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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Posição do Brasil em Haia fica no meio do caminho entre direito e diplomacia - Lucas Carlos Lima (FSP)

Posição do Brasil em Haia fica no meio do caminho entre direito e diplomacia

Ausência de referências a eventos posteriores ao ataque do Hamas pode ser sinal de moderação à luz da tensão diplomática

Lucas Carlos Lima

Professor de direito internacional (UFMG), atuou perante

 a Corte Internacional de Justiça; organizador do livro

“A Jurisprudência da Corte Internacional de Justiça” (ed. Del Rey)


Folha de S. Paulo, 20/02/2024

Opiniões consultivas emitidas pela Corte Internacional de Justiça, o principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas, são receptáculos do estado do direito internacional num determinado momento histórico. Apesar de não serem vinculantes como decisões em casos contenciosos iniciados por um Estado contra outro, elas possuem grande autoridade pois anunciam o conteúdo e alcance das normas jurídicas aplicáveis ao caso e servem como fonte para auxiliar a resolução de controvérsias futuras.

Essa é a razão pela qual nesta semana mais uma vez os olhos do mundo se voltam a Haia diante do pedido de opinião consultiva formulado pela Assembleia-Geral da ONU em janeiro de 2023 –ou seja, muito antes dos ataques perpetrados pelo Hamas contra Israel no 7 de Outubro– sobre consequências das ações de Israel nos territórios palestinos.

Juízes da Corte Internacional de Justiça (CIJ) durante audiência sobre a ocupação de Israel de territórios palestinos - Piroschka van de Wouw - 19.fev.2023/Reuters

As perguntas colocadas à Corte pela Assembleia foram duas. Em primeiro lugar, esclarecer quais são as consequências jurídicas decorrentes da "violação contínua por Israel do direito do povo palestino à autodeterminação, da sua prolongada ocupação, colonização e anexação do território palestino ocupado desde 1967", bem como da "adoção de legislação e medidas discriminatórias relacionadas".

Em um segundo momento, compreender como as referidas políticas "afetam o estatuto jurídico da ocupação e quais são as consequências jurídicas que decorrem desse estatuto para todos os Estados e para as Nações Unidas", visando também entender quais são as obrigações de todos os membros da comunidade internacional diante da situação.

É interessante notar que a linguagem empregada pela Assembleia-Geral faz referência às resoluções e normas internacionais anteriores (bem como a própria decisão de 2004 da Corte Internacional sobre a "Legalidade da Construção do Muro em Territórios Palestinos Ocupados" por Israel), que já estabeleceram a violação, por parte de Israel, de normas e obrigações de direito internacional.

A Assembleia busca, portanto, compreender quais são os efeitos e linhas de ação a serem tomadas diante da situação de violação de territórios ocupados por Israel em contrariedade ao direito internacional. Esse ponto foi alvo de crítica na manifestação de Israel, para quem as perguntas "representam uma clara distorção da história e da realidade atual do conflito israelo-palestino".

Muitos Estados e organizações internacionais resolveram participar do procedimento, apresentando sua posição sobre as perguntas colocadas pela Assembleia. Tal participação revela que os Estados são conscientes de que as suas posições são levadas em alta consideração pela Corte.

O Brasil não é exceção e apresentou suas considerações escritas e oralmente sobre o tema. É possível notar, nos últimos tempos e independente do governo, uma maior preocupação do Brasil em participar de procedimentos consultivos perante tribunais internacionais. Parece se difundir nos corredores de Brasília uma consciência da oportunidade que esses procedimentos representam de influenciar a ordem jurídica internacional.

Em suas observações escritas bem como em sua sustentação pública no Palácio da Paz, a posição brasileira pode ser sintetizada nos seguintes pontos: (1) a Corte Internacional possui jurisdição e deve exercê-la para emitir uma opinião sobre as questões solevadas; (2) a ocupação israelense dos territórios palestinos viola o direito do povo palestino à autodeterminação, e o Brasil defende o caráter peremptório dessa norma; (3) Israel deve pôr fim à ocupação de territórios palestinos; (4) um Estado que viola o direito internacional deve oferecer a devida reparação, e tal princípio se aplica a Israel; (5) todos os Estados, e não apenas os envolvidos no conflito, devem se abster não apenas do reconhecimento dessa situação, mas também de atos que possam implicar tal reconhecimento; (6) nenhum Estado deve colaborar com as ações ou iniciativas israelenses relacionadas à ocupação ilegal dos territórios palestinos; (7) os Estados devem cooperar para pôr fim à ocupação, por meios legais, o mais rápido possível.

A posição brasileira parece alinhada com seus princípios constitucionais e internacionais de política externa jurídica e está em consonância com diversas outras manifestações de Estados em relação ao estado do direito internacional. Em algumas passagens os argumentos jurídicos poderiam ser melhor detalhados ou elaborados, oferecendo uma visão mais precisa e contundente da posição brasileira.

Embora os argumentos brasileiros se encontrem ancorados no direito internacional, em muitas passagens a posição brasileira parece mais um discurso diplomático que uma argumentação jurídica. A ausência de referências aos eventos posteriores ao ataque do Hamas parece também um sinal de moderação à luz da tensão diplomática que tomou o noticiário nesta semana.

Em alguns meses a Corte Internacional emitirá seu parecer sobre a questão. Se a decisão da Corte irá efetivamente influenciar o futuro da situação na Palestina é um questionamento bem mais complexo.



quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

O processo da África do Sul contra Israel perante a Corte Internacional de Justiça - Lucas Carlos Lima (Conjur)

 O processo da África do Sul contra Israel perante a Corte Internacional de Justiça

Conjur, 1/01/2024

https://www.conjur.com.br/2024-jan-01/o-processo-da-africa-do-sul-contra-israel-perante-a-corte-internacional-de-justica/

Lucas Carlos Lima é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cortes e Tribunais Internacionais UFMG/CNPq e co-organizador da obra A Jurisprudência da Corte Internacional de Justiça.


No dia 29 de dezembro de 2023 a República da África do Sul acionou a Corte Internacional de Justiça  trazendo o Estado de Israel à barra da Haia por alegações de violações à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948 (doravante “Convenção contra Genocídio” ou “convenção”). Em suma, a África do Sul inicia um procedimento judicial para (a) verificar as ações cometidas por Israel em Gaza configuram violações à distintas obrigações presentes na convenção e; (b) obter uma decisão em procedimento cautelar e suspender imediatamente as ações militares de Israel em Gaza e contra Gaza.

Sabendo que os processos perante a Corte da Haia podem levar anos, um pedido durante o decorrer do conflito tem também como intuito a obtenção de uma ordem cautelar para influenciar os acontecimentos presentes. Essa parece ser inclusive uma tendência dos últimos anos em matéria de direitos humanos, como recentemente observou na UFMG a professora Serena Forlati, da Universidade de Ferrara. Nesse sentido, é possível verificar que a corte foi acionada recentemente em dois casos envolvendo a mesma convenção: no caso Ucrânia v. Rússia e no caso Gâmbia v. Myanmar. Em ambos os casos a Corte Internacional emitiu ordens cautelares demandando específicas ações dos Estados requeridos para proteger os direitos presentes na convenção.

O presente ensaio analisa tecnicamente o processo movido pela África do Sul perante a Corte da Haia à luz das regras internacionais existentes e da jurisprudência da corte sobre a matéria com a finalidade de esclarecer o significado dessa ação judicial para o conflito. Num primeiro momento (1) foca-se nas alegações da África do Sul, esmerilhando assim sua petição inicial. Em seguida, revisita-se a jurisprudência da corte em matéria de genocídio e medidas cautelares (2) buscando similaridades com a presente demanda. Por fim, conjectura-se os potenciais caminhos que a corte pode tomar envolvendo o caso.

 1. As alegações da África do Sul e os requisitos procedimentais da corte
Em sua petição inicial (application), a África do Sul argumenta que Israel estaria violando a Convenção contra Genocídio, entre outras alegações, por não agir para impedir a realização de um genocídio, por conspirar para a realização de um genocídio e por impedir a investigação e a punição de um genocídio, nos termos dos artigos I, II, III, IV, V e VI da convenção [1]. Segundo o documento sul-africano, “os atos e omissões de Israel denunciados pela África do Sul são de caráter genocida porque têm a intenção de destruir uma parte substancial do grupo nacional, racial e étnico palestino, que é a parcela do grupo palestino situado na Faixa de Gaza”. Dentre as diferentes fontes que mobiliza para fundamentar seus argumentos, a África do Sul utiliza declarações de diferentes países e chefes de Estado (inclusive do Brasil) para configurar o genocídio. Contudo, na hipótese do caso proceder, cada ato precisará ser analisado isoladamente nos termos da Convenção de Genocídio para verificar uma violação, demandando um alto ônus probatório de ambas as partes.

Alguém poderá se questionar: por que a África do Sul moveu o processo e qual sua legitimidade processual para fazê-lo? Não seria mais óbvio um processo movido pelo Estado da Palestina contra Israel em que ambas as portes poderiam trocar as recíprocas acusações?

Embora esta última possibilidade exista, as obrigações jurídicas presentes na Convenção contra o Genocídio são obrigações de uma natureza única no direito internacional, qual seja, obrigações de caráter erga omnes partes. Em outras palavras, são obrigações devidas a todas as outras partes da convenção e cujos interesses jurídicos são de todos os membros da convenção em salvaguardar. Como a própria corte observou em 2022: são obrigações “no sentido de que cada Estado Parte [da Convenção] tem interesse em cumpri-las em qualquer caso” de modo que isso “implica que qualquer Estado Parte [da Convenção], sem distinção, tem o direito de invocar a responsabilidade de outro Estado parte por uma suposta violação de suas obrigações erga omnes partes” [2]. Desse modo, verificadas supostas violações à convenção, qualquer Estado que é parte na convenção — inclusive o Brasil — teria legitimidade para acionar um outro Estado, ou ainda, vir a intervir no procedimento por dela ser parte e ter interesses em sua interpretação.

O pedido da África do Sul não visa apenas a discussão das obrigações da convenção, mas requer também, a título de medidas cautelares, que uma série de atos sejam realizados por parte de Israel. Dentre eles, estão (1) que Israel suspenda suas atividades militares em Gaza; (2) que Israel garante que qualquer ação militar ou grupos militares irregulares cessem suas atividades; (3) que todas as medidas à disposição do Estado de Israel para prevenir um genocídio sejam tomadas. Ou seja, há uma clara intenção por parte da África do Sul em encerrar a ofensiva israelense com o objetivo que não danificar os direitos protegidos na convenção, confirmando portanto a dupla intenção da ação.

2. A jurisprudência da Corte Internacional em matéria de genocídio e medidas cautelares
Em virtude do Artigo IX da Convenção contra Genocídio, a Corte Internacional de Justiça é o órgão judicial responsável por dirimir controvérsias envolvendo sua aplicação e interpretação da convenção. A corte já emitiu uma importante opinião consultiva detalhando a importância da convenção e fez diversas pronúncias sobre a natureza das obrigações nela presentes. Ademais, dois casos contenciosos já chegaram à fase de mérito e obtiveram decisões finais: o caso Bósnia v. Sérvia, no qual a corte entendeu que a Sérvia falhou na prevenção do genocídio conduzido por milícias em seu território; e o caso Croácia v. Sérvia, no qual a Corte entendeu que um genocídio não ocorreu, apesar do importante voto dissidente do juiz e professor Antônio Augusto Cançado Trindade.

As lições de casos anteriores demonstram que não se pode perder de vista que os tempos da justiça internacional são tão morosos quanto o da justiça interna e um caso como este pode levar até mesmo a uma divisão no interior da corte (composta por 15 juízes de diferentes nacionalidades, origens e percepções do direito internacional). A petição sul-africana é o início de um longo processo. Nos dois casos em que terminou de julgar alegações da violação da convenção, a Corte Internacional de Justiça levou mais de dez anos para emitir uma decisão final, com diversos incidentes processuais no decorrer do processo.

Isto porque a configuração de jurídico ocorre quando um padrão probatório particularmente alto é atingido. Além de cometer atos de violência específicos contra um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, o genocídio enquanto figura jurídica exige uma vontade especial de eliminação, total ou parcial, do grupo em questão, nos termos do Artigo II da convenção. Como a própria corte já estabeleceu no passado, a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal “é a característica essencial do genocídio, que o distingue de outros crimes graves. Ele é considerado um dolus specialis, ou seja, uma intenção específica, que, que, para que o genocídio seja estabelecido, deve estar presente além da intenção exigida para cada um dos atos individuais envolvido”.

No último caso em que a corte julgou, envolvendo a Croácia v. Sérvia de 2015, a Corte Internacional foi particularmente exigente no momento de verificar o dolo especial. Por consequência, concluiu que a Croácia havia falhado na demonstração e prova do dolo especial, apesar dos atos cometidos estarem previstos na convenção, faltava o elemento volitivo de destruição do grupo, que não poderia ser meramente inferido dos atos. No caso Gâmbia v. Myanmar, ainda sem julgamento perante a corte, parece contribuir para o caso o fato de que existe relatórios de uma missão especial de fact-finding do Conselho de Direitos Humanos da ONU que já atestou o intento genocida pode ser particularmente relevante.

Contudo, a estratégia sul-africana parece estar em linha com outros processos recentes perante a corte em que a convenção foi invocada que buscaram uma ordem provisória para a cessação das violações da convenção em caráter de urgência. Nesses casos, como a Corte precisa apenas satisfazer que ela teria jurisdição prima facie, que existiria um risco de dano, urgência e que os direitos violados são plausíveis, a Corte Internacional poderia emitir uma ordem com requisitos processuais menos rigorosos que a prova de um genocídio no escopo de ordenar qualquer abstenções de ações que poderiam configurar violações da Convenção contra o Genocídio. Nesse sentido, precedente relevante parece ser também o caso da Ucrânia v. Rússia, cuja medida provisória foca menos na necessidade de intento genocida, mas sim no risco de violação aos direitos protegidos na convenção [3].

3. O que esperar do processo perante a Corte Internacional de Justiça?
Pode-se ler a ação sul-africana também como uma tentativa de uma rápida obtenção por parte da Corte da Haia de uma ordem de cessação de atos beligerantes por parte de Israel. Essa medida judicial poderia servir para exercer maior pressão internacional, também jurídica, para uma cessação das hostilidades, inclusive levando as partes para a mesa de negociação.

Obviamente são muitos requisitos processuais que precisam ser preenchidos e a urgência do caso levará à Haia nas próximas semanas uma série de argumentos jurídicos complexos na tentativa de conduzir o pedido sul-africano ao êxito.

Caso a corte verifique que tenha jurisdição sobre a controvérsia (algo que nem sempre é óbvio na jurisprudência da corte), iniciar-se-á um longo processo de discussão da existência ou não de um genocídio e de outras violações da convenção.

O procedimento na corte pode tomar uma série de caminhos e tentar prever com precisão o comportamento judicial em casos de alta complexidade nem sempre torna-se um exercício frutífero. Contudo, dada a jurisprudência recente de matéria, algumas questões emergem e outras situações podem ser conjecturadas.

Uma primeira questão que surge envolve a participação ou não de Israel nos procedimentos, que tende a fazer toda a diferença em matéria de defesas e justificativas. Israel teria ocasião de apresentar suas defesas processuais e substanciais, como, por exemplo, contestar a própria jurisdição da corte e contestar a existência de uma “controvérsia” entre África do Sul e Israel envolvendo a convenção. Outra questão mais complexa, envolve os limites da legítima defesa no direito internacional, que também poderia surgir.

Uma segunda questão procedimental seria se no presente caso também se verificará a tendência de intervenção de terceiros Estados, como aconteceu nos casos da Rússia e de Myanmar. Não é claro quais são os Estados que terão a vontade de participar processualmente no debate. Embora possa-se imaginar pelo menos uma participação da Palestina nos procedimentos, será interessante verificar quais Estados efetivamente irão participar do procedimento e quais serão os argumentos invocados, tanto no sentido de alegar a existência de violações quanto de manter o alto standard probatório para configuração de genocídio.

Ao mesmo tempo que a gravidade da situação em Gaza conclama ações internacionais, o devido processo legal deve ser respeitado em virtude da gravidade das acusações realizadas. Como mencionado, na jurisprudência da Corte Internacional um Estado jamais foi efetivamente condenado por conduzir ativamente um genocídio.

A corte é guiada pelo princípio do contraditório e pode-se supor que uma instituição judicial, norteada pela imparcialidade e independência pretorianas, não deseja ser percebida como dotada de predições. Isso significa que a participação de Israel e a oitiva de seus argumentos constitui um ponto fundamental para o processo diante da corte. Talvez possa-se esperar da corte algo similar aos casos anteriores: uma ordem em medida cautelar, ou seja, temporária enquanto durar o processo e buscando salvaguardar os direitos pendente lite, ordenando a abstenção de atos que possam lesionar os direitos protegidos na Convenção contra o Genocídio.

Embora existam críticas à mobilização da Corte Internacional meramente com finalidades cautelares em casos envolvendo violações de direitos humanos, esta tendência para se consolidar na jurisprudência da Haia — e o caso da África no Sul não parece ser exceção. Ademais, é importante a existência de um órgão judicial que possa decidir ou não sobre a existência de um genocídio, evitando a apropriação da expressão por discursos políticos. Se de algum modo contribuir para evitar o agravamento de conflitos e que os direitos das partes sejam preservados, a Corte Internacional de Justiça estará exercendo seu importante papel como principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas e, portanto, da própria proteção de direitos reconhecidos pela comunidade internacional.

 


[1] Sobre a Convenção contra o Genocídio existe ampla literatura a respeito. Nesse sentido ver o recente TAMS, Christian; BERSTER, Lars; SCHIFFBAUER, Bjorn. The Genocide Convention: Article-by-Article Commentary. Bloomsbury Publishing, 2023; GAETA, Paola. The UN Genocide Convention: A Commentary. Oxford University Press, 2009. Ver também CANEDO, Carlos. O Genocídio como Crime Internacional. Del Rey, 1999.

[2] Sobre o tema, ver ROCHA, A. L. O. A Legitimidade processual perante a Corte Internacional de Justiça: o caso do genocídio Rohingya e os efeitos processuais das obrigações erga omnes partes. In: LIMA, L. C. (Org.); ROCHA, A. L. O. (Org.). Cadernos de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2023. v. 2. pp. 71-118.

[3] Sobre essa decisão ver LIMA, Lucas Carlos. As medidas cautelares da Corte Internacional de Justiça no caso entre Ucrânia e Federação Russa. Revista de Direito Internacional, Vol. 19, 2022, pp.32-38.

    sábado, 9 de dezembro de 2023

    Plebiscito da Venezuela é estratégia jurídica pela autodeterminação - Lucas Carlos Lima (FSP)

     
     LUCAS CARLOS LIMA

    Plebiscito da Venezuela é estratégia jurídica pela autodeterminação

    Ao buscar aval popular na disputa, Caracas parece sugerir que venezuelanos estariam sob jugo de uma Guiana ocupante


    Folha de S. Paulo, 6 dezembro 2023

    Lucas Carlos Lima

    Professor de direito internacional na UFMG, é coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG


    Estados soberanos não raramente projetam as suas políticas externas jurídicas em diferentes frentes de argumentação com a finalidade de atingir seus objetivos.

    Se alguns alegam que o plebiscito aplicado pela Venezuela em 3 de dezembro em relação à região de Essequibo é uma medida que visa a acumular vantagens internas num contexto eleitoral complexo, pode-se também analisá-lo no contexto de uma batalha judicial internacional pela soberania sobre um território.

    Nesse segundo sentido, o plebiscito pode ser instrumentalizado para justificar e legitimar as teses venezuelanas em relação ao conflito territorial.

    A reivindicação da Venezuela sobre a região do Essequibo é antiga e desde os anos 1960 serve de objeto a uma controvérsia com a Guiana e o Reino Unido —antiga potência colonial do território.

    Em suma, a fronteira entre Venezuela e Guiana foi determinada por uma arbitragem interestatal de 1899 conduzida por cinco juristas. O laudo, que designou a região de Essequibo como parte do território da Guiana Britânica à época, é atacado pela Venezuela, dentre outros motivos, pela acusação de suposto conluio e corrupção dos árbitros. Ao contestar o laudo, a Venezuela impugna o título jurídico que garante à Guiana a soberania sobre o território de Essequibo.

    Após anos de mediação e trocas de acusações, os Acordos de Genebra de 1966 entre as três partes deram poder ao secretário-geral da ONU para mediar a questão. Após uma nova e fracassada tentativa de mediação, António Guterres reconheceu a competência da Corte Internacional de Justiça, a Corte de Haia, para dirimir a questão. Em 2018, a Guiana recorreu à Corte tendo em vista uma declaração de validade do laudo arbitral de 1899.

    Em 2020, a Corte da Haia reconheceu a sua própria competência e, neste ano, rechaçou a defesa processual venezuelana de que o Reino Unido precisaria ser parte no processo graças à sua implicação na disputa. Quase que imediatamente após esse revés judicial, Caracas decidiu convocar o plebiscito que consulta a população sobre as posições de política externa do Estado venezuelano em relação a Essequibo –exigindo da população um conhecimento aprofundado da disputa e do direito internacional.

    A Guiana tentou impedir o plebiscito perante a Corte Internacional de Justiça com um pedido de decisão cautelar. Contudo, a Corte apenas expressou que a Venezuela "deverá se abster de tomar qualquer medida que possa modificar a situação que prevalece atualmente no território em disputa" controlado pela Guiana.

    Seria surpreendente se a Corte de Haia, em sede cautelar, interviesse em consultas democráticas de um Estado. Contudo, a lição do tribunal é especialmente importante para os rumores de uma suposta invasão militar.

    Nesse sentido, pode-se questionar: qual é o sentido do plebiscito como ato jurídico internacional? Antes de responder a essa questão, alguns argumentos jurídicos não podem deixar de ser delineados.

    Primeiro, nenhum plebiscito autoriza o uso da força nas relações internacionais. Desde 1945, a anexação territorial pelo uso da força é proibida pelo direito internacional, e os Estados possuem o dever de não reconhecer a situação fática.

    Segundo, existe uma obrigação a partir da Carta da ONU que os Estados têm o dever de resolver suas controvérsias pacificamente, o que está em sintonia com a tradição latino-americana e também brasileira de política jurídica internacional.

    Terceiro, a decisão da Corte, embora não tenha impedido o plebiscito, garantiu que qualquer ato de mudança de status do território (pelo uso da força ou não) se configuraria como uma interferência na decisão judicial final.

    Em outras palavras, tanto a manifestação da Corte quanto as demais regras do direito internacional seriam violadas em caso de uso da força por parte da Venezuela em Essequibo.

    Se o plebiscito não possui poderes para outorgar o título do território da Guiana à Venezuela, a qual finalidade ele serve? Ignorados os efeitos internos, revela o uso estratégico do princípio da autodeterminação dos povos.

    Como enunciado no direito internacional, "todos os povos têm direito à autodeterminação; em virtude desse direito, eles determinam livremente seu status político e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural".

    Ou seja, por meio do princípio, e sobretudo por meio da política de concessão de cidadania venezuelana aos habitantes de Essequibo, Caracas parece sugerir que os povos da região estariam sob o jugo de uma potência ocupante (a Guiana). Há obviamente problemas nessa tese.

    Enquanto a Corte Internacional de Justiça não decide o mérito do caso, ou seja, se o laudo arbitral de 1899 é nulo ou não, a Venezuela aparenta estar interessada em perseguir outras estratégias jurídicas para garantir algum tipo de titularidade à região do Essequibo.

    Diante desse contexto, evitar a escalada das tensões e trazer as partes à mesa de negociação parece o caminho mais indicado tanto para o Brasil quanto para outros Estados, direta ou indiretamente envolvidos, para impedir violações ao direito internacional.


    sábado, 18 de novembro de 2023

    Conflito territorial entre Venezuela e Guiana: novidades à luz da convocação ao referendo - Lucas Carlos Lima (Conjur)

     

    OPINIÃO

    Conflito territorial entre Venezuela e Guiana: novidades à luz da convocação ao referendo

    17 de novembro de 2023, 17h14

    recente convocação de um referendo pelo governo da Venezuela em relação ao reivindicado território de Essequibo — disputado com a Guiana — adiciona uma nova camada de juridicidade à controvérsia territorial entre os dois estados latino-americanos. Trata-se de antiga disputa que surgiu como resultado da alegação venezuelana de nulidade do Laudo Arbitral de 3 de outubro de 1899, que determina a fronteira atual entre as duas partes em virtude de “uma transação política realizada às escondidas da Venezuela e sacrificando seus direitos legítimos”.

    À época, a arbitragem ocorreu entre a colônia da Guiana Britânica e a Venezuela,que disputavam uma larga porção de terra (rica em recursos naturais) entre os rios Oniroco e Essequibo. Um tribunal arbitral composto por cinco juristas (dois americanos, dois ingleses e um russo) foi composto para delimitar pacificamente a fronteira em questão. Na atualidade, uma modificação de tal fronteira poderia também ter impacto nos recursos marítimos e energéticos de ambos os países. O presente ensaio analisa o conflito territorial à luz dos procedimentos judiciais perante a Corte Internacional de Justiça, em particular diante do requerimento de medidas provisórias solicitado pela Guiana no fim de outubro diante da  convocação do referendo.

    Conflitos territoriais perante a Corte da Haia
    Conflitos resolvendo controvérsias territoriais e marítimas não são raros perante a Corte Internacional de Justiça [1]. Em verdade, existe uma longa e constante jurisprudência que assenta este tribunal como o órgão por excelência para resolver conflitos desta natureza que são, como se sabe, extremamente complexos, e não raramente envolvem profundos sentimentos nacionais de relação com o território. Apesar de pode se afirmar que nos últimos tempos a jurisprudência da Corte ter variado substancialmente, incorporando temáticas como direito ambiental internacional ou direitos humanos, é também possível notar que a Corte não deixou de ser o órgão judicial ao qual Estados recorrem para solucionar conflitos em relação à soberania sobre territórios disputados, também relativos a zonas marítimas.

    Reprodução

    Exemplos recentes nesse sentido são os casos da Delimitação da Plataforma Continental entre Nicarágua e Colômbia (2023), a Delimitação Marítima entre Somália e Quênia (2021), entre Peru e Chile (2014) ou entre Burkina Faso e Niger (2013). Desde que a Corte sedimentou a doutrina jurídica do uti possidetis iuris [2] em 1983 no célebre caso entre a Burkina Faso e a República do Mali há um profundo interesse dos Estados em utilizar meios judiciais para verificar quem possui as melhores teses jurídicas para comprovar a soberania sobre um determinado território.

    A tensão de fundo em todas essas controvérsias territoriais reside no fato de que as regras estabelecidas no direito internacional para resolvê-las são essencialmente frutos de pretensões contestadas e decisões arbitrais ou judiciais avaliando tais pretensões. Não existem, obviamente, tratados internacionais que determinam regras para delimitações territoriais. Estas se dão exatamente pelo fruto da troca e de negociações de Estados por suas fronteiras — muitas vezes definidas, no passad,o como resultado de conflitos armados. Se por um lado, o princípio da integridade territorial, decorrente da soberania dos Estados, parece ser um valor jurídico de grande força normativa que tende ao status quo e à inamovibilidade e à estabilidade das fronteiras, há também novas situações jurídicas que permitem, raramente, a contestação de fronteiras internacionais.

    A controvérsia entre Venezuela e Guiana não parece ser excepcional na abordagem caso a caso que o direito internacional adota para resolver essas questões. Suas origens são antigas e por mais que possam eventualmente ser aquecidas à luz de ações políticas, constitui um caso que merece entendimento exatamente porquanto possui implicações também na política interna e externa dos Estados — e seus vizinhos.

    As decisões da Corte Internacional de Justiça no caso Guiana e Venezuela
    Se o laudo arbitral emitido em 1899 pacificou temporariamente as relações entre a colônia da Guiana Britânica e a Venezuela, é possível verificar a existência de uma controvérsia entre os Estados durante o período de descolonização da Guiana. Em 1962, a Venezuela informou o então Secretário-Geral da ONU sobre a existência de uma controvérsia entre Reino Unido e Venezuela “referente à demarcação da fronteira entre a Venezuela e a Guiana Britânica”, alegando que o Laudo de 1899 havia sido fruto de um conluio,  e que, portanto, não poderia reconhecer o Laudo. Peritos de ambas as partes examinaram o laudo e chegaram a conclusões diferentes. Em 1966, após a independência da Guiana, a questão continuava pendente entre as partes e um tratado foi assinado reconhecendo a controvérsia — o Acordo de Genebra, que outorgava autoridade ao Secretário-Geral da ONU para auxiliar na solução da questão. Uma das perguntas do referendo convocado pela Venezuela diz respeito, justamente à legitimidade do Tratado de Genebra como fonte da resolução da controvérsia.

    As conversas entre os Estados sobre o tema continuaram sob os bons ofícios do Secretário-Geral da ONU até 2014. Em 2017, Antônio Guterres decidiu que, após ter “cuidadosamente analisado” os processos de bons ofícios em 2017, e não tendo as partes chegado a uma solução, ele optaria por conduzir a disputa “à Corte Internacional de Justiça como o meio a ser utilizado agora para utilizado para sua solução” com base no Acordo de Genebra de 1966. Em 29 de março de 2018 a República da Guiana iniciou um procedimento perante a Corte Internacional de Justiça buscando reconhecer a validade do Laudo Arbitral, e, portanto, a intangibilidade de sua fronteira e território.

    Até o momento, a Corte Internacional de Justiça emitiu duas decisões.

    A primeira delas diz respeito à própria jurisdição da Corte que, segundo as regras essenciais do direito internacional, deve ser baseada sobre o consentimento de ambas as partes para poder decidir uma disputa. Em decisão de dezembro de 2020, procedimento no qual a Venezuela decidiu não participar, a Corte Internacional de Justiça, por 12 votos a 4, entendeu possuir jurisdição sobre o caso em virtude do Acordo de Genebra de 1977 e pela decisão do Secretário-Geral.

    A Venezuela então mudou sua atitude em relação ao processo e resolveu apresentar suas defesas — isto é, objeções preliminares à jurisdição da Corte – afirmando ser o pedido da Guiana inadmissível em virtude da ausência de uma terceira parte diretamente interessada na controvérsia: o Reino Unido. Trata-se da assim chamada doutrina do Ouro Monetário pela primeira vez aplicado no caso Monetary Gold Removed from Rome in 1943 (Italy v. France, United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland and United States of America). A doutrina exige que a Corte se abstenha de decidir uma controvérsia quando os interesses jurídicos de um terceiro estado que não ofereceu seu consentimento e que constituem “o próprio objeto” do caso, ou quando o Tribunal não pode decidir o caso a ele submetido sem antes julgar a responsabilidade internacional (ou os direitos) de um terceiro Estado. No caso, e em síntese, a tese venezuelana seria de que

    a declaração de nulidade do laudo de 1899 acabaria por se manifestar sobre um eventual comportamento do Reino Unido, potência colonizadora à época, e, portanto, faltaria um elemento essencial à controvérsia, que deveria ser dispensada.

    Embora tenha declarado admissível a objeção da Venezuela, a Corte não deu a ela razão. Em decisão de abril de 2023, a Corte Internacional de Justiça entendeu que “a prática das partes do Acordo de Genebra demonstra sua concordância de que a disputa poderia ser resolvida sem o envolvimento do Reino Unido”. De uma maneira tangencial, a Corte da Haia entendeu que o princípio do ouro monetário não se aplicava ao caso porque os interesses do Reino Unido durante todo o processo da formulação da disputa não estavam em jogo. Embora aqui não seja o espaço, pode-se processualmente, duvidar desse entendimento limitado da aplicação do princípio e se questionar sobre as razões pelas quais a Corte preferiu adotá-lo. Fato é que, como conclusão, a decisão de 2023 fez com que a controvérsia entre Guiana e Venezuela avançasse rumo ao mérito, até que a convocação de um referendo adicionasse uma nova  fase processual à disputa.

    A convocação do referendo e as medidas cautelares
    A estratégia da Venezuela de convocar um referendo com cinco perguntas em relação à controvérsia da Guiana Essequiba é uma tentativa de inserir um novo elemento na complexa questão que envolve os dois Estados. O elemento da autodeterminação dos povos3, quando aplicável efetivamente, é particularmente relevante em controvérsias territoriais. De maneira sucinta, a consulta ao povo venezuelano tem cinco objetivos: 1. Rechaçar o laudo arbitral de 1899; 2. Contestar o Acordo de Genebra como instrumento-fonte da solução; 3. Não reconhecer a jurisdição da Corte Internacional de Justiça; 4. Opor-se à pretensão da Guiana de explorar a zona marítima; 5. Criar um novo estado federal da Guiana Essequiba como parte da Venezuela.

    Diante de tal convocatória, e a fim de proteger os direitos pendentes na lide perante a Corte da Haia, a República da Guiana realizou um pedido de medidas cautelares perante a Corte. O célere pedido da Guiana não busca apenas a não-realização do referendo, mas também uma ordem da Corte que exija que nenhuma atitude seja tomada para exercer controle de fato sobre a região — antecipando os rumores de que a área seria alvo de algum tipo de operação militar de controle. Nos próximos meses, a Corte terá de se debruçar sobre os requisitos essenciais de seu próprio processo em relação à plausibilidade dos direitos a serem violados, o risco de dano ao objeto principal da lide e poderá, efetivamente, decidir que o referendo  afeta o objeto da disputa. Nesse caso, poder-se-ia conjecturar que a Corte da Haia teria poderes para delimitar a ação do referendo. Naturalmente, uma decisão do gênero não seria muito bem recebida em Caracas, sobretudo ao se considerar que, historicamente, a Venezuela mostra alguma reticência em relação ao uso da Corte para a solução da questão.

    Qual o futuro da controvérsia?
    Controvérsias internacionais que tocam o território dos Estados, recursos naturais e fortes sentimentos nacionais nem sempre encontram seu deslinde último numa decisão judicial. A Corte Internacional de Justiça muitas vezes emitiu decisões significativamente importantes no interior de um processo político-jurídico maior. A decisão sobre medidas cautelares, passível de afetar algum modo o referendo conclamado, pode ter impactos políticos significativos, especialmente num contexto de chamamento de eleições, de renegociação de sanções, e de reestruturação geoenergética da região. Esses elementos extrajudiciais não aparecem com frequência no raciocínio jurídico da Corte Internacional de Justiça, que deverá ponderar, em concreto, os limites de seus poderes e de sua jurisdição sobre a disputa da nulidade do laudo e os novos episódios relativos à querela das partes.

    Pode-se questionar se a reabertura e rediscussão de laudos arbitrais emitidos há décadas é uma boa política para a estabilidade das fronteiras da região. No Brasil, a questão do Pirara e o laudo do rei Vittorio Emmanuele 3º é exemplo disso. É doutrina comumente repetida que uma das forças políticas do Brasil no cenário internacional é a ausência de controvérsias territoriais com seus vizinhos. No caso venezuelano, por outro lado, existe uma consistente alegação de corrupção do laudo que é sustentada há mais de sessenta anos.

    Talvez a maior lição que, nesse momento, a controvérsia possa oferecer não é apenas a complexidade do direito dos povos ao seu território ou as tensões políticas que emergem com esse tipo de controvérsia. O caso demonstra que existe uma linguagem possível de discussão das questões jurídicas que abdica da força e repudia ações de violência para resolver controvérsias internacionais. Há ainda instituições internacionais que podem oferecer uma contribuição significativa, com base na linguagem do direito internacional, que pode evitar as posições políticas polarizadas. Conhecer as controvérsias, os argumentos que as cingem, e os limites das instituições que podem atuar em sua resolução é um benefício não trivial que ainda é oferecido pelo direito internacional.


    [1] Sobre o tema, ver JENNINGS, R.Y. The Acquisition of Territory in International Law. Manchester, 2017. KOHEN, Marcelo; HÉBIÉ, Mamadou. (orgs) Research Handbook on Territorial Disputes in International Law. Elgar Publisher, 2018; BONAFÉ, Beatrice I.Territory and Conflicts: Is International Law the Problem? In: Nicolini, Palermo, Milano (orgs). Law, Territory and Conflict Resolution: Law as a Problem and Law as a Solution, 2016; LANDO, Massimo. Maritime Delimitation as a Judicial Process. Cambridge: 2019.

    [2] Sobre o tema, o caso e suas implicações, ver LIMA, Lucas Carlos. Uti possidetis juris e o papel do direito colonial na solução de controvérsias territoriais internacionais. Sequência, v. 38, n. 77, 2017, pp. 122- 147.

    [3] Sobre o tema, ver o clássico CASSESE, Antonio. Self-Determination of Peoples: a legal reappraisal. Cambridge: 1998. Ver também SUEDI, Yusra. Self-determination in territorial disputes before the International Court of Justice: From rhetoric to reality? Leiden Journal of International Law, Vol. 36, 2022, pp. 161-177 e ainda, no caso Chagos, LIMA, Lucas Carlos. A opinião sobre o arquipélago de Chagos: a jurisdição consultiva da Corte Internacional de Justiça e a noção de controvérsia. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, nº 75, 2019, pp. 281-302.

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    segunda-feira, 16 de outubro de 2023

    O papel da Justiça internacional no conflito em Nagorno-Karabakh - Lucas Carlos Lima (FSP)

     OPINIÃO

     
     LUCAS CARLOS LIMA

    O papel da Justiça internacional no conflito em Nagorno-Karabakh

    Decisões de cortes terão efetivo papel na vida e memória da população civil

    https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/10/o-papel-da-justica-internacional-no-conflito-em-nagorno-karabakh.shtml

    Lucas Carlos Lima

    Professor de direito internacional na UFMG, é coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG


    Folha de S. Paulo, 14/10/2023

    Não só no campo de batalha se descortinam conflitos trágicos como o na região de Nagorno-Karabakh, enclave europeu pelo qual se digladiam Armênia e Azerbaijão. Ao mesmo tempo em que centenas de refugiados buscam abrigo fora de sua terra natal e tropas disputam um território rico em recursos e conflitos históricos, times jurídicos encetam causas em tribunais internacionais para demonstrar que ao oponente não socorre o direito.

    O questionamento que segue é: em meio aos fluxos migratórios e às brutalidades bélicas, qual é o papel efetivo de tribunais internacionais num conflito como o que se desenlaça no coração do Cáucaso?
    Em apertada síntese, pode-se citar dois fronts judiciais nos quais a questão de Nagorno-Karabakh é discutida: a Corte Internacional de Justiça, em Haia, e a Corte Europeia de Direitos Humanos, em Estrasburgo.

    m Haia, o litígio gira em torno da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1966), da qual o Brasil faz parte e deseja ver respeitada. Armênia e Azerbaijão alegam em processos que o oponente viola direitos protegidos ao discriminar minorias étnicas na região que controlam.

    O que desejam os Estados com esse processo? Certamente que o tratado seja respeitado, mas há um argumento jurídico a mais.

    Em Estrasburgo, a Convenção Europeia de Direitos Humanos arrola uma série de direitos que estariam sendo violados pelos dois Estados. Há aqui uma particularidade. Nesse tribunal, há não só o conflito entre os Estados como de indivíduos que acionam os Estados pela violação de seus direitos. O atual conflito continuará aumentando o já vultoso número de casos nessa corte.

    É um truísmo afirmar que, para o direito internacional, é necessário estar claro quem controlava determinada região no momento em que a violação ocorreu. Aqui consiste uma dos principais vocações desses tribunais: após analisar cuidadosamente os fatos, determinar quem concretamente violou o direito.

    Mas a justiça internacional possui percalços ao exercer essa vocação. No atual desenho dos tribunais internacionais, a ação imediata que esses órgãos judicantes possuem é extremamente limitada. Os olhos que vagam a Haia ou Estrasburgo por uma determinação do fim do conflito não o encontrarão. Contudo, existe a chance de que esses tribunais ofereçam pelo menos uma resposta juridicamente baseada, comprovada através de um justo e equilibrado processo, que violações ocorreram e que o direito internacional, num determinado momento e espaço, tinha um lado.

    Os tempos da justiça internacional são particulares. Que o diga o Brasil, que em setembro de 2023 teve finalmente encerrado o caso da reparação pelas violações contra Damião Ximenes Lopes na Corte Interamericana, decidido em 2006.

    O conflito em Nagorno-Karabakh não terá seu fim decretado pela sentença de um tribunal. Contudo, esses tribunais não apenas servirão para dizer a qual lado socorria o direito como terão efetivo papel na vida e memória daqueles que mais sofrem: a população civil protegida pelos tratados firmados.


    O tempo parece outorgar à história a última palavra sobre o valor da justiça internacional.