve os dois Estados. O elemento da autodeterminação dos povos3, quando aplicável efetivamente, é particularmente relevante em controvérsias territoriais. De maneira sucinta, a consulta ao povo venezuelano tem cinco objetivos: 1. Rechaçar o laudo arbitral de 1899; 2. Contestar o Acordo de Genebra como instrumento-fonte da solução; 3. Não reconhecer a jurisdição da Corte Internacional de Justiça; 4. Opor-se à pretensão da Guiana de explorar a zona marítima; 5. Criar um novo estado federal da Guiana Essequiba como parte da Venezuela.

    Diante de tal convocatória, e a fim de proteger os direitos pendentes na lide perante a Corte da Haia, a República da Guiana realizou um pedido de medidas cautelares perante a Corte. O célere pedido da Guiana não busca apenas a não-realização do referendo, mas também uma ordem da Corte que exija que nenhuma atitude seja tomada para exercer controle de fato sobre a região — antecipando os rumores de que a área seria alvo de algum tipo de operação militar de controle. Nos próximos meses, a Corte terá de se debruçar sobre os requisitos essenciais de seu próprio processo em relação à plausibilidade dos direitos a serem violados, o risco de dano ao objeto principal da lide e poderá, efetivamente, decidir que o referendo  afeta o objeto da disputa. Nesse caso, poder-se-ia conjecturar que a Corte da Haia teria poderes para delimitar a ação do referendo. Naturalmente, uma decisão do gênero não seria muito bem recebida em Caracas, sobretudo ao se considerar que, historicamente, a Venezuela mostra alguma reticência em relação ao uso da Corte para a solução da questão.

    Qual o futuro da controvérsia?
    Controvérsias internacionais que tocam o território dos Estados, recursos naturais e fortes sentimentos nacionais nem sempre encontram seu deslinde último numa decisão judicial. A Corte Internacional de Justiça muitas vezes emitiu decisões significativamente importantes no interior de um processo político-jurídico maior. A decisão sobre medidas cautelares, passível de afetar algum modo o referendo conclamado, pode ter impactos políticos significativos, especialmente num contexto de chamamento de eleições, de renegociação de sanções, e de reestruturação geoenergética da região. Esses elementos extrajudiciais não aparecem com frequência no raciocínio jurídico da Corte Internacional de Justiça, que deverá ponderar, em concreto, os limites de seus poderes e de sua jurisdição sobre a disputa da nulidade do laudo e os novos episódios relativos à querela das partes.

    Pode-se questionar se a reabertura e rediscussão de laudos arbitrais emitidos há décadas é uma boa política para a estabilidade das fronteiras da região. No Brasil, a questão do Pirara e o laudo do rei Vittorio Emmanuele 3º é exemplo disso. É doutrina comumente repetida que uma das forças políticas do Brasil no cenário internacional é a ausência de controvérsias territoriais com seus vizinhos. No caso venezuelano, por outro lado, existe uma consistente alegação de corrupção do laudo que é sustentada há mais de sessenta anos.

    Talvez a maior lição que, nesse momento, a controvérsia possa oferecer não é apenas a complexidade do direito dos povos ao seu território ou as tensões políticas que emergem com esse tipo de controvérsia. O caso demonstra que existe uma linguagem possível de discussão das questões jurídicas que abdica da força e repudia ações de violência para resolver controvérsias internacionais. Há ainda instituições internacionais que podem oferecer uma contribuição significativa, com base na linguagem do direito internacional, que pode evitar as posições políticas polarizadas. Conhecer as controvérsias, os argumentos que as cingem, e os limites das instituições que podem atuar em sua resolução é um benefício não trivial que ainda é oferecido pelo direito internacional.


    [1] Sobre o tema, ver JENNINGS, R.Y. The Acquisition of Territory in International Law. Manchester, 2017. KOHEN, Marcelo; HÉBIÉ, Mamadou. (orgs) Research Handbook on Territorial Disputes in International Law. Elgar Publisher, 2018; BONAFÉ, Beatrice I.Territory and Conflicts: Is International Law the Problem? In: Nicolini, Palermo, Milano (orgs). Law, Territory and Conflict Resolution: Law as a Problem and Law as a Solution, 2016; LANDO, Massimo. Maritime Delimitation as a Judicial Process. Cambridge: 2019.

    [2] Sobre o tema, o caso e suas implicações, ver LIMA, Lucas Carlos. Uti possidetis juris e o papel do direito colonial na solução de controvérsias territoriais internacionais. Sequência, v. 38, n. 77, 2017, pp. 122- 147.

    [3] Sobre o tema, ver o clássico CASSESE, Antonio. Self-Determination of Peoples: a legal reappraisal. Cambridge: 1998. Ver também SUEDI, Yusra. Self-determination in territorial disputes before the International Court of Justice: From rhetoric to reality? Leiden Journal of International Law, Vol. 36, 2022, pp. 161-177 e ainda, no caso Chagos, LIMA, Lucas Carlos. A opinião sobre o arquipélago de Chagos: a jurisdição consultiva da Corte Internacional de Justiça e a noção de controvérsia. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, nº 75, 2019, pp. 281-302.

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